Você está na página 1de 6

26/07/2021 | VELHOGENERAL.COM.

BR | CATEGORIA: GEOPOLÍTICA

AFEGANISTÃO: UM ETERNO CAMPO DE BATALHA GEOPOLÍTICO


Traduzido e adaptado por Albert Caballé Marimón*


Um T-62 em posição de tiro em algum lugar nas montanhas Hindu Kush, no Afeganistão, entre 1984 e 1985
(Foto: Sergey Novikov, da 5º Cia. Aerotransportada do Exército Vermelho/Wikimedia Commons).

Em sentido geográfico e histórico, o Afeganistão é um lugar difícil e os afegãos são pessoas


difíceis. Quando a tecnologia trava uma guerra contra as montanhas, geralmente as
montanhas vencem. E no Afeganistão, foram as Hindu Kush que finalmente saíram
vitoriosas. Inegavelmente, os Estados Unidos e a OTAN falharam nessa invasão
equivocada, ficando com nada além de humilhação.

No coração da histórica Rota da Seda, uma transformação dinâmica crucial está


ocorrendo. Após o cansativo conflito de duas décadas, os Estados Unidos estão
finalmente saindo do Afeganistão antes da data simbólica do próximo 11 de
setembro, o dia em que a Al Qaeda atacou o centro de comércio mundial e o
Pentágono em 2001. A retirada das forças se alinha com o acordo histórico
assinado em 29 de fevereiro do ano passado com o movimento Talibã em Doha.

Várias questões estão surgindo de diferentes cantos do mundo sobre os benefícios


obtidos por esta guerra prolongada, que culminou na perda de 240.000 vidas e
custou mais de dois trilhões de dólares. Embora a decisão de evacuar as tropas
seja um gesto positivo, a paz e a estabilidade de longo prazo dependem da política
externa e das iniciativas diplomáticas dos países da região.

Tudo começou quando os Estados Unidos e seus aliados intervieram militarmente


no Afeganistão citando a recusa do Talibã em entregar Osama bin Laden,
supostamente responsável pelos ataques de 11 de setembro. Mas a real intenção
da invasão estava muito além de derrotar uma insurgência local ou destruir
“terroristas” com redes globais. Ao longo da história, fundamentos divergentes
VELHOGENERAL.COM.BR AFEGANISTÃO: UM ETERNO CAMPO DE BATALHA GEOPOLÍTICO 1


tentaram os impérios e nações poderosas a conquistar o país sem litoral que é
composto de cadeias de montanhas traiçoeiras e terreno acidentado.

Desde o czarismo de Pedro o Grande, o Império Russo tentou expandir seu


território até as margens do Mar da Arábia para afrouxar as amarras do
isolamento geográfico que o país enfrentava devido aos seus portos congelados e
inavegáveis. Por causa desse dilema, o império foi isolado significativamente das
oportunidades de comércio global. Embora muitas guerras tenham sido travadas
a esse respeito, a busca russa por acesso a um mar quente nunca se materializou.
Na primeira metade do século XIX, houve um aumento nas relações russo-afegãs.
Temendo as consequências desse domínio russo progressivo e mais retrocessos,
a Grã-Bretanha invadiu o Afeganistão em 1839, sendo mais tarde repelida pelos
combatentes tribais afegãos.

Após a revolução bolchevique, a relação russo-afegã se desenvolveu ainda mais e,


eventualmente, um golpe de estado em 1978 culminou na criação de um regime
comunista no Afeganistão. Cética em relação ao sucessor do Presidente Hafizullah
Amin e prevendo o perigo de repercussões da influência americana sobre ele, a
União Soviética invadiu o Afeganistão em dezembro de 1979. A intervenção
militar soviética agravou a hostilidade existente entre a população, que já
enfrentava violentas ameaças aos seus séculos de idade estilo de vida tradicional
e cultural através das reformas impostas pelo regime comunista sob orientação
soviética. A resistência logo cresceu e várias tribos começaram a pegar em armas
para conter a ocupação russa.

Os fracassos no Irã e na Nicarágua no mesmo ano persuadiram o futuro governo


Reagan a transformar a política externa americana. Com a cessação de seu
domínio no governo de Reza Pahlevi no Irã, os Estados Unidos ficaram destituídos
de uma presença estratégica na região. Para recuperá-la, os EUA apoiaram a
resistência do povo afegão. Os combatentes também receberam grandes somas de
dinheiro da Arábia Saudita por meio das redes de Osama bin Laden. Em 1989,
devido às ferozes táticas de guerrilha dos Mujahideens, a União Soviética foi
forçada a se retirar do Afeganistão.

Na incerteza política que se seguiu, uma guerra civil encharcada de sangue entre
os senhores da guerra se iniciou, e durou mais sete anos. Nesse estágio de
turbulência, o grupo denominado Talibã, composto principalmente de estudantes
das Madrassas, derrotou outras forças proeminentes e estabeleceu um novo
governo intitulado “Emirado Islâmico do Afeganistão”, com o mulá Mohammed
Omar como líder. Mesmo que sua regra fosse ter restrições especialmente para as
mulheres, isso resultou em estabilidade de curto prazo em comparação com os
terríveis anos anteriores.

Os combatentes estrangeiros como Osama bin Laden, que estavam descontentes


e partiram devido à guerra civil, voltaram ao Afeganistão governado pelo Talibã
percebendo um terreno fértil para eles. Eventualmente, a organização chamada Al
Qaeda foi formada por esses combatentes estrangeiros para travar uma guerra
contra os Estados Unidos e seus aliados.

2 AFEGANISTÃO: UM ETERNO CAMPO DE BATALHA GEOPOLÍTICO VELHOGENERAL.COM.BR


A Al Qaeda afirmou que as intervenções americanas e ocidentais em vários países
estão agindo como um obstáculo para a construção de um domínio islâmico
estável e robusto após a queda do califado otomano em 1924. O apoio
incondicional ao Estado de Israel situado no meio dos países árabes também
provocaram o grupo a declarar os Estados Unidos como seu inimigo. A permissão
para estabelecer uma base americana na Arábia Saudita, às vésperas da guerra do
Golfo contra o Iraque, os enfureceu. A Al Qaeda viu a presença americana na Arábia
Saudita como uma violação cultural e militar e declarou que era uma obrigação de
todos os muçulmanos lutar contra a América, que eles afirmam estar liderando
uma cruzada contra o Islã. Os relatos da morte de meio milhão de crianças
iraquianas devido às sanções americanas aumentaram a chama.

Foi nessa atmosfera caótica que a Al Qaeda sequestrou quatro aviões americanos
em 11 de setembro de 2001 e atacou o World Trade Center e o Pentágono,
epicentros econômicos e militares dos EUA, matando cerca de três mil pessoas. Os
ataques chocaram os Estados Unidos. O presidente Bush garantiu punições
severas aos perpetradores e exigiu que o Talibã entregasse Osama bin Laden.
Citando a falta de evidências e em nome do código de hospitalidade pashtun, o
Talibã se recusou a entregar bin Laden. Eles também propuseram a criação de um
tribunal internacional para levar bin Laden a julgamento.

A estratégia da Al Qaeda de arrastar os Estados Unidos para o combate direto em


terreno hostil do Afeganistão foi uma das razões por trás dos ataques de 11 de
setembro. Washington também viu isso como uma oportunidade de intervir na
região. Alguns analistas chegaram a deduzir que os Estados Unidos teriam
invadido o Afeganistão mesmo sem a ocorrência do 11 de setembro, para proteger
seus interesses nacionais.

A destruição de estátuas budistas monumentais em Bamiyan sublinhou o


descrédito do Talibã internacionalmente, que foi utilizado politicamente pelos
Estados Unidos. As nações líderes em geral consentiram com a campanha
americana, que declarou estar cumprindo o dever histórico de resgatar o
Afeganistão das garras do Talibã não progressista. Em seguida, os Estados Unidos
entraram no Afeganistão em 7 de outubro de 2001.

O Talibã, que recuou para as áreas rurais, rapidamente obteve o apoio da


população local. A presença americana no país, com operações militares
esporádicas, irritou os afegãos. Em resumo, os Estados Unidos caíram em uma
gigantesca armadilha. Foi uma decisão mal calculada invadir uma região que
resistiu corajosamente a invasores anteriores como Alexandre o Grande, Genghis
Khan e outros invasores, alcançando assim o epíteto de “cemitério de impérios”.

Como o presidente Biden anunciou que a missão militar dos EUA terminaria em
31 de agosto, as políticas dos países vizinhos serão cruciais nos desenvolvimentos
futuros. O primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, já se opôs à intenção
americana de estabelecer bases militares em seu país. Ele questionou a lógica de
erguer bases no Paquistão enquanto os EUA não conseguiram vencer a guerra de
20 anos das bases dentro do Afeganistão. As bases no Paquistão que
bombardeariam os afegãos instilarão vingança entre os combatentes tribais que
então atacariam o Paquistão em retaliação, disse Khan.

VELHOGENERAL.COM.BR AFEGANISTÃO: UM ETERNO CAMPO DE BATALHA GEOPOLÍTICO 3


O domínio pashtun em ambos os lados da linha porosa Durant (fronteira
Afeganistão-Paquistão) também aumentou a preocupação, já que o Talibã é uma
entidade dominada pelos pashtuns e metade deles reside em áreas do Paquistão.
A guerra no Afeganistão facilmente se espalharia pelo Paquistão, o que Imran
Khan deseja evitar. Doravante, a futura cooperação do Paquistão para servir aos
interesses militares americanos parece substancialmente inconcebível no futuro.
As decrescentes relações Paquistão-EUA também podem ser atribuídas às sólidas
parcerias do Paquistão com a China.

Outro aspecto decisivo que merece atenção considerável é a descoberta de


recursos inexplorados no valor de três trilhões de dólares no Afeganistão. A
presença de quantidades significativas de Rare Earth Elements (REE) usados em
smartphones, laptops, veículos elétricos, turbinas eólicas, painéis solares, sistemas
de orientação de mísseis e assim por diante é um fator fundamental. Os atores que
obtêm o direito de extrair esses recursos podem vencer o monopólio da China. A
garantia de assistência americana ao futuro governo do Afeganistão deve ser vista
sob essa perspectiva. Somente em um ambiente de paz ocorrerá a extração de
recursos que, se executada com destreza, resultará em uma situação ganha-ganha
para os países interessados. Se tal acordo viável de compartilhamento de recursos
estiver em vigor, mesmo uma pequena parcela da receita desses recursos será
suficiente para o Afeganistão satisfazer suas necessidades básicas de
desenvolvimento. A integração com o megaprojeto chinês Belt and Road Initiative
(BRI) seria uma oportunidade significativa para o Afeganistão realizar os
objetivos acima. Mas isso também atrairia a fúria dos Estados Unidos. Mesmo que
vários obstáculos possam ocorrer durante a implementação, uma abordagem
equilibrada por parte da liderança iminente é inevitável.

Em meio à rápida destruição de áreas junto com o imenso apoio da população, o


Talibã recentemente reivindica o controle de 85% do território afegão. Na esteira
da declaração dos EUA de retirada do Afeganistão, o governo de Cabul disse com
segurança que é totalmente capaz de defender o país contra as ameaças atuais. No
entanto, isso soa como arrogância. Além das capitais provinciais, o país inteiro
está caindo nas garras do Talibã. Recentemente, mais de mil soldados fugiram pela
fronteira com o Tajiquistão após um ataque do Talibã, humilhando o governo de
Cabul. O controle do Talibã de várias áreas de fronteira fortalece sua posição na
mesa de negociações, diminuindo ainda mais as esperanças para o governo de
Ashraf Ghani.

Anteriormente, os países ocidentais e a mídia viam o Talibã como selvagens


primitivos e terroristas que não se preocupavam com os direitos humanos e a paz.
Mas, atualmente, eles estão se comunicando intensamente com a mídia ocidental
e muito ativos nas mídias sociais. Seus funcionários políticos em Doha estão se
retratando como diplomatas competentes, engajados em discussões com vários
países da região. Suas delegações se reuniram com autoridades dos Estados
Unidos, Rússia, China, Noruega, Suíça, Irã, Paquistão, Turcomenistão e assim por
diante. Isso demonstra o aumento da consciência política do movimento e sua
estratégia reforçada. Eles também estão preocupados com a imagem política no
exterior. Embora tenham negado o assassinato do fotojornalista indiano Danish
Siddiqui, o pedido de desculpas do Talibã pela morte, e garantias para a proteção
dos jornalistas revelam esse aspecto.
4 AFEGANISTÃO: UM ETERNO CAMPO DE BATALHA GEOPOLÍTICO VELHOGENERAL.COM.BR


Apesar de ter potencial para adquirir as capitais provinciais, parece que o Talibã
está atrasando isso como parte de sua estratégia militar. Eles estão evitando a
guerra em cidades populosas, pois entrar nelas com força resultará em
bombardeios aéreos do governo de Cabul. Isso resultará em vítimas civis, além de
degradar sua imagem. Um exemplo a esse respeito é a recente retirada do Talibã
da capital Badgis, depois de tomar a cidade por um breve período e libertar seus
combatentes da prisão central. Cercar as capitais e obrigar o exército afegão a se
render sem lutar é o modus operandi seguido no momento, que pode mudar após
a retirada completa das forças dos EUA.

Enquanto muitos países estão retirando seus funcionários e profissionais do


Afeganistão alegando incerteza, o Talibã divulgou um comunicado garantindo
proteção a eles. Ações desse tipo são amplamente utilizadas pelo movimento para
ampliar a cooperação com outros países. É neste contexto que o Ministro da
Defesa do Reino Unido, Ben Wallace, disse que o país trabalhará com o Talibã se
eles chegarem ao poder no Afeganistão. Nem os EUA chamam mais o grupo de
terrorista. Reportagens sugerem que a China também deseja uma cooperação
positiva com o Talibã, devido à proximidade com o projeto CPEC. O editor-chefe
do chinês Global Times afirmou que fazer do Talibã um inimigo não é do interesse
da China.

Nesse contexto, a Índia deve reorientar sua estratégia e interesses no Afeganistão.


Nas últimas décadas, o país investiu mais de três bilhões de dólares em vários
projetos no Afeganistão, como a rodovia Zaranj-Delaram, de 218 km, a represa de
Salma e outros projetos no setor de energia. Ao contrário dos apelos para a
redução da violência em curso no Afeganistão pelo ministro das Relações
Exteriores da Índia, o país está simultaneamente apoiando o governo afegão
incapacitado fornecendo enormes quantidades de armamento.

Relatos sugerem que toneladas de projéteis de artilharia já foram entregues pela


Índia ao governo de Cabul. Se forem verdadeiros, a Índia está cometendo um grave
erro estratégico ao agir simplesmente com base na política anti-Paquistão no
Afeganistão, semelhante ao passado. Mesmo neste momento de aquisição
iminente pelo Talibã de todo o Afeganistão, as ações indianas são problemáticas
para as relações futuras com o futuro governo em Cabul.

Recentemente, um funcionário do Catar falou sobre uma visita de alto funcionário


indiano à liderança política do Talibã. Mesmo que as autoridades indianas neguem
tais reuniões, um compromisso diplomático construtivo com o Talibã favoreceria
econômica e politicamente a Índia no longo prazo, considerando o recente
aumento no controle territorial pelo Talibã.

Para contrabalançar a aliança China-Paquistão, a Índia precisa estabelecer


relações concretas com o ator dominante no Afeganistão. Se o problema da
Caxemira for resolvido amigavelmente, o desenvolvimento de uma rota comercial
alternativa através do Afeganistão e mais adiante na Ásia Central e na Europa será
um catalisador no futuro crescimento econômico da Índia. Para isso, uma relação
favorável com o futuro governo é uma necessidade.

VELHOGENERAL.COM.BR AFEGANISTÃO: UM ETERNO CAMPO DE BATALHA GEOPOLÍTICO 5


Em um sentido geográfico e histórico, o Afeganistão é um lugar difícil e os afegãos
são pessoas difíceis. Nesses lugares, a guerra não é uma solução. Inegavelmente,
os Estados Unidos e a OTAN falharam nessa invasão equivocada, deixando nada
além de humilhação. O Talibã, antes considerado um povo primitivo e sem
educação pelo Ocidente, finalmente chegou à mesa e negociou a paz.

Diante dessa grande oportunidade, os países da região deveriam abandonar a


ideia de meios militares para garantir seus interesses. Por meio de estratégias em
que todos ganham, a prosperidade mútua e a estabilidade duradoura devem ser a
principal preocupação, transcendendo os interesses nacionais. Quando a
tecnologia trava guerra contra as montanhas, muitas vezes as montanhas vencem.
E no Afeganistão, foram as Hindu Kush que finalmente saíram vencedoras. Essa é
uma lição aprendida brutalmente pelos britânicos no século XIX.

Por Ahmed Sahal. K. P., publicado originalmente no The Geopolitics.

*Albert Caballé Marimón possui formação superior em marketing. Depois de atuar trinta e sete
anos em empresas nacionais e multinacionais, dedica-se à atividade de pesquisador nas áreas de
História Militar, Defesa e Geopolítica. É fotógrafo e editor do site Velho General. Já atuou na cobertura
de eventos como a Feira LAAD, o Exercício CRUZEX, a Operação Acolhida, o Exercício Treme Cerrado
e proferiu palestras na AFA – Academia da Força Aérea. É colaborador do USNI (US Naval Institute)
e do Canal Arte da Guerra.

6 AFEGANISTÃO: UM ETERNO CAMPO DE BATALHA GEOPOLÍTICO VELHOGENERAL.COM.BR

Você também pode gostar