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Medéia e a morte da Mãe

Texto extraído do Livro Uma mulher e seus extravios – (Izabel Haddad – 2017)

“É crua no seu jeito de ser; o íntimo da mente altiva horripila. Males


remordem-lhe a ânima, megaintumescida, antidelimitável” (Eurípides,
431 a.C/2010, p. 33).

“Quanto a mim, só, butim em solo bárbaro, sem urbe, rebaixada por Jasão,
sem mãe, sem um parente, sem... que a âncora soerga longe deste pesadelo.
Mulher é amedrontável, ruim de pugna, não suporta a visão da lança
lúgubre, mas se maculam a honra em sua cama, não há quem supere a
sanha rubra”. (Eurípedes, 431 a. C/2010, p. 47).

Nos Escritos, no texto “A juventude de Gide ou a letra e o desejo” (1958), Lacan


escreve poucas linhas sobre Medéia, a personagem da tragédia grega homônima, Medéia.
Dessa forma, para proceder à análise dessa figura, lançaremos mão de uma publicação da
tragédia de Eurípedes, recentemente traduzida para o português. No comentário de Lacan
há uma ironia que localiza Jasão, o marido da personagem num desconhecimento em
relação à verdadeira essência de sua mulher: “Pobre Jasão, que tendo partido para a
conquista do tosão dourado da felicidade, não reconhece Medéia” (Lacan, 1958/1998, p.
773). A heroína bárbara, estrangeira não é reconhecida em sua inteireza de mulher, pois
ele não poderia imaginar que Medéia iria destruir o “mais precioso legado que destinava
a posteridade”, seus próprios filhos.
Na epígrafe escolhida para iniciar o texto “Juventude de Gide” há um trecho da peça
que explica a ira feminina, com a qual vamos nos deparar, ao reconhecer em Medéia os
signos da “mulher de verdade”. No artigo “De mulheres e semblantes” (2012), Jacques-
Alain Miller tece um comentário sobre ela, ao se perguntar quais as implicações dessa
nomeação para a teoria lacaniana. O que seria uma verdadeira mulher? Para Lacan, a
verdade de uma mulher se localiza na distância subjetiva em relação à posição de mãe.
Ser mãe é uma saída para a feminilidade no sentido do ter, porque ela se faz existir
como A mãe que tem o falo, os filhos. Miller nos chama atenção para o fato de que não
se trata de construir o conceito ‘A verdadeira mulher’, porque essa mulher de fato não
existe. Pode-se dizer é que existe a verdadeira mulher, uma a uma, em ocasiões
específicas, já que não é certo de que uma mulher possa se manter nessa posição por
muito tempo, tamanha a radicalidade de seus atos. Para o psicanalista, só se vê a verdade
de uma mulher quando a mãe não suturou nela o buraco deixado pela relação com a
castração. Entretanto, sabemos que a maternidade não é uma saída para essa falta, e
Medéia é um exemplo disso. Nesse sentido, ela abre mão do ter fálico que os filhos
poderiam lhe assegurar para ser uma mulher sem marido, sem filhos, sem terra.
O extravio que vislumbramos em Medéia parece ser tão radical quanto o de Ysé ou
o de Antígona, porque ultrapassa o registro do ter para se fiar apenas no campo do ser, já
que ela mata os próprios filhos, em nome de uma vingança contra o marido infiel.
Aniquilando a própria descendência, a heroína comete um ato tão radical que ultrapassa
o entendimento do espectador, evocando um limite em que o simbólico encontra o real.
Medéia nos apresenta a dimensão de um desligamento que uma mulher pode empreender
em relação às insígnias fálicas que a sustentavam. Essa personagem é ultrapassada por
um excesso transgressor quando mata a prole, em nome de um desejo atroz, e se
transforma na expressão mais fiel da irrupção do campo do real no centro da sexualidade
feminina.
A tragédia de Eurípedes, Medéia, nos apresenta alguns elementos que não devem ser
esquecidos, pois fornecem uma visão mais ampla da narrativa e dos fatos que antecedem
a cena trágica do assassinato dos filhos. Entre os gestos que antecedem o crime de
Medéia, percebemos seus lamentos, suas tentativas de compreender o lugar de uma
mulher perante o marido e como mãe, no seio da família. Ela tece longos diálogos com
os outros personagens para dizer de sua inadequação ao que havia sido estabelecido pelas
leis da cidade para o destino da mulher na sociedade.
O infanticídio é o ápice de um processo que se desenrola, com implacável violência,
desde o princípio, embora haja alguns momentos anteriores em que essa heroína trágica
tenta negociar outro destino para si e para os filhos, dentro mesmo das leis da cidade e
das juras do matrimônio. Entre o momento de se lamentar e a vingança final, há uma
reviravolta, em que ela passa de uma figura aplacada pela tristeza à uma mulher violenta
e irascível.
Na tragédia de Eurípedes (431 a.C), a personagem Medéia havia feito tudo para que
seu homem conseguisse vencer todos os obstáculos impostos por seu pai para a conquista
do tosão dourado. Traíra o próprio pai, deixara sua terra natal, convencera as filhas de
Pélias, tio de Jasão, a matá-lo, esquartejara o irmão Apsirto. Por fim, após essa saga de
atrocidades, vivia em Corinto numa vida pacata, com o marido e os dois filhos. Toda essa
série de mortes fora cometida em nome de Jasão, pois o pai de Medéia havia proposto
uma série de três provas para que ele pudesse conquistar o velo de ouro. Desde o início
da tragédia, Eurípides deixa claro que Medéia era uma mulher que sempre concordava
com Jasão. “Sempre solicita com os daqui, jamais em discordância com o cônjuge”
(Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25). O exemplo de mulher cordata e zelosa para com os
cuidados da casa e do matrimônio. Ninguém poderia dizer que ela seria capaz de um gesto
tão radical para com seus próprios bens.
Num determinado ponto da peça, porém, algo muda radicalmente o destino de todos
os personagens da trama. O rumo dessa convivência pacata entre o casal se modifica
radicalmente após Jasão comunicar à Medéia que sairia de casa para desposar outra
mulher: “O amor adoece agora, instaura-se o conflito, pois Jasão deitou-se com a filha de
Creon. Rebaixa a própria esposa e os descendentes” (Eurípedes, 431 a. C/2010, p. 25). A
ação de Jasão é vista pela mulher como uma ofensa, um ultraje para com ela e o
matrimônio. Após esse desenlace com o marido, Medéia se desespera e começa a
arquitetar sua vingança.
Os eventos que se seguirão são apenas a prova desse traço marginal que esteve
presente na saga de Medéia, desde sua saída da casa paterna, na época em que deixa tudo
por Jasão, até o ato final da tragédia. Vê-se que Eurípedes a descreve, desde sempre, como
uma mulher irascível e perigosa. Uma mulher sem lei, que só se ligava ao mundo pelo
laço que estabelecia com o amor de Jasão, na conexão com esse homem. Sem a jura do
matrimônio, ela perderá os laços com tudo ao seu redor, seu amor se transformará em
ódio. “Seu corpo carpe, inane ela se prostra, delonga o pranto grave, assim que sabe o
quanto fora injustiçada” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25).
O fato de Medéia ter abandonado a casa do pai é um elemento muito relevante para
o desenvolvimento da trama, pois seu ato final parece ligado diretamente ao infortúnio
que a desliga de seu pai e da inscrição da lei. No enredo da tragédia repete-se muitas vezes
que por ter primeiro cometido um crime contra o próprio progenitor, ao abandonar
Colquida, sua terra Natal, Medéia agora havia se tornado uma mulher mais desgraçada
do que nunca, pois não havia lugar que pudesse acolher seu sofrimento e solidão. “O olhar
sucumbe à terra, nada a faz erguê-lo, feito escarcéu marinho, (...) exceto quando regira o
colo ensimesmado, alvíssimo, em lamúrias pelo pai, pelo país natal, que atraiçoou por
quem sem honra a tem agora” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25). A personagem havia
cometido uma série de atrocidades contra o pai, em nome do marido, e suas desgraças
parecem ser justificadas pelo efeito de um primeiro desenlace simbólico com o pai.
O valor da relação edípica fora completamente desvirtuado, e Medéia aprende, à
duras penas, o quanto custa renegar o sítio natal. Se tivesse em algum momento
reconhecido a lei paterna, teria para onde voltar e onde arrefecer sua ira. “Sem lar paterno
onde ancore a dor” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 63). A insistência nessa passagem sobre
o abandono do pai e do assassinato do irmão sugere que esse primeiro pecado conduz
Medéia às demais desgraças que se sucedem. Ela era um ser humano agitado por uma
paixão indomável, entre a sede de vingança e o amor maternal: “sua psique circunspecta
suporta mal a dor. Ela é terribilíssima, ninguém que a enfrente, lograr o louro facilmente”
(Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25). Há uma natureza fora da lei nessa personagem que, além
do empuxo ao inefável, é uma mãe que não se liga aos filhos: “Ao ver os filhos, tolda o
cenho com desdém” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25).
Medéia é uma personagem que revela a alteridade da posição feminina diante da
polis, dos homens, das leis, da maternidade. No enredo, a construção da condição
feminina introduz uma disparidade em relação à posição masculina, pois enquanto os
homens guerreavam, à mulher era destinada a vida no lar, devotada ao homem e aos
filhos. Acontece que Medéia era mais do que mulher, mãe e esposa, era a figura dessa
alteridade absoluta que surge dentro da própria polis. Sua posição instaura uma dicotomia
entre a vida insuspeitada, dedicada ao lar, e suas experiências como feiticeira, coroada
com dons mágicos. “A via mais eficiente, para a qual nasci sabendo, é capturá-los com
veneno” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 59).
Medéia era uma estrangeira, o lugar desse Outro radical, mulher que vem de fora da
cidade, feiticeira passional, capaz de colocar as paixões acima de tudo, inclusive de seu
universo doméstico. “Se a conheço bem sua fúria só alivia se fulmina alguém” (Eurípides,
431 a.C/2010, p. 31), afirma a Nutriz. Essa ligação com o sobrenatural faz com que ela
aja com uma finalidade que vai além de sua própria existência e acima da vida de sua
prole. É ela que marca na tragédia o lugar da diferença do ser da mulher no interior da lei
estabelecida: “É crua no seu jeito de ser; o íntimo da mente altiva horripila. Males
remordem-lhe a ânima, megaintumescida, antidelimitável” (Eurípides, 431 a.C/2010, p.
33). Ela se mostra como uma mulher que não conhece o limite, devido a uma fúria que
toma conta de seu ser. Nesse sentido, recusa todos os semblantes fornecidos pelo Outro,
em nome de sua ira.
No início da trama, Eurípides apresenta Medéia abandonada a uma dor lancinante,
consumida em lágrimas, injuriada pelo marido ter desposado a filha do rei Creonte.
“Tristeza! Infeliz de mim! Pudera morrer” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 33). Até então,
ela era vista como uma mulher aviltada e humilhada pela conduta do marido: “Que eu
morra, pois o ente até então primeiro e único, tornou-se-me execrável: meu marido”
(Eurípides, 431 a.C/2010 p. 45). Em determinado momento, no entanto, há uma
reviravolta. Consumida pela ira, pretendendo amaldiçoar e punir Jasão, com quem havia
fugido no passado, decide sair da depressão em que se encontrava e agir. Em nome dos
Deuses e não mais do laço que até então regeu sua conduta em relação ao marido, ela se
eleva a uma posição que não está mais circunscrita pelo simbólico.
Um dos personagens da tragédia nos adverte que Medéia tem um espírito perigoso e
não suportará o sofrimento sem retaliações. “Sugiro que entrem os dois garotos! Melhor
mantê-los longe da mater mestra, que os olhava a pouco taurivoraz, quem sabe com
intento inconfessável” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 31). Vê-se que Nutriz que cuida dos
filhos de Jasão, também alerta os meninos para que não se aproximem da mãe em delírio,
pois sabe que sua cólera não cessará antes que ela tenha feito algo de mal a eles, que são
a réplica do pai. “Ó prole odiosa, de uma mater mórbida, meritória de maus votos, pereça
com o pai” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 35).
Em sua ira, após ter sido abandonada pelo marido, Medéia clama por Témis, a deusa
da justiça, patrona dos votos, guardiã dos juramentos. Com esse pedido deseja mais do
que nunca retomar de alguma forma os mandamentos que uniram Jasão a ela, pela lei dos
votos nupciais. “Medéia desgraçada e desprezada clama pelos juramentos, invoca as mãos
que se apertaram, esse penhor máximo”. (Eurípides, 431 a. C/2010, p. 39). O juntar-se as
mãos era parte do cerimonial da promessa de fidelidade que o esposo fazia à esposa diante
dos deuses. É curioso que diante de sua desgraça e da loucura que toma conta da
personagem, ela tenha inicialmente tentado recorrer a uma lei maior, para impedir que o
marido a deixasse. Vejamos que não é à uma lei da cidade, da polis que ela recorre, mas
à lei dos deuses e à palavra que se profere em nome do laço com um outro. No contexto
da tragédia, a lei dos deuses se inscreve num lugar muito diferente da lei da cidade. Sabe-
se que Medéia renega o campo da lei e já havia dado muitas provas disso ao abandonar o
pai e matar o irmão. Desde sempre, ela fora uma mulher extraviada em relação à mediação
fálica dada pela lei universal dos homens.
A única coisa que confere existência à Medéia até então, possibilitando a ela um
espaço na polis era sua ligação com Jasão. O que se passa é que o marido,
contingencialmente, se torna para ela essa conexão com o que chamamos na psicanálise
desse Outro para si mesma. A partir dessa referência fálica – Jasão – algo se extravia e a
conduz para um lugar sem negociação. Medéia surge, a cada cena, com um “olhar de
toura, feito leoa que mira o avanço dos servos no pós-parto” (Eurípides, 431 a.C/2010, p.
41). Com a alma tomada pela desgraça, ela se torna uma mulher implacável. Ao perder a
promessa e as juras do marido, elementos esses que a conectavam ao mundo dos homens,
se vê em uma terra de ninguém, arrastada ao terrível, ao desmedido.
Nessa passagem o autor da tragédia demonstra a tentativa de Medéia de rever aquilo
que assegurava sua relação com os laços do casamento. É importante assinalar que
Medéia recorre ao campo das juras diante de um deus que organiza o campo da palavra
entre dois homens. “Magna Têmis, Artemis augusta, notai o que padeço, eu que me
vinculei com juras magnas a um horror de homem” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 39). No
ápice de seu desespero ela pede ajuda à deusa Têmis para que a ajudasse a retomar seu
lugar de esposa junto a esse homem.
Tomada por um sentimento de aflição, ao se sentir injuriada pelo marido, Medéia
ainda tenta, sem sucesso, negociar uma saída melhor para si e para os filhos junto a
Creonte, o rei da cidade. “Sê suceptível, rei, ao meu pedido! Em exilo, mesmo assim eu
te suplico. Deixa que eu permaneça um dia só, a fim de organizar a minha partida e
organizar um jeito de manter meus filhos” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 55). Após essas
tentativas, que parecem um último desejo de mediação, ela se consome em ira e paixão,
e começa a arquitetar uma série de planos sórdidos para viabilizar sua vingança contra
todos: Creonte, Jasão e sua amante e seus próprios filhos.
Em um dado momento da trama, Medéia justifica suas intenções hediondas e cruéis
e se lamenta por ser mulher, uma “criatura mísera”, que não havia aprendido na casa
paterna como tratar o companheiro de leito, já que toda mulher quando se casa entra numa
nova raça e numa nova lei. “Na casa nova somos mânticas para intuir como servi-lo?
Instruem-nos?” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 45). Nesse sentido, é curioso pensar como
Eurípedes cria para a personagem a figura de uma mulher ressentida em relação à sua
condição de uma mulher que não foi instruída como lidar com os homens.
Em seu monólogo, Medéia diz sofrer por ter estado enclausurada em casa com os
cuidados dos filhos ao invés de estar nos combates e na linha de batalha como os homens.
“Quando a vida em família o entedia, o homem encontra refúgio fora, com amigo ou
alguém de mesma idade. A nós, a fixação numa só alma” (Eurípides, 431 a.C/2010, p.
47). Ela evoca a lei para deixar claro que se estivesse ao lado dos homens seria tratada de
outra forma. Suas palavras mostram sua indignação em ocupar o lugar dessa alteridade,
com todas as consequências da castração para uma mulher. “Sei bem que nossas sendas
não se confluem, dispõe de polis, elos de amizade, lar paternal, desfrutes na vivência,
quanto a mim, só, butim em solo bárbaro” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 47).
Em determinado momento da trama, Creonte pede a Medéia que saia do país, exilada,
levando os dois filhos. Ameaça expulsá-la para os confins da terra. Medéia ainda lhe pede,
clama para ficar mais um dia na terra que a reconhece. Afirma que se sentia ultrajada,
sem marido, raptada duma terra bárbara, sem mãe, irmão, nem parente para lhe acolher
na desgraça. “Sem urbe, rebaixada por Jasão, sem mãe, sem um parente” que poderiam
fixá-la à vida, à família e à cidade. Antes do ato final, os laços com o Outro vão se
perdendo até que ela se torne uma mulher solitária em seu gozo.
Creonte explicita seu medo de que essa mulher irascível venha a cometer algum mal,
pois é astuta e conhecedora de muitos artifícios, tem fama de feiticeira e pode vir a fazer
mal à sua filha, desposada por Jasão. “Temo o dano, porque falsear palavras, que
impingirás quem sabe? - em minha filha. Motivos não me faltam para o medo, sabes como
arruinar alguém. Ameaças noivo e noiva, além de mim, segundo ouvi dizer” (Eurípedes,
431 a. C/2009, p. 49).
Medéia se mostra terrível, pobre, louca, seu espírito é perigoso. Reconhecemos algo
de extraviado em seus atos quando ela surge como uma “mãe em delírio”, e seus olhos
bravos, voltados para os filhos, vislumbram ali, o fim de sua cólera. Surge então uma
figura implacável, pois a alma foi mordida pela desgraça de um amor que chegou a seu
termo. Diz dos filhos que são malditos, pois são a réplica do pai.
A heroína se diz sozinha, sem irmão, pátria e ultrajada pelo marido, raptada de uma
terra bárbara, sem mãe, nem parente, perdida nessa desgraça. Ou seja, a perda dos laços
simbólicos com a família, a terra natal, a pátria e o casamento a levam a uma zona de
desorientação e mesmo de despersonificação que não encontra uma negociação possível.
“Estou perdida, pois daqui me exilam!” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 91). No
reconhecimento desse Real que a invade, surge um gozo ilimitado do feminino, um desejo
puro, sem contenções. Essa verdadeira mulher está para além dos limites da vida e da
morte. Explorando uma zona desconhecida, Medéia nos dá o melhor exemplo do que há
de extravio numa verdadeira mulher, já que sua pulsão está à deriva, desgarrada do campo
simbólico.
Para Lacan, o mais importante na tragédia é a ideia de que Medéia é uma mulher que
aniquila a mãe em si mesma, por isso se porta como uma verdadeira mulher. A peça
mostra que, ao matar os filhos de Jasão, ela perde, sobretudo, sua posição de mãe e esse
nome que poderia inscrevê-la em relação aos filhos, quo matrem. Medéia destrói o nome
da mãe, que faz sua nomeação nas gerações, e golpeia Jasão no que ele tem de mais
precioso. É nesse ponto que ela se extravia para além do espaço cavado pelo simbólico.
“Mato meus filhos e ai de quem ficar na frente. Arraso o alcácer de Jasão, e sumo pela
sanha fatal contra os meninos, que mais amo no mundo, sob o crime que mais que nenhum
outro agride o pio” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 99). A posição de Medéia faz uma
diferenciação clara em relação à verdadeira feminilidade para Freud.
A relação de Medéia com essa espécie de extravio que Lacan sugere existir em toda
verdadeira mulher pode ser vislumbrada na transgressão da lei, quando abandona o pai e
sua terra natal, mata o irmão e fere o marido no que ele tem de mais constitutivo, sua
descendência. É inquietante pensar que, sem pensar duas vezes, Medéia aniquila todas as
saídas identificatórias – seu lugar na família e no matrimônio – que asseguravam a ela
um lugar no mundo simbólico, onde ela poderia se reconhecer como filha, irmã e mãe.
Ser objeto do desejo sexual de Jasão era o mais importante para ela. Embora, reconheça
que, depois dos filhos, nada lhe era mais caro, essa constatação não parece fazer mais
sentido em determinado ponto no qual ela chega.
No decorrer da tragédia, Jasão tenta convencê-la de que casar-se com a princesa
Galuce, filha do rei Creonte, não havia sido mais do que uma estratégia para proteger a
família e os filhos. “Põe na cabeça de uma vez por todas: não foi por outra que subi ao
leito régio, mas por querer salvar a ti e aos dois meninos, pai de irmãos dos filhos de
agora, príncipes, bastiões do alcácer” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 77). Desposar a rainha
e produzir descentes era a melhor maneira de dar irmãos legítimos do trono para seus
filhos, protegendo-os de um futuro miserável. Ele chega a dizer que não se enamorou de
outra, mas que seu ato era completamente calculado. “Desde que da terra dos Iolcos para
aqui passei transpondo muitas desgraças irreparáveis que solução podia achar mais
acertada do que esta de desposar a filha do rei sendo um exilado?” (Eurípides, 431
a.C/2010, p. 91).
Medéia não acredita nos motivos de Jasão e ignora seus pedidos de que se acalme.
Em vão ele lhe pede: “Por que não aprimoras tuas sabenças? Não trates com pesar o que
dá lucro, nem faças do infortúnio tua fortuna” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 77). Mas
Medéia parece tomada de tamanho desvario que não reconhece os motivos de Jasão.
Dissimulada, o engana, para poder manter-se por mais um dia na cidade, a fim de dar
cabo a seus planos fatais.
Depois de convencer Creonte de que ficaria somente mais alguns dias na cidade,
Medéia executa seu crime em silêncio, com dolo e violência. Com ousadia e sem piedade,
usará a espada para matar seus próprios filhos. Ao pressentir essa loucura, que a torna
Outro para ela mesma, o Coro sentencia: “Lamento a tua dor, ó miseranda mãe! Matarás
os meninos por nódoa em teu nicho. Malogra a lei” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 115).
Essa mulher abandona tudo que é da ordem simbólica, não reconhece os semblantes
do Outro, desdenha da máscara fálica e vai rumo a um lugar para além da fronteira da lei
paterna. Nesse sentido, fere o pai duplamente, primeiro ao se colocar contra ele, e depois
por trazer o infortúnio ao marido. É a irrupção de um dos destinos do feminino no seio
do ato trágico. Medéia deixa entrever como a solidão é aqui a parceira de uma mulher.
“Não te é familiar o exílio? Desconhece o preço do vazio de amigos? Vislumbrei no
automergulho a estupidez do meu ressentimento” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 105).
A falta com que uma mulher está confrontada desde sempre na castração é
reduplicada pela figura de Medéia que Eurípedes constrói. Essa mulher está diante de um
nível muito mais radical da falta. Aliás, ela fabrica seu ser com a falta, pela ruptura com
as balizas fálicas ao seu redor. Quando esse gozo feminino ilimitado irrompe, ela é uma
mulher excluída do universo das palavras. Não é por acaso que o tema do trágico é
acionado por Lacan tendo como personagem principal a mulher. Há um elemento
qualquer que une a natureza desse gozo feminino, sem limites, ao inexorável do gozo na
tragédia.
O extravio de Medéia é muito claro, pois o que vemos se delinear nos atos dessa
mulher inflexível é um desvio radical. Ela se desloca sobre um trilho que vai de uma via
conciliadora e forjada pelo campo do ter – marido, filhos, uma casa – a um lugar
desconhecido onde o ter não tem mais nenhum valor. Lacan a chama de uma verdadeira
mulher e faz uma analogia entre o ato de Madeleine, de queimar as cartas-filhos de Gide,
e o assassinato dos filhos de Jasão por Medéia. Ela destrói o que lhe era um bem precioso
e o que a inseria numa cadeia de significações como mulher e mãe. Essa figura terrível
da mulher revela essa dicotomia entre a mulher conciliadora, que não tem limites para as
concessões que pode fazer em nome de seu homem, de seu corpo, sua alma, seus bens
(Lacan, 1973/2003, p. 538) e seu desdobramento, em uma segunda mulher, Outro para si
mesma, que na conexão com esse mesmo homem ao qual se dedicou, se transforma na
mais sanguinária das mulheres. “O mais das vezes a mulher é temerosa, covarde para a
luta e fraca para as armas; se lesados os direitos do leito conjugal ela se torna então de
todas as criaturas a mais sanguinária” (Lacan, 1958/1998 p. 739). O pênis do parceiro,
esse objeto fálico que ela acredita que perdeu para outra mulher, lhe designava o lugar de
mulher.
Para concluir sobre o extravio de Medéia, lançamos mão de uma referência do texto
‘Significação do falo”, de 1958, mesma data do texto “Juventude de Gide”, quando Lacan
se refere à Medéia em uma única frase. Nesse artigo, o psicanalista faz uma análise da
posição da mulher como mascarada. Talvez a posição de medeia antes de colocar tudo a
perder, quando ela ainda representava tudo para seu marido flerte com essa posição da
mascarada fálica:

Por mais paradoxal que possa parecer (...) dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo
do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente, todos os
seus atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que
amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda
de amor é endereçada. Não convém esquecer que, sem duvida, o órgão que se reverte dessa função
significante adquire um valor de fetiche. (Lacan, 1958/1998, p. 701).

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