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C A P Í T U L O IV

OS ESTÁGIOS DA DEPENDÊNCIA
E INDEPENDÊNCIA RELATIVAS

1. Estágio tlc desilusão, ilcsmame e iníeio


das funções mentais

Os estágios em que o bebê, gradualm ente, passa da dependência


absoluta à dependência relativa da mãe fazem ainda parte das
etapas iniciais do am adurecim ento; sendo anteriores à estru tu ­
ração do cu com o uma unidade, se houver um padrão de falhas do
am biente, ainda há risco de psicose. Durante esse período, as
tarefas de in tegração no tem po c no espaço, de alojam ento da
psique no corpo c de con tato com a realidade, paralelas à constitu i­
ção do si-m esm o prim ário, que tiveram in íeio no estágio da pri­
m eira mamada teórica, prosseguem na linha do am adurecim ento,
exigin do novas resoluções que se constituem cm novas tarefas. Ao
lon go da vida, essas tarefas colocarão o indivíduo luimano diante
de novos desafios a serem enfrentados e vividos. A descrição, aqui
efetuada, não se estenderá às feições que esses desafios tom am em
etapas mais avançadas da vida, lim itando-se aos aspectos referen ­
tes aos estágios iniciais.
O que caracteriza este estágio em que a desilusão se inicia,
assim com o os subseqüentes, à diferença dos descritos no capítulo
anterior, é o fato de que tem início uma desadaptação gradual da
A TK O K iA 1)0 AM A D rK K C I.M K N Td l)K 1). W. W IX X IC O T T

m ãe com relação íls necessidades do bebê. 8c c saudável, a mãe


em erge naturalm ente tio estado de "preocupação materna prim á­
ria” , cansada já do estreitam ento dc seu mundo e da extrem a exi­
gência que n dependência absoluta do bebê requer. Passam a o c o r­
rer pequenas falhas, que, por se daicm na medida da maturidade
crescente do bebê, pertencem , ainda, à pauta da adaptação, isto
coincide com a necessidade do bebê de dar prosseguim ento ao
am adurecim ento, ou seja, a desadaptação da mãe c im prescindível
para o início do rom pim ento da unidade indiferenciada m ãe-bebê,
de m odo a pôr em marcha o longo e vagaroso processo de separação
que levará o pequeno indivíduo à integração cm um eu unitário c
separado, capaz dc estabelecer relações corri o não-cu ou o mundo
externo.
A desadaptação da mãe dá início ao processo de desilusão do
bebê. Mas a desilusão, com as aquisições que lhe são próprias, só
pode acontecer sobre uma bem fundada capackkuie paru a ilusão.
Freqüentem ente se pensa que, nn teoria winnieottiana, tal com o no
senso comum , a desilusão c um processo m eram ente negativo, dc
quebra da ilusão, mas isto não c inteiram ente correto. Segundo o
autor, o que o bebê deixa para trás, ao amadurecer, não ú a ilusão
básica, que perm anecerá se houver saúde, mas a ilusão de onipo­
tência. Com o tem po, surgirá, na criança, a compreensão de que não
é ela que cria, efetivam ente, o mundo; dc que a existência do mundo
c anterior c independente dela. Ela saberá que o mundo sempre
esteve ali e ali continuará a estar após a sua m orte. Contudo, o senti­
m ento dc que o mundo foi criado pessoalm ente, e pode continuar a
ser criado, não desaparece. A despeito da com preensão intelectual,
o indivíduo retém a capacidade para a ilusão, exercendo natural­
m ente a criatividade que c, com o já vimos, “ a manutenção, através
da vida, de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade dc
criar o inundo” (19<S0h, p. 32).
Entre os vários aspectos do processo total de desilusão, o desma-
mc c uma conquista particularm ente significativa. Sc o próprio bebê
não o prom ove, c a mãe que deve cfctuá-lo; para tanto, ela precisa de
sua agressividade, precisa contar com alguma capacidade de odiar,
ativa ou passivamente, que possa ser acionada quando se faz neces­
sário. Se, no entanto, a mãe está deprimida, ela tem e seu ódio, e este

22 S
OS BSTÁCIOH DA DKPKM JÈXCIA K IN'i)KI’ |-;X'])l:;,\ClA KELATIYAS

pode não estar ao alcance da sua consciência;1 sc for assim, cia não
estará cm condições dc cum prir o papel que lhe com pete rio pro­
cesso de desilusão, do qual o desm am e é urn aspecto. Além de poder
odiar a sobrecarga que o bebê representa, é preciso tam bém que cia
esteja em condições de enfrentar a ira ou o ódio do bebê, provocada
pela desadaptação. Dito dc ou tro modo, “ a mãe sã ou normal c capaz
dc suscitar a ambivalência na relação com o ob jeto c de poder utili-
zá-la apropriadam ente” (19S9d, p. 114). Nas palavras de Edna
V ilctc, a mãe deve poder

{ . . . ) r e c o n h e c e r e s u p o r t a r o ó d i o d a c r ia n ç a , b e m c o m o a c e it a r
q u e s e t o r n e p a r a e la a m ã e ru im , d u r a n t e c e r t o te m p o . A c e it a r
s ig n ific a s o b r e v iv e r e o m o a m ã e fo rte , q u e c c a p a z d c c u id a r sem
t e r m a is o s r e c u r s o s d e o n ip o t ê n c ia c o m q u e c i a a t é e n t ã o inves­
t id a p e la c r ia n ç a (V ile te , 2 0 0 0 , p. 1 5 8 ).

E durante esse período que o funcionam ento mental e os pro­


cessos intelectuais com eçam a ser exercidos em sua especificidade,
ajudando o bebe a lidar com a lacuna existente entre a adaptação
com pleta c a incom pleta. São as falhas do cuidado m aterno que
impulsionam o uso da m ente; é por m eio da incipiente com preensão
intelectual que as falhas do m eio am biente com eçam a scr levadas
cm couta, tornando-se compreensíveis, toleráveis e m esm o previsí­
veis (cf. 1953a, p. 383). Se tudo correu bern até então e o bebê foi

1 S e a m ãe é saudável, e co n s e g u e m an ter-se co n scie n te d e seu s sen tim en tos,


d a c e rta m e n te o d iará circu n stan cialm en te o b e b ê e. e o m o vim os no C a p í­
tu lo II, fará a lg o eom isto. e o m o esbravejar baixin h o, sem , c o n tu d o , se
v in g ar dele. T o d a u m a o u tra eoisa 6 o ódio inconsciente da m ãe, do q ual é
preciso d istin gu ir duas situ aç õ e s diferen tes, q u e afetam o b e b ê de m an eiras
distin tas: se a m ãe 0 ou está d eprim ida, ela n ão tem , em ge ral, ac esso eons-
eiente a o seu ó dio, po r tem e r este sentim en to, q u e a po ria em c o n ta to eo m
a s u a destru tividade. X este easo, o ó d io in con sciente po de, ocasion alm en te,
rec air so b re o b eb ê . m as a q u e stã o não é ele, e sim a destru tividade da m ãe, a
q u al, não ten do se ap ro p ria d o desse aspecto da p e rso n alid ade, deve m an-
té-lo afastado. Pode existir, c o n tu d o , um ó d io in con scien te da m ã e pelo
b e b ê , q u e não está refcridn a um a depressão da m ãe , m as ao próprio fato dc
o bebê existir, à in terferên cia q u e ele causa em sua vida. liste ódio in con sci­
e n te leva a fo rm ações reativas m aciças, co n stitu in d o, s e g u n d o W in n ico tt,
u m a d as bases p ara o estab e lec im e n to de u m a pato lo gia au tístiea na
crian ça.
A TH O RIA IX ) AMADCRiiCIM I-.XTO i)K l>. \Y. W 1X X IU )TT

poupado, pela adaptação suficientem ente boa, de uni funciona­


m ento m enlnl precoce, defensivo, e le ja está capaz, a essa altura, de
usar um tipo dc saber qrtt não é mental , mas advindo da crescente
familiaridade com as sensações do corpo e eom as coisas do am bi­
ente. Ele já reconhece, num plano p*é-intelectual, ritm os, sons,
cheiros, climas em ocionais c já está de posse de um certo esquema
“ se... en tã o” prc-rcprcsentaeiunal.’ Quando há saúde, é sobre essa
base de uma com preensão nâo-meiital que o funcionam cri Lo intelec­
tual com eça a operar, sem ser uma defesa patológica que visa o
controle dc intrusões potenciais. A partir desse m om ento, o bebê
com eça a usar o seu intelecto para .saber que os ruídos na cozinha
indicam que a com ida está prestos a aparecer. O esquema “ se...
en tão” torna-se mais apurado e já pode ser propriam ente pensado;
ao invés dc, sim plesm ente, ficar excitado e im paciente com os
ruídos, cie usa esses novos recursos para poder esperar. Ademais,
nesta fase de desadaptaçãu. há um prim eiro vislumbre da depen­
dência; o lactente com eça a saber, em nuamente, que a mãe é neces­
sária, Isto o deixa m uito exposto, naturalmente, e todo cuidado é
pouco para não ferir a dignidade do bebê.
Existem duas atitudes gerais do am biente que são especial­
m ente im portantes na facilitação da tendência natural do indivíduo
ao am adurecim ento. Elas devem estar presentes cm todos os está­
gios, os anteriores e os subseqüentes a este, mas são de especial
im portância neste m om ento em que o bebê está na passagem para a
dependência relativa: de uni lado, a existência continuada das condi-

2 C re io q u e é ;i esse fe n ô m en o de u m saber pré-rep re se n tae ion al e, sem d ú v i­


da. pré-linjjüíscioo, q u e G ilb e rto S afra c h am a a a te n ç ã o no seu artig o “A vas­
soura e o d iv ã” (1 9 V 6 ). S aíra ap roxim a esse fe n ô m en o d o co n ceito de
“.símbolos ap resen tativo s” de S u zann e Ln n gcr. q u e o cria p a ra distin gu ir
en tre u m a sem ân tic a da sensorin lidade e u m a sem ân tica das fo rm as d is c u r­
sivas. C o m o S u zm m c Lan;j;er perte n ce a unia linh a de p en sam en to q ue,
ju n t a m e n t e c o m C a ssire r, ab o rd a os fe n ô m en os hu m a n o s do p o n to de vista
d e um a filosofia da repre se n taç ão , c re io q u e seria m ais útil ap ro xioiã-los do
q u e Ile id e £ £ e r c h a m a '‘p ré -e o m p re e n sã o ” . É nesta ú ltim a direç ão que vai
W in n ico tt q u a n d o descreve a natureza prê-verbal, p ré-sim bólic a e p ré-rep re-
sen tacion al, não só ti a co m u n ica çã o en tre m ãe e bebê, eo m o d o crescen te
co n h ec im e n to n ão-m en tal q u e este ad q u ire em fu n ção das exp eriên cias
repetid as de co n fiab ilid ad e am bien tal. Cf. W in n ico tt. 196iSd; ef., tam bém ,
neste estu do, o C ap ítu lo 111. K eção 7.1.

2.10
OS KH TÁlilO S DA I)K l'K .\l)É .\(;iA E INDKHCXIMÍNCIA UKL\TIV.-VS

ções ])íir;i :i do pendência cm alto grau, que pode voltar, cireunstanci-


alm cnte, a ser necessária; de outro, a provisão dc oportunidade para
que o indivíduo, gradualm ente, se separe da mãe e se ligue à fam ília,
e da fam ília à unidade social mais próxima a esta, c assim por diante,
em círculos cada vez mais amplos. Neste últim o sentido, o am or da
mãe, ou do terapeuta, significa não apenas atendim ento às necessi­
dades da dependência, mas a concessão, na época adequada, da
oportunidade que perm ite à criança, ou ao paciente, passar da de­
pendência para a autonomia. A medida que crescem e amadurecem,
os lactcntes adquirem uma capacidade cada vez m aior de sinalizar
as suas necessidades; existem mães, contudo, que, por terem se
tornado excessivam ente boas c treinadas na técnica de euidá-fos,
nem sem pre prestam atenção aos inúmeros sinais de com unicação,
continuando a adivinhar e a satisfazer as suas necessidades com o se
eles estivessem ainda misturados com o ambiente. Deste modo,
muitas vezes,

[...) :i mãe, por ser aparentemente uma l>oa mãe, tnz pior do que
castrar o lactcntc; este último é deixado com duas alternativas: ou
ficar em permanente estado de regressão, c continuar misturado
com a mãe, ou então encenar uma rejeição completa da mãe,
mesmo uma mãe aparentemente boa ( 1960c, p. 50).

Por outro lado, o processo dc separação deve ser gradual. A crian­


ça precisa libertar-se dos braços c do co lo da mãe, “ mas não ir para o
espaço; ela tem dc ir para uma área maior dc controle; algo que
sim bolize o co lo que deixou” (I9 6 5 p . p. 110). lísse m ovim ento de
sair e libertar-se, que terá início efetivo no estágio da transicionali-
dade, perm anecerá verdadeiro ao longo dn vida. A vida, diz <j autor,
“ c uma longa série dc saídas de clausuras, e dc correr novos riscos e
enfrentar novos c excitantes desafios” (1965c|, p. 51). Mas, para
tanto, o cam inho dc retorno a estágios mais primi tivos, dc regressão
à dependência, precisa estar sempre em aberto, pois "sair da clau­
sura é m uito excitante c m uito amedrontador; uma vez fora, é
terrível para a criança não poder volta r” (úfem ). Um aspecto central
da confiabilidade do am biente consiste cm num ter sempre aberta a
possibilidade de retom o, rwcessüktde que duru para sempre, A crian­
ça maior, o adolescente, o jovem e adulto sadios conservam várias
imaturidades para as quais voltar, seja por divertim ento ou num
período de necessidade, seja em secretas experiências auto-crótieas

2 .1 1
A Tl-:< IKIA 1)0 AM.\IH'KH(UMICXTO 1)K li. W. W I W K X V I T

ou em sonhos (cf. 1965p. p, 108). Essas imaturidadcs indicam saú­


de, sendo os “ resíduos daqueles estados sadios de dependência que
caracterizam as fases iniciais tio crescim ento" (1954b, p. 205). Os
indivíduos sadios estão dc posse dessa capacidade porque a m atriz
lhes foi dada, nos estágios iniciais, pela experiência dos inúmeros
retornos à não-integração e, neste período que ora descrevo, pela
capacidade dc a mãe perm itir ao bebê retornar à dependência c ao
inundo subjetivp, sem pre que isto se fizer necessário.

2. A transicionalidadc

A descrição dos fenôm enos da transicionalidadc foi, sem dúvida, a


contribuição mais prontam ente aceita e difundida de W innicott. Foi
por ela que ele sc tornou conhecido e consagrado e. durante m uito
tem po, urna grande parte dos artigos e com entários á obra w innicot­
tiana dedicou-se sobretudo a esse tema. A incontestável originali­
dade do fenôm eno — nunca antes conccitualizado pela psicanálise
tradicional - fez eom que ele fosse facilm ente acoplado ao eorpo
teórico já instituído, sem m aiores questionam entos acerca da p erti­
nência conceituai dessa assimilação. Além dc, nas análises tio terna,
seu lugar específico no processo de am adurecim ento ter sido des­
considerado, a aparente sim plicidade do fenôm eno prestou-se a tais
vulgarizações que obrigaram W innicott a reeditar, em Brincar e
realidade , uma versão ligeiram ente m odificada do artigo original
“ O bjetos trnnsicionais e fenôm enos transieionais", cm que tenta
co rrigir algumas distorções dc interpretação. Assinala, por exem plo,
que o que o interessa “ não é tanto o ob jeto utilizado quanto a u tili­
zação do o b je to ” (cf. 197lvb , p. 10). Ou seja, o im portante, para o
conhecim ento psicanalítieo, não é a descrição dc novos objetos
(internos, externos, bizarros, petit a e tc .), mas dos m odos dc ser c
relacionar-se do scr humano.
Da perspectiva da totalidade da obra winnicottiana, os fenô­
menos da transicionalidadc são fundamentais para o am adureci­
m ento humano, pois inauguram uma das etapas — e uma das
conquistas — do amadurecimento, levando o indivíduo a um novo
sentido dc realidade, que, na saúde, irá instaurar uma área específi­
ca de experiência. A capacidade para o que é específico da transieio-
nalidadc, contudo, depende do sucesso na resolução tias tarefas dos

232
OS lüNTÁCÜO» |)A DELnCXDÊXClA E IX D K fE X D Ê N C iA KKLVI IVAS

estágios anteriores, pois as experiências que se dão na área transicio-


nal — e o novo sentido de realidade que delas advérn — têm, neces­
sariam ente, suas raízes fincadas no mundo subjetivo do bebê. lí a
realidade fundada e experieneiada no mundo subjetivo deste que dá
fundam ento a esse sentido transicional de realidade. Se o sentido
subjetivo do real não foi constituído, os fenôm enos da transicionali-
dade não terão significado c seus benefícios não poderão ser usu­
fruídos. Um bebê a quem não foi fornecido um sentido de segurança,
incorporado com o uma crença, não pode “ ausentar-se” , distraído
eom o ob jeto transicional; ao contrário, consegue apenas ficar
alerta, prevenindo possíveis invasões.
Os fenôm enos transicionais não pertencem à linha instintual do
am adurecim ento; eles estão na linha direta da realização da tarefa,
iniciada na prim eira mamada teórica, do estabelecim ento de conta­
to com a realidade externa, bem no início, a tarefa dc contato com a
realidade é favorecida polo fato de a mãe apresentar o mundo ao
bebê de tal maneira que este, a princípio, não tem de saber que o
ob jeto foi encontrado ao invés de ter sido criado por ele. Ele com eça,
portanto, a relacionar-se eom a realidade — externa do ponto de
vista do observador — por via da criatividade c não da submissão.
Num m om ento posterior tio am adurecim ento — 110 estágio do líl*
SOU — , ele terá de sc haver com o fato da existência separada dc»
mundo, e o grande desafio será relacionar-se com a objetividade do
mundo externo da realidade externa, sem perda da espontaneidade
pessoal e da criatividade originária. Os fenôm enos transicionais
estão exatam ente no m eio do cam inho — com o uma passagem
interm ediária e faeilitadora — dessa “ longa jornada” que vai da
realidade subjetivam ente concebida á realidade objetivam ente per
eebid a.1 A “ terceira área da experiência” deverá, portanto, ser

3 S e g u n d o a teo ria tio am a d u recim e n to , h a b ita r num m u n d o .subjetivo e rela­


cio n a r-se c o m o b jeto s subjetivos s ão pré-req u isitos para a co n q u ista tia 1 rau-
sicion nlidadc, pa ssag em intertiiediári» p a ra a relayão eom o m u u d o c o m p a r­
tilh ad o e cuiii o b je to s o b jetiv am e n te p e rc eb id o s. O '., por exem plo, o a rtig o
e m que, e n u m eran d o as tarefas q u e p re sid e m o início da vida, W in n ico tt
refere-se “ aos passos iniciais d o b e b ê nas rela çõ es objetais, que Icvtmi <i
ca p ac id ad e de ad o tar o b je to s s im b ó lico s e à existência de u m a área. en tre o
b e b ê e as pessoas, na q ual o b rin c a r é sig n ific ativ o " ( l () l)6 c . p. grifo
m e u ).

:?.U
TK O KIA 1M) A \ U I)l'K K C IM K .V n > l)E 1). W. W IX X IC O T T

preservada cm qualquer etapa do amadurecimento c em qualquer


setor da vida — para que a realidade, externa, nua e crua. tenha
significado pessoal. Com o tem po, ela deverá, também, poder ser
exercida no terreno que lhe é próprio, í>s artes e a cultura em geral.
Contudo, m esmo quando o indivíduo já acedeu ao mundo com parti­
lhado, e m esm o quando, por talento, torna-se capaz de criação artís­
tica, a criatividade continua sendo, em prim eiro lugar, um fenô­
m eno da vida; ela diz respeito ao m odo com o a pessoa torna-se capaz
de se relacionar eom a realidade externa, sem penla do sentido
pessoal du existência.
Os fenôm enos transicionais em ergem da área da ilusão de
onipotência, no interior da qual foi construída a realidade do mundo
subjetivo. Quando com eçam ‘a ocorrer, por volta dos o ito ou dez
meses, o processo de desilusão já se iniciou. São eles que dão con ti­
nuidade à ilusão, com m odificações graduais na onipotência. Carac­
terizam-se pelo apego ao objeto transieional e constituem o início
da capacidade de sim bolização; desenvolvem-se, depois, na capaci­
dade de brincar e se estendem , à medida que o am adurecim ento
prossegue, por todo o espaço cultural. Os objetos transicionais, c
depois o brincar, são os precursores da capacidade do adulto de usar
o cam po da cultura, da religião, da arte, para o necessário e salutar
descanso da eterna tarefa de separar os fatos da fantasia. Mas o que
está no início de tudo é a ilusão, pois u criança precisa com eçar
vivendo “ num niundo subjetivo cm que é a criadora dc todas as
coisas” (1 9 8 6 li, p. 11).
d o m o surgem os objetos transicionais e dc que m odo eles faci­
litam a passagem para a realidade dos objetos objetivam ente perce­
bidos? É fato observável que, pouco tem po após o nascim ento, os
bebês costumam chupar os dedos e os punhos, adotar algum a
técnica de m exer no rosto ou murmurar algum som. listas ativi­
dades, habitualm ente vistas eom o um exercício auto-erótieo oral,
são já, em parte, transicionais, sendo precursoras da posterior
adoção de um ob jeto de predileção do bebê — o ursinho dc pelúcia,
a ponta do cobertor, uma fralda. Para que o sentido pré-transiciona!
dessas atividades sc explicite c preciso poder ver, nesses fenôm enos
prim itivos, mais do que excitação e satisfação oral; c preciso reco­
nhecer o impulso do bebê para chegar a um objeto, a capacidade dc
criar, inventar, origin ar um objeto, a sua crescente possibilidade

2.11
«IS R S T .Ú iliW HA 1)E1'K\1>Í,X<:1A li IX D W K V D IÍX C U KKI A T IV A S

para reconhecer um objeto não-cu, o início de um tipo afetuoso de


relação dc objeto etc. (1953c, p. 1 4 ).1
Na etapa que lhe é própria — devido íi m aturidade crescente do
bebê, durante a desadaptação da mãe — , acontece então esse fenô­
meno, que não tinha ainda sido focalizado pela pesquisa analítica,
mas que havia sido notado pelas mães: o apego do bebê a certos
objetos, que ele, por assim dizer, elego.5 Investidos de urna im por­
tância toda especial, os objetos transioioiiais são tratados, pelo
bebê, com im enso carinho, mas, tam bém , com brutalidade, o que
requer que sejam duráveis. líles se tornam, durante um bom tempo,
indispensáveis, insubstituíveis, sobretudo em m om entos de tensão,
inquietação ou angústia, com o, por exemplo, na passagem da vigília
para o sono ou nos m om entos de ausência prolongada da mãe.
A mãe sabe que o ob jeto não pode ser substituído, nem por um equi­
valente, que não deve ser lavado, por mais sujo que esteja — o que
introduziria uma ruptura na continuidade da experiência do bebê —
c que ela terá de levá-lo ju n to caso a fam ília viaje. Se essa expe­
riência for perm itida ao bebê, o objeto, com o tem po, será “ não
tanto esquecido, mas relegado ao limbo. (...) Perde o significado, e
isso se deve ao fato dc os fenôm enos transieionais tornarem-se

4 N u m texto dc 1945, cm q u e W in n ic o tt está e s b o ç a n d o ;is id éias so bre os


fe n ô m en os transieionais, q u e a c a b a rã o p o r vir à luz em 1 9 5 ], ck- alu d e .i
p rática universal d e ch u p ar o p o le g a r ou a ch u p eta su p on do q u e todos
co n c ord e m que o d e d o é s u g a d o não apenas p o r p raz e r, m as c o m o consolo.
N o desenvolvim ento do tom a, e ntima fo rm u la rã o ain da ru d im en ta r do
m esm o , diz não ter dúvidas de q u e esses fenôm en os, tais c o m o a sucção
n o rm al dos dedos, “co n siste m n u m a tentativa d e lo calizar o o b jeto (o seio
e t c .), m au ten d o -o a m eio ca m in h o en tre o de n tro e o fora. T rata-se de um a
defesa c o n tra a p e rd a do o b je to no m u n d o extern o ou no in terio r d o corpo,
isto é, co n tra a p e rd a de c o n tro le s o b r e o o b je t o " (iy 4 5 d , p. 2.12). Este
“ a m eio c a m in h o en tre o de n tro c o fo ra ” é um ' en tre ” , é o q u e virá a ser
c h am a d o , cm 1951, de esp aço potencial.
5 U m a alusão a esses o b jeto s já tinha sido feita na literatura analítica, por
M . W u lfí. em term os de o bjeto s-fe tie b e. 1’a ra W in n ic o tt, essa a b o rd a g e m c
in satisfatória e luva a equívocos. P rim eiro, p o r não aceitar q ue esses o bjetos
ten h am p rim ariam e n te o ca ráter de fctiehcs, a não ser na p a to lo gia;
segu n do, p o r não c o n c o rd a r com a in te rp re ta rã o tradicional d o fctiche,
s e gu id a p o r WuitT. q u e tran sfo rm a um fe n ô m en o que c universal, a atrib u i­
r ã o ilc pênis à m ãe. em p ato lo gia. Para um a discu ssão m in u cio sa d o tem a,
cf. (lu rfin U e l. í)., I ') ') ( ,

235
A T1CUKIA [ ) ( I A.MA1H K K U M K X T t I lili I) W . W1NNK ,(I| T

difusos, espalhando-se por todo o território interm ediário entro a


‘ realidade psíquica interna’ e ‘o mundo extern o’ l ... |” (1953c, p. 19).
N o período dc adaptação absoluta da mãe, a apresentação de
objetos — isto é, o fornecim ento dc m atéria-prim a para a criação
dos objetos subjetivos — era feita de tal m odo que a realidade
externa do objeto não afrontava a realidade do mundo subjetivo.
A natureza da relação objetai cra de identificação primária eom o
objeto; o bebe é o objeto. A medida que a integração torna-se mais
consistente, o am adurecim ento exige que, vagarosamente, algo do
mundo externo sc imiscua na área dc onipotência do lactente. Scr
capaz de adotar um objeto transiçional já anuncia que esse processo
está cm curso e, a partir daí, algumas mudanças se insinuam.
O corre uma pequena quebra na onipotência. C om o o b jeto tran-
sicional, algumas características da realidade externa com eçam a
introduzir-se na experiência: o objeto transiçional se adapta, mas
não de m odo absoluto com o a mãe. Dc scr o ob jeto, o bebê passa a
possuir o ob jeto e, por m eio dessa posse, ele posterga o abandono do
con trole m ágico sobre o mundo, prolongando, por algum tem po, a
onipotência originalm ente satisfeita pela adaptação realizada pela
mãe (cf. 19f>8, p. 126). Durante a fase cm que a transieionalidade
reina, ele abandonará o controle onipotente, m ágico, característico
da relação com os objetos subjetivos, assumindo, aos poucos, o
controle via manipulação, o que envolve o prazer do exercício
muscular e da coordenação. Um pouco mais tarde ainda, outra
conquista será feita, quando cie já puder saber que ura certo objeto
lhe foi ofertado e puder d izer “ tá” , “ reconhecendo assim a lim itação
de controle m ágico c sua dependência da boa vontade das pessoas
existentes no mundo extern o” (ibid. , p. 127).
Muitas outras aquisições estão sendo feitas ao tem po em que o
bebê utiliza objetos transicionais; algumas delas m ostram a íntim a
conexão do funcionam ento corporal com o am adurecim ento pes­
soal. Paralelam ente ao desenvolvim ento da coordenação, ocorre um
gradual enriqu ecim ento da sensibilidade corpórca, com o aguça-
m ento dos sentidos e correspondente elaboração im aginativa das
experiências sensoriais. O olfato, por exem plo, atin ge um auge que
talvez nunca mais sc repita nesse grau, a não ser cm episódios psicó­
ticos; a textura e a tem peratura, a secura c a umidade, têm um sign i­
ficado trem endo; o paladar torna-se m uito mais apurado c, dc
maneira freqüente, se observa a baba escorrendo da boca. I? possível

2M>
o s i ;s t á <;io s h a iik p k x d ê n c ia k l m ie p e x u k x c l v k e i .a t iv a s

ainda observar, nessa fase, o início da capacidade de sentim entos


afetuosos. Tudo isto nos faz lembrar, observa jocosam ente W inni­
cott, o leão ern sua jaula, com ternos sentim entos do carinho cm
relação ao osso que logo será destruído.
N o início da passagem da adaptação absoluta para a adaptação
relativa, os objetos transicionais exercem a indispensável função de
amparo, por substituírem a mãe que se desadapta c desilude o bebê.
A transicionalidadc marca o início da desmistura, da quebra da
unidade m ãe-bebô. O laetente. que é um criador de mundos, cria a
prim eira região, a prim eira distância, a área inaugural dc separação
en tre ele e a mãe: o espaço potencial.6 Gradualmente, do dois-em -
u m da unidade fusional vão em ergir dois indivíduos, o que perm itirá
que com ece a sc estabelecer o que sc chama, propriam ente, relacio­
namento, sendo que as bases para esse relacionam ento foram dadas
pela experiência suigeneris com o objeto subjetivo.7 Exatam ente no
espaço dc separação entre m ãe e bebê, entra o ob jeto transicional,
que é, ao m esmo tem po, separação e sím bolo da união com o que
está sendo separado; ele representa a mãe ou o seio, ou até o
si-mesmo da criança, tal com o está nesse m om ento do am adureci­
mento, A atividade sim bólica, que aqui tem início, traz uma am pli­
tude'enorm e à experiência uma vez que "o sím bolo de união propor­
ciona um alcance mais amplo à experiência humana do que a
própria união” (1986d, p. 106). C reio ser esse o sentido da polem ica
afirm ação de W innicott de que, eom o tempo, o objeto transicional
chega a tornar-se tão ou mais im prescindível que a própria mãe.
Pode ocorrer de o m esm o objeto con creto — o urso, a fralda, o
p a n in h o— , que é de início subjetivo, passar a ser transicional. Não
sc trata, portanto, de um certo objeto ser subjetivo e outro, transicio-
nal. O que se altera não é o objeto, mas o sentido dc realidade deste,
c é a isto que W innicott se refere quando diz que esse fenôm eno nos

6 C o m » vim os, n o C a p ítu la III, esse espaço j á existe, po ten c ialm e n te, a partir
tio Isola m en to fu n dam ental do indivíduo. Gi',, ainda, o C a p ítu lo II, Seçík) 8.
7 D eve-se d e stac ar aqui que, neste m o m en to , ainda n ã o sc p o d e usar a
ex p re ssão “o b je to in te rn o ". Ü b e b ê ain da n ã o tem u m “in t e r io r" o n de
g u a rd a r im afiens, um te rritó rio o n d e sc trava a luta en tre o q u e é co n stru ­
tivo e d e stru tivo na n atureza hum ana. Kssa luta. eom seu s o bjeto s in te m o s,
só p o d erá scr travada ap ó s o b e b ê a tin g ir o estatu to u n itário d o E U S O U e
c o m e ç a r a sentir-se co n c ern id o p o r seu s im p u lso s destrutivos. C f. W in n i­
co tt, 19S6d, p. 105.

237
A TK O KIA 1 )0 A M .M lC R K C IM liX Tl) DK I). W. W IN X IU )'JT

perm ite observar algo sobre a natureza do objeta (1 9 53c, p. 14). ou


seja, sobro a mudança na natureza da relação objetai dentro do
processo de am adurecim ento. Mesmo porque “ não é o ob jeto, natu­
ralmente, que é transiçional. Ele representa a transição do bebê do
um estado em que este está misturado com a mãe para um estado
cm que está em relação com cia, eom o algo externo c separado”
(ifrid., p. 30).
Para que essa transição aconteça, para que a transieioiuilidade
sc configure enquanto tal, c preciso que o bebê esteja criando um
novo espaço, um novo “ m undo” . O que o am adurecim ento prom ove
é a capacidade inerente a todo scr humano de criar mundos e tran­
sitar entre eles. N este m om ento, está sendo criado o espaço poten­
cial, a terceira área de experiência, o lugar em que, sc form os saudá­
veis, poderem os viver (1971g, p. 145), tem porariam ente poupados
tia tarefa de separar os fatos tia fantasia. Se o bebê tiver as condições
ambientais satisfatórias que lhe possibilitem criar esse novo mundo
— no qual perm anece preservada a continuidade da ilusão básica — ,
esta área ficará disponível para a criação e o exercício da capacidade
de sim bolizar e dc brincar, ampliando-se, no decorrer da vida, para a
arte e a cultura cm geral. Tudo o que se dá posteriorm ente no
espaço potencial guarda as características dos fenôm enos transicio­
nais originais: não está dentro nem fora; não pertence nem à reali­
dade psíquica interna nem à realidade externa e com partilhada; não
é d elírio nem objetividade. For isso, os objetos e fenôm en os transi­
cionais iniciam os seres humanos naquilo que será sem pre tia maior
im portância para cies, "uma área neutra de experiência que não
será contestada” (1953c, p. 27).
Mas onde está esse espaço? De que natureza á esse espaço e o
brincar? Em um artigo sobre os vários sentidos de realidade na obra
de W innicott, Loparie diz que

[...] mais primitivo do quo o uso e a representação, embora poste­


rior á experiência tle* eontato, e o brincar. Esse tipo de acesso à
realidade é um modo tle ser do lactente que só pode realizar-se no
espaço próprio, chamado potencial, lvsse espaço difere tio da
representação por um traço essencial: ele não c exterior, interno
ou externo, mas um componente do ser do bebê. O iactcntc não
está “no" espaço potencial, no sentido em que se diz q u e uma
árvore está no jardim, ele d esse espaço (Loparie. 1995.1. p. 53).

23H
OS EHT.V 1I< )S ]i\ IV,;i>|^xnKXC[A K IXDKnOÍUÍÍXtXV KKLVTIVAS

O bebê, portanto, ufio transita dc um ob jeto a outro, mas dc um


mundo a outro. Melhor: sendo ele mesmo esse espaço, deve-se dizer
que ole transita, neie mesmo, de um a ou tro sentido de realidade,
com o modos de seu ser, podendo habitar nos vários mundos por etc
criados, mundos em que novos objetos podem aparecer. Mas o bebê
só podo operar essa conquista so tiver habitado durante o tem po
suficiente e continuando a habitar num mundo subjetivo, cuja reali­
dade não c posta cm dúvida:

O n d e h á c o n fia n ç a e fid e d ig n id a d e , h;í t a m b c n i u m e s p a ç o p o t e n ­


c ia l, e s p a ç o q u e p o d e to rn a r-se u m a á r e a in fin ita d e s e p a ra ç ã o , e o
b e b e , a c r ia n ç a , o a d o le s c e n t e e o a d u lt o p o d e m p r e e n c h ê -la c r ia t i­
v a m e n t e c o m o b r in c a r q u e . c o m o te m p o , se t r a n s fo r m a n a fr u iç ã o
d a h e r a n ç a c u ltu ra !. A c a r a c t e rís t ic a e s p e c ia l desse lu g a r, e m q u e a
b r in c a d e ir a c a e x p e r iê n c ia e u lt u r a ! tem u m a p o s iç ã o , e s t á c m que
ele depende, para a tttui existência, de experiências da -viver, ?i«o de
temlêticias herditdus (1 9 7 l g , p. 1 5 0 ).

A passagem do mundo subjetivo, que nunca se perde, ao inundo


transicional, só sc dá 110 tem po, e requer tem po para estabelecer-se
com o conquista. Mesmo tendo sido iniciados o processo de sepa­
ração e a atividade sim bólica, isto não garante t]ue a im agem e o
significado do ob jeto transicional se mantenham vivos, a não ser que
o cuidado m aterno concreto permaneça sustentando a continui­
dade do processo. Ou seja, o bebê pode utilizar o objeto transicional
para fazer as vezes da mãe. enquanto o objeto subjetivo está vivo , é
real, suficientemente bom e não muito persecutórío. Por seu lado,
esse objeto subjetivo depende, quanto às suas qualidades e vigência,
da existência, vitalidade e com portam ento do objeto externo, ou
seja, dos cuidados concretos da mãe real:

O fr a c a s s o d e s t e [d o o b je t o e x t e r n o | , cm a lg u m a lu n ç ã o es s e n c ia l,
leva in d ir e t a m e n t e à m o r t e o u a u m a q u a lid a d e p e rs e o u t ó r ia do
o b je t o in te rn o . A p ó s a p e rs is t ê n c ia da in a d e q u a ç ã o ilo o b je t o
e x t e rn o , 0 o b je t o in t e r n o d e ix a d e ter s e n t id o p a ra □ bcbO e , e n t ã o
— e s o m e n t e e n t ã o — . o o b je t o t ra n s ic io n a l t a m b é m fic a sein
s e n t id o (1 9 5 3 c , p . 2 4 ).

Antes de prosseguir, quero esclarecer o uso, nesta últim a cita­


ção, da expressão “ objeto interno” . Na época em que este artigo foi
escrito (19 51 ), W innieott não havia ainda form ulado o con ceito dc
o b jeto subjetivo, o que só será feito cm 1962. ICmbora o texto tenha

239
A T E O R IA 1 )0 A M A n r iíE C IM IC .V IO IMí I). W . W I.Y X K : ( Y\'f

sido revisado para n edição dc 1971, e ele não tenha feito alterações
nesse ponto, entendo que “ objeto in tern o’’ , aí, refere-se a ''ob jeto
subjetivo". Os argum entos são os seguintes; prim eiro, da perspec­
tiva da teoria do am adurecim ento, só se pode falar de ob jeto interno
se estiverm os nos referindo a um m oi.iento do am adurecim ento em
que já há um mundo ou realidade interna, e essa conquista só ocorre
após o alcance da identidade unitária no estágio do 10U SOU, sendo
que a transicionalidadc c anterior a este últim o. Km 1963 (19 6 5 j),
referindo-se às mais primitivas versões daquilo que Klein denominou
de “ interno” , W inn icott diz que, quando estamos nos referindo ao
início da vida,

|...] a palavra interno nfio pode ser usada no sentido dc Klein, uma
vez que o laetente ainda não estabeleceu propriamente os limites do
ego e ainda não se tornou mestre tios mecanismos mentais de
projeção e introjeção. NesAe estágio primitivo, “ interno'' só significa
pessoal, e pessoal pelo fato de o indivíduo scr uma pessoa com um
si-mesmo no processo dc ser desenvolvido (]9o5j, j>p. 168-69).

W inn icott m antem a expressão “ objeto in tern o” , em segundo


lugar, para acentuar o ponto que verdadeiram ente lhe interessa, a
saber, que “ o objeto transicional não é w n objeto incenw (que é um
con ceito m en ta l)” ; não tem , portanto, vida própria e depende, para
a sua sobrevivência, da relação, da com unicação, enfim , da manu­
tenção da continuidade dos cuidados ambientais. Segundo a teoria
w innicottiana, a constituição do mundo interno supõe que tenha
ocorrid o a separação eu/não-cti, c a existência dc um sistema de
fantasias, acrescido tle tudo o que resulta do inconsciente repri­
mido; a partir do m om ento em que o inundo interno já existe, as
experiências reais, satisfatórias e insatisfatórias — c isto se refere à
realidade da experiência global e não apenas ao princípio do prazer
— , levam respectivam ente à existência dc coisas sentidas com o boas
ou eom o más, na realidade interna da criança. ISmbora os objetos e
conflitos do mundo interno sejam influenciados pelos relaciona­
m entos que ocorrem na vida real, a vida interna tetn uma certa auto­
nomia que perm ite examiná-la com o algo em si mesmo. Nada disto
já se estabeleceu na fase da transicionalidadc.
Devc-se, portanto, assinalar que a realidade e o caráter sim bó­
lico do ob jeto transicional dependem da vivacidade e da con fiabili­
dade do objeto subjetivo que, por sua vez, depende tia permanência c

210
O S ESTÁtaoS DA 1)EI’ KN'1)KXC]A K IXDKIMCtf ÜÈNCIA R IX A T IV A S

da vitalidade cio objeto externo. A perda cio objeto subjetivo é “ uma


grande catástrofe", algo que pertence à ordem de coisas que são
chamadas, na teoria winnieottiana, agonias impensáveis. Se a crian­
ça “ perde” a mãe, durante um período demasiadamente longo, “ o ob ­
je to subjetivo m orre” e a capacidade sim bólica do ob jeto transi -
eional se esvai. Por isso, apesar da im portância do caráter sim bólico
do ob jeto transiçional, W inn icott faz notar que, no início, o im por­
tante não é tanto o seu valor sim bólico, mas a &
rua realidade.
O que acontece se um padrão de falhas ambientais se estabe­
lece, nessa fase, e o bebê com eça a perder a confiança? Quando a
privação não ó demasiada, pode-se ter o uso compulsivo da chupeta,
que é uma com unicação do m esm o ripo que a avidez. Sc a privação é
grave e prolongada, o bebê perde a capacidade de chupar. Nesse
estágio, em que o bebê só recentem ente com eçou a diferenciar-se da
mãe, a perda não é apenas do objeto, mas de parto de si mesmo,
com o da boca, por exem plo. Alem disto, a própria capacidade lúdica
— chupar a ponta do cobertor, brincar com a boca ou com os
punhos, fazer eosquinhas no nariz — perde o significado.* Se o bebê
perde o ob jeto transiçional, que está apoiado nos subjetivos corres­
pondentes, ele perde, ao m esm o tem po, a boca e o seio, a criativi­
dade e o cam inho para a percepção objetiva.
O eontato com a realidade depende fundam entalm ente da cria­
tividade, sem a qual nenhuma realidade, nem m esm o a externa — e,
talvez, sobretudo, não a externa — pode ser alcançada ou ter signifi­
cado. A realidade que aqui está concernida não é a do princípio de
realidade, tal com o postulado por Freud, mas a do sentim ento de
real que está fundado na ilusão. 15 som ente por m eio desse senti­
m ento de real que se chega ao sentido da realidade externa.7 Ora, '‘ o
objeto transiçional é uma das fontes que tornam possível <> contato
entre a psique e a realidade” (1965s, p. 176). Perder o objeto transi-
cional, pelo fracasso da mãe em fazer perm anecer vivo o mundo
subjetivo, resulta em descrença e desesperança quanto à capacidade
de relacionar-se com objetos: o interesse pelo objeto esm aece c o
bebê não sabe nada sobre o que aconteceu. Só sente que perdeu algo

H Cf. W in n ico tt l<W 3h.


') W in n ico tt c h e g a a a firm a r i]iic a ilusão, co m a q u a l sc co n struem as pontes
en tre a rea lid ad e subjetiva c a o bjetiva, “p o d e ser a base essencial para toda
v erdadeira o b je tiv id a d e ” ( l ‘J51d, p. K M )).

2 11
A T K O lilA IK I AM Ai)l'|:.KC IM !;.\T() 1)K l í VV VVSWK :<>IT

de m uito im portanle, que algo morreu, apesar de esse algo poder


estar ali. destituído agora de significado.,!)
A criatividade está, portanto, a serv iço do contato com a reali­
dade; relaciona-se an estar vivo e a sentir-se real, à maneira pela qual
o indivíduo perm ite à realidade aparecer, pela qual recepciona os
acontecim entos, ou seja, ao m odo com o qualquer pessoa — bebê,
criança, adulto ou velho — olha para algo ou realiza alguma coisa.
Para esta criatividade não é necessário nenhum talento especial.
A criatividade é, além disto, originária e não uma sublimação do
con flito pulsional.'1
O espaço potencial — com o terceira área da experiência —
mantém aberta a permanente tensão, intransponível, entre o criar e o
descobrir. Há uma excitação que é própria dos fenôm enos da transi-
eionalidade c do brincar, mas ela não é de caráter instinuial; refere-
se, precipuamcnte, à organização do ego, tratando-se, aqui. de uma

[ . . . [ p a r t e d o e g o q u e não é c o r p o r a l, q u e não e s tá fu n d a d a no
p a d r ã o d e /'wiirionavidito c o r p o ra l, m a s n as Lw/K-nânciati c o r p o ­

10 O m ed o d e p e rd e r :i c a p ac id ad e de relaeio n ar-se com o bjeto s, cu jo p o n to d e


o rig e m p o d e ser lo ca liza d o na perda d o o b je to subjetivo, c um a d a s exp e­
riências trau m áticas — um a ag o n ia im pensável — q u e estão na liasu das
pa to lo gias psicóticas.
11 ( ) co nceito w im iieottian o de criatividade não 6 fácil de ser ap reen dido, talvez
eiti virtude de o term o ter sid o ban alizado pela m ídia, po r se r u su alm en te
referido à c riaç ão artística ou, ainda, pelo lato de a psicanálise en tend ê-lo no
sentido da su b lim arão . O p ró p rio Pontalis, que tez q u e stã o de criticar, em
vários artigos, os m al-entendidos provocados pela o rigin alidade d e W in n ie o tt,
responde do segu in te m odo a um a pergu nta de A n n c C la u eier ( JVN-l) sobre a
noção d c criatividade cm W inn icott: “ N ão gosto dessa palavra, nem , s o b re ­
tudo, da sua pro m oç ão íí Umt c a . Fazer acreditar a ca d a um que ele tem em si
um tesouro c u m a m entira. D izer co m o W iu u ie o U . m esum co m hum or, q ue
se )HkIc ser tão criativo cozinhando ovos q uanto S ehum ann co m p o n d o um a
sonata, você não acha isto abusivoV” ((.'lancier, 1 ‘Jff-I. p. 2 i ') ) . Pontalis parece
não ter en ten d id o exatam ente o conceito vviimicottiann dc criatividade, pois
o sentim en to de p o d er criar e de estar crian do — intim am ente relacionado
eniti a espontan eidade — in depen de do pro du to criado. A criatividade está
relacionada com os fenôm en os da vida, com a realidade da experiência, e não
co m a criação m eram en te ousada ou com a criação artística; dcvc-sc reco
n h ccer a criatividade, diz W iim ie o li, ‘'não tanto pela o rigin alidade da pro ­
dução, m as pelo senso individual da realidade da exp eriência” (J 9 S 8 , p. 131).
Cf., tam bém , neste m esm o texto, a p. 129).
OS KSTA C IO S l>.\ l)l-.]'KXl)K.\Ct.\ 10 l.\l»Kl'KN'l >RN(;i.\ K K l-V IIV A S

rais. T a is e x p e r iê n c ia s s ã o jiró p rin s da r e la ç ã o d c o b je t o do tip o


n ã o o r g iá s t ie o , o u d » q u e p o d e s e r c h a m a d o de c a p a c id a d e tle r e la ­
c io n a m e n t o d o e g o [e g o -reluteducss | (1 9 6 7 1 ). p. 140; g r ifo m e u ).

O brincar é excitante nele m esmo e. sobretudo, pela precarie­


dade que lhe é inerente. Seu território 6 o in terjogo en ire a reali­
dade psíquica pessoal e a experiência dc controle de objetos reais.
Pela espontaneidade, pelo que tem tle inform e, pela ausência de
regras — que faz W innicott insistir na diferença entre o jo g a r e o
brincar — , o brincar propicia uma experiência (imitada da em er­
gência de algo am edrontador porque imprevisível, lí fácil ver o
quanto, em função do novo paradigma em que sc move, o autor
d ifere da teoria kleiniana. Nesta, a im portância da brincadeira resi­
de não nela mesma, mas no fato dc que, por m eio dela, os fantasmas
inconscientes e recalcados vêm à luz; a brincadeira tem, portanto,
para essa autora, a função dc descarga masturbatória, de controle
da angústia ou tle cum prim ento do desejo. Na teoria winnicottiana,
ao contrário, a importância do brincar não está no conteúdo, mas iu>
brincar, ele m esmo, no tipo de concentração que o caracteriza, no
fato de a criança ser capaz dc “ perder-se", ali, mergulhada num
estado de quase alheam ento, aparentado à concentração das crian­
ças mais velhas ou dos adultos.

3. O estágio do uso do objeto

( ) tem a relativo ao desenvolvim ento da capacidade dc usar objetos é


inteiram ente original na literatura psieanalítica. Falou-se m uito da
relação de objeto, caleada em mecanismos tle projeção e iutrojeção,
mas a capacidade de luuirian objeto e os requisitos necessários para
tal não chegaram a ser considerados. A form ulação dessa conquista
deriva naturalm ente tia teoria do am adurecim ento, sendo conside­
rada, pelo autor, com o um dos pontos mais com plexos e difíceis de
seu pensamento.
Qualquer consideração acerca da capacidade tle usar objetos
requer que se parta tia concepção de que, no início, essa capacidade
não existe. Na linha do amadurecimento, esta conquista, do mesmo
m odo que a transicionalidadc, dá continuidade àquela, iniciada no
estágio da primeira mamada teórica, relativa ao estabelecimento tle
relações eom a realidade externa, mas 6 apenas neste estágio que os

2 Id
A T1ÍOK1A I X ) A M A l)U U «:lN n O N T<) DK l>. W. WfNNHJOTT

objetos podem com eçar a scr percebidos c usados com o externos. Para
tanto, 6 preciso que a mãe tenha sido capaz, desde o início, de apre­
sentar o mundo ao bebe de forma compreensível e em pequenas doses,
de tal m odo que este teve a oportunidade, pela identificação primária,
de .ser o objeto (subjetivo). Depois, já no período de desadaptação, a
realidade “ mista” dos objetos transicionais — parte do bebê c parte do
mundo — leva o lactente a possuir o objeto. Durante a fase transi-
cional, ele continua a viver num mundo subjetivo, mas a onipotência
que caracteriza a ilusão básica 6 abalada e alguns pequenos aspectos
de realidade externa se imiscuem na experiência. A partir dc um certo
momento, esses dois sentidos de realidade já não bastam e a tendência
ao amadurecimento empurra o bebê na direção de um outro sentido
de realidade: o da realidade externa c compartilhada, em que ele
poderá usar os objetos vistos, agora, da perspectiva da objetividade.
Mesmo durante os estágios primitivos, vivendo num mundo total­
m ente subjetivo, o bebê está sendo provido de experiências de con­
tatos com objetos que, chegando a ele ao m odo tle objetos subjetivos,
são pequenas amostras da realidade externa (do ponto de vista do
observador). As experiências repetidas eom esses objetos, além de
passarem a fazer parte do bebê, pela identificação primária, vão,
gradualmente, tornando o objeto significativo, apesar dc ele ainda não
saber da existência separada deste.1- Isto aparecerá, eom toda a
clareza, por ocasião da eleição o do apego pelo objeto transiçional. Até
chegar a este ponto, estamos ainda no campo do que se chama
“ relação de objeto” , embora, nesta fase, a expressão seja imprecisa,
dado que, com os objetos subjetivos, não há propriamente relação por
ainda não haver dois entes. Daqui cm diante, o bebê poderá, se tudo
correr bem, passar da rdaçua para o uso do abjeto. Para que isto
ocorra, será necessário haver uma mudança, para o bebê, na “ natureza
do ob jeto” , isto é, uma mudança no sentido de realidade desse objeto,
o que implica a criação de um outro mundo que não o subjetivo ou o
espaço potencial. Segundo Winnicott, essa mudança constitui uma
das mais difíceis e importantes conquistas do amadurecimento, além
dc. quando falha, ser “ um dos mais cansativos de todos os primitivos
fracassos que nos chcgam para posterior reparo” (1969i, p. 175).

12 S a b e -se q u e uni m o m en to s dc d o r ou an gú stia o b e b ê só aceita o c o lo da m ;V


e s a b e discrim in ar es.se co lo de todos os o u tro s, inclusive o d o i>;ti, nicsm n
qu a n d o este ex e rce d e m an eira fre qü en te a função m aternn.

211
o s iú s t á u io s d a i>i-:rKM)í;.N<:iA k ixi iki-ic x u ü w ;ia k e m t i v a s

Qual é o ponto, exatam ente, para o qual W innicott chama a


atenção quando distingue “ relação de o b jeto ” do “ uso do o b jeto ”?
Em termos do processo de amadurecimento, a relação de objeto c
anterior, e a base, para o desenvolvim ento da capacidade de usar
objetos. Enquanto a reUtçúo de objeto c um tipo de experiência que
perm ite pensar o indivíduo eom o uni ser isolado — vivendo num
mundo que é um feixe de projeções13 e comunicando-se com objetos
subjetivos dentro do âm bito da ilusão de onipotência — , o nso do
objeto só pode ser descrito levando-se em conta a realidade externa e
independente do objeto. C om o a psicanálise preferiu sem pre elim i­
nar todos os fatores am bientais, a não ser quando podia conside­
rá-los em term os de mecanismos projetivos, é m uito mais fácil, para
os analistas, examinar a “ relação tle o b jeto ” do que o “ uso do
ob jeto ". Contudo, ao examinar o uso, não há saída: o analista “ tem
de levar em consideração a natureza do objeto, não com o projeção,
mas com o coisa em si m esma” (1969i, p. 173).
Essa mudança no sentido de realidade do objeto — da relação ao
uso do ob jeto — não se dá pela mera passagem do tem po. Para usar
um objeto, o bebê precisa desenvolver a capaciilade de usar objetos,
o que im plica com eçar a considerar o ob jeto uma “ coisa cm si mes­
m a” , externa e separada dele, na sua propriedade de ter estado sem­
pre ali e de continuar ali, independentem ente do bebê e, portanto,
fora de seu controle onipotente. Para que o ob jeto possa ser usado,
“ deve necessariam ente ser real, no sentido de fazei parte da realida­
de compartilhada, c não um feixe de projeções” (icfem). Deste modo,

( . . . 1 e n t r e a r e la ç ã o c o u s o e x is te a colocação d o objeto, fx lo sujei­


to , )x ir a /o r u cia área de seu controle onipotente, isto é. a p e r c e p ç ã o
q u e o s u je ito tem cio o b je t o e o m o fe n ô m e n o e x te rn o e n ã o e o m o e n ­
tid a d e p r o je t iv a ; na v e r d a d e , o r e c o n h e c im e n t o d o o b je t o e o m o
e n t id a d e d e p r ó p r io d ir e it o (19f>9i, p. 174; g r ifo m e u ).

1.1 Q u an d o .se refere aos estágio s iniciais, W in n ico tt usa, m uitas vezes, o term o
“ p r o je ç ã o ’' p a r a d e sign ar a cria ç ã o , pe lo b e b e , d o o b je to ou d o m u n do. N u m
texto de 1960, p o r ex em plo , ele diz q u e o b e b ê só p o d e re c e b e r o q u e vem do
m u n d o ex te rn o se essas coisas estiverem in clu íd as “ na o n ip o tê n c ia do
laeten te e sen tid a s e o m o p ro je ç õ e s ” . N este p onto, ac resce a segu in te nota
de rodapé: “E stou u sa n d o aqui o term o ‘p r o je ç õ e s ’ em u m sen tido descritivo
e d in âm ico e não no seu sen tid o m ela p x ie o ló g ie o e o m p le to " (1 9 6 0 c , p. 46,
nota 12).
■\ T K O llIA l « ) A M A |il'K K C IM K X T() DK 1». \V W IX X IC O IT

Note-se, pela citação, que é o lacten te que con fere :m o b je to o


caráter dc externo. Ele o faz expulsando o o b je t o (su b jetivo) para
fora do âm bito da onipotência: a lgo (a lgu ém ) que faz parte do
si-m esm o 011 do inundo subjetivo ó destacado, expulso para fora,
para ser exam inado e/ou atacado. Essa operação de expulsão do
ob jeto, com o não mais pertencendo ao mundo subjetivo, é denom i­
nada, por W in n icott, destruição do objeto. O objeto que é destruído
pelo bebê é o objeto subjetivo. M elhor dizendo: é o caráter subjetivo
do ob jeto que está sendo destruído. A destrutividade aí im plicada
não ó de caráter instintuai — em bora tenha um apoio nas experiên­
cias da im pulsividade instintuai prim itiva, que, neste m om ento,
ainda não fo i integrada co m o parte tio si-m esm o — . c tam pouco
deriva da raiva advinda das frustrações. Trata-se cie uma d e stru ti­
vidade sem raiva, referida à necessidade, própria ao am adu reci­
m ento, de o indivíduo co m eça r a habitar num m undo que não é
sua projeção, e no qual existem objetos que, tendo existência pró­
pria, podem ser usados. Se a eapaeidade de relação e com unicação
do pequeno indivíduo fica restrita á com unicação com objetos
subjetivos, que foi im prescindível nos estágios de dependência
absoluta, isto se torna, com o am adurecim ento, um beco sem saída
(cf. 19G5j, p. 167).
Qual c a maneira pela qual se m anifesta a destrutividade que
leva à eapaeidade dc usar objetos? De muitas formas que vêm, natu­
ralm ente, misturadas com agressividades de outra natureza, com o a
instintuai. ( ) bebê, que a esta altura está fisicam ente mais forte,
com eça, por exem plo, a chutar a mãe ou a m order efetivam ente o
seio; ou esmera-se em desgastá-lo; ou ainda a recusá-lo, observando
a reação da mãe; ou sim plesm ente, deixando de necessitar d ele.14
Seja qual for a maneira pela qual um eerto bebê põe-se a destruir o

14 R eferin do-se ri este tem a, nu m texto escrito em 1W>3, an terio r, p o rta n to , à


sua fo rm u laç ão ca b al da q uestão, em 1969, W in n ieo tt afirm a, a lu d in d o cio
tra b a lh o clín ico , i|ue há um estado in term e d iário no a m a d u recim e n to
n orm al, ua p a ssag em en tre o subjetivo o o o bjetivam e n te p e rc e b id o , em que
" a exp eriên cia m ais im p o rtan te d o p acien te eo m rela çã o ao o b je to b o m ou
p o ten c ialm e n te satisfatório é a recusa d o m esm o . A recusa é pa rte d o p ro ­
cesso d e criaç ão d o m e s m o " (1 9 6 5 ], p. 1 6 5 ). A cresce n to : c ria ç ã o d o m esm o
en q u a n to rea lid ad e ex te rn a, na m ed id a cm q u e esse tipo de ag ressã o poi
recusa e as idéias lig a d a s a ela "Movam ao p rocesso d c c o lo c a r o o b je t o sepa
ratlo do s i-m e sm o " (U k m ).

2lfi
OS l!iSTÁ(!I< >S l>.\ lll-:i'K\l)ÉX<;l.\ IÍ1XIJE1‘ KX1>KXCL\ KKI.ATIVAS

ob jeto — que é, ainda, subjetivo — , o que caracteriza o fenôm eno é


que, não estando fam into nem raivoso, o bebe precisa desentír o
objeto. Ou seja, existe um impulso real dc desím ir, que precisa ser
experim entado.
A tese de W innieott é, portanto, a de que existe uma destruição
que é anterior ao funcionam ento do princípio dc realidade, destrui­
ção que desempenha t tin papel na criação da realidade, com o bebê
colocando o objeto fora do si-mesmo, ou seja, tora do mundo subje­
tivo. O que o indivíduo está criando, neste estádio, não 6 propria­
m ente um objeto, mas um novo sentido de realidade, o da externali-
dade. “ lí o impulso destrutivo que cria a qualidade da externalidade”
(1969i, p. 176). A premeneia destrutiva tem , portanto, uma função
positiva vital, a dc objetivar o ob jeto.15 Não sc chegará a parte
alguma no estudo da agressão sc a pensarmos com o estando irrevo-
gavehnente vinculada ao ciúme, à inveja, à raiva pela frustração ou
ao funcionam ento instintual denominado, habitualmente, de sádi­
co, Para o autor, a agressividade e a destrutivnladc humanas são fe­
nômenos relacionados à questão da constituição da realidade.11' Km
1970, ele escreve que “ o mais básico c o conceito de agressão com o
parte do exercício </ue pude conduzir à descobcrtu dc objetos t/ue .são
extern os" (1989u, p. 221).
O que deve aqui ser ressaltado c que a experiência dc destruição
depende da sobrevivência do objeto.** Sobreviver significa, neste

15 O bjetivar, aq u i, é to rn a r o o b je to o bjetivo, cn eo u trável na rea lid ad e o xtem a.


O b je tiv a r deve ser distin gu ido de objetitiear, q u e é o que fax a teoria para
en q u a d ra r o o b je to n u m a c a te g o ria represcntável.
16 S ob re a agressividad e e a destru tividade em W in n ieo tt, ui. Dias, 2000.
17 A destru tiv idade q ue eria o sen tido da ex tern alid ad e é, se g u n d o o próprio
au tor, u m d o s seus co n c eitos m ais difíceis. A pós a leitu ra do artigo s o b re o
uso do o b je to , na S o c ied a d e Psieanalítiea de Nova York, em 1968. in ú m eras
críticas fo ram feitas a o seu trabalho. M ais tarde, ele fez co m en tário s a essas
críticas e disto resu ltaram a lg u n s ad end os q u e fo ram retinidos n o C a p ítu lo
34 de lixplornvãcs paicanalitivas. O tenta c e rta m en te pro vocou p e rp lex i­
da d e nos m eio s an alíticos: se, na psicanálise tradi c io n a l, a reali da d e é dada e
não criad a no d e c o rre r do p ro cesso dc a m a d u recim e n to ; se a desLnitividade
está se m p re relacio n ad a à inveja ou ao sadism o, ou, ainda, à raiva derivada
tia fru stra rã o , q u e vem ex a tam en te do p rin cíp io de realidade, q u e destrutivi-
datle e essa q u e é não instin tual e sem nth xã
Itt lí este o sentido da afirm ação de q u e não se p o de d escrever o u so d o o b je to
sem co n sid era r a n atureza d o o b je to , no caso, a externa.

— 17
A TK O K IA 1)0 A M A IH 'K K ( IlMK.VTl) DE 1). W. W IN N IC O TT

contexto, não retaliar, não muclar dc atitude, perm anecer oonfiavel-


m entc o mesmo. A palavra “ destruição” , afirma W innicott, é neces­
sária não tanto por causa do impulso do bebê a destruir, “ mas devido
à suscetibilidade do objeto a não sobreviver, o que tam bém significa
mudança de qualidade, de atitude” (1969i, p. 176). O impulso do
bebê dc destruir é real, e ele preeisa experim entá-lo, mas só poderá
fazê-lo sc houver segurança, isto é, sc não houver o risco de o objeto
sucumbir. Ca so o objeto sobreviva, o impulso sc transforma na
capacidade de usar o objeto que sobreviveu. A o m esm o tem po que
libera o bebê para continuar a exercer o impulso destrutivo, que é
real, a sobrevivência do ob jeto libera-o para destruir objetos na
fantasia inconsciente. M elhor dizendo: a sobrevivência do objeto
conduz ao uso do objeto, c o uso leva à separação de dois fenômenos:
a destruição na fantasia inconsciente e a colocação do ob jeto tora da
área de projeções. W inn icott ilustra com o se passariam as coisas e o
que diria o bebê para o ob jeto na circunstância da destruição.

“ liu te d e s t r u í'', c o o b je t o c o n t in u a ali r e c e b e n d o u c o m u n ic a ç ã o .


D a í p o r d ia n t e , o s u je it o d iz : “ E u te d e stru í. E u te a m o . T u a s o b r e v i­
v ê n c ia à d e s t r u iç ã o q u e te fiz s o fre r c o n fe r e v a lo r à tu a e x is tê n c ia ,
p a r a m im . E n q u a n t o e s t o u tc a m a n d o , e s to u p e r m a n e n t e m e n t e te
d e s t r u in d o n a fa n ta s ia ( i n c o n s c i e n t e )’1 (1 9 6 9 ), p. 1 7 4 ).

Note-se que 6 som ente a partir desse m om ento que tem início a
fantasia para o indivíduo,19 na m edida em que aqui se dá a separação
entre fato (a sobrevivência do ob jeto) e fantasia (a destruição do
objeto na fantasia inconsciente). Após esta aquisição do aniadurcci-
m ento, o ob jeto subjetivo estará sem pre sendo destruído na fantasia
inconsciente.
Esta conquista — que inclui a criação do sentido da realidade
externa e o alcance das capacidades para usar o ob jeto c para a
fantasia inconsciente — , é tão im portante para o am adurecim ento,

IV E m b o ra , cm textos an teriores, a palavra ‘ fan tasia” c o m p a re ça , a lgu m as


vezes, c o m o sin ôn im o de e lab o ra çã o im agin ativa, o co rre n d o , po rtan to ,
desde o início da vida, deve-se n o ta r que, s e c u n d o o W in n ic o tt dos ú ltim os
cseritos, a fantasia — e n q u a n to a lg o q u e p e rte n ce ao m u n d o in tern o — só
co m eç a, para o indivíduo, q u a n d o este a tin g e a conqu ista do uso do o bjeto ,
ou seja, q u a n d o alcan ça o sen tid o d a rea lid ad e extern a. Cf. W in n ico tt.
1969i, em especial a p. 174.

’ IS
OS ESTÁl ;iu s L>A l)K i’ ENI)KXCL\ E [N]>ICI>EN1)Ê\C1A K K IA T IY A S

c cão difícil de scr eoneeitualm ente descrita, que vale a pena, antes
dc prosseguir, examinar algumas diferenças e acréscim os que foram
sendo feitos à teoria, à m edida que o pensam ento de W innicott
evoluiu. Mesmo antes de 1968, quando ele chega à form ularão mais
acabada sobre esse tipo de agressividade — com o destrutividade
que leva à criação da externalidade e à capacidade de usar objetos
— , W inn icott já dizia que a agressividade humana “ está sem pre
ligada ao estabelecim ento de uma distinção entre o que é eu e o que
e não-eu” (1964d, p. 98). Nesse texto dc 1964, ele ainda relacionava
a agressividade ao impulso instintuai prim itivo, e não fazia refe­
rência ao valor da sobrevivência do objeto. A agressividade é exer­
cida pela criança, dizia ele, na form a de uma destruição m ágica, da
mesma natureza, portanto, embora no sentido contrário, da criação
mágica. Por essa m ágica infantil, o mundo pode ser aniquilado num
abrir e fechar de olhos, e recriado por m eio de um novo olhar. A des­
truição prim itiva ou mágien de todos os objetos é necessária para
que o ob jeto deixe de ser parte do “ eu” para ser “ não-eu", ''deixe de
ser fen ôm en o subjetivo para passar a ser objetivamente percebido”
(1964d, p. 102; grifos meus). Dando-se tem po ao processo matura-
cional, a criança "tornar-se-á capaz de ser destrutiva c dc odiar,
agredir e gritar, ao invés de apenas aniquilar m agicam ente o mun­
d o” ( ületn ). Nesta formulação, o início da conquista acontece com a
criança operando uma destruição mágica — não efetiva, portanto —
que, com o tem po, e pelo desenvolvim ento da capacidade de aceitar
que o ódio e o am or convivem , na natureza humana, transforma-se
na possibilidade real de agressão. Desta maneira, afirm a o autor, “a
agressão concreta ó uma realização positiva. Em com paração com a
destruição mágica, as idéias e os com portam ento agressivos adqui­
rem valor positivo e o ód io eonverte-se num sinal de civilização"
(id e m ).
O que é novo, na form ulação de 1968, c que essa conquista se
inicia com um im/niíso real para destruir. Ou seja, o bebê, que é
ainda ineom padeeido, já está dotado dc uma nova potência muscu­
lar e de m aior coordenação m otora, e precisa, para prosseguir no
am adurecim ento, expulsar os objetos subjetivos para fora do âm bito
da onipotência. lJara tanto, ele morde efetivam ente a mãe, atira com
força os objetos e já está capaz dc tratar eom brutalidade o oh jeio
transiçional. Tudo isto, ao que a mãe deve poder sobreviver, vem
acom panhado da idéia, ainda sem culpa, de ter destruído o objeiu.

2'1‘J
A T K O K IA lX )A M M )l'H t :C I M K N T < l !)!■: 1). W W IN X K X H T

Se o objeto sobrevive — o que significa que tem existência indepen­


dente — , o bebe descobre que pode continuar a destruir os objetos,
agora na fantasia inconsciente, porque o objeto, que ele necessita
usar, perm anece incólume. Pode, portanto, scr usado.
C) pressuposto que está na base da concepção da destrutividade
que cria a externalidade “ vai direto à base da existência c constitui o
aspecto mais fundamental do relacionam ento com objetos [ex te r­
n o s ]” . C) axioma 6, postula o autor: " ( . . . ] o que é bom está sempre
sendo destruído” (19fi(>j, pp. 206 e 207). Q.ual 6 o sentido, em ter­
mos do processo de am adurecim ento, da necessidade de destruir o
que c bomV Uma resposta a essa pergunta, diz W innicott, deverá
apontar para as qualidades reais (autuai qualities) da coisa boa, ou
seja, para o fato dc que a coisa boa pode sobreviver em fu n çü o de
suas próprias (pialidudcs reais. Ou seja, o objeto sobrevive por si
mesmo e não por estar sendo protegido da destruição pelo bebê.
Pois após ter sobrevivido à destruição, a coisa boa será amada, valori­
zada c quase adorada de uma nova maneira. Isto, diz o autor, “ adveio
do teste de ter sido usada de forma ineom padeeida e de ter sido o
objeto, não protegid o por nós, de nossos mais prim itivos impulsos e
idéias” { l ‘AS6j, p. 206). Sc o bebê precisar proteger o objeto, devido
à fragilid ade deste, ele não fará a experiência necessária de des­
truição, e não chegará à relacionar-se com o ob jeto externo real, não
poderá usá-lo, nem amá-lo, nem odiá-lo. Sendo inicialm ente relativo
à mãe, isto servirá tam bém para o pai, numa etapa posterior, e, mais
tarde. para todos os objetos amados ou valorizados.20
Pela teoria do amadurecimento, a capacidade para o amor só
surge após a destruição, a sobrevivência do ob jeto e o advento da
capacidade de destruir na fantasia inconsciente. E verdade que Winni­
cott também fala em am or primitivo, referindo-se aos estados exci­
tados do bebê, carregados de tensão instintual, mas este "am or” é
feito dc necessidade, e nada sabe sobre a existência externa do outro.
O am or ao ob jeto que sobrevive à destruição c Ioda uma outra coisa;
trata-se agora do sentim ento de um eu — que, em bora incipiente, é
in teiro c separado — dirigido para um outro, com o pessoa inteira

20 E m m eio a o s relacio n am en to s, na idad e ad ulta, a de stru iç ão du o b je to . em


s eu ca ráter subjetivo, toinu o fo rm ato de um rep e n tin o estran h am e n to eom
rela çã o a a lg u é m q u e é tão p ró x im o . íntim o e fa m iliar que já não era visio
em si m esm o — otn algu n s casos, nunca fora v ím o •— em sua cxie rio rid a d e

250
< IS I v S T Á C I U S D.\ D IC r iiX D IC X C lA K IX U IÍI> IÍX IlK N < :i,\ K K L U I V . V Í

c separada. C) pré-requisito para esse amor é <> mesmo que para o


exercício da genitalidade que se quer madura, e que não é apenas um
exercício solitário; também nesta é preciso que o objeto seja perce­
bido eom o externo e separado do indivíduo. Ou seja, também o amor
c constituído no interior do processo de amadurecimento.-1
Disto se segue que tanto a realidade objetiva quanto o amor
dependem de haver sempre a destruição, lista torna-se o pano de
fundo inconsciente para o amor a um objeto real, situado fora da
área do controle onipotente d o sujeito. Para m ostrar o caráter
fundamental dessa destrutividade que cria a extem alidade, levando
à conquista da relação eom a realidade externa. W innicott reflete
sobre o lugar que a Monarquia ocupa, para os ingleses, dizendo que,

|... | a s o b r e v iv ê n c ia da c o is a (a q u i, d a M o n a r q u ia ) a corna v aiio sa e


c a p a c it a p e s s o a s d e t o d o s o s tip o s e id a d e s a p e r c e b e r e m q u e a
v o n t a d e d e d e s t r u ir não te m n a d a a ver c o m raiva — t e m a v e r eo m
a m o r p rim itiv o , e c o m a d e s t r u iç ã o q u e o c o r r e ria fa n tasia in c o n s ­
c ie n t e . ou n o s o n h o p e s s o a l q u e p e r t e n c e a o d o rm ir. É n a re a lid a d e
p s íq u ic a in te rn a p e s s o a l q u e a c o isa c d e s tru íd a . N a vida d e s p e rta ,
a s o b r e v iv ê n c ia d o o b je t o traz um s e n s o d e alívio e u m n o v o s e n s o
d c c o n fia n ç a . A g o r a fic a c la r o q u e é d evid o às snas próprias
pruprieikules q u e a s c o is a s p o d e m so b re v iv e r, a p e s a r de u ossos
s o n h o s , a p e s a r d o p a n o d e fu n d o d e d e s t r u iç ã o em n o ssa fa n tasia
in c o n s c ie n t e . O m u n d o c o m e ç a a ex istir. a g o r a , p o r si p r ó p r io ,
to rn a -se u m lu g a r o n d e viver; n ã o u m lu g a r p ara t e m e r o u a o q u a l
d é r a m o s n o s s u b m e t e r , o u n o q u a l fic a m o s p e rd id o s ; t a m b é m não
u m lu g a r o n d e lid a r a p e n a s c o m o s s o n h o s ou c o m a in d u lg ê n c ia à
fa n ta s ia {l% S 6 j, p. 2 0 8 ).

A capacidade para o uso do objeto, que inclui a destruição do


m esm o enquanto subjetivo, é, talvez, a mais difícil e penosa conquis­
ta do am adurecim ento. Sc a mão sucumbe à destruição, a criança
não tem com o operar essa passagem. Sc cia sobrevive, ajudando íi

criança nas dificuldades específicas à fase, esta terá o tem po neces­


sário para adquirir todas as formas dc lidar com o choque de reco­
nhecer a existência dc um mundo situado fora dc seu controle.

21 P o r isso 6 tão im p o rta n te s a b e r detectar, na clinica, a idade em ocional em


i|ue o indivíduo se en co n tra, lim a vez que, no en.su da.s pessoas cjlic reg rid e m
à d e p en d ên cia, é p rec iso ter p resen te o tato de que, para elas, m uitas vezes,
a palavra “a m o r” ain d a n ã o faz nenh um sentido.

251
A T K O K IA I X ) A M A M K K U M E N T O D E 1). W . W I N X J U I T T

A passagem do subjetivo ao objetivo acontece, em geral, por grada­


ções sutis que acompanham as mudanças próprias ao desenvolvi­
m ento, mas, sem a participação da mãe, essas mudanças ocorrem
bruscam ente e de maneira imprevisível para a criança (e f. ]9 M d ,
p. 102); ao invés dc ser ela que cria a externalidade do mundo, esta
irrom pe em seu inundo. Por isso, enquanto se dá o processo de obje-
trvação da realidade, a mãe suficientem ente boa poupará a criança
dc mudanças externas. Assim protegida, ela estará livre para brincar
de m odo a experim entar tudo o que se encontra em sua realidade
psíquica pessoal, tanto a destrutividade corno o amor; ela sonhará e,
nos sonhos, haverá destruição e assassinato, c esta atividade onírica,
que c acompanhada dc algum grau dc excitação corpórea, será uma
experiência concreta e não apenas um exercício intelectual. A des­
trutividade tem, portanto, um valor positivo, que é o fato paradoxal
de estar relacionada ã criação da externalidade do mundo. A lgo, no
entanto, sc perde; algum objeto subjetivo tem dc ser sacrificado
enquanto subjetivo, em bora seu significado subjetivo não desapa­
reça. Mas para quem teve a sorte dc ter podido criar uni mundo sub­
jetivo rico, haverá sempre uni manancial de objetos subjetivos passí­
veis de serem destruídos cm favor da realidade com partilhada que
enriquece a experiência.
Para ilustrar o que ocorre quando a criança não pode fazer a
experiência de destruição, W innieott recorre ao relato de Jung,
sobre sua prim eira infância, em um livro autobiográfico.2- T u d o leva
a crcr, sustenta o autor, que Jung não teve nenhum con tato com sua
destrutividade básica. Aos quatro anos, já havia sc instalado um
quadro dc esquizofrenia infantil: em torno de unia cisão patológica
en tre o falso e o verdadeiro si-mesmo, foi construída uma organi­
zação defensiva contra o perigo da desintegração da personalidade
falsam ente integrada, Na base dessa cisão, havia urn fator externo
precoce, a depressão de sua mãe, compensada, ao que tudo indica,
pela atitude m aterna do pai. Aos três anos, Jung sofreu um colapso
psicótico relacionado com a separação dos pais. Mas o ponto salien­
tado por W innieott advém do relato dc Jung sobre seu m odo de
brincar; suas brincadeiras consistiam cm construção e destruição
concretas constantes, a construção dc um edifício sendo sempre
seguida por uni terrem oto que o destruía. O que não aparece no

22 Cf. .Jung. 1903. C f., tíim bém , a resen h a deste livro, po r W in n ieo tt ( IW t lli).

252
o s rcsTÁr.ioí; d a d i í i *h x i >í ;.\<:i a r in d i íp k n d k x c i a k i -:i .a t i v a s

m aterial ó a destru ição im aginativa seguida dc um sen tim en to dc


culpa e, lo g o , dc construção. Ou seja. Jung não se descreve brin­
cando co n stru tivam en te em relação com h a ver destruído na fan ­
tasia in con scien te, lí com p reen sível qu e assim fosse, observa
W in n ieott, pois dc fato, é m u ito difícil para uma criança chefiar à
destrutividade prim itiva se ela é cuidada por uma mãe clinicam ente
deprim ida.2,1 Tendo sido esta a sua circunstância,

J u n g p a ss o u to d a a v id a b u s c a n d o um lu g a r p a r a g u a r d a r s u a re a li­
d a d e p s íq u ic a in te rn a , p o r m a is q u e e s t a fo sse, e m v e rd a d e , u m a
t a re fa im p o ssív e l. A o s q u a t r o a n o s a d o t o u a c o m p le x a te o r ia d o
s u b t e r r â n e o d o s o n h o [ . . . ] . B a ix o u ;io s u b t e r r â n e o e e n c o n t r o u ri
v id a s u b je tiv a . A o m e s m o t e m p o , t o r n o u -s e u m a p e ss o a r e t r a íd a , o
q u e o tez p e n sar, e r r o n e a m e n t e , tra ta r-se d e u m a d e p r e s s ã o c lín ic a
(19641i. p. 369).

Ou seja, a questão para Jung não cra depressão relativa à culpa


011 à responsabilidade pela agressividade contida na impulsividade
instintual, característica do estágio do eoncern im ciito, com o vere­
mos adiante. Tratava-se de uma questão mais prim itiva e básica: o
ponto dc origem tias dificuldades de .Jung está localizado, em ter­
mos do am adurecim ento, na incapacidade para a destrutiviíUule que
cria a extenuditUtãe c que, correia tivamente, constitui o si-mesmo
com o um eu separado do não-cu. A capacidade para esta destruição
depende da segurança de que o ob jeto sobreviverá. Jung não podia
destruir a mãe na fantasia, expulsá-la de seu controle onipotente
para constituí-la com o pessoa separada, na exterioridade, porque
esta não tinha condições de sobreviver. Desta dificuldade resulta,
certam ente, um distúrbio depressivo, cuja natureza, contudo, não
está relacionada à problem ática própria ao estágio do ooncernimen-
to, estando vinculada à desesperança, típica das personalidades do
tipo falso si-mesmo, em alcançar uma realidade pessoal que lhe per­
mita estabelecer relações reais com o inundo e os objetos externos.
Apesar de ter m ostrado a necessidade da destruição do objeto
bom, para dar prosseguim ento ao processo que leva à capacidade dc
estabelecer relações com a realidade objetivam ente percebida, Win-

23 Cf. W in n ieo tt. J964h, p. 3 7 0. P ara estas afirm ações, W in n ieo tt baseo u -se
tanilicm no livro do Fordliam .sobre a o b ra dc Ju n g. Cf. M. Fordham . 1962,
(•oiifcrüiicift n" 11*).

25.1
A TKOIUA IM) A M M H !KK C I.M £M t> 1)K l>. W . W lX X IC t >'JT

mamente variável nesta idade; não só dc criança para criança, com o na


mesma criança cm momentos diferentes. Pode perfeitamente ocorrer,
a uma criança saudável, dc a psique perder o contato eom o corpo, e há
circunstâncias em que não é nada fácil rceupcrá-lo. Sc ela for acordada
e tirada do berço num m om ento em uuc está mergulhada num sono
profundo, isto virá acompanhado de sobressalto e pânico por causa da
mudança repentina da posição do eorpo num m om ento em que a
psique estava ausente dela.
Além das questões que envolvem o dia-a-dia da criança de um ano,
há aquelas relacionadas com o próprio alcance da integração. O mo­
mento em que tem início um sentido de integração é m uito difícil e de
extrema vulnerabilidade. (> bebê passa a ver o inundo e a si mesmo a
partir de uma nova posição, o eu. A ousadia de ser um si-mesmo, que
tem agora fronteiras demarcando um território, pertence necessaria­
m ente o repúdio do não-eu. A integração do si-mesmo constitui,
portanto, um ato de hostilidade para eom o não-eu e traz consigo íi
expectativa dc um ataque. O novo indivíduo sente-se “ infinitamente
exposto” c só poderá fazer frente e suportar os percalços dessa
conquista se tiver l,os braços de alguém envolvendo-o nessa ocasião"
(1965s, p. 175). E esse o sentido da afirmação de que

|...] as mais agressivas e. por isso, mais perigosas palavras do


mundo são encontradas nu afirmação líl’ SOU. Contudo, é preciso
admitir que só aqueles que alcançaram o estágio de fazer esta afir­
mação é que estão realmente qualificados para serem membros
adultos da sociedade (1986d, p. 110).

As experiências relacionadas à conquista da identidade unitária


produzem , por algum tem po, um estado que poderia ser chamado
de paranóide e que constitui uma das raízes da tendência à para­
nóia.3^ Nesta situação, a proteção fornecida pela mãe e im prescin­
dível, “ por posieionar-sc entre o indivíduo integrado e o mundo exte­
rior muito pouco bem-vindo” (19&8, p. 141). ( ) estado paranóide.

26 U m p o u co de p ois desta afi mutçíio, W inn icott acrescen ta — referindo-se, sem


dúvida, à hipótese kleiniana da disposição pa ra n ó id e inata: tendência pnrn-
nóide ‘‘m uito precoce, m as não inata ou v erdadeiram ente co n stitu cio n al”
(198& , p. 145). É preciso tam b ém notar que a tendência a sentir-se perse­
guido, relacionada à conquista da unidade num KU S O I', é inteiram ente dife­
rente da d isposição p a ra n ó id e advinda dc uni padrão dc invasões am bientais
ou daqu ela cuja o rig e m é a d escoberta da destrui ividade pessoal.

25b
O S K S T A O IO S l).\ ÍJK PKXD H .V C IA K IN líliP K N H É N C IA UKJ.ATIVAS

referido a essa conquista c m enor quando a integração está ocor­


rendo na época original, própria à conquista, e potencialm ente maior
quando o indivíduo alcança a integração numa cpoca tardia, eomo,
por exem plo, no caso do paciente adulto que está refazendo, cm
análise, o caminho do amadurecimento. A lém disto, com o depende
tanto dos cuidados ambientais eom o dos fatores pessoais — o padrão
de impulsividade pessoal, dc motilidade, sensibilidade, inteligência
etc. — , a integração pode scr favorecida mais por mn do que por
outro dos fatores envolvidos. Nos extremos, a expectativa de perse­
guição c mais freqüente se a integração se realiza apoiada, sobretudo,
nos fatores pessoais. Quando o bebê se integra basicam ente em
função dos cuidados ambientais, de tal m odo que se poderia dizer
que o si-mesmo foi com o que impelido a aglutinar-se. pode ocorrer
uma relativa ausência da expectativa de perseguição e, no contrário
da alternativa anterior, há aqui a base para a ingenuidade, para uma
incapacidade de esperar a perseguição e para uma quase irrevogável
dependência da boa provisão ambiental (1988, p. 141).
Para expressar esta situação precária do EU SOU reeém-integra-
do, W innicott alude à figura do I lumpty-Dumpty, o personagem baixi­
nho e redondo de uma tradicional canção inglesa, a personificação dc
um ovo que cai de um muro e se espatifa. ( ) muro em que Ilumpty-
Dumptv está precariamente em poleirado. diz W innicott, 6 a mãe que
deixou de oferecer-lhe o colo. A criança precisa dc tem po para que
essa fase de passagem seja explorada por com pleto. Ela avança em
certas direções mas, muitas vezes, precisa retornar c regredir a situa­
ções que pareciam ultra passadas. E necessário dar-lhe a chance de
experim entar vários tipos de relações objetais num mesmo dia e, às
vezes, ao m esm o tempo. Uma criança pode estar brincando, entre-
tida, eom a tia ou com o cachorro, ao mesmo tempo que tem algumas
percepções objetivas e faz descobertas criativas. N o m om ento se­
guinte. cia sc mistura de novo com o berço, ou com a mãe, ou com os
odores familiares, c sc instala outra vez num ambiente subjetivo. Ao
longo da vida, são esses padrões familiares da criança, os do mundo
subjetivo, mais do que qualquer outra coisa, que a abastecem para
todos os outros tipos de relação com a realidade, dc tal m odo que. “ ao
descobrir o mundo, a criança sempre realiza uma viagem dc volta — e
esta viagem faz sentido para ela” (1986d, p. 106).
Avançar na direção do futuro c da independência é, ao mesmo
tem po, uma “ viagem de volta” , mn retorno às origens. Na saúde, não

257
A T E O K IA IK ) A\L\1H'KK< :IM K X T () DK l> W . W IN N IC t VIT

im porta o grau dc objetividade que o indivíduo tcnlia sido capaz de


alcançar, o mundo subjetivo continua a ser a fonte de riqueza
pessoal e do singularidade inalienável. Apesar de subjetivo e objetivo
jam ais coincidirem , é possível nutnter abertas its pontes que permi­
tem o trânsito entre os vá rios sentidos de realidade. O adulto
maduro é capaz de objetividade, sem perder o contato com o mundo
im aginativo pessoal, líle t'az concessões à sociedade por m eio de um
falso si-mesmo instrumental sem perder o fio que o ligíi a si mesmo,
isto é, sem perda da espontaneidade c da criatividade originárias.
As tarefas do am adurecim ento prosseguem. A conquista do esta­
tuto do 1ÍU SOU ainda não faz do bebê uma pessoa inteira (wholc
p erson). 151a é, contudo, a plataforma, a posição a partir da qual a
vida pode ser vivida. Mais pontualm ente, é a condição de possibili­
dade para o próxim o estágio, o do coneernim ento, em que o bebê
com eça a sentir-se concernido pela sua impulsividade instintual e
preocupado com os resultados do impulso am oroso prim itivo em si
m esm o e no outro.

5. O estágio do coneernimento27

Tendo alcançado, cm algum grau, o estatuto de um eu unitário,


a criança está agora em condições de realizar a tarefa de integração
tia vida insLintual. Quando esta integração for realizada dc maneira

27 A o redesorever, em sua própria linguagem. esta conqu ista tio a m a d u re c i­


m ento, co m b ase na "p o s iç ã o depressiva’' du VI. Klein, W in n ie o tt fala na
c o n q u ista tia ca p a c id a d e p ara n ctniccni pelos b e b ê s. Ü term o é de difícil
trad u çã o , c o n fo rm e salien ta Dnvy L, 15oj*(imoletz. na siu> cu id a d o sa nota
in tro d u tó ria ã tiíid u ç ão cie Natureza humana. B o g o m o l e t z assin ala ainda,
com razão , q u e o term o 'p re o c u p a ç ã o ” , u tilizado p o r vários trad u to re s, não
c o b re in teiram e n te as ac e p ç õ e s d o c o n e e n i. P a ra evitar o uso sistem ático dc
term o s ingleses, optei p o r Lrn du zi-ln p o r u m n colüjjism o. o “ co n c e rn im o n ­
to ” . derivado d o v erb o co n c ern ir, q u e existe na lín g u a po rtu g u e sa . K verdade
que “c o n c e r n ir ” — “ d iz e r respeito , ter relação, referir-se” , s e g u n d o o A n ré -
lio — tam b ém não alcan ça o sentido dc "e o n c u rn ”. tio p re o c u p a ç ã o dirigida
a o o u tro q u e o conccni en cerra. Q u e r o su g e rir, co n tu d o , q u e . sc tom ado
c o m o um n e ologism o . c ria d o exclu sivam ente para d e sig n a r o c o n c e im
vvinm eottiano e, pela sim ila rid ad e co m o te rm o in g lê s , o ternu» 'c o n eem r
m e n to " tem a p o ssib ilid ad e dc, pela fam iliarid ad e d o uso. ir ad q u irin d o n
sen tido tpic tem no origin al.

25S
OS K S T Á lílO S i)A IW E X D È X O tA E IX líK PU X D ÍiX » IA Ulil.ATl\ AS

inais consistente, a criança sc tornará uma pessoa inteira (zc/iole


persfjn), capaz dc relacionar-se cum pessoas inteiras. No início desta
etapa, os impulsos — ate então externos à pessoa do bebê c inva-
sivos, sc ele não for ajudado a haver-se com eles — passam a ser inte­
grados, a ter sentido e a scr avaliados cm suas conseqüências. Dc
incom padecido (nitldesa), o bebê passa a sentir-se concernido pela
impulsividade que o domina nos m om entos de excitação, com o sc
dissesse: “ Isto c com igo, me diz respeito, c da minha alçada” ;
torna-sc também preocupado, pois com eça a perceber que essa
impulsividade atinge e pode ferir o outro; dá-se conta, portanto, que
é ele m esmo que, de próprio punho, faz “ buracos no corpo cheio dc
riquezas da m ãe". As ansiedades desse período são dc extrema
com plexidade, pelo fato de o coneern im ento dizer respeito não
apenas aos efeitos da impulsividade voraz com relação ao objeto tio
amor excitado, mas também às conseqüências, 110 si-mesmo, da
experiência dc excitação (198<S, p. 98). A partir daí com eça a surgir
um sentim ento dc culpa e de responsabilidade com relação à destru-
tividade que c inerente à impulsividade instintual.
Uma das coisas mais importantes que ocorrem neste estágio
consiste cm que a criança começa a perceber não só que ela é uma
única e mesma pessoa, quer esteja excitada quer esteja tranqüila,
eom o também que a mãe que cuida dela, trocando-a e mimando-a nos
estados tranqüilos, é a mesma pessoa que ela vivamente ataca duran­
te os estados excitados, A mãe vinha sendo — e continuará a ser ainda
por um tem po — , simultaneamente, mãe-ambiente e mãe-objeto;
enquanto a primeira foi e continua a ser carinhosamente amada e
afagada, a segunda é repetidam ente danificada ou destruída, Durante
o tem po em que a criança está juntando, numa só, a mãe-ambiente e
a mãe-objeto, a mãe real precisa continuar a desdobrar-se cm duas,
executando cada qual a sua parte da tarefa de cuidar do bebê.
Com pete à mãe não apenas continuar a manter o ambiente seguro e
confiável, com o a oferecer-se, ela mesma, eom o o objeto que agora c
usado, conscientem ente sugado, destruído c alvo dc preocupação:

A mãe-objeto tem de sobreviver aos episódios guiados pelo instin­


to, que adquiriram agora toda a força das fantasias de sadismo oral
e outros resultados da fusão. A mãe-ambiente cabe, por outro lado.
unia função espeeinl. que ú continuar sendo ela mesma, empática
em relação ao seu bebê. permanecendo presente para receber o
gesto espontâneo dele e para ser agradada (196.11), p. 108).

2 S *>
. V m m i A DO A M A I J U í » IIMKNTO I >K l l . W W IX X ItlO T T

A té íiqui já ocorreu uni enorm e crescim ento: da unidade nuie-


bebê para íi relação de um eu eom um níio-cu externo e separado; da
pré-ambivalêneia para a ambivalência, tia dissociação primária entro
os estados tranqüilos e excitados para uma discrim inação entre
estes dois estados e uma integraçãi- tle ambos no si-mesmo. Mas
m esm o agora o bebê só pode ainda relacionar-se eom um outro: a
mãe. Toda a elaboração da capacidade para o eoueernim ento, culpa
o responsabilidade pelos estragos provocados pela impulsividade
instintuai ocorre num piano exclusivamente dual, na relação do
bebê eom a mãe, a qual só vagarosam ente torna-sc uma única pessoa
para a criança.
A tarefa de integrar a instintualidade. com toda a agressividade
que lhe é inerente, requer tem po e um am biente pessoal contínuo;
na ausência da com preensão do que está se passando c tle um eerto
tipo dc cuidados essa conquista não pode ser realizada. í ) argu­
m ento de W innicott é o seguinte; o bebê humano não tem condições
de suportar o peso da culpa e do m edo resultantes do reconheci­
m ento pleno de que as idéias e atos “ agressivos” , contidos no im ­
pulso am oroso prim itivo c incom padceido, estão dirigidos à mesma
pessoa que cuida dele c de quem cie continua a depender de forma
relativa, d o m o tudo isto sc passa na relação dual, e c elaborado eom
respeito à mãe, a criança tem tle sc haver sozinha, por assim dizer,
com essas questões, uma vez que cia “ ainda não progrediu o bastan­
te para fazer uso da idéia de um pai interventor, o que tornaria as
idéias instintuais seguras” (1 ‘ASH, p. 90).
A tendência da criança que com eça a deparar-se com o fato dc
que a agressividade faz parte de sua natureza é projetar essa agressi­
vidade para fora, para o mundo, ficando este povoado de ameaças;
um sentim ento dc m edo, vago, m ágico e espalhado por toda a parte
se estabelecerá, lí a disponibilidade receptiva c protetora da mãe
que neutraliza o caráter retaliatório e m ágico desses medos:

Q ji a n d o c a d a b e b ê c o m e ç a íi c o le t a r u m a vasta e x p e r iê n c ia tle
c o n t in u a r s e iu lo , à s u a d o c e m a n e ira , e a s e n t ir q u e e x is te m u
s i-m e s m o — u m s i-m e s m o q u e p o tlen í s e r in d e p e n d e n t e d a m ã e —
é e n c ã o q u e o s m e d o s c o m e ç a m a d o m in a r a c e n a . lísse s m e d o s s ã o
d e n a t u r e z a p rim itiv a c b a s e ia m -s e na e x p e c ta tiv a d a c r ia n ç a d e
c r u é is r e ta lia ç õ e s . A c r ia n ç a fic a e x c ita d a , c o m im p u ls o s ;i£rcs-
sivo s o u d e s t r u tiv o s q u e se m a n ife s t a m p o r m e io d e g r i t o s e
d e s e jo s tle m o rd e r, e, im e d ia t a m e n t e , o m u n d o p a r e c e r e p le t o d e

260
o s E S T Á t m s n.\ 1)K I * k x d k x c : l \ k im ík i* i:\ i> i;. x c i a íu -:i,.v rn .v s

b o c a s m o rd e n t e s , g a r r a s e d e n t e s h o s tis e to d a a s o r t e de a m e a ç a s .
A s s im , o m u n d o in fa n til s e r ia n m lu g a r a t e r r a d o r se n ã o fo sse o
papel p ro te to r da m ãe q ue, de um m o d o g e r a l, c n c o h r e e sse s
m e d o s e n o r m e s q u e p e r t e n c e m à e x p e r iê n c ia in icia l d a vida du
b e b ê . A m ã e (e n ã o e s t o u e s q u e c e n d o o p a i) a lte r a a q u a lid a d e do s
m e d o s dn c ria n ç a p e q u e n a p o r s e r u m s e r h u m a n o . G r a d u a lm e n t e ,
e la é re c o n h e c id a , p e la c r ia n ç a , c o n to u m s c r h u m a n o . A s s im , ao
invés d c u m m u n d o de r e t a lia ç õ e s m á g ic a s , a c r ia n ç a a d q u ir e u m a
m ã e q u e c o m p r e e n d e e q u e r e a g e a o s im p u ls o s da c r ia n ç a . M a s a
m ã e p o d e s c r fe rid a e fic a r z a n g a d a . Q u a n d o d i g o as c o isa s d e ste
m o d o , v o c ê s p o d e m p e r c e b e r im e d ia t a m e n t e q u e faz u m a e n o r m e
d ife r e n ç a , p a ra a c ria n ç a , se as fo rç a s r e t a lia t ó r ú is fo r e m h u m a n i­
z a d a s (1 9 9 .1 c, p. 1 2 2 ).

A resolução desta crucial dificuldade que consiste cm aceitar


que a destrutividade é pessoal e convive eom o amor, depende do
desenvolvim ento, na criança, da capacidade de fazer reparações,
ou rem endos, coino p refere dizer o autor. A criança tem a necessi­
dade p rem en te de saber que o estrago pode ser consertado e repa­
rado, que o buraco pode ser rem endado, que m esm o as idéias ou
ações destrutivas podem ser equilibradas por algumas dádivas. Só
assim ela se sentirá livre e segura para continuar a exercer a im pul­
sividade que lhe pertence. Mas essa capacidade só será desenvol­
vida

j , , . ] se a m ã e susceitra a sm utção no tem po c s o b r e v iv e , d ia a p ó s


d ia , d c m o d o q u e o b e b ê tem t e m p o p a ra o r g a n iz a r a s n u m e ro s a s
c o n s e q ü ê n c ia s im a g in a t iv a s d a e x p e r iê n c ia in stin tiva c r e s g a ta r
a lg o q u e s e ja s e n t id o e o m o “ b o m ” , q u e a p o ia , q u e é a c e it á v e l, q u e
n ã o m a c lu ic a , e c o m isto p o d e r e p a r a r im a g in a t iv a m e n t e o d a n o
c a u s a d o à m ã e (1 9 8 8 , p. 9 0 ; g r ifo m e u ).

O elem en to essencial, aqui, é a presença contínua da mãe, a sua


sobrevivência, durante todo o período em que o bebê ou a criança
está integrando a agressividade que faz parte da sua natureza.
Primeiro, por segurar a situação no tem po: a mãe perm anece ali,
viva e disponível, isto c. acessível, tanto fisicam ente quanto no
sentido de não estar preocupada com outra coisa durante o in ter­
valo de tem po necessário entre o ataque agressivo do bebê, o
advento da culpa e o gesto de reparação ou remendo. Segundo, pelo
seu valor dc sobrevivência, o que significa não retaliar, não mudar de
atitude, não recuar sentindo-se pessoalm ente ofendida pelo que

J í.l
A TK O KIA IX ) A M A W ItK C IM K N T O l)K I! W. W IX X lU íT T

seria 11111 canibalism o do bebê, não adotar urna atitude moralista,


visando educá-lo ou treiná-lo, logo cedo. para a civilidade. Sobre­
viver não é ficar indiferente 011 imune ao que se passa; não significa
permissividade. A criança sabe, agora, que está machucando ou
ferindo quando está excitada; ela sabe e precisa que a mãe também
saiba, lista não finge que “ não foi nada” ; não se faz dc m ártir que
suporta o ataque porque, afinal, esse é o seu lugar de mãe. Xão. Sc
cia está viva, ela sente e se defende: sem tensão, sem tem ores acerca
da natureza cruel do filho, sem reatualizar ali velhas histórias de
violência sofridas. Sobreviver significa, portanto, que a mãe não
desiste de exercer o seu papel no processo de desilusão: ela suporta
,sc r o d i a d a . '1
*
O fato é que a criança necessita exercer sua impulsividade e se
depara com o m edo de que os estragos sejam irreversíveis. Quando a
mãe fornece a oportunidade para que o “ círculo b en ign o’' — o
machucar-e-remendar (hurting-marule-good) — se repita inúmeras
vezes, o bebe passa, gradualm ente, a acreditar na possibilidade de
reparação, no esforço construtivo, e sendo-lhe dadas boas condições
de suportar a culpa, torna-se mais livre para o amor instintuai.
“A conseqüência do fortalecim ento, dia após dia, do círculo benigno
é a de que o bebê torna-se capaz de tolerar o buraco (resultado do
am or instintuai). Aqui estará, então, a origem do sentim ento de
culpa. lista é a única culpa verdadeira, visto que a culpa implantada
é falsa para o eu ” (1955c, p. 3 6 5). Se, eo m o no caso de uma in sti­
tuição, são muitas c alternadas as pessoas a cuidar do bebê, este
perde a oportunidade da reparação — que precisa ser feita eom
relação à mesma pessoa que foi ferida — e o círculo benigno não
pode ser constituído. Também não há lugar para esse desenvolvi­
m ento acontecer quando, m esmo tratando-se da mãe, o cuidado c
impessoal e mecânico.
15 durante a conquista da capacidade para o concernim ento que
a tem poralização do bebê se estabelece de forma mais consistente.
Sua nova consciência acerca dos estragos que produz, nos m om en­
tos de excitação, é retroativa além de projetar-se no futuro: ele não
apenas sabe que 6 ele m esmo que, agora, na excitação do m om ento,
suga, devora, gasta, em suma, faz estragos na mãe, com o sabe que

28 S ob re o valor da sob revivência da inac e tio analista, et Dias. 21JII2.

2 02
os kstâcios üa 1)i;i'í;ndk\(;ia iíindki-kndkncia ukl\tiva.s

.sempre os fez, c mais, que continuará afazê-los. Não hã rem édio, o


im pulso para viver im plica agarrar, usar e devorar tudo o que é
necessário para continuar vivo. Se, pela crescente confiança no ato
reparador, a criança sente-se livre para exercer a sua impulsividade
c, algum tem po após, tendo sentido culpa, vem fazer o gesto — um
sorriso, um pequeno carinho, por exem plo — , sinalizando qtie
remendou o corpo da mãe, então o trabalho do dia sc com pleta.
Quando o círculo benigno cabe inteiro num só dia, “ os instintos de
amanhã podem ser aguardados com um m edo lim itado. A cada dia
basta o seu fardo” (1 9 8 S ’ , p. 9 1 ) . A conquista da capacidade para o
coneern im cnto vem acompanhada, portanto, de um sentido mais
acabado do tem po, pois c nesse m om ento que passado, presente e
futuro sc articulam (ef. ibid., p. 52). A integração, no nível da pessoa
inteira, significa responsabilidade, consciência, “ um conjunto dc
m em órias e a junção do passado, presente c futuro dentro de um
relacionam ento. Assim, ela praticam ente significa o com eço de uma
psicologia humana” (ibid.. p. 140).
N ote-se que uma vida psíquica, habitada por co n flito s in­
ternos, só tem in íeio nesse m om ento: a criança tem , agora, um
d en tro e uni fora; um m undo interno pessoal e com plexo, com
fantasias e ansiedades em op osição ao m undo externo. A vida que
se passa no m undo in tern o, ao m odo de uma novela, com histórias
c personagens, é dotada de uma tal autonom ia que a crescen te
com p lexid ad e e riqueza desse m undo in tern o pode ser o b je to de
consideração em si m esm o; transcorre, aí, uma terrível disputa
e n tre as tendências destrutivas e construtivas da personalidade,
além de um tip o especial de ansiedade, o sen tim en to de culpa,
derivado da idéia de que o im pulso destrutivo em erge exatam en te
quando o am or está atuando. Desse m odo, o que ú " b o m ” está
co n stan tem en te am eaçado pelo que é “ m au ” .-' Ura, é essa ansie­

29 B om e m au estão en tre asp a s p o rq u e, em b o ra pe rte n ça m ao uso co m u m ,


seu .significado, na literatu ra psicannlítica, 0 via de re^rn in terp re ta d o a
partir da teo ria Ulciniana. C re io ser ta m b é m esln a razão de, num texto
so b re a po siç ão depressiva, W in n ieo tt ad uzir u m a nota de rod ap é referen te a
esses term o s, em q u e diz: " A s palavras bom e m au são b e ra n ç a s d e um
p assado lo n g ín q u o : são ta m b é m úteis para d escrever os extrem o s do que
q u a lq u e r b e b ê sente o c o rr e r d e n tro de si m esm o — q u er se trate de torças,
objetos, son s ou elieiros. N ã o m e refiro aqu i ao use destas palavras por pais e
b ab á s q u e pretendem im p o r ;io b e b ê u m a m o ra lid a d e " ( JVM8, p. V I ).

JO.Í
A TK l )R IA IX > A.\LM )C K lil’.IMIÍN'T(> 1)K |). W. WINMK :i >TT

dade que, cm co n d ições favoráveis. leva a criança ao c o m p o rta ­


m en to con stru tivo ou ativam en te am oroso, ressuscitando o o b je ­
to e reparando o que foi danificado, lí ela que. mais tarde, estará
na base dc toda in iciativa pessoal ou trabalho con stru tivo. A tare­
fa da m ãe su ficien tem en te boa c p erm an ecer ali, disponível para
reconhecer e receber o gest.o restaurador. A capacidade tle repa­
ração de um bebê é m u ito lim itada e c ie depende dc que alguém
recon h eça a sua “ dádiva sim b ólica ", lí dcsesperadnr. para a cria n ­
ça, dar-se con ta do dano e “ não haver ningu ém que receba o pre­
sente ou recon h eça o seu esforço para rep ara r” (1 9 5S b . p. 3 5 8 ).
N este caso, a transform ação do in com p a d ccim en to cm eoneern i-
m en to c culpa se deslaz, c a agressividade reaparece às vezes im ­
placável.
A tolerância da criança para com seus próprios impulsos destru­
tivos, tolerância constituída pela experiência dc sobrevivência da
mão, resulta na capacidade do desfrutar das idéias (m esm o as
destrutivas) c das excitações corporais que lhe são correspondentes.
Tal desenvolvim ento dá espaço “ para a experiência de concerni-
m ento que é, em última análise, a base de tudo aquilo que for cons­
tru tivo" (1984c, p. 68). Sem a destrutividade, diz WinnieotL, não há
am or verdadeiro. For 11111 lon go período de tempo,

(...) a criança pequena precisa de alguém que seja não apenas


amado, mas que se disponha a aceitar a potência (não importa se
sc trata de um menino 011 de uma menina) em termos de resti­
tuição e reparação. Dito de outro modo, a criança pequena
precisa ter <t chance de contribuir, em função tia culpa derivada
das experiências instintuais, porque é deste modo que se cresce.
Aqui, existe dependência em alto grau, não se tratando, porém,
da dependência absoluta das fases iniciais (1955c, p. 367; grilo
meu).

N'a teoria winnieottiana, c assim que sc constitui o fundam cnio


dc uma m oralidade ]jeasoul, que não c imposta dc fora nem eusi
nada, que não é sim plesm ente intelectual c aprendida, mas que
em erge naturalm ente a partir da experiência da “ bondade o rig i­
nária” , ou soja, da confiabilidade ambiental, li essa experiência qm-,
dando sustentação ao crescim ento pessoal, leva à consciência d.i
existência do ou tro c à capacidade para a identificação cruzada, que

261
OK ESTÁtSKXS D A 1)K I'K M )K ,NCIA K I\1)K1*EN1)IÍNC]A RFJ-VTIVAS

c uni pôr-sc no lugar do outro.-10Conviver com a construção c destrui­


ção inerentes à natureza humana é, também, o fundam ento para a
capacidade de brincar e, mais tarde, de trabalhar c encontrar satis­
fação e realização no trabalho, li igualm ente cm relação a essa
conquista que, quando há fracasso, surgem os distúrbios que podem
ser reunidos peio nome de depressão, dc um certo tipo de paranóia
e, às vezes, de tendência anti-social.11
li dc notar que, em W innicott, a m oralidade sc constitui num
con texto não-edípieo, não estando referida à lei ou à interdição; o
que lhe c essencial não está definido cm term os dc adequação ou
transgressão — a não ser secundariam ente, para o indivíduo já so­
cializado — , mas em term os do cuidado cm permitir, à criança, scr
si-mesma, dc cal m odo que também cia adquire a capacidade dc
deixar ser o outro eom o um si mesmo. A moralidade c dita inata, por
W innicott, no sentido dc que existe, cm cada indivíduo, a tendência
a desenvolver um sentim ento dc responsabilidade pelos seus atos,
mas esta conquista ainda deverá ser integrada à personalidade por

.10 N ã o c a b e , nos lim ites deste estu do, d e te r-m e no co n c eito w in n ic ottian o de
'‘ id en tificação c ru z a d a ", q u e é a red e sc riç ão w in n ic ottian a tios m ecan ism os
dc p ro je ç ã o c im ro jc ç ã o . T ra ta -s e ,grosso modn, da ca p a c id a d e de pôr-se no
lu g a r d o o u tro , "du pen etrar, p o r m eio da im ag in aç ão , e ain da assim de
m o d o preciso, uns p e n sam en tos, nos sen tim en tos e nas esperan ças de o u tra
pessoa, e tam b é m d e p e rm itir q u e o u tra pessoa faça o m esm o c o n s ig o ”
(iOM Ol, p. 9 1 ). líssa ca p a c id a d e , q u e é um sinal du saú de, p e rte n ce a um
e s tá g io bastan te ad ia n tad o d o am a d u re c im e n to , m as sua b ase é e s ta b e le ­
cid a na exp eriên cia o rig in á ria d e alg u é m ter se id en tificad o co m suas neces­
sidades, in com u n icáveis a nível verbal.
31 A a b o r d a g e m w in n ic ottian a so b re a co n q u ista da ca p ac id ad e p ara o c o n e e r ­
n im en to baseia-sc, em g ra n d e parte, na teoria klein iana da po siç ão d e p re s ­
siva, co n siderada, peto au to r, a g ra n d e c o n trib u iç ão de M. Klein para o
pe n sa m e n to psican alítico. A lg u m a s d iferenças, n o en tan to , devem ser a p o n ­
tadas. W in n ico tt não p o d e c o n c o rd a r, p o r exem plo , eo m a c o n c ep ç ão de
agressiv idad e que está envolvida n o fen ô m en o, n em eom a p re c o c id a d e eom
que, s e g u n d o W. K lein, estas co n q u istas o co rre ria m ; tam po u co eo m as
p ré-e o n d içõ es ou eo m o q u e g e r a a " d e p r e s s ã o ”: e le não p o d e ver o K dípo no
a ta q u e q u e o b e b ê faz ao seio m atern o. A lé m disto, p a ra ele, a expressão
“ po siç ão d e p ressiv a” não é in teiram e n te ad e q u a d a u m a vez que, ap esar de
Klein ter descrito o fe n ô m en o co m o u m a co n q u ista d o am a d u re c im e n to
norm al, a sua d e sign aç ão leva a p e n sar q u e os b e b ê s no rm ais en tram , ao
a tin g ir esse estágio, num estad o clín ico d e depressão.

205
A T líO K lA IX ) A M A D U R K C IM K N T O )» K I) W . W IX N IC O T T

via tia experiência pessoal. (Jomo cm todos os outros aspectos da


natureza humana, a tendência só sc realiza sc o am biente favore­
cê-la, propiciando ao bebê, dc iníeio, a experiência dc bondade o rig i­
nária, de ser alvo de com preensão, com padecinicnto e respeito.32
A elaboração da capacidade para o concernim ento tem uma
longa duração, li difícil determ inar uma data dc com eço, a não ser
pelo requisito dc já haver uma certa integração num eu, que irá
assumir a culpa. Em função disto, W innieott não concorda um que
sc possa fazer recuar — com o o fez Melanic Klein em sua teoria da
‘"posição depressiva” — a tarefa e as conquistas desse estágio para
os prim eiros dias, semanas ou meses dc vida, uma vez que o alcance
dessa capacidade requer, antes, “ o desenvolvim ento dc um sentido
dc tem po, dc uma apreciação da diferença entre fato e fantasia c,
sobretudo, do fato da integração do indivíduo” (1955c, p. 370).
Com o, no entanto, entre a condição dc incom padeeido, do início, e a
posterior capacidade dc sentir-se concernido c responsável há todo
um período cm que essa capacidade está cm processo dc estabeleci­
m ento, é possível encontrar sinais esparsos dc culpa por volta dos
seis meses-1-1 ou antes de um ano. Com respeito à tarefa específica ao
estágio, contudo, o processo atinge o cume da elaboração por volta
dos dois anos e m eio, embora jam ais sc estabeleça de maneira
consistente antes dos cinco. Naturalm ente, as dificuldades do início
são diferentes das que aparecem no final do estágio.
Uma dessas diferenças consiste cm que, cm algum m om ento a
partir da. segunda m etade da elaboração do con cem im cn to, o pai
entra em cena com o pai, isto é. com o o terceiro, c sua existência e
presença reais tornam-se de extrem a im portância. N o início do
am adurecim ento, o pai existia apenas com o uma duplicação do
papel materno. C om o já vimos, mesmo nesse papel algo dele foi
acrescentado, algo “ duro, im placável, intransigente” , que foi vivem

32 Ptini u m a an álise m a is de ta lh a d a da o rig em e da n a tu re za tia m o ra lid a d e cm


W in n ieo tt, ef. L o p aric, 2000a.
3 3 Se, devido a c o n d iç õ e s dc in seg u ra n ça am bien tal, o c o rr e r u s u rg im e n to de
um eu p re c o c e , im atu ro p o rtan to , p ara estad o s de co n sciê n cia c " p e r ­
c e p ç ã o ” de o b je to s extern os, esse ‘'eu p re c o c e ” terá u m a “c o n s c iê n c ia ”
(cK iw cne.síi) p re m a tu ra da s u a ex istência, d e p en d ên cia e im pulsividade,
p o d e n d o ser, en tão , a ssola d o p o r u m a eu lp a e u m a resp o n sab ilid ad e c|uc.
devido à im a tu rid a d e b ásica, não têm eo rn o s e r in teg rad a s à personalid ade.
A cu lp a, nestes casos, é devastadora.

2(,(,
OS KXTÂCIOS l)A l)EJ'liNDÈX<:i.\ li I.\DKI'KNDf;.\Cl.\ R K U V flV A S

ciado pelo bebê eom o um aspecto da mãe. A m edida que a crimina


acede à existência separada e externa da mãe, esse aspecto sc d ife­
rencia e passa a pertencer ao pai, que sc torna, então, significativo
com o hom em, '‘ transformando-se num scr humano, alguém que
pode scr tem ido, odiado, amado, respeitado” (1986d, p. 104).
Ao perceb er o pai co m o terceiro, vislumbrando a existência do
triângu lo familiar, a criança com eça a perceber, ou a imaginar, a re­
lação excitante que existe entre os pais, c isto ó essencial para a es­
tabilidade do indivíduo por p erm itir que co m ece a existir o sonho
dc tom ar o lugar de um dos pais. Num certo m om ento, opera-se
uma alteração em sua percepção do triângulo: é ela que é a terceira,
li a esta descoberta — a percepção do triângulo com a criança 110
vértice — que W inn icott denomina “ cena primária".-54 Sc a criança
está sadia, ela é capaz tle lidar com a raiva que provém desta nova
consciência, e aproveitá-la para a masturbação, assumindo a respon­
sabilidade pelas fantasias conscientes c inconscientes que a acom ­
panham.
A capacidade de lidar com os sentim entos gerados pela cena
primária leva ao estabelecim ento de urna outra conquista de extre­
ma im portância: a capacidade de ficar só. Na literatura psicanalí­
tiea, cncontram-se inúmeros estudos sobre o m edo de estar só, ou
sobre o desejo de estar só, mas pouco se falou acerca da eapaeidade
de estar só. lim bora só se estabeleça de maneira consistente a p ó s a
experiência da cena primária, '5 essa capacidade tem na base, neces­
sariam ente, "a experiência tle ter ficado só, quando ainda lactente
ou criança pequena, na presença da m ãe" (195Sé, p . 32 ). Isto é,
quando ainda bem pequeno, antes de saber da existência do ambi­
ente, o bebê pôde ficar só, em quietude ou encostado na solidão
essencial, devido à confiança na presença contínua da m ãe e na
continuidade dos cuidados: “À medida que o tem po passa, o indi­
víduo incorpora o eg o auxiliar da mãe e, desta maneira, torna-se
capaz de ficar só sem o apoio contínuo da mãe ou de um sím bolo da
m ãe’’ ( ibid . , p. 34).

34 l’ar;i W in n ic o tt , se u m a c ria n ç a c e x p o s ta à visão i!a r e la ç ã o sexu al e n tre


os p a is, q u e é o q u e e la m e n o s n e c e s s ita e m o c io n a lm e n te em r e la ç ã o a
eles, o c o r r e r á u m a ten sã o m áx im a , q u e p o d e s e r t r a u m á tic a (c f. W in n i-
e o t t , p. 7 7 ).
35 ( lí. W in n ico tt, lV 5 íi£ , p. 33.

207
A T K O K IA 1K) A M A D U K IiC IM K X T O DK l>. W . VVINXKXXIT

A criança com eça, agora, « contar com o pai para fazer a sua
parte, que consiste em p roteger a mãe dos ataques da própria
criança nos m om entos do im pulso excitado, li aqui que o ele m en to
intransigente e indestrutível do pai ajuda a criança a liberar-se para
a vida instintual e suas conseqüências. A presença de um pai forte,
interventor, que forn ece esse tipo de segurança, torna as idéias e
ações instintuais mais seguras, perm itindo à criança co rrer o risco
dc m ovim entar-se, agir e se excitar, já que o pai está por perto,
preparado para rem endar os estragos 011 para im pedir, com sua
força, que eles aconteçam (1989vt, p. 184). O pai torna-se o apoio
necessário para a busca de satisfação instintual sem m uito perigo.
Sc esse tipo dc auxílio não puder scr fornecido, devido à ausência
do pai, ou a uma depressão da mãe, a criança se tornará inibida e
perderá a capacidade para o am or excitado. Terá ele adotar, prceo-
eem en te, um autocontrole dos im pulsos antes de estar em co n d i­
ções de fazê-lo sobre a base de uma força paterna que seria, g ra ­
dualm ente, incorporada eo m o sua. X estes casos, o c o rre inibição
da espontaneidade c do impulso, alem de um perm anente tem or de
que algum aspecto da destrutividade fuja ao con trole. ( ) resultado
pode scr uma depressão ou uma das form as da tendência a n ti­
social.
Alem disto, sem essa experiência de contar eom o pai para por
lim ites no impulso instintual, a criança fica incapacitada para, um
pouco mais tarde, no estágio edípico, rivalizar com o pai, fazendo a
experiência de um confronto que c altam ente necessário para o seu
am adurecim ento. A necessidade da criança, específica para esta
etapa, é de contar com a disponibilidade c sobrevivência da mãe e
com a firm eza do pai. Isto fica sobretudo claro no estudo da
tendência anti-social, quando se nota que há dois tipos dc privação
(<deprivution ):

l ’in deles sc dá em termos de perd:i de objeto |subjetivo| « a outra


em termos de perda de molduras, de limites. Km certo sentido,
poder-se-ia dizer perda da mãe e perda do pai — o pai paterno, não
o pai que fica no lugnr da mãe. C) importante é a moldura, a força
— a privação em termos disto (19S9f, p. 440).

A ausência de moldura para con ter o quadro, e a conseqüente


não incorporação tle lim ites, fica evidente nos casos dc delinqüência
plenam ente desenvolvida, em especial quando envolve roubo e des-
O S K S T Á C IO S i).\ 1)EI'K X 1)ÉN C!A Si I.V DE PK X IIK X CIA KHI-ATIV.\S

traição. O que nos chama a atenção nestes casos, diz o autor, " é a
necessidade aguda que a criança tem de uni pai rigoroso, severo,
que proteja a mãe quando esta c encontrada. (.) pai rigoroso, que a
criança evoca, pode ser também am oroso, mas deve ser, antes de
tudo, severo e fo rte ” (1946b, p. 1 2 2 ).v>
Durante todo o está gio do eon cern im cn to, enquanto a criança
está tentando lidar com a agressividade contida na vida instintiva,
a instintualidade está sendo integrada ju n tam en te com um cres­
cente sentido das partes do corpo, forta lecen d o a personalização e
a espacialização. li aproxim adam ente neste m om ento que surge um
aspecto marcante do desenvolvim ento sexual. As excitações estão
ficando cada vez mais localizadas. Tanto a ereção fálioa quanto a
excitação do clitóris com eçam a ter im portância própria. Ate então
estas excitações podiam ocorrer, mas não tinham o caráter sexual e
dc gênero que agora adquirem; estavam. antes, associadas com a
excitação da alim entação ou da idéia da alim entação e, um pouco
depois, com as atividades excretórias. Nessas fases pre-genitais.
com o já foi assinalado anteriorm ente, em bora houvesse, no bebê,
todo o tipo dc excitação, inclusive as de caráter genital, ainda não
havia am adurecim ento suficiente para a elaboração imaginativa da
função genital.
Em algum m om ento durante a elaboração do estágio do conccr-
nim ento, provavelm ente por volta dos dois anos a criança inicia o
que W inn ieott nom eia fase cxibicionista ou dc ostentação, a mesma
que Freud denom inou dc fase fálica. Este é o m om ento, em term os
do processo de am adurecim ento — e do desenvolvim ento da iden ti­
dade dc gênero e da sexualidade com o aspectos tlesse processo — .
cm que a distinção entre meninos e meninas com eça a ter sign ifi­
cado. O traço central da fase cxibicionista, ou fáliea, relaeiona-sc
com a qualidade que o órgão masculino tem de ser óbvio, ao
contrário da qualidade do órgão fem inino de ser escondido. O ge-
nital masculino c, portanto, central e vistoso, com suas ereções c
sensibilizações periódicas, enquanto o genital fem inino “ é um fenô­
m eno negativo” . A existência dessa etapa “ marca o divisor de águas
en tre o bebê do sexo masculino daquele do sexo fem inino” (198N,

3 f> A d istin çã o en tre o s tiois tip o s de privação é de extrei]i;i im purtãneia i i ;i

co n sid era çã o d ia g n o stica e 110 tra ta m e n to tios vários; tipos de tendém -ia
anti-social.
A TEOK1A IK ) A M A lH 'R K C [ilE N T () 1)K I >. VV W IN N K iO IT

p. 5 9 ).17 Na parte inicial dessa fase, a ereção é o elem ento mais


im portante. Tanto a ereção quanto a sensibilização clitoriana sur­
gem em relação direta com urna pessoa ativam ente amada, ou por
m eio tle idéias de rivalidade tendo com o pano de fundo a pessoa
amada. Um pouco mais tarde, na secunda fase falien, haverá "um
objetivo mais declarado de penetrar e engravidar e, aqui, a pessoa
real é o provável objeto de am or” (1988, p. 62). Sendo a experiência
excitada um dos modos pelos quais a criança habita seu próprio
corpo e sc relaciona eom os outros, as crianças que experim entam
ereções ou contrações vaginais na relação com outras pessoas, ou
com o funcionam ento do corpo, estão numa posição diferen te, e
mais saudável, do que os m eninos e meninas que não vivenciam
essas experiências integrativa» (1986g, p. 145).
A partir da fase fálica, juntam ente com a distinção tios gêneros,
deve-se ainda considerar o fato tia bisscMialidadc: existe sempre um
m enino dentro da menina, e uma menina dentro d o menino, c isto c
sobretudo inegável no caso das meninas. Neste m om ento surge a
evidência de que os meninos têm algo que as meninas não têm; além
da ereção, eles podem , por exem plo, urinar de um m odo que as
meninas não podem . Em graus variados, cias podem sentir-se in fe­
riores ou mutiladas e, nesse caso, “ a inveja tio pênis c um fa to”
( ibicl., p. 145). O trauma que isto pode representar, contudo, afirma
W innicott, é variável, e depende m uito dc fatores externos, tais
com o a atitude c as expectativas dos pais, a natureza e a posição tios
irmãos na fam ília ctc. O fenôm eno freqüente dc delírio das meninas
de que existiu nelas um pênis que já não existe, ou um que vai ainda
sc desenvolver; o delírio dos meninos de que as meninas têm um
pênis, visando evitar a angústia de castração; em suma, a negação da
diferença entre scr macho e ser fêmea, durante o estágio fálieo, é,
para o autor, um fenôm eno universal que pertence a essa etapa,
requerendo, aliás, para ser alcançado enquanto tal, m uito cresci­
m ento saudável. Se o indivíduo carrega ônus de estágios anteriores.

37 li im p o rta n te m en cio n ar em q u e m o m en to e em q u e sentido, paru W in n i-


oott, a distin ção du g ê n e ro turna-se signifientivri. p ara salien tar diferenç-ns
co n ceitu ais, eo m relação à psicanálise fivu dian n , em esp e cial no q u e diz
resp eito à teo ria das psicoses. C o m respeito ã dife ren ç a e n lr e os g ê n e ro s,
et-. Kreud, 1925j. C o m resp eito à teoria freud ian a d as psicoses, cf. Kreud,
1924, 1924c e I9 2 5h .

270
a s lís T u ü a s i u i >klh-:x i )K \(: ia r i .v i u íp k x d k .v c i a i í k i a t i v a s

essas coisas podem , sem duvida, gerar distúrbios psíquicos dc varia­


dos graus dc gravidade, tais com o perversões ou organizações sado-
masoquistas. ^ De qualquer modo, as experiências relativas à d ife­
rença dc gênero, características dessa fase, são complexas, e as
dificuldades aparecem canto na saúde com o na doença. A diferença
é que, quando há um distúrbio, a fantasia ou o brincar, que pode­
riam ajudar na auto-expressão c na integração desses aspectos na
estrutura da personalidade, ficam im pedidos devido à repressão,
que é um sofisticado m ecanism o dc defesa, próprio de quem já tem
vida interna c conflitos instintuais ligados às relações interpessoais.
Mas as dificuldades da fase fálica só assumem im portância exage­
rada para aqueles que ehegam nela tendo já sofrido privações a n te­
riores, de outra natureza.,19
O exame das tarefas deste estágio, à luz do am adurecim ento
pessoal, e de especial im portância para se poder relativizar a gravi­
dade das dificuldades pertinentes ao período, suposta na teoria
tradicional, lí provável que Freud tenha assentado a origem das
psicoses na ameaça de castração, que pertence a esse período,
devido ao fato de que, em sua teoria, não havia lugar para a conside­
ração dos estágios anteriores, nos quais está se processando a cons­
tituição da realidade. Para dar conta das psicoses, entendidas por ele
com o perda de realidade ou perturbação no vínculo com a realidade,
supondo que esta estava estabelecida, ele elegeu a realidade da
castração eom o o paradigma da realidade a ser evitada.4"

3 8 A s perversõ es p o d em s e r vistas, po r exem plo, eo m o u m a “ tentativa e la b o ­


rada de fa zer eom q u e algu m a u n ião sexual ac on teça , ap esar d o delírio de
que a m en in a tem u m p ê n is" ( l ‘AS6g, p. 146). Neste m esm o delírio g e n e ra li­
zado , la u to nos iiom ens e o m o n a s m u lh e r e s , d e q u e !iá uni pênis na m u lher,
W in n ic o tt en co n tra u m a d as raízes d o fem inism o. N u m pólo, diz cie, ‘ existe
o p ro te sto fem inino c o n tra um a s o c ie d ad e d o m in ad a pela o sten taçã o da
fase fálica m ascu lin a; no o u tro , existe a n e ga ção fem inina d e sua injerierri-
ilntíc mal mnnti certttjttse do ilesenvolvinK-nto fís ico " (19,S6g, p. i 47; g rifo
m e u ).
3 9 F re u d in sistiu a té o tim da vida na im p o rtâ n c ia tio e fe ito do t ra u m a de in fe ­
rio rid ad e das m u lh e res, derivado da fase fálica {c f. Freud . l <J25j, 19311) e
33 ;> c o n ferên cia de Freud. 1 9 3 3 a). .Segundo W in n ic o tt, essa in sistên cia er;i
co m preen sível, p ois foi na n e ga ção da falta de pên is n as m e n in a s — n ega ção
q ue visava evitar a a n gú stia d e ca straç ão — q u e e le a sse n to u a e tio lo g ia das
psicoses.
10 Cf. Freud. 1924, 1924c e 1925h.

27 1
A TE O R IA 1)0 A M A ltC k fô IIM líN TO 1>K R W. W IX N It » )'IT

6. O estágio cdípico

Sc a criança atinge verdadeiram ente a capacidade dc vivcnciar as


ansiedades da situação edípiea, isto significa que ela alcançou a
identidade unitária. Firm em ente integiada c tendo se tornado uma
pessoa inteira, pela integração dos instintos e pela assunção da
responsabilidade sobre os efeitos da impulsividade instintual, pode-
se dizer que a criança não está mais sujeita ao risco de psicose.*11 Ria
tem agora saúde psíquica suficiente para fazer a experiência tias difi­
culdades inerentes à vida instintual no quadro das relações triangula­
res e interpessoais. Opondo-se clara e explicitam ente a teoria kleinia-
na, W innieott afirma que só faz sentido falar de relações triangulares
ou dc com plexo de lidípo quando referido à pessoa inteira:

Não posso ver nenhum valor na utilização do termo “ complexo de


Edipo” quando um ou mais de um dos t rês que formam o triângulo
é um objeto parcial. No complexo de lidipo, ao menos do meu
ponto de vista, cada um dos componentes do triângulo é uma
pessoa inteira, não apenas para o observador, mas espeeiahnenco
para a criança (1988, p. 67).

As dificuldades pertinentes ao estágio cdípico não são resultado


dc falhas ou dc negligencia ambientais, em bora estas possam com ­
plicar a resolução própria à fase, mas dificuldades próprias à vida e
As relações interpessoais, não podendo ser prevenidas por cuidado
adequado. N este período da vida, mesmo a mais saudável das crian­
ças pode apresentar vários sintomas neuróticos: sendo vitalm ente
ativa, mostra-se dc repente pálida e murcha; é doce c carinhosa
podendo, no entanto, ter ataques repentinos de raiva e ser cruel com

41 li e l:iro q u e . m e s m o ten d o tid o u m b o m c o m e ç o , o.s in d iv íd u o s, m ais


ta rd e , se fo re m e x p o s to s a s it u a ç õ e s t ra u m á tic a s , p a ra alé m dc s u a c a p a ­
c id a d e d e to le r á -la s n o m o m e n to , ou q u e d u ra m um le m p o d e m a s ia d a ­
m e n te l o n g o p;u'a o q u e s ão c a p az e s d e su p o rta r, p o d em c h e g a r a d e ­
senvolver u m a psicose. W in n ie o tt m en ciona, p o r e xe m p lo , o ca so de p risio ­
neiros, vítim as de p e rseg u iç ão p o lítica eruol etc. (1 9 7 li;, p, W ) . I)e q u a l­
q u e r m odo. essa psico se será d ife ren te d a q u e la q u e sc in stala nos estágios
m ais prim itivos, em fu n ção de falhas am b ien tais trau m áticas. M e sm o p o r ­
q u e u m a coisa é não ter alc a n ç a d o um a co n q u ista d o a m a d u recim e n to c
o u tra co isa é p e rd ê-la.
(JS lú S T Á d lU S 1X\ l ) B l ‘t:.V I)É X (:iA li I M ) li l’E \ l)K \ 'C IA K liLA T IV A S

um animal ou qualquer outra coisa; tem pesadelos e escorraça a mãe


que vem consolá-la; c m uito ousada e, ao m esmo tem po, manifesta
medos de todos os tipos; volta c meia suspeita da comida que lhe
servem , recusando-se a com er em casa, sendo que devora qualquer
coisa na casa da avó ou do vizinho. Existe, agora, um mitrulo úircrno,
no qual sc desenvolve toda uma vida de fantasias e de sentimentos,
intensos e violentos; nas brincadeiras, os instintos e as excitações
corporais estão presentes, e ocorrem identificações com qualquer
um dos pais.
Misturados aos afetos recém -integrados e tornados significa­
tivos. o que está prioritariam ente cm cena são os m om entos dc exci­
tação claram ente determ inados pela instintualidade; m uito do que
ocorre en tre uma excitação e outra refere-se ou à preparação para a
satisfação do instinto ou à tentativa dc mantê-lo sob controle ou.
ainda, à tarefa de m antê-lo vivo, dc m odo indireto, por m eio tio
brincar, da masturbaçüo saudável (não compulsiva) ou da dram ati­
zação de uma fantasia (1988, p. 72). Quando há saúde, a criança
está num estado agudo dc atração pelo pai do sexo oposto, com
tensões a respeito da figura parcntal do m esmo sexo, em função da
ambivalência — ou seja, do am or c do ód io coexistindo. Cirande
parte da sua vida em ocional perm anece inconsciente e, m esm o no
mais satisfatório dos ambientes, a criança tem impulsos, idéias,
famasias e sonhos, nos quais se desenrola o intolerável conflito
entre o amor e o ódio, entre o desejo tle preservar e o de destruir e,
de um m odo mais com plexo, entre as posições heterossexual e
homossexual relativas às identificações com os pais.12 Tudo isto
indica que a criança está viva e elaborando as dificuldades inerentes
à vida.
(lostim in ocorrer, contudo — por exem plo, pelo nascim ento de
um outro bebê — , de a criança precisar regredir a padrões já ultra­
passados e, mesmo, à dependência. Sc teve mn bom início e a perso­
nalidade está estruturada, ela não perde nada tle suas conquistas
anteriores. Pode até exibir um com portam ento regredido, mas tra-
ta-se aí dc defesas contra a angústia que advém do con flito instin-
tual. A principal dessas defesas é a repressão, uma vez que, agora, já
foi desenvolvido utn tipo especial tle inconsciente: o òicoiisdenrc

-12 N o ie -se q u e p ara referir-se às iileiuifieaçftes c|uo ms crian ças fazem uoin o
p ro u c iiito r cio m esm o sexo, W iim ie o ti usa o le rm o "liiuiiuSNexiiar’.

2 7 .Í
A T K O K lA t «> A M A lH 'U K t:iM lí»\T t) DU l>. W. W IX X IQ jT T

reprim ido. M anter os conteúdos reprim idos sob controle requer um


im enso dispendio de energia. pela tendência de o reprim ido reapa­
recer em sonhos, em fantasias ou, ainda, projetado sobre fenôm enos
exteriores. Um resultado particular da repressão é a inibição dos
instintos: ocorre perda dc parte do impulso instintivo na relação
eorn objetos, c isto pode redundar num sério em pobrecim ento de
experiência vital da criança (19S9vl, p. 56).
Se uma criança, reagindo à chegada de um irm ãozinho, perde as
características fálieas e genitais próprias tias fantasias c do brincar
excitado, chegando a perder, inclusive, as conquistas da integração,
com o a coesão psieossomática e a capacidade para relações objetais,
então já não se trata de neurose e uma observação acurada revelará
que o am adurecim ento da criança foi anteriorm ente forçado cm
algum sentido, Lendo deixado imaturidades im portantes que agora
se revelam por ineio de uma regressão.4-1 Ilá casos em que a criança
não chega a nenhum com plexo de Edipo; seu am adurecim ento foi
paralisado num estágio anterior, dc motlo que “ o relacionam ento
triangular verdadeiro c sua carga, máxima nunca se tornam um acon­
tecim en to" (1963c, p. 198). Embora não seja freqüente, c possível
ainda achar casos mistos, nos quais ocorrc uma mistura de norm ali­
dade, cm term os de ela poder experienciar o com plexo de lidipo, ao
m esmo tem po que existe uma psicose, no sentido dc uma im aturi­
dade que ficou restrita a um aspecto particular (id em ).
Após a percepção do triângulo familiar, a criança com eça a ter
problemas de lealdade. Ela ainda 6 inexperiente nos afetos, sobre­
tudo os que envolvem o relacion am en to a três, e precisa de uma
situação em que possa encontrar tolerância em relação ao que pode
parecer deslealdade, mas c, apenas, uma experim entação que faz
parte tio seu desenvolvim ento (I9 8 6 d , p. 1GS). líla com eça, por
exemplo, a estabelecer um relacionam ento com o pai e, ao fazê-lo,
ganha uma nova perspectiva; passa a ver as coisas do ponto de vista
paterno e desenvolve, com isto. uma nova atitude com relação à
mãe;

A c r ia n ç a m io s o m e n t e p o d e v er a m ã e tle m o d o m a is o b je t iv o , a
p a r t ir tle o n d e o p a i e s tá , m a s t a m b é m d e se n v o lv e u m a r e la ç ã o d e

43 Um e x e m p lo notável desse estad o d e coisas en co n tra-se em W iu n ie o K ,


1977.

.27!
O S IÍSTÁCDOS DA lilílM vXDKXlIIA K INDKPIvNDÜXCIA RKLVnV.VS

tip o a m o r o s o c o m o pa i q u e t t m ilr e ó d io e t e m o r e m r e la ç ã o à
m ãe . li p e r ig o s o v o lta r à m ã e a p a r t ir d e s s a p o s iç ã o . N o e n t a n t o ,
hou ve a lg o q u e se c o n s t r u iu g r a d u a lm e n t e . e a c r ia n ç a volta à m ãe :
n e sta r e o r ie n t a ç ã o fa m ilia r, e la vê o pai d e m o d o o b je t iv o e s e u s
s e n t im e n t o s c o n tê m ó d io e m e d o (ib id ., p. 1 0 9 ).

Se o pai não assegura essa outra perspectiva à criança, ela terá


de se haver sozinha eom a necessidade de ata.star-sc tia mãe; terá dc
exercer autocontrole e muita dificuldade para elaborar a situação
edípica. Um exem plo ilustrativo desta situação encontra-se numa
anotação clínica tle W innicott {1 lÀS9vp) acerca de um paciente
cujos problemas, no m om ento descrito da análise, estavam relacio­
nados à sua identidade sexual, que havia sido extrem am ente dificul­
tada, não apenas devido ao tipo de relação que a mãe estabelecera
com ele, no estágio inicial, mas tam bém à ausência de um pai
efetivo que fizesse ;t sua parte. Além da dificuldade mencionada, o
que resultou das relações primárias para esse rapaz foi uma toud
inexperiência com relação a uma cena fiOMçãojunto ao fxti — isto é,
podendo ver a mãe da perspectiva do pai. .Va análise, isto sc m ostra­
va peki sua impossibilidade dc pôr e usar o analista nessa posição.
( lom o verem os, esse im pedim ento mostrou-se especialm ente agudo
no que se refere à questão edípica. No trecho que interessa a esse
ponto, W innicott relata:

| [ a s e s sã o tod a foi u m a co n fu sã o e n e n h u m a d e m in h a s in t e r p r e ­
taç õ e s s e n i u p ara nada. O p a c ie n te estava e x a sp e ra d o . O q u e , fin al­
m en te, tez lh e a lg u m b e m foi a m in h a in t e r p r e ta ç ã o d e q u e , e m b o ra
a a n á lis e p r o s s e g u is s e em to rn o d o r e la c io n a m e n t o e o m s u a esposa,
aq u i e a g o r a , n ão im p o rta o q u e tivesse s id o em o u tro s te m p o s. e!e
estava e la b o r a n d o a s u a e x a s p e r a ç ã o e m re la ç ã o à sua m ã e e sua
a b s o lu t a d e se sp e ra n ç a e m tra ta r e o m ela 1 ...]. Kle s e n tiu q u e eu
r e a lm e n t e havia t o c a d o na s it u a ç ã o , q u a n d o lhe d is s e q u e s e u r e la ­
c io n a m e n t o e m sua e a sa e r a tão s e m e lh a n t e ao re la c io n a m e n to
e o m sua m ã e p o r n ã o e x is tir h o m e m e, p o rta n to , ele n ã o p o d ia vir a
m im p o r q u e não a d ia n ta , não existe hom em a (fitem vã: Pura ele,
estava fo ra de questão que houvesse um pai sobre cujos joelhos se
piulesse sentar petm olhar a mãe ( 1‘X S 'A p, p. M G ).

Esse vaivém da criança precisa acon tecer na relação pai-m ãe,


em bora não sc restrinja necessariam ente a ela: pode também ser
feita indo até a babá e voltando para a mãe, indo até a avó. a tia ou a
irmã mais velha. Dentro da família, essas possibilidades podem scr
A TR tm i.\ 1)1* A M A I)fR liC :iN IK N TO l)E 1). W. W IX N IU J T T

experieneiadas. e a criança, aos poucos, podo ir sc reconciliando


com os medos que estão associados a elas. lisscs m edos incluem a
instintualidade, e a criança pode apreciar as excitações referentes
a esses conflitos desde que cias sejam permitidas, contidas pelos
adultos e possam scr elaboradas nas brincadeiras. Talvez, diz Winni-
cott, “ o trem endo interesse que o brincar de papai e mamãe exerce
sobre as crianças derive de uma am pliação gradual da vivcncia de
experim entar algumas deslcaldadcs” (1986d, p. 108).
Que papel cum pre o ambiente neste estágio? Quanto mais se
avança no am adurecim ento, m enor é a im portância do am biente cm
term os da estruturação da personalidade. Mas ele continua a scr
im portante de outra maneira: a criança necessita de um am biente
dom éstico estável, no qual se sinta segura, para poder brincar e
sonhar, para elaborar sua vida interna eonvulsionada pela coexis­
tência do amor c do ódio, sem ter dc sc preocupar com a estabili­
dade do lar. Para tanto, c preciso uma estrutura fam iliar que se
mantenha sólida e sobreviva aos permanentes testes que a turbu­
lência interna acarreta, li no interior da família que a criança pode
avançar, passo a passo, do relacionam cnio entre três pessoas para
outros círculos mais e mais complexos. Contudo, pontua o autor, “ c
o triângulo simples que apresenta as dificuldades c tam bém toda a
riqueza da experiência humana" (1988, p. 57).
A natureza c o com portam ento dos pais, o lugar da criança
dentro da família, além de outros fatores, afetam o quadro clássico
que sc conhece com o com plexo dc lidipo. Se, por exem plo, o pai está
presente à mesa no m om ento do café da manhã, a criança se sentirá
segura para sonhar que ele será atropelado por um autom óvel ou
que ocorre um assalto e o marido tle uma m ulher leva um tiro. Mas
se o pai estiver ausente, o sonho resultará aterrador e gerará senti­
m entos de culpa ou um estado depressivo (19S9vl, p. 56). Ilá uma
enorm e diferença na natureza das dificuldades de uma criança
conform e a história do seu am adurecim ento e o tipo de problema
que tem a enfrentar nesse m om ento. Uma coisa é o pai scr fraco ou
incapaz dc fazer a sua parte; outra coisa é a família desm oronar por
desavença ou mesmo separação dos pais. Quando a família m os­
tra-se sólida c perdurávcl, cia funciona co m o um quadro dc referên
cias que dá à criança o sentim ento dc que c seguro ter sentim entos e
até atos agressivos. Isto lhe perm ite

270
OS HNTAOiOS U.\ l)K l‘ lvX l)K X i:lA K IM lK IM ÍN ilK N O lA KELATIV.Vi

[ . . . ] ex p lo ra r ru d e m en te atividades destrutivas q u e sc rclacio-


nam ao m o vim en to em g e ra l e, m ais especificam ente’ , à d estru i­
ção relacio n ad a à fantasia q u e sc acu m u la em to rn o do ódio.
N esse cam in h o (p o r cau sa da se g u ra n ç a am bien tal, da m ãe sen d o
ap o iad a p elo pai e tc .) a criança torn a-se capaz de fazer um a coisa
m uito com plexa, a saber, in te g ra r seus im pulsos destrutivos com
os am orosos, c o resu ltad o, q u an d o lu d o co rre bem , é q u e a
crian ça re co n h ece a realidade d a s idéias destrutivas q u e são
inerentes, na vida, ao viver e ao am or. c e n c o n tra m odos de
p ro teger, de si m esm a, pessoas e o b je to s valorizados. [ . . . ] Para
a d q u irir isso em seu a m ad u recim en to , a crian ça ret/uei: de m od o
absoluto, uni am biente que seja indestrutível cm certos aspectos
essenciais (19(>Se, p. 74).

Quando ocorre privação, por exem plo, cm term os de rom pi­


m ento do lar, aeontece algo m uito sério na organização psíquica tia
criança, lila sc torna insegura quanto As suas idéias e impulsos
agressivos. Im ediatam ente

[,.. | a criança assum e o co n tro le q u e acabou de ser perdido, identi­


ficando-se com o novo q u ad ro de referencias familiar. Kesultado:
p erd e sua p ró pria im pulsividade e esp on tan eid ad e. O nível de a n ­
siedade é tão alto q u e o ato d e experim entar, que p oderia Íazê-Ia
ch e g a r a um acordo com a própria agressividade, torna-se im pos­
sível (idvtn).

Cada vez mais tem os de nos haver com o fato dc que os lares se
desfazem com m aior facilidade do que ao tem po em que W inn ieott
formulava sua teoria. Apesar disto, a teoria do am adurecim ento
pessoal continua a ser essencial para os pais que, em bora desfaçam
sua vida conjugal, querem preservar íi estabilidade e o desenvolvi­
m ento em ocional de seus filhos. Não é líquido e e e rto que os filhos
sofram mais pela separação concreta, geográfica, dos pais, do que
quando estes pernumeeem sob o m esmo teto, sem uma relação
afetiva ou uma com unicação real. C om o os pais têm todo o direito
de buscar o que sentem ser m elhor para si mesmos, c im portante, de
qualquer modo, que cada um continue a fazer a sua parte no que se
refere ao seu papel ju n to à criança. Talvez seja preeiso fornecer uma
presença ainda m aior e não d e s c o r a r dos cuidados e da orientação
que os filhos necessitam. li igualm ente vital que estes recebam
alguma explicação, acessível à sua maturidade, sobre o que aecm-
TKOltLS IX ! .\,\i,\l)l RKCIM KNTO Ulv 1). 'V W IX N IC O T T

teceu, e que os pais, uüo im porta o grau dc decepção ou tle raivei que
guardem , não se ponham a denegrir a im agem parental do outro.
A vida sexual da criança chega agora à primazia da genitalidade,
Quando esta c alcançada, a fantasia já está enriquecida eom os atos
típicos, masculino e fem inino, de penetrar c ser penetrada ou de
fecundar e ser fecundada (1 C
)S8, p. 59). O fato im portante continua
a ser a ereção com o parte dc um relacionam ento, mas. agora, esta
vem associada à idéia de provocar mudanças irreversíveis no corpo
da pessoa amada.'11 A criança está capaz de experiências sexuais
genicais, eom todas as fantasias e excitações que n acompanham, e
isto configura uma nova potência, em bora a im aturidade física a
obrigue a adiar até a puberdade a capacidade de proceder ao ato
gcnital que leva potencialm ente à proeriação. Quando, bem mais
tarde, a puberdade advier, trazendo um outro patamar dc potência,
as experiências e fantasias infantis que tiverem sido realizadas nesta
fase serão de grande ajuda para essa nova condição.
Qualquer estudo acerca da instintualidade — que exige ação,
isto é, um fazer — , sobretudo no que diz respeito à fase gcnital. é
mais adequado para a descrição do masculino do que do fem in in o.15
Do lado masculino, é possível fazer uma distinção acurada entre a
fantasia da experiência fálica e a da experiência gen iial, tanto no
m enino quanto no menino-dentro-da-menina. linquauto. na fase
fálica, o desem penho do m enino está tle acordo com a sua fantasia,
na fase gcnital o desempenho mostra-se deficiente em relação à
fantasia; esta defasagem põe em questão a potência do m enino c
isto terá, eom o verem os, um significado na situação edípiea, tal
com o W innicott a redesereve. Além disto, diferentem ente da mcui-

44 A psicanálise tradicional ocupou-se, sobretudo, da satisfação tio desejo e


não da capacidade c tio ato fienitais propriam ente ditos. Xfio chegou a
desenvolver as questões pertinentes ao corpo propriamente dito. Pelo
mesm o motivo. ;i questão da genitalidadc inicial acaba sendo ligada às
conseqüências que derivam da interdição de tocar no Iruto proibido, e não.
eomo em W innicott, ao medo de provocar m udanças irreversíveis no corpo
tio outro. I*ara W innicott, a questão de am ar ú pessoal e leva em conta a
elaboração imaginativa do resultado do impulso no corpo da pessoa
amada.
45 Esta questão se tornará mais clara na obra winnieottiana, numa foi mulaçao
posterior, de J96(i, em que a identidade sexual c pensada, por Winnicott.
em termos não instintuais. com o veremos adiante.

;?7,s
OS KSTÁ C iO S 1).\ U KPK XliK XC IA lí IVI>|\l*KXl>KXt:'A KIí I.VUV AS

na, o m enino está “ com p leto” na fase fálica. enquanto, na lase geui-
tal, ele depende du fêm eu pura se completar.
Mesmo não sendo tão evidente quanto a masculina, a genitali-
dade fem inina não pode ser definida apenas em term os negativos: a
m ulher não é uni macho castrado. A inveja do pênis, viveneiada na
fase fálica. não necessariam ente se estabelece com o determ inante
da sexualidade feminina, a não ser que já haja um com ponente
masculino cindido, na menina, deslanchado anteriorm ente. Quan­
do, mima m ulher adulta, esse elem ento masculino puro cin d id o1'1foi
potencializado por uma experiência penosa de inveja do pênis, na
fase exibieionista, estabelece-se uma organização defensiva que
pode ser arregim entada e posta a serviço do aspecto id eológico de
uma luta social, com o o m ovim ento feminista. Um exem plo signifi­
cativo desta situação encontra-se numa carta da psicanalista c
lingüista búlgara Júlia Kristcva à ensaísta francesa Catherinc Ulé-
m ent.47 líserita num m om ento em que internava seu filho para uma
intervenção cirúrgica num hospital dc Paris, Júlia cscrcve a Oathe-
rinc dizendo que uma frase popular não lhe saía do espírito: “ Nada c
mais sagrado para uma m ulher do que a vida dc seu filho.” Após
com entar que essa frase constitui uma dessas evidências banais da
sabedoria popular, que sc im põem desde sempre, e que poderiam
prestar-se ao escárnio do tipo "qu e pena que as mulheres só saibam
ater-se às crianças” , cia cscrcve:

O grande pediatra sutil que foi o psicanalista inglês Winnicott tem


uma idéia delicada, que me agrada, a respeito do elo primordial da
mãe com seu filho como decorrente do "ser” , e que se distingue do
“ fazer” , que só advirta mais tarde, com a pulsão, i>desejo o os atos.
Pensei, eomo você, que a "serenidade do .ser” , eom que Ileidegger
sonhava, se enraíza talvez nessas regiões da experiência, se qui­
sermos ver essas coisas de um prisma antropológico. Kfn c.scá
simplesmente aí, a mãe, com uma parte dela que já c mn outro.
[...[ Não é que ela não "íaça” nada, mas a avidez da ação está
suspensa por tuna ternura eficaz. Sedução, aieto, pulsão, desejo —
os trunfos da amante que ela foi, há apenas nove meses, não foram

46 Os eonceitos winnieottianos de "elem ento feminino puro" e "elemento


masculino p uro” serão explicitados a seguir, neste mesmo capítulo.
47 Esta carta consta do livro O feminino e o sagrado (1 9 98). que reúne a
correspondência mantida por Júlia Kristeva e Catherinc Clémcnc. entre
novembro de 1996 u setembro de 1997.

279
A TI-.< )!«.■', 1)1) AMAIJl UK( MMK.Ytt ) I íl-1 ! >. \Y \VI.\NI« X H T

destruídos, mas m odificados, “ inibidos em relação ao fim " (c o m o


dizem m inhas co legas psicanalistas q u e leram seu F reu d ). Eu des­
co n fio dessa suspeita inibição, p refiro íalar de espera. A serenidade
do a m o r tn aierno é um Eros diferente, u m desejo de espera. (...)
É exatam ente na au ro ra desse elo d a m ãe com seu filho que se
p rodu z um a alquim ia m iraculosa: o o b je to ’’ de satisfação erótica,
q u e é o pai (o u algu m a relação, profissão, g ra tific a ç ã o ...) é substi­
tuído suavem ente por " o u tr o '’ am ad o e som ente rimado. ( ) am or-
ternura toma o lu gar do am or erótico: o "o b je t o ’' da satisfação se
transform a em "o u tro " para cuidar, cultivar (C lcm en t e Kristeva,
2001, |>|>. 73-4).

Apesar dc atravessada pela perspectiva psicanalítica tradicional,


a citação acima mostra que a Kristeva-mãc com preende bem o
caráter distintivo do am or materno, c a distinção entre “ ser" c
“ fazer” , proposta por W innieott, além dc traçar uma interessante
ligação com a questão da serenidade, do segundo lleid cggcr, rem e­
tendo-a a essa peculiar região da experiência humana. Contudo,
esse am or m aterno sereno, tipicam ente fem inino, que nada tem dc
fálico, mas que é constituído pela identificação com a sua própria
111 âc e com a linhagem dc mulheres, parece engasgá-la, pois, um
pouco adiante na carta, ela mesma afirma que

[ __| é aqui q u e m e afasto desse bom W innieott, E m bo ra essa s e re ­


nidade do ser m ã e -b e b ê m e seduza, só acred ito em parte. C) na rei-
sism o fem inino exige, esse " o u ir o e u " da criança é, de q u alq u er
form a, um “ eu -eu ” : a m ãe jam ais deixa de ter a tendência de
e n g lo b a r o querid o outro, de se projetar, de açam barcar, d e d o m i­
nar, de sufocar. [. . . ] A lém disto, a mãe continua a ser uma mulher,
com seus desejos e seu "fa z e r" erótico e profissional, e essa tensão
tia existência (essa bissexualidade, se você p refe rir) não cessa de se
im iscuir na serenidade de seu elo eom a criança. Kl o quente,
conflituoso, pesado com todos os baru lh o s tio m undo. Felizm ente!
Sem essa parte pulsaute, ativa, fáliea do am or m aterno, d e onde
viria o apelo da lin gu agem , o élan da extirpação. essa ereção (sim ,
digo a palavra c a su blin h o ) que lhes perm item m anter-se cm pé. a
m ãe e o bebê. e transcen der para terceiros?" (i b id , p. 7 5 ).

Esta citação mostra não apenas uma reafirm ação vigorosa da


fem inilidade constituída na linha masculina da inveja do pênis,
com o também uma desconfiança sobre a possibilidade tle uma

2 NO
OS ESTÂU IO S 1)A I )i:i‘ liN l)KN C L\ E KKl.ATIVA.S

m ulher entregar-sc inteiram ente à maternidade, m esmo que por um


período e, além disto, ser capaz de deixar a criança ser.
Para W innicott, contudo, a elaboração im aginai i\‘:i das funções
genitais mostra que n genitalidíide reúne em si íuuiio do que é
pré-genital, e isto c mais verdadeiro para o lado fem inino da natu­
reza humana. Existe uma fantasia e uma sexualidade femininas
básicas que têm sua origem na mais rem ota infância, fundada sobre
a identificação da m enina com o lado fem inino da natureza humana:
identificação com a mãe c, através dela, com a linhagem das mu­
lheres. Isto significa que os elem entos pertencentes à menina têm
mais participação na categoria malhar do que os elem entos do
m enino na categoria homem. As fantasias relacionadas à genilali
dade com pleta — o ser penetrada, a gravidez, o amam entar etc. -
que ainda são concretam entc longínquos, aparecem associadas, cm
jo g o s c nos sonhos, à capacidade da menina de identificar-se com a
mãe e com a mulher. As idéias acerca da genitalidade, na menina,

[...] alcançam sua expressão máxima por meio da identificação


com a mãe ou com meninas mais velhas, que seriam capazes dc ter
experiências e de conceber. O brincar da menina, na medida em
que ela é verdadeiramente fcmvmut, c do tipo que mostra uma
tendência à maternidade [...] (198K, p, 64; grifo meu).

A identificação da menina eom o que sc poderia chamar uina


“ linhagem fem inina” é um tem a recorrente na obra dc W innicott.
Segundo ele, m esm o que se possa constatar, já no início, que a
vagina de uma bebezinha fica ativa c excitável por ocasião da
am am entação c das experiências anais, na verdade, " o funciona­
m ento gcnital fem inino verdadeiro tende a perm anecer oculto ou
até m esm o secreto” (1988, p. 64). Quando, mais tarde, o erotism o
genital sc exacerba c aparece, por exem plo, numa masturbação
compulsiva, norm alm ente “ a fantasia c da ordem de recolher, do

4S A posição de Kristevn está em estreita consonância eom n cie Laean.


Segundo o psicanalista lYancés, a mãe nunca quer o bebê, ele mesmo; o que
a satisfaz, no bebê, 6 o que ele representa, o fato. Para a mãe, diz Latan, “a
criança está longe de ser apenas a criança, pois elu é também o talo
(Lacan, 1994. p. 57). Em outra passagem, ele diz que “se a mulher encon­
tra, no bebê, uma satisfação, é precisamente na medida em que ela encon­
tra, nele, nlgunui coisa que acalma, nela, mais ou menos bem, sua necessi­
dade de falo {.. |" (ibid.. p. 70).

2 .S I
A T E O lílA I X ) A M A U rK K Í .IMKXIXJ l)lí D \V W JNNiCO IT

guardar segredo, do esconder” (ú lem ). Por isso, qualquer descrição


aeerea da sexualidade fem inina deve incluir as fantasias que a
menina tem a respeito do interior dela mesma e da mãe. D iferente­
m ente dos meninos, a menina é, m uito eedo e ao longo da vida,
levada a pensar e a sentir o interior du eorpo. A capacidade para
guardar um segredo, por exem plo, é uma característica que per­
tence tipicam ente ao lado fem inino da natureza humana; sc uma
menina não sabe guardar segredo, ela não poderá ficar grávida. l)o
lado masculino, a tendência c lutar e enfiar coisas cm buracos. Se o
menino não puder desenvolver esse aspecto agressivo de sua nature­
za, não poderá, mais tarde, deliberadamente, engravidar uma mulher.
A tese central de W innicott quanto a cada mulher pertencer,
desde sem pre, à linhagem dc mulheres consiste em que, ao con­
trário do hom em , que c uno e torna-se cada vez mais unificado, a
mulher é sempre um trio. lí css'e trio que costuma ser representado
na consagrada figuração, na pintura, das Três Graças, lixistem sem ­
pre três mulheres em cada mulher: a bebê menina, a mulher-mãe e a
mãe da mãe (19S6g, p. 150). Ou, em outra form ulação: uma bebe-
zinha, uma noiva de véu e grinalda c uma mulher idosa (1988, p. 65,
nota). São sem pre as três, desde o início: quando a mãe cuida da
bebezinha. ela o faz segundo os cuidados que recebeu, ou seja, com
a m ão da sua própria mãe, de m odo que algo da avó passa a fazer
parte da menina; quando, um pouco mais tarde, esta brinca c o faz,
cm geral, cuidando de uma boneca, arrumando uma casinha, co zi­
nhando etc., aí está a própria mãe e a avó. Na adolescência e na
juventude, a m ulher desabroeha eom o fêm ea e, nesta, há um bocado
da menininha dengosa c frágil, assim com o da sedutora que atrai o
macho, tanto para a sexualidade com o para torná-la mãe. Na mulher
idosa, enquanto a fêm ea fenece, instala-se cada vez mais a bebe-
ziuba, requerendo cuidados dos filhos já crescidos, além dc con ti­
nuar a ser a mãe que cuida, agora, dos netos.

N ão im porta se tem b ebês ou não, um a m ulh er está presente nessa


série infinita, ela é bebe, m ãe e avó [. . . ) . Isto a capacita a ser
bastante enganadora. Pode ser aq uela eoisinba doce paru a g a rra r
seu m arid o, tornando-se um a c s p o s a -m u lh e r dom inadora, e d e ­
p ois um a g r a c io s a avó. E tudo ;i m esm a coisa, p orque ela já com eça
sendo três, enqu anto o hom em com eça eom um im pulso trem endo
p ara ser um só. U m c um , e com p letam ente só, e o scr;i cada vez
m ais (1986/5, p. 150).

282
OS líSrAlJIOS l>.A I)K1'KN1i Í:\CI.\ !•; !\I)K1'E.\I>K\CIA |IKI_VIIVAN

i)c qualquer modo, no que se re fe re à constitu irão d:i identidade


sexual, é preciso considerar ainda a bissexualidade, especialm ente
no âm bito da fantasia e no que se refere à capacidade para a identifi­
cação com qualquer um dos progenitures. Deixando tle lado outros
aspectos que podem intervir, no caso particular, o principal fator a
determ in ar essa identidade é o sexo tia pessoa pela qual a criança
está apaixonada na idade crítica, 011 seja, entre 0 desmame e o
período de latcncia (cf. 1988, p. (>(>). Embora seja mais fácil e conve­
niente, para o indivíduo, que ele sc d e s e n v o lv a Jc m odo predom inan­
tem en te congruente com as características de sua constituição
física, “ a sociedade Lem m uito a ganhar tolerando canto a hom osse­
xualidade quanto a heterossexualidade 110 desenvolvim ento em o ­
cional das crianças” (idttm). Se o desenvolvim ento da personalidade
do m enino vai bem em outros aspectos, uma forte identificação dele
com a mãe, e inclusive um com portam ento efem inado, podem ter
valor para a exploração de inúmeras potencialidades. Nas meninas,
uma certa masculinidade c não apenas tolerada com o até esperada e
valorizada.
Xo am adurecim ento em ocional e instintual saudável, além des­
sas identificações, as meninas passam efetivam ente por um m om en­
to em que se sentem interiorizadas por não terem pênis, de m odo
que o macho-dentro-da-femea está sempre presente, e c sempre
im portante, embora não seja necessariam ente determ inante. A in­
veja do pênis não pode ser ignorada com o fonte de m otivações pode­
rosas na menina e nxi mulher, e isto fica claro, sobretudo, na análise
de neuroses cm mulheres, Por ou tro lado, a fem inilidade no menino,
tanto quanto a sua masculinidade, c fundamental, em bora seja
variável em função de algumas características hereditárias, das
influências am bientais, das identificações com os pais e dos padrões
culturais mais amplos. X o que se refere à identificação do m enino
com a mãe, c necessário distinguir entre a sua capacidade de identi­
ficar-se com a mulher, em term os da gcnitalidade feminina desta, e
sua identificação com cia em seu papel de mãe. lista última é mais
aceita pela cultura, c m enos problem ática para a genitalidade mas­
culina do menino, pois está mais relacionada ao tipo dc fantasia do
que à localização e à elaboração im aginativa dc funções corporais.
Mas, 110 que se refere às meninas, mesmo quando desenvolvem
sua fem inilidade incluindo algo da inveja do pênis — que pertence à
vertente masculina de desenvolvim ento da identidade sexual — , a

283
correção do “ d e fe ito ’' não sc dá, com o cm Kreud, len do um lillio du
pai, niíis pelo reconheci metiLo da dependência do outro. W iunicod
dcscrcvc a seqüência pela qual, cm condições normais, a inveja tio
pênis c superada. Para defrontar-se cuni a superioridade do menino,
a menina imagina que vai lhe crescer um pênis. Depois, pensa que já
teve um, que lhe foi tinido eom o castigo pela excitação. Xa seqüên­
cia, vem a idéia de que, já que não n tem, pode então usar um pênis
por procuração, ou seja, algum macho pode agir por ela. Ela diria:
"V ou deixar o macho me usar," Deste modo, o defeito será corrigido,
mas ela terá de reconhecer que tlepemlc do macho parit estar
completa, lí desta forma, diz W innicott, que a menina descobre o
seu “ genital verdadeiro" {1988, p. 63).
Note-se que, enquanto o "gen ital verdadeiro” rem ete à fêmea —
à noiva de véu e grinalda, do trio de m ulheres — , na linha estrita da
elaboração que pertence à fase fálica do desenvolvim ento sexual, a
verdadeira fem inilidade, incluída a genitalidade, pertence à linha do
am adurecim ento pessoal e, necessariamente, reúne a mulher-teinea
com a mãe potencial, por via da identificação da m enina com a mãe
e a linhagem de mulheres. Isto significa que, em bora o macho-den-
tro-da-fêmea esteja sem pre presente, e a inveja d o pênis seja um fato
num dado m om ento do desenvolvim ento da sexualidade, esse tipo
de resolução não dá conta da verdadeira sexualidade fem inina e. se a
identidade sexual da m ulher for consLruída sobre a problem ática da
inveja do pênis, o cam inho será precário.
A constituição da identidade sexual e as diferenças sexuais são
elaboradas, por W innicott. dentro de uma teoria da sexualidade que
pertence à teoria da instintualidade, que faz parte, por sua vez, do
processo dc amadurecimento. Numa etapa mais tardia de seu pensa­
m ento, mais precisam ente em 1966, e impulsionado pelo trabalho
clínico, o autor foi levado a perceber uma outra faceta da bissexuali-
dade e a form ular os conceitos dc “ elem en to fem inino puro” e
“ elem en to masculino puro” , ambos presentes cm meninos e m eni­
nas, homens e mulheres.4*' Entendo que o term o “ puros” visa exata-

47 Esta nova form ulação já foi explicitada no Capítulo III deste estudo por ser
:i m ais acabada. tam bém no que diü respeito íi questãu em pauta naijuele
momento, a constituição da identidade enquanto tal; aqui, ela vem a
propósito tle esclarecer melhor a questão da bissexualidítde, ein termos
não sexuais.

284
m onte significar tjnt-, e m b o r a estejam rclei i d o s .1 hi.s.s<-xualid.idc
presente nu indivíduo h u m a n o <j interfiram, em cada caso, 11:i eonst 1
tuição da identidade sexual, os elem entos masculino e Ic m iiiin o
puros uno são, cies m e s m o s , dc caráter instinlLUil ou sexual, n e m s a o
relativos ao ^cnero b io lóg ico do indivíduo. Além disto, p o r sua natu­
reza, eles não são alvo dc repressão, podendo ocorrer, ao in vés d is to ,
dc eles estarem cindidos da personalidade total,
lisses elem entos constituem um novo m odo dc form ular as duas
m odalidades do relacionam ento objetai: a relação com objetos sub­
jetivos (elem en to fem inino puro) e a relayão com objetos objetiva­
m ente percebidos (elem en to masculino puro). ( ) “ elem ento fem i­
nino puro” diz respeito a ser, í'i experiência dc identidade primária,
em que um é o mesmo que outro (o bebê é o ob jeto), experiência que
se dá no âm bito da ilusão dc onipotência, com objetos subjetivos. N’o
am adurecim ento normal, 0 elem ento fem inino puro é o que preside
a relação de meninas e meninos com a mãe. ( ) “ elem ento masculino
puro", que só chega posteriorm ente, 110 am adurecim ento, diz res­
p e ito a ftezer, está baseado no impulso instintual e pressupõe já o
estabelecim ento dc um eu, com o identidade integrada, separado do
não-eu e do mundo, eom o realidade externa. Se tudo corre bem. o
ja z e r só surge no m om ento cru que a instintualidade está sendo in te­
grada eom o parte da pessoalidade. Em suma. enquam o o elem ento
fem inino é, o elem ento masculino/as. O fazer, diz W innicott, deve
vir depois e sobre o ser,
lí apenas cm term os do elem ento masculino puro que fax senti­
do a distinção entre ativo c passivo, ou seja, entre um relaciona­
m ento ativo (fazer algo com o o b jeto ), ou um passivo deixar-se com
ele relacionar (deixar tjiie lhe façam ), com cada uma dessas atitudes
sendo respaldada polo impulso instintual. Deve-se, contudo, salien­
tar que, em bora baseado 110 instinto — que o-\ige ação — , o fazer, do
elem en to masculino puro, não c instintual cm si mesmo.
Essa nova abordagem foi, segundo o próprio autor, dc grande enri­
quecim ento para a sua compreensão tanto da bissexualidade quanto
da constituição da identidade, incluída aí a identidade sexual, pois
levou-o a explicitar um dilema essencial dos seres humanos, que já
deve scr operante em data inuito inicial, a saber, “ o conflito entre st.ro
objeto, que também tem a propriedade de ser, c, por contraste, uma
confmittitção com o objeto, que envolve uma atividade e um relaciona­
m ento objetai respaldados pelo instinto ou impulso” (1 972c, p. 149).

285
A T B O lilA IK ) AMAIH'RICt:i.\l£XTO Dli l) W. W LVNICOTT

C) insight que levou Winnieott a esse novo patamar de com pre­


ensão teórica — pela constatação do fenômeno que consiste na
presença, tanto num homem com o numa mulher, de um elem ento
feminino ou masculino puro, do outro sexo que não o biológico,
cindido da personalidade total — veio-lhe por ocasião da análise dc um
homem dc meia-idade, casado, com família, e bem-sucedido em sua
profissão (paciente FM).50 Esse homem já havia feito, anteriormente,
uma longa análise na linha tradicional, e continuava buscando ajuda,
pois sentia que algo de muito importante não havia sido atingido. Num
mom ento anterior à etapa, na análise, que lhe permitiu formular a
questão em termos de elem ento feminino puro cindido. Winnieott
sabia já, pelas freqüentes fantasias compulsivas do paciente, de ser
uma mulher, que seria necessário fazer uma exploração completa do
que seria o si-mesmo feminino que o habitava. A análise desse paciente
havia também exigido, anteriormente, a regressão a um estado em que
“ não Imvia nada 110 centro” (ef. 19S9vc, p. 42). Nessa ocasião, reve-
lou-se que toda a sua vida havia sido construída na forma de reações a
invasões que eíe, por assim dizer, colecionava, pois esse era o modo
com o conseguia sentir-se ativo e potente em várias áreas e níveis. Na
regressão, teve de pôr muita coisa dc lado, inclusive a sua potência,
pois esta acabou por mostrar-se inteiramente reativa. Após ter alcan­
çado e se mantido, durante algumas sessões, com o um nada — único
estado tolerável por ter reconhecido que era o único real em sua vida
— , o paciente começou a revelar-se de maneira positiva. Ao final dc
uma sessão, cm que o tema foi exaustivamente elaborado, falou da
sensação de estar apertadamente enrolado entre as pernas e do efeito
disto em seus órgãos genitais e em sua capacidade de urinar, lím
virtude do material de que já dispunha, W innieott permitiu-se inter­
pretar que, provavelmente, quando bebe, a mãe arrumara-lhe as
fraldas da maneira que seria apropriada para uma menina: o resultado
disto fora, talvez, que ele nunca tivera a liberdade para urinar com o
um menino, e apontou-lhe que teria sido muito diferente se ele tivesse
nascido numa cabana tia floresta e vivesse livremente na selva. O pa­
ciente captou imediatamente o sentido do que seria urinar livremente.
Numa sessão posterior, o paciente disse ser essa a primeira vez, tio que

50 1’ara poderm os nos referir aos casos clínicos cie Winnieott sem ter de a eadn
vez descrevê-los, vou usar uma sigla pela qual se possa reconhecê-los, Kste
easo será batizado de KM, por ser o exemplo elínieo ilustrativo do lexlo
sobre elementos feminino e nuisuuliiio puros.

2,Ní>
OS K-S rÁ C IO S DA [»K I*liNl)jí.\Cli\ E IN'l)KI’ lí\'l))i.\(.:L\ UlvI-ATIVAS

se recorda, cm que sentiu o pênis como sendo seu. “ Pareceu-lhe” , dix


Winnicott, “eom o se isto fosse o início de sua potência, que nunca
tivera, embora na realidade possua urna família” (ibid, p. 43).
O modo com o o caso evoluiu, e a maneira que W innicott aeliou de
lidar eom a transferência, permitiu-lhe formular um novo aspecto do
mesmo problema: a menma-dentro-do-meninn, ou o si-mesmo fem i­
nino, neste liomcm, podia scr visto com o um elemento fentinino puro
cüulitlo, elem ento que. embora fizesse parte da sua identidade sexual,
não era propriamente sexual, e que havia sitio dissociado da personali­
dade numa época muito primitiva. Essa condição, assinala <j autor, não
tinha nada a ver com homossexualidade. A base desse elem ento fem i­
nino puro cindido estava, eom o se viu, em que, quando bebê, o paci­
ente fora alvo de uma identificação cruzada delirante: sua mãe havia
v isto nele uma menina, c o tratara fisicamente assim, o que o obrigou
a ajustar-se à idéia da mãe de que seu bebê era uma menina. A questão,
aqui. não é tanto o modo com o ela o tinha em mente, ou se desejara
ter uma menina, mas o fato de ter traduzido essa concepção num tipo
de cuidado que convinha a uma menina e não a um menino. A elabo­
ração imaginativa da sensação fez o resto.
A situação analítica que possibilitou a nova compreensão foi que,
num certo momento, posterior à elaboração anteriormente m encio­
nada, o homem começou a falar dc algo que podia ser entendido com o
inveja do pênis (ef. 197 Iva, p. 135). Winnicott disse-lhe: "ICstou escu­
tando uma garota. lScí perfeitamente bem que você é um homem, mas
estou escutando uma garota e falando eom uma. listou dizendo a ela:
Você está falando de inveja do pênis.'” Após uma pausa, o paciente
disse: “ Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa menina, seria
chamado de louco.” A questão poderia ter sido encerrada por aí, mas
W innicott decidiu levá-la adiante, e foi então que fez a observação que
surpreendeu a ele mesmo, c que, cm termos de transferência, tocava
no eerne do problema. Winnicott disse: "Não é qucwxjfi vã contar isso
a alguém; sou eu que vejo uma garota, e a escuto falar quando, na reali­
dade, há um homem em meu divã. O louco sou eu.” Não foi preciso
elaborar o ponto, escreve o autor, porque ele deu no alvo. Ü paciente
disse, então, que agora se sentia são em um m eio ambiente louco. Isto
é, fora liberado do seu dilema. W innicott comenta: *‘A loucura que era
minha [ao assumir a loucura da mãe que via uma menina onde havia
um m enino] capacitou-o a ver-se com o uma garota desde a minha
posição, lilc próprio sabe que é homem, c nunca duvida de sê-lo" (ibid.,
p. 135). Mais tarde, o paciente disse: 'iOu mesmo nunca poderia dizer

28 7
A T1ÍOKIA I K ) AAIADrRKCLM U NTO 1)K 1). W WIXXU :c m '

(sabendo ser h om em ): sou uma garota. Não sou louco assim. Mas você
o disse e talou para ambas as partes do m im ” (ülcm ).
Num caso com o este, é preciso que o analista seja capaz de
acompanhar, tolerar e m esmo de propiciar, ao paciente, a expe-
riêneia cabal da identificação deliranie. “ Poder-se-ia d izer” , afirma
W innieott, “ que o paciente estava em busca do tipo certo dc aruilistu
louco e, a fim de atender às suas necessidades, tive dc assumir esse
papel” (ibiil., p. 148). Com respeito a esta nova com preensão, ele
assinala que não havia, ah,

|... | nenhum conceito novo. nenhum novo prin cípio da técnica. N a


realidade, cu e o m eu p acien te já havíam os percorrid o esse terren o
antes. C on tu d o , tínham os aqui algo novo. novo cm m inha própria
atitude e novo uni sua capacidade de fazer uso do meu trabalho
ituerpreuitivo. [. . . ] D cscohri-m e com um novo fio para um a velha
urnm (ibid., pp. 136-37).

Voltando às questões mais gerais pertinentes ao estágio edípieo,


deve-se d izer que, em bora a criança esteja capaz de fazer experiên­
cias genitais, ela precisa esperar até a puberdade para ter a capaci­
dade de realizar sua fantasia, o que significa que “ na fase genital, o
eg o infantil é capaz de lidar com uma trem enda quantidade de frus­
tração” (1988, p. 62). O ponto central aqui — e este 6 um dos
aspectos que presidem a redeserição dc W innieott com relação aos
temas do litlipo c cia angústia de castração — é que a criança tem dc
sc haver com a im potência. Isto leva a que, desse ponto de vista, a
presença de um pai interventor traz um grande alívio; o m edo à
castração pelo genitor rival tom a -sc im ia alternativa bem -vinda
para a agonia da impotência" (198S, p, 62).
Presumindo-se um bom com eço, pode-se examinar as várias
defesas usadas pela criança para lidar com as ansiedades proveni­
entes tio com plexo de lidipo. Na relação triangular, ela " é apanhada
pelo instinto e pelo amor. lOsse amor envolve mudanças no corpo c é
violento. Um amor que leva ao ódio. A criança odeia a terceira
pessoa” (19S8, p. 72). O m enino pode estar enam orado da mãe e,
com o já vim os, a existência do pai interventor traz alívio para a
agonia da im potência real. Mas este é apenas um lado da história. l)e
outro, ele vive o doloroso con flito da ambivalência em que sc
percebe odiando, desejando castrar ou m atar o pai, e tem endo a
represália, cm term os do m edo de castração do pai que ama e em
quem confia, por estar apaixonado pela esposa deste.

2 SN
o s K S T .u iio íi i>.\ ni:rK .\i)i:.\ci.\ k í n i h í i , k n 1)ií .nc i a u k i .a t i v a s

Se ;i criança c saudável c os fundamentos do lar são sólidos, a


ansiedade que advem desta situação pode ser tolerada, e cia acaba
sem pre por recuperar-se dos m om entos de tensão instintiva elevada.
( ) fato c que o ódio pode agora aparecer livrem ente, pois “ (... |o que
ó odiado 6 uma pessoa que pode sc defender e que, na verdade, já ó
ninada” : c alguém “ {... ] capaz de sobreviver, castigar e perdoar"
(1988, p. 72). Sc for essa a experiência, devido ao pai fazer a sua
parto, este com eça, então, a ser utilizado eom o “ protótipo da cons­
ciência” . Incorporando o pai que conhece, o m enino chega com ele
a um acordo: dc um lado, perde algo de sua capacidade potencial
instintiva, abdicando dc uma parte tio que vinha reivindicando: dc
outro, desloca o ob jeto de amor para uma irmã, tia, babá, enfim ,
alguém monos envolvido com o pai. N o m elhor dos casos.

|... | u menino estabelece um pacto homossexual eom o pai. dc


modo que sua própria potência não é mais apenas dele. e sim uma
íio-üfí expressão <la jMêneict tio )xü. por meio ila identificação inter­
nalizada e aoeita. [...) Por ideatiíiear-se eom o pai ou eom a figura
paterna, o menino obtém uma potência por proeuruçãu e uma
potência adiada, mas própria, que poderá ser recuperada na puber­
dade (1‘XS8, j). 7.1).

Sc o pai, por ausência ou incapacidade, não exerce a intervenção


na fase edípica, isto chega ao m enino com o não reconhecim ento e
não legitim ação de sua potência, além de ser privado da experiência
tle rivalidade. A questão central, na situação edípica rcdescrita por
W innicott, não é apenas a ameaça de castração, mas. pela instau­
ração da rivalidade, uma legitim ação tia potência da criança. Ou
seja, há mais e outras ambivalcncias na situação edípica do que
aquelas assinaladas pela teoria tradicional. Com o bem destaca Ri­
cardo Rodtilfo, numa palestra sobre a agressividade em W innicott, a
rivalidade en tre o m enino e o pai, no que se refere à questão edípica,
não contém necessariam ente ódio m ortífero, e o menino, que neces­
sita fazer a experiência da rivalidade, cm condições confiáveis, não
quer necessariam ente matar o pai.51 O léxico psieanalítico tradicio­
nal, diz Kodulfo, assimilou a agressão infantil à destruição, a ódio, à

51 Ü artigo tle Ricardo Kodulfo é. originalmente, unia conferência pronun­


ciada no IV Colóquio Winnicott. promovido pela ÍHHI-.N]’, em l‘W . e ainda
uiio foi publicado.

2N<>
A TK< JRIA I X > A ilA D C K K t XU KN Tl 1 1)K 11. W. W lX X IC t H T

hostilidade, íi raiva, e sem elhante confusão, resultante do uso desses


term os eom o se fossem sinônimos, levou a não poucas conseqüên­
cias para o trabalho analítico. Com demasiada rapidez, tomou-se

a rivalidade dc um m enino eom o pai com o ódio parricida,


sem sc colocar m aiores problem as no q u e se refere aos matizes
diferenciais {n em ao fato dc q u e .só em cond ições de p atologia
severa e específica, um m enino se põe. literalm ente, a o d iar o p ai)
(R o do lfo . 1W ) . p. J).

llá casos cm que as dificuldades da fase ctlípica advem já do


estágio do concernim ento, com a criança tendo precisado inibir os
seus impulsos instintuais por não contar com a presença ativa de um
pai que protegesse a mãe da impulsividade infantil. Foi este o caso
do paciente B, protagonista do I ív t o Holding c interpretação (1986a).
Sua problem ática central, no segundo período de análise, estava
relacionada à problem ática do estágio do concernim ento (cf. 1986a.
]>. 2 1), além dc o paciente apresentar uma cisão da mente cm relação
ao psiquc-.síHHíí. As conquistas referentes à capacidade para o con-
cernim cnto haviam sido dificultadas não apenas pela relação difícil
que fora estabelecida com a mãe, mas também cm virtude do fato
de seu pai ter sido mais m aterno do que paterno, não tendo conse­
guido fazer a sua parte quando o m enino precisou que ele a exer­
cesse.52 Num certo m om ento em que <>paciente B divaga intelectual­
m ente sobre a proibição do incesto, W innicott lhe diz: “ Você está
usando a proibição, pela sociedade, tio incesto entre m ãe e filho,
porque não consegue encontrar o /tomem t/i/e ficará o u r e você e sua
mãe. Isto significa que o seu pai não cumpriu a sua parte aí c você,

52 Este paciente c.stcvc cm tratamento por dois períodos, dos quais Winnicott
fez relatos dc sessões c algumas anotações clínicas Do primeiro período de
análise, temos apenas a introdução às suas anotações clínicas, inseridas por
Khan na Introdução ao livro llotdiwj c mtcrjtretuçâo (19 86a). Do segundo
período, existem dois grupos de anotações: o primeiro data de l'J54 (l*JS5e)
c é composto tle anotações que sc referem a seis episódios du análise: o se­
gundo c o que compõe o livro Holding e mferpnetiiçtm, que abrange seis
meses tio segundo período da análise. Referindo-se ao prim eiro período dc
análise, Winnicott diz que o rapaz, na época “ um caso tle esquizoitlia". o
procurara dizendo que “não conseguia falar livremente e manter conversas
informais, não tinha imaginação ou capacidade para jogos, e que não conse­
guia fazer um gesto espontâneo, nem ficar excitado" { 1980a, p. 22).

200
OS K S TÁ iilO K DA |)K I'K M jK.\i :1.\ B 1M)KI>KM)ICM;1A KBI.ATiV.VS

portanto, não tem ód io nem m edo cio hom em , c está de volta à sua
ariti^a posição: ser frustrado pela mãe 011 desenvolver uma inibição
interna" (1986a, p. 9 2 ). Numa outrn ocasião, referindo-se a uni
sonho, o paciente diz: "Resum indo, meu problem a é com o encon­
trar uma luta que nunca houve. X o sonho, a luta era o que estava
faltando.” W innieott responde: “V oeê não conseguiu o alívio que a
situação triangular traz quando a criança está em confronto com o
pai; o alívio de não ter tle lutar sozinho com a m ãe” (?'/>/</.. p. IS 5 ).
Além das dificuldades advindas da impossibilidade do pai para
exercer a sua parte, esse rapaz não havia podido desenvolver, na fase
fálica, a necessária relação homossexual com o pai e identificar-se com
este. Num m om ento da análise, em que ficou claro que suas escolhas
afetivas e sexuais eram sempre orientadas na direção da “ moça com
pênis do seu sonho adolescente” , o paciente disse: "Devo estar procu­
rando um homem, o que pode ser um tipo de homossexualidade, c
implicaria que eu sou um tipo afcmimido de hom em ." Winnieott
responde: “ Não, não creio. 0 fato é que voeê está procurando pelo seu
pai, o homem que proíbe a relação sexual com a sua mãe. Lembre-se
do sonho no qual a sua namorada apareceu pela primeira vez. Era
sobre um homem, um homem que estava doente.” Diz o paciente:
“ Isso explicaria a falta de sofrim ento o pesar quando meu pai morreu.
Ele não me viu com o rival, e por isso deixou-me com a terrível incum­
bência de fazer eu mesmo as proibições.” t) analista responde: “ Sim,
por um lado ele nunca lhe c/eu a honra f/e reconhecer a sua nuitiiri-
(Uule, proibindo as relações sexuais com sua mãe. mas ele também o
privou da alegria e do prazer da rivalidade, assim com o da amisatle que
surge da rivalidade entre homens, lí-ntão, você teve de doseim >l\er uma
inibição geral. Voeê não poderia sentir dor por um pai que você nunca
‘m atou’ ” (ibid., p. 87: gritos meus).
A tensão instintual, característica desse período, atinge o auge em
algum m om ento entre os três e os cinco ou seis anos, quando, então, é
resolvida ou arquivada, também cm conseqüência do fenômeno endo-
erlnológico de suspensão da tensão instintual na fase dc latcneia.
Durante esse período, quando saudável, a criança faz todo o tipo de
experiência nas brincadeiras, sonhos e fantasias, ext raindo proveito da
identificação com os pais e outros adultos. As experiências pré-ge-
nitais c genitais imaturas, que estão ao seu alcance, incluem o corpo c
os prazeres corporais que não dependem da ajuda de outras pessoas.
Sc há suporte familiar e confiável, se alguém permanece presente,

291
A TK O KIA !)(> A ÍIA I)I.K I; í :IM K N T() de |). w .w ix x ic o t t

mantendo a calma. a criança começa a dar-se conta dc que a passagem


do tem po — algumas horas 011 , talvez, minutos — traz o alívio para
praticamente tudo, por intolerável que pareça. A sexualidade infantil,
diz Winnicott. é algo bem real. Pode estar ou não madura à época cm
que as transformações da latência ap-trecem trazendo alívio. Se a se­
xualidade está imatura, perturbada ou inibida ao fina! desse primeiro
período de relacionamentos interpessoais, assim ela ressurgirá, ima­
tura ou inibida, na puberdade (1988. p. 75).

7. A puberdade e a adolcsecneia

Se, à época da puberdade, a sexualidade não estiver madura, o indi­


víduo não estará capaz de enfrentar as importantes e difíceis mudan­
ças físicas associadas a essa fase e ao próprio amadurecimento pessoal
que eelode na adolescência. Mesmo para a criança saudável, não Ilá
eom o escapar das ansiedades decorrentes dessa passagem, mas o
modo com o o indivíduo lidará com elas depende essencialmente tio
padrão que foi estabelecido anteriormente, na infância. A criança que
foi bem cuidada está habilitada, até certo ponto, a tolerar os senti­
mentos novos e as estranhe/.as advindas de mudanças c o rp o ra is que
são independentes de sua pessoa, assim como a evitar, recusar 011
defender-se das situações que envolvam ansiedade intolerável. Desse
padrão adquirido, que c em grande parte inconsciente, participam
também os resíduos dc alguns dos inevitáveis fracassos dos primeiros
tempos. Por outro lado, 6 grande o auxílio que o indivíduo aufere
quando a puberdade fornece um potencial para a potência masculina,
e sen equivalente nas meninas, 011 seja, quando a geuitalidade plena já
sc tornou uma característica, por ter sido alcançada 11a realidade do
brincar durante a idade que precedeu o período de latência. No
entanto, uos púberos não se enganam com a idéia de que os impulsos
instintivos sejam tudo, e, de fato, eles estão csseneialmeiuc preocu­
pados com ser, com estar em algum lugar, com sentir-se reais e
adquirir algum grau de constância objetai” (1971Í, p. 20).
Nada, contudo, assegura ausência de problemas: Não há cura para
a puberdade ou para a adolescência, e a única coisa a fazer c dar tem po
ao tem po e sobreviver à turbulência que poderá, inclusive, ser tanlo
maior quanto melhor tiver sido o começo, uma vez que o sentido de
liberdade c tle riqueza pessoais não tornam as coisas mais simples.

J ‘ >2
O S K S TÁ üli >S 1).\ l>Kri-,\[)í.N ( .l.\ K IM>KI'KNI)KN< :l.\ ISKI..VI l\AS

Ma puberdade, às im portantes alterações devidas :u> cresci­


m ento físico e ao desenvolvim ento da sexualidade, acrescenta-se a
capacidade física para a experiência genital c para matar tle verdade
(cf. 1965ve, p. 66). Ou seja, surge uma potência nova e assustadora,
uma vez que aquilo que pertencia ao dom ín io tia fantasia pode agora
tornar-se realidade concreta: o poder de destruir, e até de matar, a
possibilidade dc prostituir-se, engravidar, enlouquecer com drogas,
suicidar-se.
Uni outro ponto a mencionar — c nisto a psicologia do adoles­
cente pode ajudar muito a entender a natureza do sofrimento psicó­
tico — são as angústias típicas da adolescência, que repetem as dos
estágios primitivos: o adolescente é, tal com o o bebê, essencialmente
isolado, lí, tal com o 110 bebê, é apenas a partir desse isolamento que
cie pode se lançar e \ir a estabelecer alguma relação sentida com o
real. O fenômeno dos grupos na adolescência é o tle uma coleção de
indivíduos isolados que tentam formar um agregado em torno de
algum interesse ou preocupação comum, estando o si-mesmo pessoal
recuado e protegido. ( ) isolamento está também associado a um traço
da sexualidade, mais precisamente tia indefinição sexual: o menino ou
menina não sabe ainda, a não ser que padrões ambientais forcem a
definição, sc será heterossexual ou homossexual. I lá um longo período
dc incerteza durante o qual, em geral, ocorre uma atividade masturba-
tória irrefreável, que deve ser entendida não tanto com o uma atividade
sexual, mas com o uma maneira de livnir-sti do sexo. O mesmo pode se
dar com as experiências heterossexuais ou homossexuais que, longe tle
constituírem uma forma de união entre seres humanos completos,
consistem bem mais numa descarga de tensão. Quando há imaturi­
dade na vida instintual, existe o risco tle doença 11a personalidade, 110
caráter ou no comportamento. Xeste caso. é preciso lembrar que o
sexo pode operar com o 11 ma ./hnção p(trcüd, de tal modo que, ainda
que o exercício da sexualidade /x o v ç í i estar funcionando bem, a
potência tio rapaz 011 da moça pode acabar depauperando o indivíduo,
ao invés de enriquecê-lo (1971 f, p. 21).
O que aponta para o fato dc que o adolescente repete os padrões
tios estágios prim itivos é que cie padece do sentim ento tle irreali­
dade, e sua principal luta diz respeito a sentir-se real. lixiste, nele,
uma moralidade rígida, não em term os do que foi socialm ente esta­
belecido com o born e mau — exatam ente o que ele despreza e
contra o que se rebela — , mas em term os do que é sentido com o real

!
A T K O R IA IH> A M .U H K K C IM ivN TU ])E 1). W. W IN M C O I T

o do que é sentido com o falso: o adolescente não aceita lalsas solu­


ções. ( ) pior l!c tudo, o insuportável, é a traição a si mesmo. Tal
com o o psicótico, o adolescente não pode transigir. Uma curta aqui­
escência, que é própria da saúde e necessária para a convivência,
torna-se uma ameaça dc extinção } essoal (1962a, p. 160). Esse
período é particularm ente difícil para o indivíduo, que, não tendo
tido um bom início, carrega consigo a ameaça da desintegração,
porque íi adolescência arrasta-o para perto do colapso. Para o indi­
víduo que, ao contrário, teve um bom com eço, o tem po se encarrega
de muitas coisas, caso o am biente fam iliar sobreviva e permaneça
confiável. l.)e qualquer m odo, durante toda a adolescência, haverá
certam ente problemas agudos de manejo e necessidade de suporte
firme e confiabilidade, uma vez que crescer significa ocupar o lugar
do genitor: “ Na fantasia inconsciente, crescer é inerentem ente um
ato agressivo. [...] Se a criança tem de se tornar adulta, então essa
transformação se fará sobre o cadáver de um adulto” (1969a, p. 195).

8. A idade adulta

Tendo passado relativamente incólume pela adolescência, 6 possível


discriminar ao menos três tarefas que, imbrieadas uma na outra,
esperam o indivíduo na vida adulta. Mesmo para quem teve um bom
começo, a primeira tarefa ó a de continuar amadurecendo c manter-se
vivo, mesmo na velhice, até a morte. Isto depende, naturalmente, da
preservação da criatividade originária, da eapaeidade de deixar-se
atingir pelos acontecimentos e de continuar a sc surpreender.5,1 Ao

53 Para tanto, é preciso preservar a sensibilidade. Winnicott conta que. guando


trabalhava como médico pediatra, no ambulatório do Paddin^tou Grcen
Hospital, foi promovido à tarefa dc cuidar dos leitos, c isto significava
staniK. Diz ele que. sem saber muito bem por que, recusou. Conseguiu
permissão para fazer uso dos leitos quando necessário, mas passou os inter­
nados para o seu assistente. Soube, cm seguida, por que estava fazendo isso:
"O sofrimento de bobes c crianças pequenas numa ala do hospital, mesmo
cm um muito bom, 6 algo terrível, líntrar na enfermaria me perturba muito.
Se eu ino tornar um médico de pacientes intentados, terei de desenvolver a
eapaeidade de não me deixar perturbar pelo sofrimento de crianças, do
contrário não serei um médico eficiente. Portanto, vou n»e concentrar cm
meu trabalho do am bulatório e em não me tornar insensível com a finali­
dade de scr eficiente" (1987b, p. 146).

294
Oh ESTAI HOS DA Di;i’K.\DKN<:iA li IN1)ICI,I'-X1)I:,.V(;]A )Utl„\TIV.V>

mesmo tempo, se pôde fazer a experiência de onipotência 110 m o­


m ento apropriado, o indivíduo, com a maturidade, desiste dc scr o
volante e adota :i posição mais confortável de ser unia peça 11.1 cii.hu-
nagem, mesmo porque, a essa altura, não será o lugar que ocupa na
sociedade que lhe dirá quem elo é. Mas sc cie não começou a vida
fazendo essa pequena experiência dc ser onipotente, ele pode im
nar-se alguém que precisa exacerbar a onipotência, a criatividade e o
controle; algo assim com o “ tentar vender ações indesejáveis de uma
companhia inexistente” (1986h, p. 39). O adulto maduro, ao vou
trário, c capaz dc objetividade sem perder o contato com a riqueza do
mundo subjetivo; pode fazer concessões sem sentir-se roubado em sua
espontaneidade. A saúde está relacionada com a condescendência e a
impostura, e quando o amadurecimento transcorre favoravelmente,
“ o indivíduo torna-sc capaz de enganar, mentir, negociar, aceitar o
conflito com o um fato e abandonar as idéias extremas de perfeição e
do seu oposto, que tornam a vida intolerável. O compromisso não é
uma característica dos insanos" (1988, p. 160).
A segunda tarefa consiste na aceitação da impotência e da imper­
feição. As pessoas, diz o autor,

tôin de aceitar o q u e são e aceitar a história de seu am ad u reci­


m en to pessoal, ju n tam en te com as influênciiis e atitudes a m b ie n ­
tais locais; elas têm tle continuar vivas, c vivendo, tentar se re lac io ­
n ar eom a sociedade de m odo a haver co n tribu ição nos dois
sentidos ( l l.W6£, p. 147).

Ter dc encarar imperfeições do eu c do mundo, ta! como são, acar­


reta, muitas vezes, fases de depressão. Mas quando não é mutiladora,
ou ligada a distúrbios psicóticos, a depressão é um estado de espírito
próprio das pessoas verdadeiramente responsáveis, das que realmente
têm valor, lilas se deprimem justamente porque são capazes de ver e
aceitar a precariedade da condição humana e o fato de que o mundo
jamais é tal qual o imaginamos; também por perceberem, claramente,
que a sua capacidade dc amar e de construir coexiste com o seu
próprio ódio, maldade e destrutividade. Nestes termos, a depressão é
inerente à vida e à maturidade. Isto pode ser terrível, mas não scr
capaz de duvidar ou de sofrer perturbações é uma condição ainda pior.
O sentimento de dúvida está muito próximo do seu antônimo, que é a
crença, c do sentimento dc que há coisas que vale a pena preservar
(1965o, p. 6«S). Muito provavelmente, o sofrimento maior do universo
humano c o sofrimento das pessoas normais ou saudáv eis ou maduras:

295
A TKIJRIA 11<) A M A l)fR W 3 \ IK M X > 1HÍ li. W. W IX X IC O T T

"Infelizes somos você o tu que. uni certa fase, estamos conscientes da


falta daquilo que é essencial ao ser humano. c]iie é muito mais im por­
tante tio que com er ou do que a sobrevivência física” (1986h, p. 35).
Tudo isto está vinculado à terceira e. talvez, mais importante e
difícil das tarefas da idade adulta: a dc poder envelhecer e morrer.
Neste ponto, aparece de forma cabal o fato de que a integrarão não
pode jamais ser alcançada por completo. (.) que falta, sempre, ao
homem, é o seu próprio fim. Em outubro dc 1970, pouco antes de sua
morte em janeiro de 1971, falando para uma associação de assistentes
sociais para crianças desajustadas, Winnicott fala de um tipo dc cresci­
m ento que é "para m enor” : “ Se eu tiver urna vida razoavelmente
longa, espero encolher e tornar-me suficientemente pequeno para
passar pelo estreito buraco chamado m orte” (19H4g. p. 225). Mas
aprender a m orrer só é possível para alguém que viveu e teve experiên­
cias. K só c possível ter vivido e permanecer vivo tendo alcançado o
estado unitário quu perm ite dizer EU ISOl'. Apenas a partir desta
condição c possível tanto viver eom o morrer. Não há m orte, diz Wiimi-
eott, exceto considerando-se urna totalidade (198-lh, p. 4S). Quando
há um sentido de inteireza na integração pessoal, islo traz consigo

|...] a possibilidade e realm ente <í ceifes* c da morte, e, com a ace i­


tação da m arte advem um grande- alívio, alívio tio m edo das a lter­
nativas. tais co m o a d esin tegração mi os fantasm as — o u soja, a
sobrevivência du fenôm enos uspíritas, para d epois da m orte da
parceria psicossom ática (ibid.. p. 'I S ) 51.

Temível é a m orte interna. Mesmo quando sadio, ninguém está a


salvo de perder aquilo que o liga à vida e ao sentido da vida. A pergunta
sempre permanece: “ For que a vida criativa pode scr perdida e por que
o sentim ento do indivíduo dc que a vida é real e significativa pode
desaparecer?” (197 Ig, p. 101). Agradecendo a uma de suas pacientes
n expressão “ morte fenom êniea” . W innicott afirma que muitos ho­
mens e mulheres passam a vida se perguntando se, para cies. o suicídio
seria a solução; ou seja, entregarem o corpo a uma m orte que já sobre­
veio à psique" (1974, p. 74).

54 W in n icott não teve filhos e, no finnl da vida. sabendo-se j;í m u ito d o e n te e


dispon d o de m u ito poueu tcrnpo, e le escreveu i|uc “ |...| é d ifíeil para imi
honrem m o rre r quando não teve um filho para m atá-lo na fantasia e puder
sobreviver a ele, prop orcion an d o assim a única con iiiiu u ü id c qu e us lunuen.s
c o n h e c e m " (e f. (ila r c W in n icott. JV8S. p. .1)

2 9 í,
<JS KSTAC.IUS l).\ 1>BI'I:XJ)KX( !IA Ji IMJKIMíNDÈXCIA I4KI ATIV.VS

9. A volta à origem

C) processo dc am adurecim ento com eça com o "prim eiro desper­


tar” . Agora podem os perguntar: onde c eom o ele termina?
lírn Sutiirvsa Imminut. W in n icott tenta ju n ta r esses dois m o ­
m entos extrem os do ex istir humano. Referindo-se ao in ício do
am adu recim ento, ele pergunta: “ Qual é o estado do indivíduo
quando o scr em e rg e do in te rio r do não-ser? Qual o estado funda­
m ental ao qual to d o ser hum ano, não im porta u sua idade ou as
experiên cias pessoais, teria de retorn a r sc desejasse co m eça r
tudo de novo?’1A sua resposta c tão sim ples quanto inesperada: se
fo s s e recomeçar, o indivíduo teria de retornar uo estado de solidão
essencial. Pois, no in ício, diz W in n icott, há uma solidão essencial
(198H, p. 153).
Talvez devamos entender que a vida humana se constitua numa
tentativa dc esquecer essa solidão. Tentativa sempre frustrada, já
que a solidão essencial perm anece vida afora com o o fundo oculto,
intocável e indizível, sombra do nada, inscrita no seio m esm o da
origem , c eom a qual “ não há nenhuma com unicação com o inundo
não-eu, em nenhum sentido” (I9 6 5 j, p. 172). W innicott não se
cansa de enfatizar a necessidade que temos

[... | tle re co n h ec er esse asp ecto da norm alidade: o eu central que


não se com un ica, para sem pre iuuiiie ao p rin cípio de realidade,
para sem p re silencioso. A í a co m un icação é não-vcrbal: é eom o a
m úsica das esferas, abso lu tam en te pessoal. Pertence ao estar vivo.
li, n o rm alm en te, c daí q u e se o rigin a a com u n icação (1 9 6 5 j,
p. 174).

Afirm ação surpreendente, que npontn para uma dimensão tle


isolam ento, inatingível para qualquer acontecim ento mundano, ine­
rente, 110 entanto, ao estar vivo. W innicott diz ainda que,

[...| eom exceção cio pró prio início, não haverá jam ais um a repro­
dução exata dessa solidão fundam ental c inerente. A pesar disto,
pclíi vida afora do indivíduo, continua a haver um a solidão funda­
m ental, in eren te e inalterável, ao lado da qual continua existindo a
inconsciência so b re as condições indispensáveis a este estado de
solidão (1 9 8 8 , p. 154).

yn
i\ TEORIA IX I A M A W K B ta .U K M X ) 1)K l>. W. W IX N IU W T

C) que podem os com preender daí? A frase “ |...) com exceção do


próprio iníeio [ . . . ] ” rem ete à afirm ação dc que “ no iníeio, há uma
solidão essencial” . A solidão essencial do iníeio será. portanto, ultra­
passada, transposta, em algum sentido, uma vez que “ não haverá
jam ais uma reprodução exata dessa soiidão fundamental e ineren­
t e ” . N o entanto, ao m esmo tem po em que o estado dc solidão ine­
rente se altera, algo dele perm anece c continua a haver um a solidão
fundamental. Trata-se, portanto, de uma cisão, uma cisão básica,
que está na raiz mesma da existência humana e que perm anece
"incu rável": enquanto algo se m antém com o um fundo intocável,
eternam ente solitário, uma outra parte do indivíduo c lançada na
luz do mundo, para que possa nele habitar, para que a vida, que
inclui viver na proximidade das coisas e com -ouutro, possa se instau­
rar e acontecer.
O indivíduo só “ sabe” dc sua solidão essencial quando, pela
experiência do "p rim eiro despertar” , a vida se im iscui na extrem a
quietu de do início: “A experiência do prim eiro despertar dá ao indi­
víduo a idéia de que existe uni estado de não-estar-vivo ch eio de
paz, que poderia ser pacificam ente alcançado por m eio de uma
regressão extrem a ” (1988, p. 154). E em bora o bebê, ou o feto, não
tenha nenhuma capacidade para se preocu par com a m orte, ' deve
existir em qualquer bebê a capacidade de sentir-se con cern ido pela
solidão da pré-dependeneia, já que esta foi de fato experim en tada"
(ibid., 155).
O que tudo isto tem a ver com o m om ento final do processo de
am adurecim ento? Dc novo uma resposta surpreendente: o m esmo
que o estado inicial. “ M uito do que é dito e sentido acerca da m orte
refere-se, na verdade, ao estado anterior ao estar v iv o [ídiw ne.ss),
no qual o estar sozinho é um fato e a dependência ainda se encontra
m uito longe dc ser descoberta" (uletn, grifo m eu).
W inn ieott identifica o final do processo de am adurecim ento
com o m om ento inicial, C om isso, o am adurecim ento no seu todo
fica caracterizado com o um processo de retorno à origem , com o um
m ovim ento circular que volta ao lugar dc onde com eçou. Ele não
deixa dúvidas: o estado anterior ao da solidão essencial é um estado
de não-estar-vivo. É para este estado, que T. S. Eliot eharnou “ pura
sim plicidade, custando nada menos que tudo” , que o indivíduo
humano necessariam ente retorna. A vida humana consiste, portan­
to, num intervalo entre dois estados de não-estar-vivo; “ O prim eiro

298
O S KSTÃl 1IOS l>A I)K I'B N l»É N tX \ E L V n iiP E X n K » :IA KKIATIV.VS

dos dois, a partir d o qua! e m e rg e o estar-vivo, dá c o lo rid o às idéias


q u e as pessoas costum am ter so b re a segunda m orte [ sc c o u í / <ítót</i|”
( l y S S , p. 154).S5
Segunda morteV A prim eira está antes do iníeio, do onde o ser
em erge do não-ser u. a partir daí. todo o p cru urso é um caminhar na
direção da segunda. Ilá um nada antes do eorneeo e um nada depois
do fim. A vida se constitui do intervalo entre esses dois nadas. Mas a
vida não reina, plena, com o um acontecim ento imune a esses dois
nadas. Eles a atravessam dc ponta a ponta. E por essa vineulação
fundamental, que “ o prazer da companhia só existe com o um
am adurecim ento a partir do isolam ento essencial, o isolam ento que
reaparece quando o indivíduo m orre” (1984b, p. 116).
Na m orte, que é o grande retorno. n solidão essencial se fechará
sobre si mesma, com pletando o ciclo da vida. Enquanto o indivíduo
estiver vivo, ela permanecerá co m o o fundo, com o a reserva iueonfi-
gurávol que en trega o hom em à tarefa de existir com o história
inédita e pessoal, sem apoio em nenhuma determ inação, sustentado
tão-som ente na ilusão de poder criar. Permanecerá também coino
m atriz de todas as possibilidades de retorno, de recuo do indivíduo
que, quando é saudável, sente necessidade de descansar da tarefa de
existir c de ter de, perm anentem ente, separar a fantasia da reali­
dade, o subjetivo do objetivam ente percebido. A solidão essencial é a
única verdadeira e desconhccidam cnte almejada quietude, a que
mais se aproxima da condição de pura sim plicidade que custa nada
menos que tudo.
Na aba interna tio caderno em cjuc W innieott com eçou a escre­
ver sua autobiografia, cujo título seria Nadu m enos (fuc tudo, encon­
tra-se um fragm ento dos Quatro ifiiurtctos, de T. 8. Eliot:-'"

O que ch am am os co m eço é freqüen tem en te o fim


li ch e gar a um fim é ch e g a r a um com eço
O fim é tle ontle com eçam os.

55 N a e d içã o brasileira d e ste texto, a expressão “ segunda m o r te ", tio original


"aecund ilcctilt", não aparece, tendo a frase sido assim traduzida: "A vida de
uma pessoa con siste num in tervalo entre dois estados de não-estar-vivo.
O p rim eiro dos dois. a p artir d o qual e m e rg e o estar-vivo, dá c o lo rid o ás
idéias que as pessoas costum am ter sobre o s e g u n d o " (e f. LMiStS, p. 15-Jj.
56 T. S. Eliüt, m o , pp. 144 e 145.

299
A TK O K IA 1 )0 A M A lH TiK C IM K N TO Dl. D. \Y W IX M C u T T

10. Breve com paração da teoria do am adurecimento


pessoal com a teoria do desenvolvimento das
funções sexuais da psicanálise tradicional

Elaborada a partir cia experiência tio autor com bebês c psicóticos, a


psicanáüsc w innicottiana é baseada na teoria cio am adurecim ento
pessoal, que dá destaque especial às tarefas primitivas de cousLimi-
ção do si-mesmo e de acesso aos sentidos dc realidade. O que está
aqui cm pauta é o bebê no colo da mãe. A psicanálise tradicional,
desenvolvida a partir do estudo c do tratam en to das neuroses, ba­
seia-se na teoria do desenvolvim ento da sexualidade, em term os das
relações dc ob jeto guiadas pelo princípio do prazer, que privilegia o
com plexo de Edipo, ou seja. a criança 11a cama da m:1e.ST lintre estes
dois quadros teóricos da psicanálise existem diferenças fundamen­
tais. No que se refere aos pressupostos teóricos, algumas dessas d ife­
renças já foram mencionadas 110 final do (Capítulo 1. Aqui, ressaltarei
alguns pontos diferenciais entre a teoria winnicottiana do amadure­
cim en to pessoal e a teoria tradicional do desenvolvim ento das fun­
ções sexuais.
Segundo W innicott, a teoria do desenvolvim ento das funções
sexuais desconsidera as etapas iniciais do am adurecim ento, pressu­
pondo, com o ciadas, certas aquisições relativas à estruturação da
personalidade; a constituição da realidade do si-mesmo c do mundo
externo, Essas conquistas iniciais não podem, dc m odo algum, ser
dadas por supostas, nem podem scr vistas com o uma decorrência
autom ática do crescim ento. K a experiência de lidar com essas
tarefas do am adurecim ento e o sucesso na resolução delas que cons­
titui os fundam entos da saúde psíquica. A psicose consiste exata­
m ente no fracasso cm realizá-las e, neste caso, não haverá nem ao
menos um indivíduo que, respondendo por um eu, possa enredar-se
em conflitos intrapsíquicos, chegando a padecer das vieissitudes
próprias da vida instintual e das relações interpessoais.
Uma outra distinção entre o paradigma maturacional dc W inni­
cott c o paradigma edípico da psicanálise tradicional reside cm que,

57 O "b e b ê 110 colo du niiie” c a "‘criança na cama da mão” são expressões


criadas p o rZ . Loparie paru definir, respeeiivameute, os exemplares paradig­
máticos da teoria vinnieottiana e da freudiana (eí. Loparie, 19*>7;i|

300
US KST.ÚaoS DA DliriiNDÉXUlA K l.\lil-;i'i:\l)í-,M :1A l«KI..\Tl\.VS

na base da compreensão freudiana {las neuroses está o conflito psí­


quico cujo fundamento teórico é a dualidade pulsional. Kreud não
podia modificar este conceito sob pena de pôr a perder todo o edifício
teórico da p s ic a n á lis e .P a ra W innicott, no entanto, que sc m ove cm
outro horizonte teórico, n ã oc necessário conceber forças pulsionais
em con flito para pôr a vida em m ovim ento e dar sustentação teórica
às dificuldades, impasses e distúrbios, m esmo os mais primitivos.
( ) que impulsiona a vida c o psiquismo c o próprio fato de o bebê
estar vivo e carregar em si a tendência inata à integração; é desta
ejuc decorrem as tarefas e as necessidades vitais. T e r que continuar a
scr e am adurecer põe já o indivíduo frente a desafios e dificuldades
suficientes, tendo em vista, sobretudo, sua situação de dependência
extrema dos cuidados ambientais que podem, humanamente, falhar a
qualquer m om ento. Não é necessário, portanto, postular conflitos
instintuais c afetivos para explicar as angústias primitivas do bebê.
A teoria freudiana concebe o desenvolvim ento cm term os do
desenvolvim ento das funções sexiutia. Isto deriva da tese central de
Kreud de que as neuroses são distúrbios, relativos a um conflito
sexual. O tema central do con flito c o com plexo de Edipo, e é no in­
terior da resolução do com plexo que sc dá a constituição do sujeito.
Mesmo quando Kreud, ao tentar responder aos impasses teóricos
colocados pela sua teoria do nareisismo, passa a sc interessar pelas
psicoses, as questões que ele formula derivam do m esm o cam po
configurado para a inteligibilidade das neuroses. A insuficiência tle
sua teoria das psicoses já está instalada nos pressupostos: não tendo
com o adm itir mu dom ínio de problemas que escape ao conflito
pulsional, Freud precisa encaixar, nesse dom ínio, as patologias psi­
cóticas. Segundo W inn icott, entretanto, o am adurecim ento não diz
respeito a funções isoladas, mas exatam ente à integração numa
inteireza e à tendência dc existir com o uma unidade. Embora o
am adurecim ento pessoal inclua a integração gradual tia instintuali­
dade e o desenvolvim ento da sexualidade, não c nesse dom ín io que o
indivíduo sc constitui, Existem pessoas que, tendo tido seu amadu­
recim ento interrom pido cm fases primitivas, jam ais alcançam maiu-

5H Cf. Kulgcncio. 2 0 0 ], Parte III, Capítulo 2, item A, sobre a dualidade pulsioiial


enquanto fundamento do pon to de vista dinínnieii, que, para Freud. ilisi im;u,.
a psicanálise de outras psicologias (ver, também. Kreud. 1') l/ím. p. 2 1 1). Km,i
perspectiva também foi tratada em Simanquc. 1 W I. Capítulo 3.

.101
A T K O K IA IX ) AM At)t'l!li<Ü M KXTC > ÜK 1). W. WINNH :<)T T

ridade suficiente para padecer dos problemas inerentes à situação


edípica. Pela teoria winnicottiana, é preciso haver antes um indi­
víduo para que a lgo eom o a sexualidade humana possa acontecer.
listas são algumas das razões para W inn icott afirm ar que, em bo­
ra seja m uito mais fácil descrever os processos maturacionais em
relação às funções instintuais, do que cm term os do eg o e dc sua
com plexa evolução, não há mais eom o evitar a segunda alternativa
(l*->71f, p. 21). l*ode-se ilustrar o m odo eom o. na teoria do amadure­
cim en to pessoal, W innicott faz prevalecerem as conquistas do e g o
sobre as funções sexuais, c de que m odo essas conquistas são vistas
com o condição dc possibilidade para a vida instintual. Retomando
um aspecto do desenvolvim ento da instintualidade dentro do pro­
cesso de am adurecim ento — a progressão da dominàneia instintiva,
dc acordo com as funções envolvidas e com a elaboração im aginativa
dessas funções — , W innicott enumera as fases prc-genital, fálica e
gcnital eo m o sendo as únicas im portantes a serem consideradas;
para cie, a subdivisão das fases, proposta por K. Abraham — oral eró ­
tica e oral sádica; anal erótica c anal sádica etc. — , tem a lgo de
essencialm ente insatisfatório, já que consiste na aplicação, aos está­
dios prim itivos, do m odelo de progressão que vai do pré-genital ao
genital e im plica olhar o laetente a partir do que já sabemos sobre a
criança que anda ao invés dc olhar para o bebê cm sua imaturidade.
Mas o ponto central da objeção dc W innicott consiste no seguinte:
não é a fantasia da atividade oral que é, do início, erótica — ou seja,
não sádica, pré-ambi valente — c só depois sádica, destrutiva c am bi­
valente. K o hebê ipte, anuuhtrecendo, trimafonriu-se da incumpcuk -
cido em compculccúlo. A instauração da ambivalência está relacio­
nada com mudanças maturacionais do si-mesmo e não com o
desenvolvim ento das funções instintuais. Seja qual for a fase do
processo, o caráter de am adurecim ento pessoal perm anece. \’ o
estágio cdípieo, por exem plo, a vida instintual acrescida da chegada
à genitalidade farão com que a sexualidade ganhe proem inência.
lista posição, contudo, não c estruturai, mas característica desse
estágio. Os distúrbios neuróticos são, tal com o l*Ycud os descreveu,
de caráter sexual, mas por estar às voltas com a questão edípica e
assolado pelas turbulências instintuais que a acompanham, o indi­
víduo não sc torna um scr em inentem ente instintual ou sexual. Suas
questões, enquanto pessoa, continuam ein pauta, e tanto quanto
antes, a sexualidade não o define nem o constitui. \a situaçao ulí

.1 0 2
OS KSTÁCIOH 1),\ l)K I'K N I)K X t:i.\ K IN D IiH iX D K X l ILA RKLVTIVA.S

nica, o terapeuta precisa continuar a manter, pai a si mesmo, a ques-


tão dc saber se já existe ali alguém, um eu. que está lá para ser
encontrado, que sc sinta vivo e capaz de dar significado à vida instin
tual e à sexualidade, ou se, independentem ente do conteúdo com
que o indivíduo reveste a sua im aturidade — uma falsa novela fam i­
liar, por exem plo — , é preciso estar atento às condições que faci­
litem a constituição tio si-mesmo primário.
Diferentem ente da psicanálise tradicional, as conquistas do
am adurecim ento não ocorrem autom aticam ente. O bebê humano
depende, até para chegar a ser um bebê, da presença concreta o
contínua dc 11111 am biente faeilitador. ü processo, no início, não é
intrapsíquico, mas interpessoal, embora, no início, num sentido
m uito peculiar. A dinâmica do amadurecimento, por se dar numa
relação dc dependência absoluta do bebê eom relação ao ambiente,
não resulta exclusivamente, nem m esm o principalm ente, dc fatores
internos ou constitucionais, mas da faeilitação ambiental. A lém
disto, a relação primária eom a mãe-ambiente não é, dc início,
objetai. O bebê ainda não é uni eu unitário, que já tenha uni mundo
interno, no interior do qual estaria ocorrendo o con flito entre
objetos internos bons e maus; ele tampouco sabe da existência de
um mundo extern o ou de objetos externos. Bem no início, a “ rela­
çã o " com a mãe não c nem m esm o dual. tendo de ser descrita com o
uma unidade bebe-m ãe, de dois-cm-um. lí no interior dessa relação
.siageneris, cuja realidade é subjetiva, que se dá o iníeio do contato
com a realidade externa, que o bebê não sabe ser externa. Não sendo
nem m esm o dual, a relação c m uito menos triangular. Também não
se pode dizer que c erótica, pois o bebê não c regido pelo princípio
tio prazer, mas pela necessidade de ser, de sentir-se real c dc chegar a
existir num mundo real. Para tanto, o que cie necessita é da confiabi­
lidade da mãe, da com unicação pessoa! com ela, da intim idade, da
oportunidade de criar o mundo.
Com relação às raízes da agressividade, é fácil perceber o desa­
cordo de W inn ieott com relação ii teoria freudiana. Para o Freud tia
prim eira tópica, a agressividade humana tem início com o reação às
frustrações no contato com o princípio de realidade. Esta teoria, 11a
visão de W innieott, não dá conta dessas raízes, 11111a vez que “ a raiva
contra a frustração não surge suficientem ente c e d o " ( ] 9S.S, p. 99n).
Ou seja, o bebê não está suficientem ente am adurecido nem para ter
desejos, nem para ser frustrado, e tam pouco para sentir raiva de

30.1
A T liO K lA lK ).\M ,M H K K (:r.\Ilí.\T()l)K I) \V W IN N IC U T I

alguma coisa que lhe seja externa, uma voz que ainda iiílo tom o
sentido da externalidíide. Fxatam ente por não ter exam inado as
questões que regem as etapas iniciais do am adurecim ento, a teoria
freudiana desconsidera duas im portantes raízes da agressividade: a
destrutividade que é inerente ao impulso instintuai prim itivo — já
em 1939, W inn icott dizia que o bebê m orde quando está excitado e
não quando está frustrado (1957d, p. 92) — c a reação às invasões
ambientais que interrom pem a continuidade dc ser.
Para Kreud, os mecanismos mentais de projeção c introjeção
estão ativos- desde o início e são eles que m ovem o psiquismo. Para
W innicott, as bases da saúde psíquica não repousam sobre m eca­
nismos mentais, nem as tarefas iniciais e as suas soluções são refe­
ridas à mente ou a processos mentais. Ilá muitas conquistas a serem
feitas antes que estes entrem em ação. Ao contrário, se os processos
mentais forem levados a funcionar prooocem ente, antes que alguma
integração psicossom ática se estabeleça e antes que algum “ saber7’
— dc caráter oxporiencial e não m ental — se constitua, isto terá
caráter defensivo patológico e levará ao estabelecim ento de um
distúrbio de tipo esquizofrênico.
Além disto, os mecanismos mentais são concebidos, pela teoria
tradicional, segundo uni m odelo corp óreo de incorporação c excre­
ção. A concepção winnieottiana da criatividade prim ária exclui a
idéia de um psiquismo humano construído na base dc projeção dc
objetos previam ente introjetados, ou seja, digeridos, reproeessados
e expelidos. l'n i elem ento teórico im portante no fundam ento desta
diferença consiste em que, para Freud e, de form a exacerbada, para
Melauie Klein, o juízo de atribuição (bom e mau) precede o dc exis­
tência. Por isso, a constituição do Lust-Ich, o eu-prazer originário,
pode ser pensada em term os dc projeção do que é mau (desprazo-
roso) e introjeção do que é bom (prazeroso), o que significa também
que já haveria um dentro e um fora antes de haver um indivíduo. Em
W innicott, a existência, o sentido (subjetivo) de real, necessaria­
m ente antecede qualquer ju ízo do atribuição, o qual supõe a per­
cepção da existência do objeto. Além disto, no início, o “ bom " e o
“ mau” estão articulados exatam ente com a existência, ou não, dc
algo real, no sentido subjetivo, líoa é a experiência que é real.
mesmo quando for frustrante; má é a experiência falsa, em que algu
parece acon tecer mas não acontece.

.1 0 1
OS IÚSTAGIUS DA t)!Cl,K.\!)K.\ClA K IMJIilMí-VDKNCIA U IÍL V IIV A S

W inn ieott também não pode aceitar o recurso à filogen ética do


tjaal Froud se vale quando, ao descobrir o engano dc sua primeira
teoria da sedução, deve dar conta da eficácia das íanLasias de
sedução. A partir daí são introduzidas, na teoria, as protofantasias
( Urphantaíiien ) que consistem cm estruturas lantasmátieas típicas
— cena originária, castração, sedução — que organizariam a vida
psíquica sejam quais forem as experiências pessoais dos indivíduos.
Freud as legitim a pelo argum ento de que elas constituem um patri­
m ônio transm itido filogeneticam ente. Para W innieott, só entra em
consideração, co m o pertencente ao indivíduo, aquilo de que ele faz
a experiência; caso contrário, perm anece externo, alheio a ele.
Por últim o, para a psicanálise tradicional, a cultura, a socia b ili­
dade, a m oral e a arte são produtos derivados, via subiiinação, do
co n flito pulsional. Elas têm , com o base, as pulsõos, isto ó, os ins­
tintos transform ados. Para W inn ieott, contudo, os instintos são
instintos, im pulsos biológicos, c nisto não há diferença en tre ho­
mens e anim ais, a não ser p elo fato dc, no ser humano, to d o o fun­
cio n am en to corp oreo scr elaborado im aginativam ente, o que não
a con tece nem no mais interessante dos animais. Alem disto, se o
indivíduo com eça introjetan do objetos para depois projetá-los,
co m o quer a teoria tradicional, então ele é fe ito de mundo e não há
nenhum lugar para a criatividade originária. Toda criatividade —
incluída aí a criação artística cm geral — 6 entendida em term os
de sublirnação da libido, Este c o m otivo pelo qual o fen ôm en o da
transieionalidade não tinha com o ser pensado no in terior da psica­
nálise tradicional. Em W in n ieott, o indivíduo não c criativo porque
sublima; e le ó criativo porque é humano. A criatividade é originária
c diz respeito à capacidade que todo ser humano tem dc criar o mun­
do novam ente.
Este p on to pode ser ilustrado pela diferen ça 11a abordagem , em
Freud e W in n ieott, da produção artística, e da arte, em geral.
Segundo o últim o, as tentativas de analisar a obra de arte, em p re­
endidas pela psicanálise freudiana, perdem dc vista o essencial.
Pode-se relacion ar a obra dos artisLas com fatos de sua infância, ou
vincular tem as de sua obra com suas inclinações sexuais, co m o foi
feito, por exem plo, eom Leonardo da Vinei. Mas esses estudos,
além de irritarem os artistas e as pessoas criativas em geral,
contornam a questão central da criatividade, dando a im pressão de
que é possível explicar e determ in ar as razões pelas quais uma

AOS
A T K D lílA IHJ AM AD UK IÍC IM K NTO l)li I) W. W IX X IC O T T

certa possua c capaz cio realização artística. A questão que move


W in n icott, neste ponto, fiea ainda mais clara se exam inam os a d ife­
rença entre o seu c o n c e ito dc brincadeira e o do M elanie Klein.
Q uando esta observa a brincadeira das crianças, a pergunta que ela
sc faz ó a segu inte: quais são os fantasmas expressos pela brinca­
deira? I'ara ela, o brincar põe de m anifesto as inibições, além de
operar v ã ria s /unçõe.s: realização de desejos, dom ín io da angústia,
descarga m asturbatória etc. Klein não se interessa pela brinca­
deira nela mesma, mas tão-som ente pelo uso sim b ólico que a
criança faz do brincar; ou seja, os fins a que a brincadeira se presta
são mais im portan tes do que o próprio brincar. Para W inn icott,
esta perspectiva não apenas desconsidera o essencial do brincar,
co m o põe a perder algo do seu significado clínico: o brincar é tera ­
pêutico, não por exprim ir co n flitos inconscientes, mas em si m es­
mo, por ser uma form a natural da vida e da criatividadc.
Muitos dos pontos acima m encionados dizem respeito tanto a
Freud quanto a M elanie Klein. Com respeito a Klein, mais especifica­
m ente, as diferenças são, de um lado, mais complexas e, de outro,
mais simples. Mais com plexas porque, buscando ambos respostas
para o m esm o período prim itivo, a linha diferencial 6 mais delicada.
Mais simples porque os fundamentos da teoria Idcinkma são tão
claram ente antagônicos aos de W inn icott que, do certo m odo, c fácil
traçar-lhes as fronteiras. Lim ito-m e aqui a destacar as seguintes
diferenças:5'1

1) Para ex p licar certo s fen ô m e n o s p rim itivos (e o m o u m a p ara­


nóia p re c o c e ), M. Klein ap ela para o fator co n stitu cio n al e. deste
m odo p õe fim a q u a lq u e r d iscu ssão aeerea d o papel do am bien te.
O u seja, cia d e sco n sid era o fato d a d ep e n d ên cia e a n atu reza dos
cu id ado s q u e o b e b ê está receben d o . O ra , se ace ita m o s a situação
inicial dc d ep e n d ê n c ia abso lu ta, um fen ô m e n o d o tipo d a p a ra ­
nóia p reco ce n ão p reeisa ser atribu íd o à h ered ita rid ad e; não é
p reciso su p o r a existência de um a en tid ad e do mal o p e ra n d o do
form a isolada; p o d em o s ver, nele, um a re ação do b eb ê a um
p a d rã o d e in tru sões am bien tais, o u a alg u m tipo de falh a que leva
à privação.

59 Um detalham ento das diferenças entre W innicott e Klein encontra-se nos


seguintes textos de Winnicott: 1965va, 1989x1', 19S9xji, l9 S 9 x lie e m í '/S.S,
Parle 2, Capítulo 1.

3 (J f .
OS RHT.VÍIUS |).\ D líre.N U K X C lA li IX D B W ÍX D f^ C IA KELATIYA.S

2 ) Para Klein, o que se passa co m o bebê é iutrapsíquico; ela não


leva em conta a ex p eriên cia interpessoal real — que se dá n o plano
s u b je tiv o — , a n ão ser em term os d e fantasia,

3 ) A teoria kleiniana d á p o r eerto que o bebê é capaz d e e sta b e­


lecer. lo g o no início da vida, rclayõcs com o bjeto s cxienuis. Com o,
para W innicott, essa cap acidade c uma conquista do am ad u reci­
m ento, e exatam ente aquela cujo fracasso resulta em psicose, isto
significa, tia perspectiva tio autor, que os pressupostos kleinianos
elim inam , de princípio, q u alq u er possibilidade de uma co n sid e­
ração efetiva, p o r parte da teoria kleiniana, so bre os estágios
iniciais do am ad urecim en to e, em conseqüência, sobre as p si­
coses, cm especial as d e c aráte r esquizofrênico.

4 ) S e gu n d o Klein, essas relações prim árias de o bjeto são ainda


eom o bjeto s parciais, mas, para ela, o sujeito da relação está lá; há
um a unidade inicial du m em e que pode ser ativam ente cindida pela
ação destrutiva da pulsão dc m orte. Isto altera toda a perspectiva
da pesquisa so bre o s estágios iniciais que poderia ser considerada
aceitável por W innicott,6*1

5 ) Ao descrever os fenôm enos dos estágios primitivos co m o pré-


cdípicos. Klein p retende elu cidar as psicoses fazendo re cu ar os
m esm os elem entos presentes na teoria das neuroses: ela postula o
édipo preco ce e introduz n a relação dual bebê/seio o pênis do pai.
reeonfigurantlo o triângulo. Para W innicott, o q u e o eo rre nos está­
gios prim itivos não & prc-edípieo, mas não-edípico; as tarefas de

íiO Tentando, por vários meios, dialogar eom os kleinianos. Winnicott escreve
numa carta, dc 1956. a .loan Kivière: "M eu problema, quando co m eço a falar
eom Mclanic a respeito tle sua formulação sobre a primeira infância, c que
me sinto eomo se estivesse falando de eores com um daltônico. li Ia simples­
mente diz que não se esqueceu da mãe e da parte que eompece à mãe,
embora, na verdade, eu ache que ela não dá indíeio algum de ter com preen­
dido a parte que a mãe desempenha bem no início” (19.S7b, p. f»-l). Nesta
mesma carta, comentando sobre o ensaiu “ Um estudo da inveja e da
gratidão”, apresentado por Klein à Sociedade Britânica dc Psicanálise
(cf. Klein, I9.S4). ele discrimina três diferentes temas contidos no ensaio, e
diz que, no que sc refere " ] ...| à tentativa [ tle Klein] dc formular a psico­
logia da infância mais inicial ela prestou um grande desserviço a si
mesma ao fazer uma formulação que é liem fácil de ser completamente
destruída (a inveja inata) e que pode facilmente deter o estudo do desenvol­
vimento da estabilidade do e£o e as pesquisas que estão correndo cm várias
partes do mundo sobre o tratamento da psicose” (ibUi.. p. 6>,T).

.107
,\ T K O K IA 1)0 A.MAl>fKi;CLM!-;XTO l)K 1). W. W IN .Y IU IT T

constituição de si-mesmo c do aoesso à realidade não estão relacio­


nadas a questões puIsionais. mas ít necessidade do bebê de conti­
nuara existir, e se dão num plano exclusivamente dual. Além disto,
para Winnicott, não se pode falar de lidipo a não ser com relação a
pessoas inteiras c tle modo algum com relação a objetos parciais.

6) O tipo de perturbação que Melanie Klein estuda, relativo ã


posição depressiva, diz respeito ao manejo do desmame que.
segundo Winnicott, acontece aproximadamente entre os nove c os
dezoito meses. Mas, para este, antes do dexmame, há a tftwstão
mais ampla da desilusão, li a mãe que desempenha o papel dc desi­
ludir o bebê. Mas isto só pode ser realizado com base mima etapa
anterior em que a mãe, cm função dc sua adaptação especial, prove
o bebe da ilusão da onipotência, li apenas sobre a ilusão que a desi­
lusão pode acontecer.

“ O desm am e” , diz W innicott, “ im plica [te r luividoj uma ama­


m entação hem-sueedida, c a desilusão, uma provisão bem-sucedida
de oportunidade para a ilusão” (1953a, p. 307). As falhas relativas
ao desmame não podem dar conta dos fenôm enos esquizofrênicos
que estão relacionados a estágios mais prim itivos e cujas tarefas são
de natureza prim ordialm ente diferen te daquelas que pertencem a
esse m om ento tio am adurecim ento. Se se quer ch egar às psicoses de
tipo esquizofrênico, é im prescindível referir-se aos estágios cm que a
dependência é absoluta:

Para fazer progresso na direção dc uma teoria operacional das


psicoses, os analistas devem abandonar totalmente :i idéia tle ver a
esquizofrenia e a paranóia em termos dc regressão no complexo tle
lidipo. A etiologia desses transtornos leva-nos, me-vituvclHwntti,
aos estágios que precedem os relacionamentos de três corpos.
O corolário estranho c que existe, na raiz da psicose, um fator
externo, li difícil, para os analistas, admitir isto. após todo o
trabalho que tiveram chamando a atenção para os fatores internos,
ao examinarem a etiologia da psiconeurose (]9!S9xa, p. 191).

7) Segundo Winnicott, a morte não tem sentido até o alcance tia


capacidade para odiar, o que implica percelxM' o outro eomo pessoa
humana completa; além dc outros, esse é um dos motivos pelos
quais a chamada pulsão dc morte, ou de destruição, c inaceitável
na descrição da base da destrutividade.

iS) Para Klein, o psiquismo 6 construído segundo os modelos corpó-


reos de incorporação e expulsão: introjeção c projeção. Isi o supõe

30N
OS KST.ÚilOS DA IH íriíXD KM ilA K INUKrKNHKX» :i,\ UK1„VI IV.\S

um dentro c um fora já constituídos, o que, para Winnieott. não c


possível ao hübô em estado de não-imegrayào.

Sum ariamente, são estas as razões tle W innieott afirm ar que a


teoria do desenvolvim ento libidinal não dá conta de com preender c
em preender o tratam ento do tipo de distúrbio que atin ge os psicó­
ticos. Em decorrência, ela tam bém não pode com preender os pro­
blemas básicos da natureza humana revelados pela psicose.

309

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