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ETIENNE DECROUX E A
MÍMICA CORPORAL
DRAMÁTICA
Corinne Soum
(Tradução George Mascarenhas)
Corinne Soum formou-se em mímica
corporal dramática com o mestre Etienne
Decroux de quem foi sua última assistente,
ao lado de Steven Wasson. Atualmente,
Wasson e Soum dirigem a Ange Fou
International Mime School de Londres e a
companhia Théâtre de l’Ange Fou.
BIOGRAFIA
POLÍTICA
Ele não fez e nunca fará parte das grandes formações políticas, nem do
partido comunista, nem do partido socialista, etc. Ele é muito independente.
Ele prefere os grupos minoritários que se dedicam a uma reflexão política
idealista e, ao mesmo tempo, a sessões de leituras poéticas, de escrita
automática1.
1
NT: A escrita automática é uma técnica proposta por André Breton, durante o movimento surrealista, e
consiste na escrita rápida, sem preocupações estéticas, morais ou gramaticais, com o propósito de liberar
o pensamento e as imagens do inconsciente.
7 De acordo com Guy Benhaim, que fez uma tese sobre Etienne Decroux,
o Centro Nacional de Pesquisa sobre o Anarquismo de Marselha, na França,
possui informações muito ricas sobre o anarquista Etienne Decroux. Este
engajamento é muito sério. Aliás, entre 1924-25, Etienne Decroux não hesita
em esconder em sua casa o anarquista revolucionário russo Nestor Makno, que
é perseguido por toda a polícia e que tinha tentado implantar comunas
libertárias na Ucrânia.
A IDADE ADULTA
E, então, graças ou apesar desta mentira, ele foi aceito na escola do Vieux
Colombier, que é a escola de vanguarda da época. Quando eu tinha
oportunidade, eu perguntava a ele o que de fato o tinha levado a se decidir
entrar para esta escola e as respostas eram muito variadas. Às vezes, ele ria,
outras vezes, ele dizia “mas, para que você quer saber isso?”. Uma vez, ele
disse: “eu aspirava a uma atividade distinta; era tarde demais para ser advogado,
médico; então, ator me parecia ser uma boa solução”. Outras vezes, ele
afirmava ter sido motivado pela única idéia de aprender o ofício de ator para
melhorar suas capacidades de orador político. Ele tinha até mesmo a idéia e o
projeto de criar uma “escola propagandista”, ou seja, de homens políticos
formados não apenas nas idéias anarquistas mas também na técnica oratória, a
fim de serem mais eficazes.
Jean d’Orcy, homem de teatro e dança francês, que fazia parte da École
du Vieux Colombier, na época em que Decroux era estudante conta:
Mas, enfim, apesar disso, Decroux começa cada vez mais a tornar-se um
homem de teatro e suas atividades de militante ficam um pouco em segundo
9 plano.
É preciso que agora eu fale algumas palavras sobre Jacques Copeau e seu
empreendimento, mesmo que este não seja o tema desta conferência.
Os quatro pais
Decroux, como ator, tem seu público que segue com entusiasmo as
suas invenções. Ele é intérprete de múltiplos papéis, de múltiplos autores –
Aristófanes, Strindberg, Shakespeare, Molière, Tolstoi, Pirandello, Marcel
Achard, Jules Romain.
Em 1942, Passage des hommes sur la terre (Passagem dos homens sobre a
terra). 1945, Le Combat Antique (com Barrault na Comédie Française, dentro da
montagem de Antônio e Cleópatra, de Shakespeare), Le lutteur (O lutador), Le
bureaucrate (O burocrata), L’esprit malin (O espírito travesso). 1946, Le ballet des
machines en songe (O balé das máquinas em devaneio), Les arbres (As árvores)...
1950, Les petits soldats (Os soldadinhos), sua peça mais longa com uma grande
manipulação de objetos, intervenções vocais e canto. Além disso, ele tem cada
16 vez mais alunos. Os anos passam e Etienne Decroux cria sem parar,
incansavelmente.
É um período muito feliz em sua vida. Ele tem alunos, ele pode recriar
uma companhia, ele cria novas peças, Les gangstères (Os gângsteres), Rêve d’amour
(Sonho de amor), La glace prend feu (O gelo pega fogo), Scene du Parc (Cena do
parque), Table d’hôtes (Mesa de convidados), Conference (Conferência), retoma Les
Arbres, L’usine, Passage des hommes sur la terre, Le combat antique. Este período
americano marca uma etapa importante em sua carreira. A técnica se torna
precisa, se intensifica no contato com este mundo novo que são os Estados
Unidos, onde tudo é maior e mais rápido.
17 Nesta época, ele é definitivamente um mestre da mímica corporal, expert
na arte do corpo dramático. Deste corpo, ele dirá: “É o corpo que paga, é o
corpo que sofre. Quando vejo um corpo se levantar, é como se eu sentisse a
humanidade se levantar”.
Não é mais um militante anarquista ativo, mas suas idéias são sempre as
mesmas e eu diria que ele, ainda mais, procura sempre se perdoar por não ser
mais do que um ator. No íntimo, ele tem um pouco de vergonha de ainda não
estar morto como herói trotskista. Então, ele tem uma espécie de bússola moral
que o empurra também a pesquisar alguma coisa que contenha um desafio.
Ator, sim, mas não simplesmente para contar [histórias], mas para fazer, fazer
com seu corpo, se colocar em perigo. Em 1978, durante uma conferência, ele
dirá: “O ator é um mentiroso que acredita em suas mentiras”.
Enfim, o que é esta mímica corporal dramática, que vai ocupar toda a
vida de Etienne Decroux? É uma maneira de pensar o teatro, uma maneira de
fazer. Alguns vêem nela apenas um treinamento de ator, uma base. Outros, um
propósito, uma arte. Copeau via uma seção do teatro. Rapidamente, Decroux
vê o inverso. Eu o cito: “A mímica tem mais a fazer do que completar uma
outra arte. Ela pode se tornar suficiente por si só, superior ao teatro, igual à
dança. A mímica é a essência do teatro o qual é um acidente da mímica”.
Ou ainda:
O teatro é o ator
O ator é a arte do corpo
Então, o teatro é a arte do corpo
Mas, enfim, qual arte do corpo, porque no fundo há a dança que é muito
rica e que oferece, com todos os seus diferentes gêneros, uma expressão cênica
corporal imensa.
2
Durante uma discussão com Artaud (N.A.)
19 Sinto muito, mas não. Decroux que, como vimos, não é de modo algum
dançarino, nem ginasta, nem acrobata de formação, terá uma outra visão,
diferente daquela do corpo dançante: ele sonha com um corpo que, em
princípio, não conte uma façanha, mas a vida dos homens e mulheres e que vá
buscar seu motor, suas raízes no conflito intrínseco que representa a vida dos
homens e mulheres. Trata-se portanto de um corpo em ação, mas de uma
natureza diferente. Quando eu digo que, uma vez que o postulado inicial de
pintar o mundo é colocado, e que ele busca o nó conflitual de início, porque ele
está à procura de uma expressão dramática, eu não estou falando de procurar
um tema anedótico, uma história, mas uma verdadeira alavanca, ao mesmo
tempo filosófica e física como suporte de uma técnica.
“Tudo pesa”, dira ele. “O inimigo é o peso”. Eis, portanto, este drama
original que vai permitir-lhe edificar sua arte, e não é escondendo esta luta
contra a gravidade, este acorrentamento à terra, mas expressando-a e
expressando as mil e uma maneiras de lutar contra ou de ir a favor dela. Muitas
de suas primeiras obras, aliás, abordam temas que tratam de relações com a
matéria ou diferentes luas da vida (A Vida Primitiva, A Fábrica, O Carpinterio, A
Lavadeira, O Combate, O Halterofilista, etc.). Ele não abandonará jamais esta idéia
de força, pois ela é o fundamento desta arte prometeana. É o que ele chama de
20 L’homme de sport (Homem de Esporte): o ator mostra seu esforço, representa o
esforço de modo muscular, mecânico, em suas relações com o espaço, com os
outros, os objetos, a matéria imaginária, os sentimentos, consigo mesmo. Ele
expõe sua luta objetiva ou subjetiva, suas impossibilidades. Decroux terá uma
frase célebre a propósito disso: “é no desconforto que o mímico fica
confortável”.
Como ele trabalha tudo isso? As pessoas que não o conheceram bem ou
que não foram seus alunos próximos, o descrevem frequentemente como um
“gramático” ou um teórico. Isso é falso. Ele era antes de tudo um homem de
ação e, neste sentido, um autêntico homem de teatro. E ele só fazia reflexões
por escrito e teorizava depois de ter experimentado – e até hoje – as centenas
de exercícios escolares que constituem uma espécie de “barra” (como a barra da
dança), para os atores, foram estruturados, pouco a pouco à luz das peças
criadas.
De fato, Etienne Decroux não propõe uma maneira, um estilo único, mas
diversos, um corpo múltiplo. E, claro, essas 4 categorias de jogo são bem
21 definidas, mas podem se casar no interior de uma mesma criação. Podemos até
adiantar que existiria uma quinta categoria, que é o domínio, a assimilação e a
síntese das quatro primeiras. É por isso que, para mim, o ator da mímica
cororal se torna um verdadeiro artista criador.
REPERTÓRIO
23 Agora, eu gostaria de falar um pouco mais especificamente sobre o
repertório de Etienne Decroux, de suas peças. Podemos, certamente, afirmar
que este repertório está diretamente ligado à evolução da técnica, mas como
hoje a mímica corporal é uma técnica utilizada por diferentes criadores que se
utilizam dela em seus próprios estilos, eu penso que é importante continuar
estudando, interpretando e assistindo ao repertório de Etienne Decroux.
Ele parte, então, primeiro da realidade, do que ele vê, uma realidade que
pode ser, portanto, objetiva - um gesto esportivo, uma profissão, uma atividade,
um gesto amoroso, um comportamento social -, ou mesmo uma realidade
imaginada, de quem a priori não se vê o vôo do pensamento. Portanto, essas
realidades objetivas ou imaginadas constituem o que ele nomeia de l’original
supposé [o suposto original ou suposto concreto]. Ele nunca tenta traduzir
palavras em gesto. Eu posso dizer até que seu repertório mostra o que as
palavras não podem dizer e isso graças à predominância da “maneira”, do
“como” sobre a história (a intriga). Uma ação, por exemplo, por mais concreta
que seja, não será jamais inserida unicamente em sua realidade fotográfica, mas
apresentada através dos diferentes ângulos subjetivos, do pensamento e da
memória, do que ele denomina de ponto de vista.
Ele também permanece afastado das modas. Ele não gosta da anedota,
não gosta de histórias excessivamente ligadas, próximas demais da realidade do
dia.
Seu teatro é estilizado, quase sagrado. Isso, aliás, permite que ele aborde
domínios que na cena seriam dificilmente suportáveis se a maneira fosse
realista: a guerra, o sofrimento, a morte ou a sexualidade. Ele diz, aliás, a
propósito disso, uma coisa muito bonita: “é preciso estar longe e perto ao
mesmo tempo, o gesto deve ser desconhecido e, no entanto, reconhecido”.
Não apenas seu teatro é estilizado, mas ele se utiliza também para tratar
de temas que o inspiram, do que ele chama de “metáfora pelo avesso”: o
espetáculo com tal ou qual ação vai sugerir a idéia, ao invés do procedimento
26 teatral tradicional que se constitui em colocar na cena, dar forma e criar
imagens de idéias já escritas em sua totalidade. A fim de explicar ao mesmo
tempo o procedimento do trabalho artístico ele teve numerosas fórmulas
verbais: “Uma direita moral é uma direita material antes de ser moral” ou
“quando falamos de Diderot que ele tinha um espírito vasto, as coisas são
vastas na matéria, antes de serem vastas no espírito de Diderot”. “A mímica
corporal”, diz ainda Etienne Decroux, “faz a coisa e o espectador, ao ver a
coisa material pensa em sua analogia com o espiritual”.
Por exemplo, em Passagem dos Homens sobre a Terra, vemos um grupo que
27 caminha – que é o futuro. Um homem pára: o presente. Uma mulher que grita:
o passado. É o tempo do pensamento e não uma cronologia cotidiana.
A maior parte das peças é representada apenas por meio do corpo, mas
28 ele utiliza também objetos simples - uma cadeira, uma mesa, tecidos, bastões - e
rapidamente esses objetos tomam uma dimensão simbólica ou metafórica.
Etienne Decroux criou quatro peças com Steve e comigo: O profeta, Duo
Amoroso no Parque St. Cloud, La Femme Oiseau (A mulher passarinho), A poltrona do
ausente. Tudo partia de sessões de improvisação e seguiam o renomado
princípio da metáfora pelo avesso que eu descrevi antes. As sessões tinham ares
de encontros secretos: dois assistentes, às vezes um ou dois convidados de
Decroux, eternamente inspirado, vestindo majestuosa e invariavelmente um
velho roupão, um pouco como os boxeadores antes de uma luta.
No início, não havia temas, nem indicações. Decroux falava de uma coisa
ou de outra e, depois, em um certo momento, ele dizia: façam qualquer coisa.
Tudo surgia de uma imobilidade presente, que se preenchia pouco a pouco de
lembranças e impressões vividas ou imaginárias. Então, surgia um movimento,
uma ação, um gesto.... que vem desta memória profunda que cada um possui,
mas que precisa ser solicitada.