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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ANTROPOLOGIA IV – QUESTÕES DA ANTROPOLOGIA


CONTEMPORÂNEA

PROF. DR. SILVANA DE SOUZA NASCIMENTO

O CORPO E A DICOTOMIA SUJEITO-OBJETO NAS OBRAS DE TIM


INGOLD, MARILYN STRATHERN E LÉLIA GONZALEZ

MARIANA RAMOS

Nº USP 11250171, PERÍODO NOTURNO

SÃO PAULO, 2º SEMESTRE DE 2020


Introdução

Tim Ingold, Marilyn Strathern e Lélia Gonzalez dissertam sobre o corpo a partir de
diferentes contextos, o que os une é o questionamento ou o apontamento de problemas
na dicotomia sujeito-objeto e como ela se dá em determinados contextos.

A antítese abordada classifica, normalmente, as pessoas como sujeito e as coisas como


objetos. Seja a partir do corpo humano, o corpo da mulher e o corpo da mulher negra, os
autores percebem uma dificuldade em separar os dois âmbitos ou até mesmo uma
inversão dessa antítese.

Desenvolvimento

A vida, nessa perspectiva, é um movimento em direção ao desfecho final: um


preenchimento gradual de capacidades e esgotamento de possibilidades. (INGOLD,
2015, p. 26)

Em Estar Vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição (2015), Tim


Ingold apresenta, como o título indica, sua visão do que é “estar vivo para o mundo”.
Para o autor, viver historicamente é habitar o mundo, e habitá-lo significa traçar um
caminho através da variedade de coisas que aparecem e compõem seu percurso.

A partir da visão ocidental, mesmo que de forma metafórica, objetos em um caminho


seriam, facilmente, motivo de desvio ou seriam simplesmente ignorados. No entanto,
Ingold considera os objetos, o ambiente e tudo, de modo geral, um fator digno de
consideração no percurso da vida. Tais coisas que permeiam o caminho/habitar /viver
são percebidas pelo indivíduo através de seu contato e relacionamento e a forma de estar
vivo/habitar é afetada pela forma como percebemos as coisas, da mesma forma que os
objetos são afetados pelo relacionamento com o indivíduo.

Trata-se quase de um truísmo dizer que não percebemos com os olhos, os ouvidos ou a
superfície da pele, mas com o corpo todo. (INGOLD, 2015, p.87, grifo meu)

Para Ingold a percepção do meio ambiente e das coisas é feita através de todo o corpo,
colocando, à primeira vista, o corpo humano como sujeito na relação entre seres
humanos, meio ambiente e os objetos. Entretanto, ao dissertar sobre a história da
tecnologia e a influência dos objetos, o autor abandona a dicotomia sujeito-objeto e
considera os materiais, sejam vivos ou não-vivos, como parte da história, como sujeitos
também.

Como artefatos, essas coisas podem ser atribuídas às propriedades formais de um


projeto, no entanto elas não foram produzidas, mas cresceram. Se, além disso, elas
forem parte do mundo material, então o mesmo deve ser verdade do meu próprio corpo.
(...) Se eu e meu corpo são uma e a mesma coisa, e se o meu corpo realmente participa
do mundo material, então como pode o corpo-que-eu-sou se comprometer com esse
mundo? (INGOLD, 2015, p.53, grifo meu)

Ao pensar na materialidade, Ingold coloca os corpos humanos, os corpos não-humanos,


os objetos e as ferramentas na mesma altura, todos fazem parte do mundo material e se
desenvolvem de forma independente, mas conectada.

A dicotomia sujeito-objeto, e seu abandono, também foram alvo de reflexão de Marilyn


Strathern. Em O efeito etnográfico (2014), Strathern aborda a relação das mulheres da
Papua- Nova Guiné na circulação de bens de valor e na economia cafeeira na região, a
autora percebe que o gênero é um fator importante da determinação do trabalho e papel
das pessoas na sociedade. O feminino é relacionado com a pobreza, a produção e o
âmbito doméstico, ao passo de que o masculino simboliza a riqueza, a transação e o
âmbito público (2014, p.60).

Na cultura Hagen, Strathern percebe a íntima conexão entre parentesco, gênero e as


relações de produção. No caso, o trabalho feminino é constantemente apropriado e, a
partir da obra de Lindgren, a autora percebe que tal apropriação de mão de obra e de
propriedade reproduz a cultura patriarcal da sociedade.

As reivindicações de propriedade por parte das mulheres aparecem como uma função
do sucesso com que os homens se apropriam da riqueza para perpetuar a hegemonia por
meio da agnação. (STRATHERN, 2014, p. 114)

Para Strathern (2014, p.115) as relações de propriedade não são representadas como um
tipo de relação social, mas como uma relação entre pessoas e coisas e a separação entre
pessoas e coisas pode se unir com a separação entre sujeito e objeto.

Como sujeitos, as pessoas manipulam as coisas; podem até mesmo colocar outras
pessoas no papel de coisas na medida em que podem ter direitos em relação a elas.
(STRATHERN, 2014, p. 115-116, grifo meu)
Da mesma forma que Tim Ingold, Marilyn Strathern questiona a visão ocidental, na
qual uma pessoa é definida como um sujeito agente, que possui e pode usufruir de seus
direitos e, consequentemente, pode controlar os frutos de seu trabalho e pode possuir e
transmitir propriedade, limitando, assim, a atuação como pessoa de um indivíduo.
Todavia, a antítese sujeito-objeto não funciona para as terras altas da Nova Guiné, dado
que a condição de pessoa não está relacionado ao controle ou não-controle de
propriedade e força de trabalho.

O comércio ou escambo de noivas na Nova Guiné é um importante fator da economia,


as mulheres da região são comumente trocadas por riquezas ou mesmo por outras
mulheres. Nesse sentido, as mulheres estão em posição de objeto e os homens, que
fazem as transações, estão em posição de sujeito. Apesar disso, Strathern (2014, p.118)
reforça que essa relação não compromete o estado de pessoa das mulheres, porque nessa
sociedade as definições de pessoa e objeto não estão relacionadas à manipulação de
coisas.

Concomitantemente, a autora expõe a problemática da apropriação do trabalho feminino


e uso desse processo de apropriação como reprodução da ideologia predominantemente
masculina, no âmbito de parentesco, descendência, divisão do trabalho, controle de
riquezas e participação nos assuntos públicos. As mulheres tem seu dinheiro tomado em
prol masculino e não têm seus direitos quanto aos produtos de seu trabalho assegurados.
Para Strathern (2014, p.113), tais fatores servem como um índice de até que ponto as
mulheres agem em seu próprio direito ou, no limite, até que ponto agem como sujeitos.

Na cultura Hagen, o trabalho e os frutos do trabalho representam as pessoas e vice-


versa, por isso, as mulheres, em seu papel de produção possuem enorme importância
para a construção da circulação de bens de valor (STRATHERN, 2014, p. 127). Assim,
nesse sistema, as mulheres são pessoas e objetos e, por sua vez, os objetos também
podem ser sujeitos. As coisas, sendo fruto do trabalho de pessoas, são parte das pessoas,
ou seja, a identidade da pessoa-sujeito é definida a partir das coisas que produz
(STRATHERN, 2014, p. 131).

A relação do sistema produtivo e a posição do corpo como sujeito ou objeto também é


abordada na obra Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984), de Lélia Gonzalez.
Da mesma forma que as mulheres Hagen na Papua-Nova Guiné possuem uma dupla
condição na antítese ocidental sujeito-objeto, as mulheres negras na atualidade possuem
uma dupla imagem: ora são vistas como o estereótipo da “mulata”, mulher negra
sexualizada e vista como objeto de desejo, ora são vistas como o estereótipo da
“doméstica”, trabalho desvalorizado, pouco e não remunerado e não-reconhecido como
trabalho real, desvalorizando o trabalho e o âmbito doméstico (GONZALEZ, 1984, p.
224).

A mulher negra, em períodos tais como o Carnaval, são sexualizadas, vistas como
objeto, com o objetivo de satisfazer as fantasias fetichistas de homens brancos e sua
ideia de dominação sobre o sexo e a raça oposta. Exaltadas, as “mulatas” são alvo de
suposta valorização, que se traduz, na realidade, em todo o trato agressivo da sociedade
para com a mulher negra.

Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no


momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a
culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de
agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos mulata e doméstica são
atribuições de um mesmo sujeito. (GONZALEZ, 1984, p. 228)

Os atos de conectar as mulheres Hagen e as mulheres negras ao âmbito doméstico


possuem funções semelhantes. A esfera doméstica é vista como inferior à esfera
pública, não apenas na sociedade Hagen, mas também na sociedade ocidental moderna.
O trabalho doméstico que recai às mulheres, em especial às mulheres negras, é um
trabalho na maioria das vezes não remunerado que fortalece o roubo da posição sujeito
da mulher.

Desse modo, a mulher negra, uma pessoa, que seguindo a lógica ocidental deveria se
localizar como sujeito, é constantemente colocada como objeto, seja através da sua
sexualização ou da desvalorização de seu trabalho e a limitação de sua atuação à esfera
doméstica, fruto da herança escravagista da sociedade colonial.

(...) e lhes nega o estatuto de sujeito humano. Trata-os sempre como objeto.
(GONZALEZ, 1984, p.232)

Conclusão

O corpo, em Ingold, está sempre em conexão com o mundo e os objetos. O corpos,


assim como as coisas, ao longo de suas existências, produzem uma história e sendo
todos inseridos no mundo material, não se encaixam em uma hierarquia entre sujeito e
objeto.

Os corpos das mulheres Hagen, como Strathern observa, se encaixam em ambas as


classificações, são sujeito e o objeto, simultaneamente. Ao produzirem coisas, as
mulheres se inserem no processo produtivo em posição de sujeito e ao se identificarem
com suas produções, são consideradas objetos e, portanto, também não se encaixam na
dicotomia.

A dupla imagem da mulher negra, como Gonzalez mostra, as coloca como objeto de
desejo, desvaloriza seu trabalho e as limita ao âmbito doméstico, nunca
verdadeiramente as colocando como sujeito, gerando uma inversão na relação entre
pessoas e o papel de sujeito e as coisas e o papel de objeto.

Referências

GONZALEZ, Lelia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências


Sociais Hoje, Anpocs, 1984

INGOLD, Tim. Estar Vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.


Petrópolis/RJ: Vozes, 2015

STRATHERN, M. O efeito etnográfico, Cosac Naify, São Paulo, 2014

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