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Anais Eletrônicos do IX Encontro Nacional dos Pesquisadores do Ensino de História


18, 19 e 20 de abril de 2011– Florianópolis/SC

A AMÉRICA INDÍGENA ANTES DE 1492: SABERES HISTÓRICOS E


REPRESENTAÇÕES NOS MANUAIS DIDÁTICOS ESCOLARES

Susane Rodrigues de Oliveira1


Universidade de Brasília
susanero@gmail.com

Introdução

No ato de interpretar e conferir sentidos para o passado os manuais didáticos escolares


estabelecem e veiculam representações sociais, uma “modalidade de conhecimento que
permite que os atores sociais atribuam um sentido aos seres e às coisas” (Schiele & Boucher,
2001, p. 363). De acordo com Denise Jodelet, as representações sociais constituem

Forma[s] de conhecimento[s], socialmente elaborada[s] e partilhada[s], com


um objetivo prático, e que contribui[em] para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social (...) [Ou seja, como] sistemas de interpretação
que regem nossa relação com o mundo e com os outros – orientam e
organizam as condutas e as comunicações sociais (2001, p. 22).

Nesta perspectiva, destacamos aqui o caráter educativo das representações, na medida


em que são capazes de orientar e reger nosso sistema de interpretação do mundo, nossas
identidades, nossas memórias e práticas sociais. Nos manuais didáticos as representações
também funcionam dessa forma, podendo intervir na constituição das identidades, na visão de
mundo e nas práticas sociais dos alunos. Não por acaso existe uma disputa no campo das
representações que devem orientar o saber histórico a ser veiculado nestes manuais. Esta
disputa é perpassada por relações poder e dominação, por uma vontade de estabelecer
verdades e impor valores e conceitos ligados a determinados grupos sociais.
O conceito de representações sociais, além de contribuir na analise das relações entre
saber e poder nas instituições escolares e seus manuais didáticos, serve também como
“instrumento importante para a problematização, organização e seleção dos conteúdos e
sistematização de conceitos, além de desempenhar um papel avaliador no processo de
aprendizagem dos alunos” (Bittencourt, 2008, p. 239). Considerando o caráter educativo das
representações percebemos, portanto, que é necessário um trabalho cuidadoso de crítica,
1
Doutora em História pela Universidade de Brasília. Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, na
área de Teoria e Metodologia do Ensino de História.

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revisão e renovação tanto dos manuais didáticos de história como da historiografia utilizada
pelos professores em sala de aula.
Nesta comunicação apresentamos uma análise das representações dos povos indígenas
“pré-colombianos”2 nos manuais didáticos de história para o ensino fundamental, utilizados
nos últimos anos (2002-2007). Trata-se de uma análise dirigida aos conceitos, valores,
significações e condições de produção destas representações, observando especialmente as
suas relações com a historiografia e com as demandas de educação escolar para a cidadania e
reconhecimento/respeito à diversidade cultural. Foram analisados dois manuais didáticos
publicados após a LDB (1996) e os PCNs (1998), amplamente utilizados nas escolas
particulares de Brasília: Projeto Araribá: História 7 (2007), obra coletiva, desenvolvida e
produzida pela editora Moderna; e Viver a História (2002), do autor Cláudio Vicentino,
lançado pela editora Scipione, para a 5ª série do Ensino Fundamental.

Manuais didáticos, currículos escolares e historiografia

A pesquisadora Norma Telles (1987) analisou as imagens dos índios nos livro
didáticos de história utilizados nas escolas brasileiras nos 1980. Ela observou que estes
manuais, em geral, eram obras cheias de preconceitos e estereótipos, que possuíam uma
vontade excessiva de adaptar o real a desígnios convencionais, até conservadores, prendendo-
se a um modelo ideal de como as coisas deveriam ser. Os feitos das culturas européias eram
privilegiados e até mesmo idealizados nestes manuais, que tenderam a excluir ou silenciar os
feitos e vivência de outros povos. Além disso, a América do Sul, antes da chegada dos
europeus, aparecia como um espaço vazio cortado pelo meridiano de Tordesilhas, onde a
multiplicidade de culturas era silenciada. Este espaço vazio aparecia como “uma tapeçaria de
acomodações sucessivas, não como um campo de batalha de diferenças absolutamente
irreconciliáveis” (Telles, 1987, p. 81). Deste modo, o espaço americano só adquiria “realidade
e sentido, em relação à Europa e à possibilidade de ser europeizado, através da colonização”
(Idem).
O conceito de “descoberta” da América, bastante recorrente nos manuais didáticos
analisados por Telles, também apresentava seus problemas, ao ignorar a história americana

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Utilizamos a expressão “pré-colombianas/os” para se referir aos povos que habitavam a América antes da chegada dos
europeus em 1492. A chegada de Colombo é apenas um marco histórico escolhido para distinguir o que aconteceu antes e
depois de sua chegada, sabemos que do ponto de vista dos ameríndios o marco escolhido poderia ser outro.

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antes de 1492 e negar a existência e autonomia de grande parte da humanidade (1987, p. 83).
Os habitantes da América apareciam como seres inferiores tecnicamente e belicamente, dando
a impressão de serem “ultrapassados, anacrônicos e decadentes, porque incapazes de fazer
história ou de resistir ao agressor” (Idem). Como veículos de um pensamento eurocêntrico
estes manuais apresentaram, portanto uma representação dos índios como seres inferiores
perante os brancos colonizadores, em imagens desconexas e carregadas de detalhes exóticos
incompreensíveis e de projeções de valores estranhos que tenderam a legitimar a colonização
e silenciar os “vencidos” e suas lutas de resistência. Esse modo de proceder, segundo a autora,
descaracterizava e desacreditava as sociedades indígenas, apresentando-as com algo
profundamente indesejável.
A maior parte dos manuais didáticos de História dos anos 1980 pareciam informados
por um conjunto de saberes eurocêntricos e evolucionistas que construíam uma verdade sobre
a América “pré-colombiana”, ao enunciar e fazer circular representações preconceituosas,
negativas, estereotipadas e essencializadas a respeito do passado e das práticas, saberes,
tradições e identidades indígenas. Estes manuais exerciam um poder na reiterar de
representações que funcionaram como matrizes e efeitos de práticas e concepções que criam
diferenças, desigualdades, hierarquias e exclusões étnicas, culturais e sociais. De alguma
forma, a perpetuação destas representações pode constituir obstáculos na formação para
cidadania, ao contribuir na depreciação das identidades e memórias dos povos indígenas
americanos.
Já Fernandes e Morais (2004), em análise do tema da conquista da América nos
manuais didáticos de História, produzidos para o ensino médio nos anos 1990, observaram
que os referenciais historiográficos e pedagógicos inovadores eram raros nestes manuais, haja
vista que a maior parte da historiografia e das fontes históricas não está disponível em língua
portuguesa, e que a maior parte dos manuais que tratam da América hispânica não foram
escritos por especialistas na área. “Como resultados foram feitos sob a égide de manuais de
divulgação ou best-sellers panfletários” (Fernandes & Morais, 2004, p. 145). Estes autores
identificaram nestes manuais três visões sobre a conquista da América: a primeira de tradição
historiográfica eurocêntrica, evolucionista e cientificista que se apoiou nas narrativas dos
cronistas europeus e nos relatos de Hernán Cortés e Francisco Pizarro; a segunda de tradição
lascaciana, baseada nos escritos do padre dominicano Bartolomé de Las Casas; e a terceira
que faz uma tentativa de “resgatar o lado do vencido, do conquistado, valorizá-lo, mas, nas
entrelinhas, sonha-se em ser o conquistador, o desenvolvido, o branco” (Idem, p. 154).

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No campo da historiografia devemos destacar que o processo de questionamento dos


paradigmas científicos tradicionais, aliado às demandas indígenas pelo direito à memória,
também se refletiu sobre os estudos a respeito das culturas “pré-colombianas”, a partir da
segunda metade do século XX, no momento em que alguns historiadores e antropólogos
passaram a questionar as condições de produção das crônicas e a refocalizar o passado destas
culturas sob novas perspectivas. Os questionamentos produzidos especialmente num diálogo
da história com a antropologia, no âmbito da história cultural, trouxeram uma nova área de
estudos denominada etnohistória (ou história antropológica) que veio valorizar as
particularidades culturais das sociedades e as relações entre os grupos étnicos (Neto, 1997, p.
325). Combinando métodos próprios das disciplinas históricas e antropológicas, incluindo a
arqueologia, o etnohistoriador veio reconstruir também o passado de diferentes etnias que
habitavam a América antes da chegada dos europeus. Aquelas sociedades que haviam sido
estudadas e interpretadas a partir de um ponto vista eurocêntrico e colonialista começaram a
ser vistas a partir de novas categorias antropológicas que permitiram leituras diferentes de
algumas crônicas coloniais. A partir disso a etnohistória americana tem se dedicado às
análises do mundo cosmológico, mítico, religioso, ritual pré-hispânico e de suas
transformações a partir da ação missionária colonial.
Além das inovações no campo historiográfico, observamos que as mudanças
curriculares advindas da LDB, dos PCNs e da lei 11.645/08 que instituiu a obrigatoriedade do
ensino de história indígena nas escolas brasileiras, vem ampliando as discussões sobre a
educação para a cidadania e para as relações étnico-raciais, abrindo, de alguma forma,
espaços para a inclusão da história da América “pré-colombiana” nos currículos escolares,
tendo em vista o reconhecimento/valorização do passado e da diversidade étnico-cultural
indígena do continente americano.
A necessidade de integração do Brasil com os países latino-americanos coloca também
em discussão as imagens depreciativas das experiências históricas dos povos latino-
americanos veiculadas na mídia e na cultura escolar brasileira. Desde o século XIX, os
debates sobre a inclusão da História da América nos currículos escolares, apontam para nossa
dependência cultural com o mundo europeu (DIAS, 199, p. 35). Como bem observou Maria
de Fátima Sabino Dias, “identidade, nacionalismo e civilização foram as concepções que
nortearam os conflitos em torno da seleção da temática americana na cultura escolar, ora
incluindo, ora excluindo um pensar sobre os povos americanos” (Idem, p. 36). No século
XIX, e ainda no início do século XX, o ensino de história priorizava os feitos das sociedades

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européias, tidas como civilizadas e modelos a serem seguidos. Os programas curriculares


“expressavam as concepções de „civilização‟ que marcaram a cultura ocidental nos séculos
XIX e XX” (Idem). A ação e experiência histórica dos povos americanos eram silenciadas ou
depreciadas por não se encaixarem nos padrões de civilização que se desejava inculcar nas
mentes brasileiras. Deste modo, as representações depreciativas do passado latino-americano
marcaram as identidades e as nossas relações com os países vizinhos. Neste sentido, impõem-
se a necessidade de reavaliação dos conteúdos de história da América nos manuais didáticos
dos últimos anos, a fim de detectar permanências e rupturas nas representações da América
“pré-colombiana”.

O conceito de “civilização” e os problemas em torno das diferenças e semelhanças

O manual didático Viver a História, de autoria de Cláudio Vicentino é destinado à 5ª


série do ensino fundamental. Este manual apresenta uma introdução ao estudo da história e
trata de temas como a “origem do homem”, a “pré-história”, as “primeiras civilizações” e a
“Antiguidade clássica” da Grécia e Roma. Este manual organiza os seus conteúdos num
modelo de História Integrada, por oferecer concomitantemente a História do Brasil, da
América e a História Geral, considerando a simultaneidade dos acontecimentos no tempo e no
espaço (BRASIL, 2008, p. 12). O manual Projeto Araribá, destinado a alunos da 5ª série (6º
ano) do ensino fundamental, também apresenta esse tipo de História Integrada, ao tratar da
formação da Europa Feudal até a expansão colonial, incluindo os povos americanos e as
crises e rebeliões nas colônias.
Os dois manuais estão organizados por unidades, divididas em capítulos. O Projeto
Araribá dedica três capítulos à abordagem dos povos “pré-colombianos”, na Unidade 5,
intitulada “O encontro entre dois mundos”, onde trata da expansão marítima européia.
Seguindo a forma tradicional e integrada, a América pré-colombiana entra para a história a
partir de suas relações com as sociedades européias. Os capítulos aparecem com os seguintes
títulos: “América: terra de grandes civilizações”, “A Civilização Asteca” e “A Civilização
Inca”. Os autores da obra concentraram suas análises apenas em três povos: os incas, os
astecas e as maias, mencionando apenas os nomes de algumas culturas anteriores a estas.
Já Vicentino dedicou três capítulos à história da América “pré-colombiana”: na
primeira unidade, intitulada “Quando a História começa”, temos o capítulo 2 “O homem

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chega à América” e o capítulo 3 “Os indígenas no Brasil”; já na segunda unidade, intitulada


“As primeiras civilizações”, identificamos o capítulo 7 “As civilizações da América pré-
colombiana”. Esta forma de organização dos conteúdos coloca em evidência a antiguidade do
continente americano e especialmente dos índios brasileiros. As antigas sociedades
mesoamericanas e andinas aparecem na mesma unidade que a dos egípcios, mesopotâmicos,
hebreus, fenícios e persas. Deste modo, busca integrar a história dos povos “pré-colombianos”
à daqueles já reconhecidos pela história tradicional como “povos civilizados”.
Nos dois manuais as sociedades mesoamericanas e andinas, especialmente a dos incas,
astecas e maias, são representadas como “civilizadas”. Vicentino as destaca como “poderosas
civilizações americanas”, enquanto o Projeto Araribá denomina a América como “terra de
grandes civilizações”, pelo desenvolvimento das técnicas agrícolas e metalúrgicas, pela
organização política em Estados e a construção de cidades. Os povos de outras regiões, como
os da América do Norte, Caribe e do Brasil, que não construíram cidades, mas que
desenvolveram técnicas agrícolas e grandes aldeias, são apenas citados brevemente por
Vicentino. Em sua obra, a “rica história da América pré-colombiana” aparece como
exclusividade das regiões consideradas “civilizadas”: mesoamericanas e andinas. Nos dois
manuais podemos notar claramente o predomínio da idéia de “civilização”, herdeira das
concepções positivistas da história, que opera uma associação da riqueza e sofisticação ao
poder de um Estado centralizado, ao desenvolvimento de impérios, à cobrança de tributos, à
existência de uma hierarquia social, ao desenvolvimento comercial e de técnicas de
metalurgia, agricultura e irrigação do solo, aos conhecimentos intelectuais astronômicos e
matemáticos, à escrita e à construção de grandes cidades e obras arquitetônicas. Nesta
perspectiva, os manuais se esforçam em identificar características comuns nestas sociedades
que assinalam o desenvolvimento da “civilização”.
Não por acaso, nestes manuais os povos “pré-colombianos” considerados “civilizados”
ganham nome próprio ao serem descritos como incas, astecas, olmecas e maias, escapando
deste modo da representação generalizada de “índios”, já que parecem como diferentes na
ordem de um discurso evolucionista.
Na obra de Vicentino, a noção de “Estado” também aparece atrelada à de
“civilização”, ao caracterizar as instituições astecas e incas. Nesta perspectiva, notamos a
presença de alguns conceitos marxistas que corroboram com uma visão etapista, universal e
natural do desenvolvimento histórica das sociedades. As origens da propriedade privada e do
Estado parecem corresponder às concepções de Friedrich Engels, já que destacadas como

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aspectos determinantes das etapas de “evolução” social. Este tipo de história, marcadamente
mecanicista e organicista, busca identificar os “princípios” pelos quais os diferentes períodos
da história podem integrar um processo macrocósmico singular de desenvolvimento. É nesta
perspectiva que podemos compreender as explicações de Vicentino, quando afirma que

Com o crescimento da população no final da Pré-história, tornou-se


necessária a construção de obras públicas, como muralhas de proteção,
pontes ou sistemas de irrigação para aumentar a produção agrícola. Essas
obras exigiam organização e muito trabalho, demorando, às vezes o tempo
de várias gerações para serem construídas, e naturalmente se formou em
cada cidade um grupo de pessoas encarregadas dos serviços de interesse
comum. Liderado por um governante (geralmente um rei), esse grupo deu
origem ao Estado. O Estado era responsável, entre outras coisas, pela
organização do espaço das cidades. (...) também controlava as atividades
realizadas no campo, recolhendo tributos. (...) nas cidades, as atividades
intelectuais se desenvolveram bastante. (...) Assim surgiram os primeiros
filósofos, astrônomos, matemáticos, etc. Essas novas atividades, ligadas ao
surgimento do Estado, deram origem a culturas variadas, de enorme riqueza
e complexidade. A esse tipo de cultura chamamos civilização. Aliás, a
palavra civilização vem do latim civis, que quer dizer cidade (2002, p. 76.
Grifos do original)

Não surpreende, portanto, que Vicentino e os autores do Projeto Araribá destacassem


as atividades intelectuais dos incas, maias e astecas, como ligadas exclusivamente à
astronomia, à matemática e ao desenvolvimento de calendários. Como escreve os autores do
Projeto Araribá,

Os sacerdotes maias eram também matemáticos e astrônomos. Além de criar


um símbolo para representar o zero e usá-los em cálculos matemáticos, eles
desvendaram os movimentos do Sol, da Lua e de alguns planetas. Os maias
também conheciam os eclipses solares e lunares. (...) Com base em todos
esses conhecimentos, foram criados calendários tão precisos quanto os que
existem hoje (2007, p. 161).

Da mesma forma, Vicentino também destaca os maias pelo “desenvolvimento cultural


brilhante” já que apresentam um sistema de escrita mais completo da Mesoamérica e por se
dedicarem à astronomia e à matemática. Além disso, a cultura dos astecas é classificada
também pelo autor como “riquíssima, com avançado conhecimento em matemática e
astronomia, o que permitiu a elaboração de calendários” (Vicentino, 2002, p. 158). Já os
conhecimentos relativos à natureza, ao corpo, ao sagrado, ao passado, parecem não ganhar
espaço e importância neste quadro de apreensão de uma sociedade “civilizada” segundo os
moldes europeus, deixando escapar a percepção das diferenças culturais na história.

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Os autores dos manuais analisados ainda fazem uso do termo “império” para nomear o
domínio dos incas e astecas. É necessário destacar que o Tawantinsuyo é descrito em parte da
historiografia e dos manuais didáticos como “Império Inca”. O termo “império” faz
referências a uma estrutura de poder supostamente análoga à existente na Antiguidade e na
Idade Média européia, o que simplifica o entendimento da organização política e social
incaica. A noção de império, cunhada na antiguidade greco-romana e remodelada na Idade
Média cristã (Torres, 2004, p. 80), está associada a uma dominação político-militar e, de
modo geral, também, a um processo de centralização política, que dispõe de uma burocracia,
com uma sede definida, fronteiras em constante expansão, a princípio ilimitadas, tendo como
pressuposto universal de que um império não se auto-limita. Além disso, freqüentemente,
existe também uma associação entre essa dominação político-militar e uma superioridade
cultural, que de modo geral deve ser compartilhada pelas elites de um império e às vezes até
pelos dominados. Não raramente, essa superioridade devia estar associada também ao sentido
de superioridade racial, e que para a estabilidade de um império ela precisava ser interiorizada
pelos dominados (Filho, 2004). Esse aspecto é considerado decisivo para o funcionamento
dos antigos sistemas imperiais.
Além disso, percebemos que essa noção de império esteve também associada à idéia
de patriarcado, de um sistema político organizado e conduzido por homens, onde as mulheres
ocupariam um espaço subalterno e marginalizado. Não por acaso, os autores do Projeto
Araribá reforçam esta concepção quando mencionam os trabalhos desempenhados pelas
mulheres astecas apenas no âmbito doméstico, enquanto aos homens é destinada a vida
pública e o governo. Não surpreende que Vicentino também afirme que a autoridade máxima
no “Estado Asteca” era o “imperador” (2002, p. 158). Essa concepção acaba impondo por
antecipação as configurações imagináveis para as estruturas políticas e sociais tantos dos
incas como dos astecas, já que prescreve a existência de um poder fortemente centralizado na
figura masculina de um imperador, descartando a possibilidade de que as mulheres pudessem
governar ou exercer alguma forma de poder. Estudos recentes na área de gênero e história
vêm revelando a participação ativa e importante das mulheres na sociedade incaica, exercendo
poder e autoridade no governo dos incas sobre os Andes, sendo inclusive adoradas e
reverenciadas como huacas, heroínas e governadoras: este é caso das Coyas, das sacerdotisas

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do Sol e da Lua, das curandeiras, das huacas femininas, das señoras Cápacs, das mulheres
guerreiras, das curacas, das capullanas e das proprietárias de terras e águas (Oliveira, 2006)3.
A noção de “império” e “civilização”, presente tantos nos manuais escolares
brasileiros como em boa parte da historiografia tradicional a respeito dos incas, é herdeira
também das concepções dos cronistas espanhóis que escreveram nos século XVI e XVII sobre
os incas. Segundo Franklin Pease (1994, p. 71-72), os cronistas espanhóis, em suas primeiras
viagens pelas costas do Peru, mediam a “civilização” dos povos andinos pela riqueza,
considerada em termos europeus, ou seja, pela abundância de metais preciosos. A
“civilização” também era identificada nas construções urbanas que os europeus encontravam,
nas estradas, nos depósitos andinos, nos terraços de cultivo, na vida agrária e finalmente na
presença de uma autoridade central. Os relatos sobre os objetos de ouro e prata encontrados
nos Andes abundavam nas crônicas que estiveram perpassadas pelos interesses colonialistas
de acumulação de riqueza e fortuna na América, difundindo amplamente uma “lenda do ouro”
que confirmava as imagens medievais de associação da riqueza a um paraíso terreno, uma
terra prometida (Pease, 1994, p. 72-73). A presença de ouro e prata nos Andes parece ter
convencido os espanhóis de que se tratavam de sociedades poderosas e, em conseqüência,
“civilizadas” (Idem, p. 72). De acordo com Pease, os espanhóis não puderam compreender
que nos Andes o ouro e a prata não tinham o mesmo valor monetário e nem era igualmente
valorizado como na Europa; o valor ritual lhes escapava (Idem).
Ainda segundo Pease, nas representações da organização política dos incas, os
cronistas se limitaram a aplicar plenamente sobre os Andes e o Tawantinsuyo as categorias
políticas que empregavam nas histórias e na vida diária européia: “o Inca era um rei como
Carlos V, adquirindo seu poder por uma herança patrilinear, de acordo com as condições
usuais na Europa de legitimidade e primogenitura” (1994, p. 73). Como também observou
Pease,

O Inca era, de modo diferente, um personagem sagrado, uma guaca que


dialogava com as outras divindades. Um mundo sacralizado, assim, não
poderia ingressar na fácil denominação de “teocracia” que, depois se
generalizou a partir de uma história concebida e explicada
eurocentricamente. Na realidade, a imagem do Inca como um tirano

3
Cf. SILVERBLATT, Irene. Luna, Sol y Brujas – Gênero y clases en los Andes prehispánicos y coloniales. Cusco: Centro de
Estudios Regionales Andinos Bartolomé de Las Casas, 1990. GOSE, Peter. El estado incaico como una “mujer escogida”
(aqlla): consumo, tributo em trabajo y la regulación del matrimonio en el incanato. In: ARNOLD, Denise Y (org.). Más Allá
del silencio: las fronteras de gênero en los Andes. Bolívia: CIASE e ILCA, 1997. ASTETE, Francisco Hernández. La mujer
en el Tahuantinsuyo. Peru: Fondo Editorial, 2002. GUARDIA, Sara Beatriz. Mujeres Peruanas el outro lado de la historia.
4ª ed. Lima: Minerva, 2002.

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alcançava sua melhor explicação na necessidade dos cronistas de justificar a


conquista espanhola dos Andes (1994, p. 75).

As pesquisas desenvolvidas no âmbito da etnohistória vêm “desconstruindo” as


versões da história dos incas difundidas pelos cronistas e pela história tradicional de cunho
eurocêntrico. A noção de um “império” desenhado com características romanas pelos
espanhóis letrados do século XVI vem sendo amplamente discutida na etnohistória.
Pesquisadores como María Rostworowski (2000) contribuem também na desconstrução da
imagem da monarquia incaica, ao trabalhar com as evidências de uma diarquia (um dualismo
no governo), onde até mesmo as mulheres teriam espaço para o exercício do poder ao lado
dos homens ou das mulheres.
Ainda segundo Pease, no âmbito da economia incaica, os cronistas pensaram que

havia comércio, tributo, mercado e, até em alguns casos, moeda. Hoje


sabemos que a organização econômica andina manejava categorias de
reciprocidade e redistribuição muito antes da presença dos incas. As
discussões acerca das formas como elas funcionavam enriquecem as
investigações atuais acerca da vida econômica e social do Tawantinsuyo
(1994, p. 75-76)4.

Na visão dos cronistas a sociedade inca era estratificada como a européia, com uma
nobreza e população avassalada, já que centralista e imperial. Os manuais didáticos também
apresentam esta visão, ao nomear os grupos que exerciam o poder nas “civilizações “pré-
colombianas” como “nobres” e reafirmar a centralidade e autoridade política nas mãos de um
“imperador” (Projeto Araribá, 2007, p. 161; Vicentino, 2002, p. 158). Esta concepção
também é alvo das recentes investigações da etnohistória andina. Segundo Pease,

Cada vez mais se destaca, por exemplo, a importância da presença e


organização das unidades étnicas, muito mais independentes do que os
cronistas pensaram ou puderam compreender, e que se articulavam com o
Tawantinsuyo de maneira diversa à pura e simples imposição deste último
(1994, p. 76).

Devemos notar que a tradição historiográfica cientificista tratou as crônicas coloniais,


escritas em sua maior parte por soldados e missionários espanhóis envolvidos no
empreendimento da conquista, como retratos fiéis da realidade indígena, sem oferecer
nenhuma referência às suas condições de produção. A história tradicional reproduzia assim o

4
Cf. os trabalhos de Irene Silverblatt, Rostworowski, John Murra, Zuidema e Ana Raquel Portugal.

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olhar eurocêntrico e colonialista dos cronistas a respeito dos ameríndios e suas sociedades,
exaltando a colonização, a ciência e a presença “civilizatória” dos europeus na América. Esse
tipo de história, em consonância com os ideais científicos modernos, acabou por silenciar,
inferiorizar e/ou negar os conhecimentos dos povos colonizados a respeito do passado, do
sagrado, do corpo, da organização social, da natureza, da vida, do cosmos, do poder, das
relações de gênero e parentesco; negou-lhes, enfim, o direito de ter especificidades e
particulares históricas e culturais reiterando uma série de conceitos globalizantes e
essencialistas a respeito das culturas indígenas americanas.
Franklin Pease (1994, p. 122) criticou a utilização indiscriminada das crônicas como
fontes de pesquisa, mas destacou a importância de sua utilização para a compreensão das
categorias que proporcionaram a apreensão das antigas sociedades andinas. Mesmo
reconhecendo os limites das crônicas para tratar destas sociedades, bem como de todo e
qualquer discurso sobre o passado, alguns pesquisadores não abandonaram essas narrativas
como fontes de pesquisa, mas passaram a utilizá-las em sua dimensão de documentos
construídos e não reflexos do real. Além disso, os pesquisadores reconheceram que apesar das
crônicas serem escritas sob o ponto de vista espanhol, apresentam alguns indícios para a
percepção da materialidade indígena5.

Vicentino deixa claro que a América é um continente habitado há milhares de anos por
diversas sociedades, desde o chamado período “pré-histórico”. Apesar de problematizar o
conceito de “pré-história”, além das periodizações e classificações dos “povos pré-históricos
americanos” (“bandos primitivos”, “povos tribais”, “cacicados” e “impérios”), chamando
atenção para o cuidado de se evitar a inferiorização de povos e culturas, o autor acaba fazendo
uso dos mesmos conceitos, o que torna o seu texto um pouco confuso. Ao mesmo tempo em
que afirma que as classificações evolutivas dos povos em atrasados ou avançados, se baseiam
em idéias condenadas atualmente, e que tem servido para justificar conquistas e dominações
de uns pelos outros, o autor parece não encontrar outra saída para denominar ou compreender
o desenvolvimento histórico destes povos. Quando menciona a existência de grandes cidades
e “impérios” nas regiões mesoamericanas e andinas, por volta de 1500 a.C, Vicentino declara
que “devem ser considerados à parte, não se encaixando na Pré-história ou no período
formativo” (2002, p. 52).
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Recentemente escrevemos um artigo sobre a abordagem das crônicas coloniais como materiais didáticos nas aulas de
história, com o objetivo de problematizar as representações e discutir a condições de produção do conhecimento sobre a
América e os povos indígenas nas crônicas coloniais; ou seja, de estudar as condições de produção das representações dos
povos indígenas no cenário da conquista da América, – a historicidade de suas elaborações, – buscando romper com a
universalização e naturalização das imagens dos indígenas e europeus na história.

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A etnohistória vem revelando que a diversidade histórica e geográfica das culturas


“pré-colombianas” dificulta este procedimento de classificação e periodização bastante
generalizado na história tradicional. Devemos estar atentos aos esquemas simplistas de
classificação dos povos e às percepções lineares da história, herdeiras do positivismo e das
teorias raciais do século XIX, que insistem em reduzir a diversidade histórica e cultural “pré-
colombiana”.
A diferença cultural tem pouco espaço para se manifestar nestes manuais, ela apenas
aparece quando se trata superficialmente de valores religiosos, na descrição dos templos
sagrados e na menção aos deuses e aos sacrifícios humanos. Não por acaso temas como a
educação das crianças astecas são destacados pelos dois manuais (Vicentino, 2002, p. 159;
Projeto Araribá, 20027, p. 151). Vicentino (2002, p. 156) destaca ainda o jogo de bola dos
maias e enquanto o Projeto Araribá (2007, p. 164-165) enfatiza o sentimento de amor das
mulheres astecas pelos homens, já que se trata de aspectos idealizados em nossa cultura.
Deste modo, os incas, os astecas e os maias são descritos mais pelas suas semelhanças com a
chamada cultura “civilizada” do que por suas diferenças. A busca pelas semelhanças opera
assim um processo de “ancoragem” das singularidades históricas destes povos em aspectos já
reconhecidos e valorizados por nossa cultura. Neste caso, é como bem assinala Denise
Jodelet,

a ancoragem enraíza a representação e seu objeto numa rede de


significações que permite situá-los em relação aos valores sociais e dar-lhes
coerência. Entretanto, nesse nível, a ancoragem desempenha um papel
decisivo, essencialmente no que se refere à realização de sua inscrição num
sistema de acolhimento nocional, um já pensado. Por um trabalho da
memória, o pensamento constituinte apóia-se sobre o pensamento
constituído para enquadrar a novidade a esquemas antigos, ao já conhecido
(2001, p. 39).

Este procedimento de ancoragem pode também ser observado na associação dos incas
e astecas aos povos do antigo Egito. Segundo Vicentino,

Através de alianças, os astecas dominavam os povos vizinhos, obrigando-os


a pagar tributos e enviando constantes expedições punitivas em caso de
hostilidade. Sua forma de organização era semelhante à das civilizações da
Antiguidade oriental, como o Egito e a Mesopotâmia. (2002, p. 158)

Sobre os incas, o mesmo autor ainda afirma e destaca, que

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Esse império, conhecido como Império Inca, era conduzido por um


imperador considerado um semideus pelos súditos. O imperador era tido
como “filho do Sol”, da mesma forma que os egípcios chamavam seus
governantes de faraó. (Vicentino, 2002, p. 163. Grifos do original)

Seguindo a mesma tendência os autores do Projeto Araribá escrevem que

Quando o Sapa Inca morria, suas mulheres e servos eram sacrificados e seus
corpos eram depositados, junto ao dele, no Templo do Sol. Como no Egito
antigo, empregavam-se técnicas para mumificar mortos. (2007, p. 154.
Grifos do original)

Como bem observou Koling, essa

comparação ou semelhança com o Egito antigo não representa singularidade


ameríndia (...) A força da tradição da história Ocidental exige que qualquer
referência à teocracia, às pirâmides e às práticas de mumificação tem que
passar pelo modelo egípcio (SANTOS, 2004). (2008, p. 8)

Deste modo, a alteridade presente na América “pré-colombiana” ganha contornos


familiares. A sua diferença é reordenada, assimilada e acomodada nos moldes civilizacionais,
tornando a sua realidade possível e sua presença legítima nos manuais didáticos. Deste modo,
fica impedida a manifestação de sentidos outros, sentidos “já-lá”. Os manuais analisados
desenham imagens de sociedades “pré-colombianas”, cuja historicidade impõe paradigmas
políticos e sociais a uma realidade outra. Como bem escreve Navarro-Swain, “a História-
interpretação parte de um sociograma dado, o do presente, da atualidade, para tentar iluminar
os sentidos que percorrem o horizonte de significação do passado” (2007, p. 83). Deste modo
o conceito de “civilização” permanece nos manuais didáticos, atribuindo significado e valor
às experiências culturais que ainda permanecem idealizadas. Como bem analisou Nobert
Elias, o conceito de “civilização”

expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. (...) Ele resume


tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga
superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas “mais
primitivas”. Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o
que constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua
tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura
científica ou visão do mundo, e muito mais. (...) “Civilização” descreve um
processo ou, pelo menos, seu resultado. Diz respeito a algo que está em
movimento constante, movendo-se incessantemente “para frente”. (...) Até
certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças nacionais entre

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os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou – na opinião


dos que o possuem – deveriam sê-lo (1994, p. 23-25).

O conceito de “civilização” porta, assim, o selo de grupos inteiros, e é usado


basicamente para povos que compartilham uma tradição e situações particulares. A
persistência deste conceito nos manuais didáticas pode estar relacionada também ao fato do
uso da palavra “civilização” ter se tornado moda, como observou Elias, demonstrando que
não representam apenas necessidades individuais, mas coletivas de expressão.
A história coletiva nele se cristalizou e ressoa. O indivíduo encontra essa
cristalização já em suas possibilidades de uso. Não sabe bem por que este
significado e esta significação estão implicados nas palavras (...). Usa-as
porque lhe parece uma coisa natural, porque desde a infância aprende a ver o
mundo através da lente desses conceitos. O processo social de sua gênese
talvez tenha sido esquecido há muito. Uma geração os transmite a outra sem
estar consciente do processo como um todo, e os conceitos sobrevivem
enquanto esta cristalização de experiências passadas e situações retiver um
valor existencial, uma função na existência concreta da sociedade – isto é,
enquanto gerações sucessivas puderem identificar suas próprias experiências
no significado das palavras. (1994, p. 26)

Desde o século XIX os manuais didáticos de história perpetuam o conceito de


“civilização”, se antes ele não era adequado para se falar das sociedades ameríndias “pré-
colombianas”, – já que vistas como inferiores, primitivas e desprezíveis, – agora os manuais
parecem encontrar uma forma de incluir estas sociedades nos relatos históricos, ao mesmo
tempo em que reforçam a natureza e a universalidade dos princípios civilizatórios no
“avanço” da humanidade. Não por acaso, os autores do Projeto Araribá, seguindo um modelo
de História Integrada, destacam que “enquanto na Europa as monarquias nacionais surgiam,
importantes civilizações habitavam as terras do outro lado do Atlântico” (2007, p. 148). Além
disso, afirmam que a “descoberta do uso de metais pelos calchaquíes permite reconhecer os
avanços técnicos que os povos da América desenvolveram antes da chegada dos espanhóis”
(Idem, p. 157). Todos estes aspectos buscam garantir a relevância e valor histórico das
sociedades “pré-colombianas” e reforçam a tese de uma “evolução” natural e linear das
sociedades rumo à “civilização”, estágio máximo de desenvolvimento, sofisticação e riqueza.
Sobre a relação do passado com o presente, no Projeto Araribá é mencionada num
único parágrafo onde afirma que

A história desse povo [maia] continua nos dias de hoje, assim como a de
descendentes de outras sociedades indígenas americanas. A luta atual dos
descendentes dos antigos maias no estado de Chiapas, no México, tornou-se

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símbolo da resistência indígena em terras do México e da Guatemala (2007,


p. 160).

Vicentino também trata da relação do passado com o presente num único parágrafo,
onde declara que

O encontro entre os povos da América da Europa foi antes de tudo arrasador.


A conquista européia se deu à custa da destruição de grande parte da
população e de sua cultura e pela exploração e marginalização daqueles que
conseguiram sobreviver. Seus descendentes – grupos indígenas norte-
americanos, mexicanos, brasileiros, andinos e outros – ainda hoje lutam para
defender o espaço para sua sobrevivência em todo o continente (2002, p.
166).

A esse respeito Koling também observou que

se antes de 1492 havia civilizações ameríndias, após a conquista européia


essa civilizações são superadas pela civilização européia. Além disso, as
sociedades nativas são só estudadas na parte inicial do livro, e não há
nenhum elemento que se articule com a construção da identidade latino-
americana ao longo do processo histórico americano, pois a América
indígena acaba com a chegada dos europeus. (p. 6)

A partir do momento em que se inicia a conquista da América pelos europeus, os


povos considerados “civilizados”, antes nomeados como incas, maias e astecas, tornam-se
“índios”, no sentido generalizado da palavra, já que perdem o controle de suas instituições
políticas e grandiosas cidades, passando à condição de subjugados. As semelhanças com os
povos “civilizados” desaparecem dando lugar a uma alteridade carregada de valores exóticos
e estranhos que necessita ser superada e domesticada na ordem colonialista. Neste caminho as
ações, saberes e experiências históricas dos povos indígenas parecem perder importância nas
narrativas didáticas, enquanto que os colonizadores europeus passam a ganhar destaque como
portadores dos princípios da “civilização” na América.

Considerações finais

Na análise dos manuais Projeto Araribá e Viver e a História, fica claro que não há
mais um silencia sobre a América antes de 1492, no entanto o sentido que as sociedades “pré-
colombianas” recebem nestas narrativas não permitem a manifestação da alteridade, já que

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suas representações históricas são postas na ordem de um discurso civilizador. Deste modo
perpetua-se um saber histórico homogeneizador acerca das culturas “pré-colombianas” que
tem suas implicações na tão almejada educação para a cidadania, tendo em vista o
reconhecimento e respeito à diversidade cultural na história. Como bem atenta os PCN‟s de
História para o ensino fundamental,

Hoje em dia, a percepção do “outro” e do “nós” está relacionada à


possibilidade de identificação das diferenças e, simultaneamente, das
semelhanças. A sociedade atual solicita que se enfrente a heterogeneidade e
que se distinga as particularidades dos grupos e das culturas, seus valores,
interesses e identidades. Ao mesmo tempo, ela demanda que o
reconhecimento das diferenças não fundamente relações de dominação,
submissão, preconceito ou desigualdade. (...) A percepção da alteridade está
relacionada à distinção, de modo consciente, das diferenças, das lutas e dos
conflitos internos aos grupos sociais ou presentes entre aqueles que vivem ou
viveram em outro local, tempo ou sociedade. E está relacionada à construção
de uma sensibilidade ou à consolidação de uma vontade de acolher a
produção interna das diferenças e de moldar valores de respeito por elas
(BRASIL, 1998, p. 36).

Os manuais didáticos analisados reiteram através de constante repetição os valores


ligados à “civilização”, universalizando os comportamentos sociais e os percursos históricos
de diferentes sociedades, acomodando suas diferenças num tipo de história linear e universal,
onde a pluralidade das realizações humanas tem pouco espaço para se manifestar e revelar
uma história possível. A percepção da alteridade, do “outro” e as noções de diferença são
pouco exploradas nas abordagens da América pré-colombiana. Ainda segundo os PCNS, estas
noções merecem ser trabalhadas em sala de aula, já que
O domínio das noções de diferença, semelhança, transformação e
permanência possibilita ao aluno estabelecer relações e, no processo de
distinção e análise, adquirir novos domínios cognitivos e aumentar o seu
conhecimento sobre si mesmo, seu grupo, sua região, seu país, o mundo e
outras formas de viver e outras práticas sociais, culturais, políticas e
econômicas construídas por diferentes povos (BRASIL, 1998, p. 36).

Queimar os manuais didáticos comprometidos com representações e idéias


ultrapassadas ou preconceituosas não vai resolver os problemas enraizados em nossa cultura.
Pelo contrário, vai continuar “escondendo” – colocando à margem do debate dentro da sala
de aula – questões relacionadas à diversidade cultural. Como bem atenta Selva Fonseca,

Complementar o livro didático e diversificar as fontes historiográficas com


os manuais paradidáticos em sala de aula, são opções que não descartam ou
consideram o livro como mero culpado por todos os males do ensino, mas
partem de um pressuposto básico: o livro didático é uma das fontes de

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conhecimento histórico e, como toda e qualquer fonte possui uma


historicidade e chama a si inúmeros questionamentos (2003, p. 55).

Para concluir citamos as palavras de Navarro-Swain, “O possível e o impossível se


encontram assim redesenhados na talagarça da História que conhecemos e na qual cremos,
pois o que a Historia não diz, nunca existiu. Ao menos na ordem do discurso do verdadeiro,
do possível.” (2007, p. 83) Neste sentido, a história a ser ensinada necessita do frescor da
multiplicidade, da pluralidade do real, ao invés de reafirmar velhas tradições, deve apontar
uma história do possível, da diversidade, de um humano que não se conjuga apenas em
civilização, dominação, hierarquias sociais, posse, riquezas materiais. Não basta só incluir a
História da América indígena nos manuais escolares é preciso também repensar os valores e
conceitos que informam suas representações históricas.

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