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Odemira, (o) capital do século vinte e um

Pedro Levi Bismarck

Odemira é, neste momento, uma condensação histórico-político sem igual, digna de


nota. Para além de tudo aquilo que já ficamos a saber: quer sobre as condições
políticas, económicas e sociais dos trabalhadores imigrantes, quer sobre o negócio que
se estabeleceu em torno da sua escravidão dissimulada (e sobre o qual escrevi em
Odemira: lugar do século vinte e um), ficamos agora também a conhecer um pouco
melhor a história do Eco Resort Zmar (a propósito da requisição civil para aí instalar
uma parte dos trabalhadores infectados com covid-19): projecto PIN, licenciado com
autorizações especiais em Reserva Ecológica Nacional, com direito a financiamento
público e fundos comunitários e, agora, em insolvência (com o Novo Banco e Fundos
Abutres à mistura), sendo o Estado o seu grande credor.

É todo um modus vivendi do sistema condensado num só lugar: imigração convertida


num triplo negócio (das empresas agrícolas, das máfias/intermediários, mas também
do Estado), trabalho e vida reduzidos a condições mínimas e, por fim, negócios
privados e investimentos especulativos elevados pelo Estado à categoria de interesse
público, construídos em zonas protegidas, que acabam na bancarrota com o Estado a
assegurar as perdas. De um lado, mão-de-obra escrava e imigrante, agricultura
industrial e intensiva, máfias internacionais (compondo o ramalhete do sonho
europeu, digital, social e verde de António Costa); por outro lado, especulação
financeira e investimentos imobiliários ruinosos privados apoiados pelo Estado (que
surge sempre na condição de suporte dos negócios do capital).

E, no meio disto tudo, como não podia deixar de ser, o sujeito «histórico» que faltava, a
classe média, sempre a cumprir o papel que lhe cabe: o de peão da história. Se, por um
lado, esta aparece prontamente e histericamente mobilizada pelos valores intocáveis
da propriedade (aos quais se agarra como princípio e fundamento de um estatuto
social e político cada vez mais debilitado e ameaçado), por outro lado, esses valores não
são mais que a “vitrine” dos interesses reais em jogo do capital, e, neste caso específico,
dos interesses das várias empresas (investidores e fundos abutres) presentes no Zmar,
para quem a ocupação do espaço pelos imigrantes significa um revés (e, sobretudo, má
publicidade) nos seus planos de retorno financeiro a curto prazo.

Podemos falar de individualismo extremo, egoísmo absoluto ou de interesse privado


daqueles proprietários, mas nada disso é verdadeiramente extraordinário nem
relevante: esses são “indivíduos” que se limitam a agir de acordo com os valores e
princípios dominantes, sociais e económicos, do capital. O grau de alienação, e diga-se,
de hipocrisia, não é apenas dessa classe de pequenos proprietários (para quem a
sociedade, de facto, não é mais que o conjunto dos seus interesses privados e em que o
princípio da sua organização económica não é mais que a abstracção e a exploração do
outro), mas é, também, daqueles, de todos aqueles, que continuando a aceitar na sua
plenitude o sistema social do capital, dão-se ao luxo de dirigir a sua infalível crítica
sempre em tom moralista e moralizador.

Em Odemira é tudo menos uma questão de moral: não se trata de empresários


eticamente falidos, nem de proprietários gananciosos, nem de classe média egoísta,
trata-se da exposição plena e total – e, por isso mesmo, absurda – do princípio que
domina e mobiliza a sociedade, a sociedade do capital, com todas as suas contradições
e, sobretudo, num grau de crise, cuja sobrevivência parece depender, sempre e cada
vez mais, da negação absoluta e total do estado de coisas. E é essa, de facto, a
verdadeira catástrofe do nosso tempo.

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