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Paulo C.

Abrantes 2ª edição

Método & Ciência


Uma abordagem filosófica
2ª edição

Método e ciência:
Uma abordagem filosófica

Paulo C. Abrantes
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Paulo C. Abrantes
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CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

A143m
2. ed.
Abrantes, Paulo C.
Método e ciência: : uma abordagem filosófica / Paulo C. Abrantes. - 2. ed. - Belo
Horizonte, MG : Fino Traço, 2020.
304 p. : il. ; 23 cm. (Scientia ; 20)
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-65-9915-592-5
1. Ciências - Filosofia. 2. Ciências - História. 3. Teoria do conhecimento. I. Título.
II. Série.
14-16124 CDD: 501
CDU: 501

conselho editorial Coleção Scientia


Bernardo Jefferson de Oliveira | UFMG
Gilberto Hochman | Fiocruz
Maria Amélia Dantes | USP
Maria de Fátima Nunes | Universidade de Évora - Portugal
Mauro Lúcio Leitão Condé | UFMG
Olival Freire | UFBA

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br
Sumário

Introdução  9

1. Método e metodologia  15

2. Metodologia e epistemologia  33

3. Metodologia e lógica  47

4. A Metodologia no programa do empirismo lógico  67

5. Metodologia e descoberta científica  91

6. A metodologia falseacionista  113

7. Metodologia e heurística  127

8. A metodologia de programas de pesquisa científica  139

9. Metametodologias  159

10. Metodologia e metafísica  175

11. A metodologia da ciência “normal”  197

12. Modelos e simulação  215

13. Metodologia e epistemologias evolucionistas  237

Referências bibliográficas  269

Índice remissivo e onomástico  287


Aos meus filhos Elisa e Tiago.
8
Introdução

‘Ciência’, do latim scientia, significa conhecimento e pode ser conside-


rada a tradução latina para a palavra grega epistéme. O termo ‘ciência’, como
é hoje utilizado, refere-se tanto ao resultado de uma particular atividade
intelectual (ou seu produto, nesse caso o conhecimento científico), quanto
a essa atividade enquanto tal, envolvendo seus métodos, objetivos e valores.
‘Ciência’, em alguns contextos, pode também referir-se à base material dessa
atividade, incluindo não só as pessoas que dela participam – em particular
os seus principais agentes, os cientistas –, como também as instituições em
que se realiza, suas modalidades de financiamento, as relações que estabelece
com as tecnologias e com outras atividades na sociedade.
Uma reflexão sobre a ciência pode tomar por objeto uma ou várias
dessas dimensões. Talvez não cheguemos a uma genuína compreensão do
que seja a ciência se não as estudarmos em sua interdependência, dada a
complexidade com que se apresenta na atualidade.
A reflexão propriamente filosófica sobre a ciência – fiel à etimologia desse
termo – tradicionalmente enfocou a natureza do conhecimento científico,
o produto da atividade científica, ou seja, os aspectos epistemológicos da
ciência. Quais são as características desse produto que o tornam especial?
O que confere ao conhecimento científico tais características? Os chamados
‘filósofos da ciência’ buscam, fundamentalmente, responder a essas duas
questões na tentativa de distinguir a ciência de outras atividades intelectuais.
Até aqui usei o termo ‘ciência’ no singular. O que justifica esse uso?
A despeito da diversidade de objetos de que tratam as diversas ciências,
haveria algo que todas elas compartilham? Ou devemos render-nos às parti-
cularidades de cada uma delas usando, consequentemente, o termo ‘ciência’
sempre no plural?

9
No caso da atividade científica, é bastante difundida a intuição de que
seu traço distintivo, que a diferencia de outras atividades intelectuais e define
a sua natureza, é o método (ou um conjunto característico de métodos). Essa
é uma resposta possível à questão da unidade versus diversidade das ciências
formulada acima. Proponho que denominemos essa intuição de imagem
de ciência-como-método.1 Em contraste com os aspectos epistemológicos
que mencionei anteriormente, entendidos em seu sentido restrito, aqui o
foco é colocado sobre os aspectos propriamente metodológicos. Segundo
essa imagem, não basta uma referência aos objetos de investigação da(s)
ciência(s). Por exemplo, para que se caracterize a física, não seria suficiente
dizer que ela trata de projéteis, molas, átomos, planetas, gases, movimento,
trocas energéticas etc. É preciso dizer, adicionalmente, como tais objetos e
processos são estudados, quais são os métodos que orientam a investigação.
O fato de as universidades brasileiras, em seus diversos cursos, te-
rem disciplinas com a denominação ‘metodologia científica’ constitui uma
evidência do quão arraigada é essa imagem. Este livro é uma tentativa de
discuti-la, de qualificá-la, de explicitar as bases e implicações dessa imagem.
À primeira vista, parece razoável a tese de que é o método que distingue
a atividade científica de outras atividades intelectuais; de que as credenciais
dos produtos daquela atividade (que condicionam a sua aceitabilidade en-
quanto ciência) dependem do modo como estes produtos foram obtidos e
avaliados, dos métodos utilizados para tais fins. Parece ser, de fato, o método
que permite conferir certas propriedades epistêmicas aos produtos da(s)
ciência(s), distinguindo-os, por sua cientificidade, dos produtos de outros
tipos de atividade intelectual (como a filosofia, a arte, etc.). Mas como isso
se dá? Como, além disso, podemos saber que um método é adequado, que
se trata de um método científico?
É fácil constatar-se, entretanto, que há uma grande diversidade de mé-
todos utilizados nas várias ciências, o que indica mais heterogeneidade do
que pressupõe a imagem acima exposta. Haveria sentido, então, em afirmar
que há uma unidade metodológica das diversas ciências, tornando-as instân-
cias de uma mesma espécie de atividade? Haveria uma essência da ciência,

1. Sobre a noção de imagem de ciência, ver Abrantes (1998; 2006a; 2016).

10
ao menos no plano do método? A questão de uma pressuposta unidade
metodológica da ciência relaciona-se, nessa perspectiva, com a questão da
unidade da própria ciência.
Como o título deste livro indica, a abordagem que adoto é, funda-
mentalmente, filosófica. Não é óbvio, contudo, que a filosofia (em especial
a filosofia da ciência) tenha algo de pertinente a dizer a respeito dessas
questões. Afinal, não são os cientistas os árbitros legítimos para decidir, em
última instância, o que é uma hipótese ou uma teoria aceitável, científica?
Não são os cientistas, nas suas diversas áreas de especialidade, os únicos
em condições de desenvolver e aplicar métodos com esse fim? Em caso
afirmativo, uma metodologia científica (uma teoria do método científico)
não poderia ter outra base além da observação dos métodos efetivamente
empregados pelos cientistas e da reflexão que estes últimos, eventualmente,
façam a respeito de tais métodos.
Os tipos de questões que coloquei nos parágrafos anteriores, entretan-
to, e o modo mesmo como foram formuladas, indicam que essa estratégia
meramente descritiva da ciência praticada não permitiria respondê-las de
modo satisfatório. Aquelas são questões filosóficas e exigem uma aborda-
gem filosófica. Mas pode-se perguntar, de outro modo, o que caracteriza
as questões filosóficas nessa área da metodologia científica. Em que uma
abordagem filosófica se distingue de uma abordagem científica no tocante
a esse aspecto? Tais perguntas colocam-se já em um nível acima daquele
em que foram colocadas as questões anteriores; um nível em que a própria
relação entre a filosofia e a ciência é tematizada. O tópico do(s) método(s)
científico(s) revela-se, na verdade, muito fértil para se discutir, num me-
tanível, essa relação. Em muitos momentos, ficará claro que passarei de uma
discussão a respeito da ciência, para uma discussão a respeito da própria
abordagem filosófica adotada para lidar com questões metodológicas.
Antes de iniciar essa investigação, no entanto, quero fazer algumas
observações gerais sobre como este livro é organizado e qual o seu públi-
co-alvo. Ele é destinado a um público amplo. Houve uma preocupação em
abordar mesmo as questões mais técnicas de modo a permitir que leitores sem
formação filosófica prévia acompanhem as discussões. Exemplos históricos

11
são utilizados para ilustrá-las.2 Informações básicas, ou pré-requisitos para
as discussões, quando não fornecidas no corpo do texto, são apresentadas
em quadros, de forma resumida.
Embora eu pretenda também atingir um público não especializado,
espero que estudantes de graduação e de pós-graduação em filosofia, e até
mesmo especialistas, possam tirar proveito deste livro. Tive em mente, por-
tanto, públicos diversos ao escrevê-lo, que poderão percorrer os capítulos de
modo seletivo. Por exemplo, disse acima que o conteúdo dos quadros que
insiro em diferentes partes do texto é, em geral, bastante introdutório; pois
estes poderão ser saltados pelo leitor mais avançado. Além disso, assinalo
com asterisco seções que tratam de temas mais técnicos e avançados, que
poderão ser deixadas de lado numa primeira leitura, sem comprometer a
compreensão do texto principal.
Para facilitar a leitura e torná-la mais fluida, reduzi ao máximo as ci-
tações e referências bibliográficas no corpo do texto. A extensa bibliografia
apresentada ao final inclui todas as fontes consultadas, mesmo as que não
foram citadas no texto ou referenciadas explicitamente.

Plano do livro
O capítulo “Método e Metodologia” é introdutório e propõe que tais
termos, contrariamente ao uso comum, sejam distinguidos. Defendo aí que
a metodologia científica seja entendida como uma teoria (filosófica) do(s)
método(s) científico(s).
A espinha dorsal deste livro é composta por capítulos em que rela-
ciono, de forma detalhada, a metodologia científica com outras áreas da
filosofia, como a epistemologia, a lógica e a metafísica. Trata-se dos capítu-

2. Quero frisar que este não é um livro de história do método científico, mas de filosofia da
ciência. Os estudos de caso históricos, alguns bastante desenvolvidos, cumprem basica-
mente a função de ilustrar os tópicos filosóficos discutidos. Não há, desse modo, pretensão
de cobrir amplos períodos históricos ou de realizar um trabalho detalhado e exaustivo de
reconstrução histórica. Publiquei um livro de história da ciência (Abrantes, 1998; 2016) ao
qual remeto, em vários momentos, o leitor interessado numa historiografia mais abran-
gente e aprofundada. Aos interessados na metodologia do trabalho historiográfico e, em
particular, no uso filosófico que aqui faço da história da ciência, ver Abrantes (2002; 2016).

12
los: “Metodologia e Epistemologia”, “Metodologia e Lógica”, “Metodologia
e Metafísica”.
Um outro grupo de capítulos aborda, de modo particular, escolas con-
temporâneas da filosofia da ciência, e o lugar que nelas ocupa uma temá-
tica propriamente metodológica. Trata-se dos capítulos: “A Metodologia
no Programa do Empirismo Lógico”, “A Metodologia Falseacionista”,
“A Metodologia de Programas de Pesquisa Científica”, “A Metodologia da
Ciência Normal”.
O capítulo “Metodologia e Heurística”, embora tenha um caráter sis-
temático e geral – nele lanço mão de conceitos e desenvolvimentos na área
de inteligência artificial –, aborda um tópico estreitamente relacionado com
a metodologia proposta por Lakatos, um dos mais eminentes filósofos da
ciência do século passado.
O capítulo sobre “Metametodologias” discute como essas e outras teorias
filosóficas do método científico podem ser justificadas, e aborda diferen-
tes modalidades de justificação de teorias filosóficas em geral. O capítulo
“Metodologia e Descoberta Científica”, embora trate de um tópico sistemático,
retraça alguns marcos significativos da história da filosofia da ciência desde
o século XIX, tendo como pano de fundo a questão da possibilidade de se
distinguir os momentos da descoberta e da justificação no trabalho científico.
Os últimos capítulos do livro – “Modelos e Simulação”, “Metodologia
e Epistemologias Evolutivas” – enfocam temáticas metodológicas mais es-
pecíficas. Eles se articulam, de múltiplas maneiras, com os demais capítulos
do livro.
Faço esse recorte dos capítulos somente a título de apresentação e no
sentido de indicar os principais eixos do livro, que podem não transparecer
pela simples leitura do seu índice. Tive uma preocupação especial com o
entrelaçamento das temáticas abordadas nos diversos capítulos e seus res-
pectivos níveis de análise, que se remetem mutuamente. Os capítulos foram,
além disso, ordenados de modo a prover os pré-requisitos necessários para
as leituras subsequentes.
Quero agradecer, em especial, aos meus alunos de filosofia da ciência
que, ao longo de anos, foram submetidos a versões preliminares dos textos

13
que integram este livro. Suas questões e críticas ao apontarem, de forma
direta ou indireta, falhas e lacunas nesses textos foram fundamentais para
a elaboração deste livro e, sobretudo, motivaram-me a escrevê-lo.
Agradeço os comentários de colegas, amigos e amigas que tiveram
acesso a partes deste livro em diferentes estágios da sua elaboração. Mesmo
correndo o risco de me esquecer de alguma pessoa, pelo que peço desculpas,
quero mencionar de modo especial: Júlio Cabrera, Felipe Amaral, Fernando
Adorno, Maria Luiza Gastal, Charbel Niño El-Hani, Luis de Gusmão, Renan
Springer de Freitas, Sanmya Jesus Salomão, Filipe Lazerri, Antônio Ferreira
Marques Neto, Thaís Cavalcanti de Assis e Wendel Lopes. Agradeço também
aos Professores Howard Sankey, da Universidade de Melbourne, e Robert
Nola, da Universidade de Auckland, pelas muitas conversas esclarecedoras
que mantivemos em torno das temáticas aqui analisadas. Evidentemente,
essas pessoas não têm qualquer responsabilidade pelas falhas que porventura
se mantenham neste livro, a despeito das críticas e observações que fizeram
a versões preliminares dele.
Agradeço o CNPq pelo apoio que tem dado ao meu trabalho de pes-
quisa, e a CAPES por conceder-me uma bolsa de pós-doutorado que me
possibilitou fazer contatos diretos com vários especialistas nesses assuntos.

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1

Método e metodologia

1. Método
A palavra ‘método’ é de origem grega: met(a) (depois) + hodós (caminho).
Essa etimologia confirma o significado usualmente associado a esse termo:
o caminho pelo qual se pretende atingir um fim.1 Portanto, o método científico
seria o caminho trilhado ou, numa linguagem menos metafórica, a rotina
ou procedimento adotado para se atingir o fim (ou os fins) da(s) ciência(s).
A questão da natureza do método científico está, portanto, estreitamente
ligada à questão do fim (ou dos fins) da(s) ciência(s).
Uma imagem de ciência-como-método, que mencionei na Introdução,
nos leva a pensar que as diversas ciências compartilham, fundamentalmente,
um mesmo método. Por mais criteriosos e restritivos que sejamos no uso do
termo ‘ciência’2 não há, contudo, como negar muita diversidade no domínio
científico, inclusive no plano do método. Os cientistas, nas suas respectivas
áreas, usam vários métodos para resolver os mais diversos tipos de problemas.

1.1. Exemplos de métodos e categorização


Se não, vejamos. O que têm em comum os métodos de datação em-
pregados, por exemplo, em arqueologia; o método duplo-cego, usado em

1. Note que um dos significados do prefixo grego meta é justamente o de fim, o que reforça
esse entendimento.
2. Os termos ‘ciência’ e ‘científico’ são usados sem muita parcimônia. Isso é evidência do
prestígio de que desfrutam em nossos dias. Dizer que algo é científico confere, de antemão,
credibilidade a esse algo. Isso não foi sempre assim, e em vários círculos da nossa sociedade
tem crescido, ao contrário, uma resistência a tudo o que provenha da atividade científica,
ou que seja visto como associado a ela (como a tecnologia).

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medicina; os métodos de comparação e de analogia, usados em várias ci-
ências; e o chamado ‘método hipotético-dedutivo’?
Além do fato de vários desses métodos serem empregados em algumas
ciências mas não em outras, eles claramente pertencem a categorias diferentes
e são adotados tendo em vista diferentes objetivos.3 Alguns deles visam coletar
e tratar dados empíricos; outros estão envolvidos na construção de hipóte-
ses; outros pretendem colocar à prova hipóteses ou teorias; ou então testar
tratamentos médicos e produtos tecnológicos. E poderíamos citar muitos
outros métodos e diversos objetivos que pautaram o seu desenvolvimento.
Há, por exemplo, um grande número de métodos usados na obtenção
e tratamento de dados empíricos, que variam de ciência para ciência, em
função dos seus diferentes objetos de estudo. Tais métodos podem envolver
somente os nossos sentidos – por exemplo, uma observação direta – ou exigir
elaborados instrumentos, como o microscópio eletrônico, usualmente num
contexto experimental. O uso e a calibração desses instrumentos pressupõe,
por sua vez, a aplicação de um outro conjunto de métodos (ou técnicas).
Pensemos em um caso bem simples: o da calibração de uma balança, que
precede um processo de pesagem que, por sua vez, também segue um ou
vários métodos...
Para ilustrar essa categoria de métodos – empregados na obtenção
e tratamento de dados empíricos –, destacarei um método de medida de
tempo, na verdade um método de datação (de fósseis, por exemplo), muito
utilizado em ciências como a paleoantropologia e a arqueologia, entre outras.

(1) Método de carbono 14


Esse método ilustra um conjunto de procedimentos baseados na exis-
tência da radioatividade e em teorias a respeito desse fenômeno. Isótopos
de determinados elementos – neste caso, escolhi o carbono 14 – decaem, ou
seja, transformam-se em outros isótopos ou num elemento químico diferen-
te, como consequência da sua radioatividade (basicamente, da emissão de
nêutrons e raios gama pelos núcleos desses átomos). A taxa de decaimento
desses isótopos é constante. A datação faz-se com base na medição da pequena

3. Essa diversidade sugere, inclusive, que o termo ‘método’ pode ter diferentes sentidos
nesses contextos.

16
quantidade de material radioativo contido nos objetos em estudo. Com o
conhecimento da vida média do isótopo, e supondo-se que o decaimento
radioativo deu-se uniformemente, é possível calcular o tempo transcorrido
desde que o processo se iniciou.4
Esse método só pode ser desenvolvido após a descoberta da radioati-
vidade por Becquerel, em 1896, e ilustra a dependência que determinados
métodos têm de conhecimento científico.5 Neste caso, o método pressupõe a
descoberta de um novo fenômeno – a radioatividade –, e o desenvolvimento
de uma teoria a esse respeito (em última análise, a teoria atômica).
Em ciência, a coleta de dados é só uma etapa da investigação, buscando-se
em seguida explicar os fatos com base em hipóteses, ou testar essas últimas
com base nos fatos coletados. Para se construir tais hipóteses, métodos de
um outro tipo são utilizados. Para permanecermos no âmbito das ciências
históricas (como a antropologia biológica ou a geologia), tratarei a seguir de
uma regra metodológica utilizada para gerar hipóteses a respeito das causas
de determinados fenômenos.

(2) Método uniformista


O ‘método uniformista’ (chamemo-lo assim) traduz-se pela seguinte
regra: suponha que as causas que atuaram no passado sejam do mesmo
tipo e tenham a mesma intensidade das causas que se observa atuando no
presente. O fim deste método é formular hipóteses a respeito de processos
que ocorreram desde um passado remoto e cujos efeitos são observados
no presente.

4. A meia-vida de um isótopo radioativo é, como o termo indica, o intervalo de tempo


para que metade dos átomos originalmente presentes na amostra tenha decaído. Embora a
radioatividade seja um fenômeno indeterminístico – não há como saber quando um átomo
particular decairá, mas somente a probabilidade de fazê-lo –, o decaimento da amostra
como um todo (envolvendo um grande número de átomos) dá-se de forma constante e não
é afetado por condições externas. A taxa de decaimento de um isótopo de certo tipo – diga-
mos o C14, que tem uma meia-vida de aproximadamente 5700 anos – depende do número
de átomos-pais (ou seja, dos átomos desse isótopo antes do decaimento) e da constante de
decaimento (que é uma propriedade de cada tipo de isótopo radioativo).
5. Isso não impede que o método de carbono 14, como qualquer outro método, possa ser
usado para gerar (mais) conhecimento (por exemplo, a respeito da evolução de uma deter-
minada espécie). Por outro lado, as teorias científicas que sustentam tais métodos foram
geradas e validadas por outros métodos, possivelmente mais gerais (entre alguns dos que
serão arrolados a seguir).

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Ao comparar-se esta regra metodológica com o método anterior, nota-se
que ela é baseada não em conhecimento científico propriamente dito, mas
numa imagem de natureza (conhecida como ‘uniformismo’) e que pode ser
apresentada nos seguintes termos: a natureza atua de modo uniforme, tanto
no que diz respeito ao tipo de causa (necessária para produzir um determi-
nado efeito) quanto à intensidade com que a causa atua.6 Podemos também
ver o empirismo, uma imagem de ciência, como uma outra motivação para a
aplicação dessa regra (tratarei em detalhes dessa imagem nos capítulos 2 e 4).
Esta regra metodológica suscitou controvérsia entre geólogos do início do
século XIX, já que nem todos aceitavam as imagens de natureza e de ciência
que ela pressupõe. Um grupo de geólogos defendia explicações uniformistas
e outro grupo defendia explicações catastrofistas para a conformação atual
da crosta terrestre. Os catastrofistas supunham, frequentemente apoiando-se
em mitos, que a superfície da Terra fora moldada por processos de grandes
proporções, diferentes em magnitude e natureza de tudo o que observamos
hoje em dia. Hutton, representante da corrente oposta, uniformista, era um
empirista e defendia o princípio da uniformidade da natureza. Em Theory
of the earth: with proofs and illustrations (1795) sustentou, pela primeira
vez, que a Terra sofreu mudanças lentas e graduais (uniformes) num longo
período de tempo. Como consequência de sua imagem empirista de ciência,
os únicos agentes causais que admitia para explicar o desenvolvimento da
Terra são os que observamos atuando hoje em dia. Hutton exerceu grande
influência sobre Lyell, que, por sua vez, foi uma referência central para
Darwin chegar à sua própria teoria.7 Para os uniformistas, os eventos no
passado são supostos semelhantes aos observados presentemente: a indução
baseada nessas observações é o único método que admitiam em Geologia.
No caso do uniformismo, necessariamente há que se pressupor intervalos
de tempo muito maiores do que os exigidos pelas explicações catastrofistas,
já que, tipicamente, o que observamos hoje são causas atuando em pequena

6. Acredito que isso deva ser distinguido da princípio da uniformidade da natureza, que pode
ser assim formulado: as leis da natureza são imutáveis. O uniformismo como apresentado
no texto vai além, fazendo afirmações sobre causas particulares (seu tipo, intensidade, etc.).
7. Ver também a nota 10, abaixo. Aos interessados em ter detalhes sobre o confronto de diferentes
imagens de ciência provocado pela teoria darwinista da evolução no séc. XIX, ver Abrantes, 2016.

18
intensidade e, como consequência, processos lentos, como os de erosão das
rochas e deposição de materiais no leito dos oceanos.
Tanto o método (1) quanto a regra metodológica (2) são usados em
determinadas ciências e, por isso, os qualificarei de ‘particulares’. Passo a
expor alguns métodos que têm um caráter mais geral.

(3) Método de divisão e composição


Vou assim chamar o método que prescreve a divisão de um problema
complexo em problemas mais simples; e que se resolvam estes últimos pri-
meiro e se tente, em seguida, recompor as soluções para resolver o problema
original. Encontramos formulações famosas desse método nos trabalhos
de Descartes.8 No Discurso do Método – num contexto em que claramente
está voltado para a resolução de problemas matemáticos –, ele se impõe o
“preceito” de “(...) dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em
tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor
resolvê-las” (Descartes, 1987:37-8).9 Na literatura de inteligência artificial é
comum se chamar de ‘método de dividir e conquistar’ a uma versão desse
método. Ele se aplica, em princípio, à resolução de qualquer problema cuja
complexidade impeça um enfrentamento, digamos, global.

(4) Método de analogia


Ele pode ser formulado nos seguintes termos: se objetos do tipo A têm
propriedades (r,s,t,u,v) e observa-se que objetos do tipo B compartilham
com A um subconjunto dessas propriedades, digamos, as primeiras quatro
propriedades (r,s,t,u), infira que objetos do tipo B também possuem as
demais propriedades (no caso, a propriedade v).
Do mesmo modo que o método (2), os métodos (3) e (4) são utilizados
para gerar hipóteses, embora esses dois últimos, como disse, podem em

8. Esse método não deve ser confundido com o chamado ‘método de análise e de síntese’,
que foi proposto pelos geômetras na Antiguidade e que também é discutido por Descartes
(ver a nota seguinte).
9. Essa obra foi publicada, originalmente, em 1637. Antes disso, nas Regras para a direção
do espírito (1628), ele apresentara outras versões desse método ou preceito (ver, sobretudo, a
regra V). Essa discussão se insere em outra, mais geral e de grande relevância, a respeito do
papel das simplificações e idealizações em ciência. No capítulo 12, abordo alguns aspectos
dessa discussão quando trato de modelos e simulação. Ver também Darden (1991).

19
princípio ser aplicados em diferentes ciências. O método (3), por outro
lado, é por demais esquemático, já que não indica como resolver problemas
particulares mas sugere somente uma estratégia muito geral para resolver
qualquer tipo de problema que se mostre complexo.
Para finalizar essa ilustração preliminar da enorme diversidade de méto-
dos e de regras metodológicas, chamo a sua atenção para as seguintes regras:
(5) Se duas hipóteses são, ambas, adequadas empiricamente, dê prefe-
rência à que é compatível com teorias já aceitas pela comunidade científica.
(6) Dê preferência a hipóteses que não só expliquem fenômenos obser-
vados, mas que também façam previsões de novos fenômenos.
(7) Acolha uma hipótese que explique muitos tipos diferentes de fenô-
menos, em lugar de várias hipóteses que expliquem, cada uma delas, um
único tipo de fenômeno.10
(8) Não busque confirmar as suas hipóteses; tente desconfirmá-las
(mostrar que são falsas).
Note, primeiramente, que as regras metodológicas de (5) a (8) são uti-
lizadas não para construir hipóteses (que se supõe já terem sido propostas),
mas sim para validá-las. Não é óbvio, além disso, que essas regras dependam,
pelo menos diretamente, de conhecimento científico ou de uma imagem de
natureza, como no caso das regras (1) e (2). Algo de mais geral, de natureza
filosófica, as motivaria ou as justificaria.
Apresentei alguns dos métodos acima sob a forma de regras impera-
tivas, normas metodológicas categóricas. Essa forma sintática não os faz
diferentes dos demais. Eu também poderia ter descrito o método (1), por
exemplo, da mesma forma, através de uma série de regras: faça isso, depois
faça aquilo, etc.
O meu objetivo até aqui foi o de ilustrar a diversidade de métodos pas-
síveis de serem utilizados nas ciências, sugerindo que eles podem ser mais
ou menos gerais, de diferentes tipos e voltados para diferentes fins. Também
sugeri que tais métodos ou regras metodológicas são justificadas de diferentes
modos: ora por teorias científicas, ora por teorias filosóficas.

10. Whewell, grande filósofo da ciência do séc. XIX, propôs com o termo ‘consiliência’ uma
regra semelhante a esta. Darwin foi influenciado por esse filósofo, preocupado que estava
em validar filosoficamente a sua teoria da evolução. Ver Abrantes, 2016, cap. 6.

20
1.2. Fins intermediários e fins últimos da ciência
Na lista de métodos que apresentei acima, é possível explicitar uma
grande variedade de fins associados a eles (em geral, eles estão implícitos
na formulação da regra metodológica que os expressa operacionalmente).
Proponho que dividamos esses fins em dois grandes grupos: fins inter-
mediários e fins últimos promovidos por tais métodos, isoladamente ou
combinados uns com os outros.
Por exemplo, o método de calibração, digamos de uma balança, busca
torná-la um instrumento fidedigno de medida. A calibração de um instru-
mento não é, portanto, um fim último, um fim em si mesmo, mas um fim
intermediário para atingir outro como, no caso da balança, obter informação
sobre a massa de um determinado corpo. Este também pode ser um fim in-
termediário, no contexto de uma pesquisa que busca conhecer como a massa
de um corpo está relacionada com a sua aceleração, dada uma certa força,
na tentativa de descobrir alguma regularidade envolvendo essas variáveis.
Este objetivo pode, ainda, ser intermediário e buscar a avaliação de uma
hipótese ou teoria (como a mecânica de Newton) proposta para explicar,
por exemplo, o comportamento de um corpo num campo gravitacional,
como o da Terra.
Um microscópio eletrônico pode ser utilizado para investigar ranhuras
em instrumentos líticos, que permitam conjecturar a respeito dos processos
utilizados para construí-los ou a respeito dos seus usos na pré-história.
A classificação de modalidades de paleotecnologias (atualmente há consenso
em torno de quatro) e conjecturas a respeito do seu grau de complexidade
(associada à dificuldade em fabricar esses instrumentos, à sua uniformidade,
aos seus usos etc.), juntamente com evidências a respeito dos instrumentos
encontrados em diversos sítios arqueológicos, permite retraçar trajetórias
de migração (por exemplo, confrontar diferentes cenários para a ocupa-
ção de regiões da Ásia e da Europa ocidental pelo Homo ergaster após ter
saído da África).
Outro exemplo: um cientista, ao classificar as plantas de uma dada
região, pode não parar aí, atingindo um fim intermediário, mas ter em
mente conhecer as suas relações ecológicas com os animais que ali vivem.

21
Este fim, por sua vez, pode ser intermediário e intentar um estudo sobre as
pressões seletivas que moldam a evolução daquelas espécies de seres vivos.
Mais um exemplo: métodos matemáticos e lógicos usualmente visam
manipular e transformar formas simbólicas, sentenças, numa linguagem.
Este é, em geral, um fim intermediário. O fim último do uso de tais métodos
pode ser, por exemplo, o de provar um teorema. A manipulação simbó-
lica é também fundamental, em muitos casos, para se poder confrontar
uma teoria empírica com as evidências coletadas pela observação ou pela
experimentação.11 O emprego do chamado ‘método hipotético-dedutivo’
pressupõe, como veremos, esse tipo de manipulação simbólica (a dedução
lógica) e busca, em última análise, saber se uma hipótese é adequada aos
dados empíricos disponíveis. Se for adequada, ela é justificada ou validada.
O fim último do emprego desses métodos matemáticos e lógicos, no caso,
é saber se a hipótese habilita-se a ser incorporada enquanto conhecimento
científico. A aplicação das regras metodológicas de 5 a 8, apresentadas aci-
ma, também busca promover esse fim (a validação de uma hipótese). Este
fim pode, por sua vez, estar subordinado a um outro, como o de encontrar
ordem na desordem aparente de fenômenos naturais.
Todos os métodos arrolados até aqui promovem, portanto, o fim último
da atividade científica: gerar conhecimento. Há, contudo, diversas contro-
vérsias em torno dessa noção de conhecimento, discutidas no âmbito da
epistemologia (o tópico central do capítulo 2). Podemos, além disso, achar
esse fim (o conhecimento) por demais amplo e genérico, e apontar, em vez
disso, para outros fins mais específicos, como: a explicação, a previsão, etc.
Em filosofia da ciência, essa discussão vincula-se aos valores das teorias
científicas, como sua adequação empírica, seu poder preditivo, seu poder
explicativo, sua simplicidade etc. Esses fins últimos da atividade científica,
podemos denominá-los como ‘epistêmicos’. Há muito a ser investigado a
respeito da natureza desses fins, por exemplo: se são alcançáveis; se são inde-
pendentes; se podem ser promovidos simultaneamente ou se, ao contrário,

11. Em ciência, a observação é, raramente, um fim em si mesmo, mas motiva a construção


de leis, teorias, ou permite submetê-las a um teste.

22
ao visar um deles podemos comprometer outros etc. Essas questões são de
grande relevância para a teoria do método científico.
No verbete método do Dicionário Houaiss, naquelas acepções assinaladas
como propriamente filosóficas, podemos não só perceber claramente a relação
entre métodos e fins – sugerida, como mostrei no início, pela etimologia da
palavra – mas também a ênfase nos fins propriamente epistêmicos, últimos.
O método seria:
(10) o “conjunto sistemático de regras e procedimentos que, se respei-
tados em uma investigação cognitiva, conduzem-na à verdade”;
(10.1, “cartesianismo”) “o somatório de operações e disposições prees-
tabelecidas que garantem o conhecimento, tais como a busca de evidência,
o procedimento analítico, a ordenação sistemática que parte do simples
para o complexo, ou a recapitulação exaustiva da totalidade do problema
investigado”;
(10.2, “na filosofia de Bacon”) a “reunião de prescrições de natureza
indutiva e experimental que asseguram o sucesso da investigação científica”;
Nessas acepções indicadas no dicionário, os fins epistêmicos são men-
cionados explicitamente, com maior ou menor precisão: “verdade”, “conhe-
cimento”, “sucesso da investigação”. Note também a “garantia”, a “segurança”
com que se espera que o(s) método(s) “conduza(m)” a tais fins, bem como
o caráter prescritivo do(s) método(s), claramente explicitado em (10.2).
Veremos que uma abordagem filosófica em metodologia volta-se, pri-
mordialmente, para tais fins epistêmicos.

1.3. Uma hierarquia de métodos


Como disse anteriormente, os métodos científicos não possuem o
mesmo grau de generalidade. Alguns deles são usados em certas ciências,
mas não em outras.
Por exemplo, as técnicas para o sequenciamento do material genético
obviamente só são utilizadas em biologia ou em ciências que tenham uma
grande interface com a biologia. Um sociólogo, por exemplo, não se ser-

23
virá dessas técnicas, do mesmo modo como métodos para a elaboração e
tabulação de questionários de nenhuma serventia serão para o biólogo.12
Os métodos usados para se explicitar as implicações de uma hipótese
ou teoria também variam de área para área. Em ciências matematizadas,
formalizadas, tais implicações são resultado de procedimentos matemá-
ticos (por exemplo, algébricos) e têm um caráter dedutivo (quando há
propriamente uma axiomatização das teorias, por exemplo) ou quase-de-
dutivo. Em ciências não-matematizadas, não podemos aspirar a esse mesmo
grau de rigor e de automatismo proporcionado pelas técnicas de manipu-
lação simbólica.
Alguns métodos são particulares porque só se aplicam a objetos com
certas propriedades, ou então a certos tipos particulares de problema. Este é
o caso do método de carbono 14, que mencionei anteriormente. Esse método
não permite fazer datações além de 50 mil anos atrás. Um outro método, de
potássio/argônio, não permite recuar além de 200 mil anos (Klein & Edgar,
2005:230). Vários métodos, além desses dois, são combinados para se fazer
datações com respeito a ocorrências mais recuadas no tempo.13
Outro exemplo de método particular é o método duplo-cego: descobriu-
se que é necessário usá-lo para se testar a real eficácia de medicamentos em
seres humanos, já que estes podem ser facilmente sugestionados (o chamado
‘efeito placebo’). Para tais métodos particulares, de nível baixo, por vezes
usa-se o termo ‘técnica’ (termo que usei acima para me referir a alguns
métodos). Uma comparação de métodos com ferramentas pode ajudar a
entender em que sentido são ‘particulares’.

12. Eventualmente, algum problema poderia reunir biólogos e sociólogos, na solução do qual
possam compartilhar os mesmos métodos, como o problema de explicar o comportamento
de animais sociais. A esse respeito, ver Abrantes (2018, especialmente os capítulos 10 a 13).
13. Os métodos de carbono 14 e de potássio/argônio exemplificam a categoria de métodos
absolutos de datação. O paleoantropólogo e o arqueólogo servem-se também de métodos
relativos de datação, que permitem estabelecer séries temporais de fósseis, objetos e restos
animais em sítios arqueológicos. Um deles é baseado no princípio de superposição estrati-
gráfica: “... quanto mais profunda a camada de rocha onde um objeto aparece, mais antigo
é esse objeto” (Klein & Edgar, 2004:229). Outro método, conhecido como o ‘método de
datação fauniana’, possibilita datar um sítio que contém uma única camada, comparando-o
com um sítio que contém várias camadas, de alguma outra região, com base nos fósseis,
objetos e restos animais encontrados em ambos.

24
Uma ferramenta, como um martelo, para que possa cumprir sua função
(por exemplo, a de enfiar pregos numa madeira) deve ser feita de determi-
nados materiais (no caso, de ferro) e possuir certas propriedades, como a
de ter certa massa, dentre outras. Essas propriedades do martelo, por sua
vez, dependem de características do nosso mundo particular. Martelos,
para cumprirem sua função na lua, por exemplo – que possui uma força
gravitacional mais fraca – teriam que ter características diferentes, como
uma maior massa.
Num mundo (possível) em que não existissem materiais duros (por
exemplo, num mundo em que tudo fosse gasoso) martelos não teriam qual-
quer utilidade (na verdade, não poderiam sequer ser construídos!).
De modo análogo a instrumentos, métodos de nível baixo promovem
determinados fins no contexto de um mundo particular, ou de um domínio
particular de fenômenos. O que justifica o emprego de métodos particulares
de nível baixo são, normalmente, teorias científicas que tratam dos objetos
ou processos particulares aos quais tais métodos se aplicam. Nesses casos,
percebe-se claramente a dependência dos métodos com respeito a teorias
científicas, ou com respeito a imagens de natureza.
A denominação genérica de ‘método experimental’14 ilustra como a
aplicação de muitos métodos depende das propriedades atribuídas aos objetos
e processos que estão sendo investigados. A experimentação com objetos
físicos – como esferas, gases, correntes elétricas, etc. – exige procedimentos
certamente diferentes, em aspectos cruciais, da experimentação com animais
(por exemplo, em psicologia). Durante séculos questionou-se, além disso,
que a experimentação fosse um método adequado para se estudar os sistemas
vivos, supostamente por terem propriedades diferentes da matéria inerte.
Acreditava-se que a experimentação eliminaria, justamente, o que os seres
vivos teriam de específico, de essencial. Há, também, restrições ao uso do
método experimental em várias áreas, como nas ciências sociais, em função
dos seus objetos específicos ou por razões éticas. Pode-se argumentar que

14. Trata-se, na verdade, de uma atitude geral, secundada por uma imagem de natureza, que
se reflete no emprego de um conjunto de métodos. Sobre a noção de imagem de natureza,
ver Abrantes (1998; 2006a; 2016).

25
o método experimental pressupõe, além disso, uma imagem mecanicista
de natureza, tese que discutirei no capítulo 10.
Ao lado de métodos que são particulares a determinadas ciências – para
os quais usei termos como ‘métodos de nível baixo’ ou ‘técnicas’ –, outros
tantos métodos são utilizados em diversas ciências ou em todas elas, por
terem um caráter mais geral. Um exemplo é o que chamei acima de ‘mé-
todo hipotético-dedutivo’ (e que, por vezes, é identificado como o método
científico, ou parte central deste). É também o caso dos métodos, ou regras,
numerados de 3 a 8 acima. Muitos desses métodos parecem, à primeira vista,
neutros com respeito à natureza dos objetos a que se aplicam (à sua matéria,
por assim dizer); eles seriam, nesse sentido, formais, decorrendo daí a sua
aplicabilidade mais geral. Os métodos numerados de 5 a 8 enquadram-se
nessa categoria. Vários métodos matemáticos e estatísticos também poderiam
ser aí incluídos (a despeito dos fins específicos que são perseguidos, como,
por exemplo, o tratamento de dados empíricos).

2. Metodologia
Em diversos contextos ordinários, ‘método’ e ‘metodologia’ são pala-
vras usadas como sinônimos e são, portanto, intercambiáveis. As questões
colocadas nas seções anteriores e na Introdução deste livro bem como as
categorias aí propostas mostram, contudo, que pode ser útil distinguir essas
noções e reservar os termos ‘metodologia’ e ‘metodológico’ para se referir
a um discurso sobre o método. Neste caso, a metodologia estaria situada
num nível diferente do método. Note que isso é o que sugere a etimologia
do termo ‘metodologia’: o logos do método. O termo grego logos pode ser
entendido, justamente, como razão. A metodo-logia teria por objeto a razão
do emprego de determinado método.
A metodologia seria, nessa acepção, uma teoria do método, através
da qual os métodos – em geral, adotados rotineiramente – seriam sistema-
tizados, explicados, prescritos (tendo-se em mente os fins pretendidos) e,
eventualmente, criticados. Por exemplo, a tentativa preliminar de explicitar
uma relação estreita entre métodos e fins, indicada anteriormente, constitui
uma reflexão sobre o método e coloca-se num outro nível, que não é o do

26
uso ou da aplicação do método no trabalho científico rotineiro, de resolução
de problemas. Proponho, portanto, a seguinte distinção de níveis:
2. Metodologia
1. Método
A relação do nível (2) com o nível (1) pode ser, como disse acima, a de
prescrição, de explicação, de crítica, de sistematização, etc.
A comparação entre método e técnica pode, uma vez mais, ser es-
clarecedora. Uma técnica, como um método, é um procedimento para se
atingir um determinado fim. Um artesão é alguém que domina uma técni-
ca, uma arte, ou seja, os meios mais eficientes para atingir os fins a que se
propõe. Mas o artesão pode ter aprendido a usar uma técnica por imitação,
por exemplo, o que é muito comum, e, portanto, pode ter adquirido esse
know-how sem saber explicar como funciona a técnica, ou porque ela tem
sucesso em atingir os objetivos fixados. Um bom pedreiro, ou mestre de
obras, sabe como fazer uma certa viga de concreto para a sustentação de
uma casa misturando, numa certa proporção, cimento e areia, além de
outros materiais. Mas ele talvez não saiba a razão disso.15 Um engenheiro,
por ter estudado resistência dos materiais, conhece, em princípio, o porquê
da regra que prescreve uma determinada proporção, tendo em vista o peso
que a viga vai suportar.
Um tecnólogo, diferentemente de um técnico, possui uma reflexão
explícita e consciente a respeito de porque determinadas técnicas funcionam
tendo em vista certos fins. Ele possui um conhecimento que permite explicar
a eficácia de certas técnicas, em determinadas circunstâncias.16
Por analogia, o metodólogo seria aquele capaz de sugerir qual o melhor
meio para se alcançar as metas a que se propõe o cientista e de avaliar a efi-
cácia (probabilidade de êxito) de um determinado método.17 A metodologia

15. O pedreiro tem experiência, diria Aristóteles, sem ter ciência.


16. Essa diferença pode ser somente de grau, ao vermos um contínuo entre o tipo de conhe-
cimento que possui o técnico e o tipo de conhecimento que possui o tecnólogo.
17. O metodólogo (que reflete sobre o método) e o cientista (que emprega o método) podem
ser a mesma pessoa, evidentemente. No caso de métodos de nível baixo são, usualmente,
a mesma pessoa, já que para fazer metodologia é preciso dominar a teoria científica que
fundamenta o método utilizado. Mesmo no caso de métodos de alto nível isso pode ocorrer
– mas não necessariamente. Os maiores metodólogos do século XIX, por exemplo, foram
cientistas, como Claude Bernard, Pierre Duhem, H. Hertz, entre outros.

27
pode, nessa perspectiva, ser entendida como uma espécie de tecnologia,
isto é, como um conjunto de recomendações sobre os melhores meios para
se atingir uma determinada meta. Nessa acepção, a metodologia científica
consistiria no estudo da adequação entre os métodos e a(s) meta(s) últi-
ma(s) da ciência.

*2.1. Uma teoria filosófica do método?


Sugeri, na seção anterior, que um método científico é, em geral, ado-
tado rotineiramente numa prática, enquanto que a metodologia científica
seria uma tentativa de explicar esse método, torná-lo objeto de reflexão,
de teorização. A reflexão metodológica usualmente não se dá no nível da
ciência, mas no da metaciência.18 O caráter dessa reflexão metacientífica
sobre o método será objeto de muita discussão ao longo deste livro. Vou
antecipá-la, aqui, explorando, rapidamente, o entendimento de que essa
reflexão pode ter um caráter estritamente filosófico.
A filosofia compromete-se, tradicionalmente, com o que é geral, assim
como com a essência ou a natureza daquilo que investiga. Este livro apre-
senta-se como uma abordagem filosófica da questão do método e, portanto,
a questão da diversidade versus unidade metodológica da ciência é crucial
para justificar esse projeto. Podemos almejar a generalidade no domínio
da metodologia científica? Faz sentido, diante do que vimos até aqui, tentar
reduzir os vários métodos empregados pelos cientistas a um ou, pelo menos,
a alguns poucos métodos? Dada a relação íntima entre métodos e fins, uma
pergunta análoga pode ser feita com respeito aos fins da ciência.
Uma teoria filosófica do método científico pretende ter independência
com respeito ao conhecimento – relativo a um mundo ou domínio particu-
lar de objetos, processos, etc. – produzido no âmbito das diversas ciências.
Além disso, ela não poderia servir-se dos próprios métodos utilizados nas
ciências, sob pena de cair numa circularidade viciosa. A metodologia cien-

18. Vimos anteriormente que o prefixo grego met(a) tem o sentido de depois. Metacientífico,
segundo essa etimologia, significa o que vem depois da ciência, ou em seguida a esta. No
verbete meta do Dicionário Aurélio encontramos o significado “reflexão crítica sobre”, bem
adequado ao sentido contemporâneo de metaciência: reflexão crítica sobre a ciência (no
caso aqui discutido, uma reflexão crítica sobre o(s) método(s) científico(s) ).

28
tífica, na condição de uma filosofia do método científico, teria, neste caso,
que ser elaborada a partir de princípios (e métodos!) filosóficos: lógicos,
epistemológicos, metafísicos, etc.19
Essa autonomia com respeito às ciências é vista, usualmente, como uma
condição para que a metodologia tenha um caráter normativo, prescritivo
(de direito), crítico, não se limitando a descrever os métodos (de fato) em-
pregados pelos cientistas e os fins que eles (de fato) perseguem. Mas como
garantir essa autonomia?
A metodologia teria que investigar a priori – quer dizer, antes e indepen-
dentemente de evidência empírica – quais são os métodos mais adequados,
ou mais eficientes, para se atingir com sucesso determinados fins (em certas
circunstâncias). E, do mesmo modo, a legitimidade, relevância, etc. desses
fins. Só assim uma metodologia filosófica poderia prescrever métodos a
serem adotados pelos cientistas. A metodologia científica habilitar-se-ia,
desse modo, a ser uma genuína sub-área da filosofia da ciência.20
Além desse caráter normativo, uma teoria filosófica do método aspira,
de um lado, à generalidade. Vimos que muitos métodos (suprimirei, por
comodidade, o qualificativo ‘científico’) são particulares a determinadas
tarefas ou áreas de atividade, e adequados a objetos específicos. Para que uma
metodologia seja geral, ela tem que ser neutra com respeito a aspectos parti-
culares do domínio de aplicação de determinados métodos. A esse respeito,
é instrutivo comparar o método de carbono 14 com as regras metodológicas
numeradas de 5 a 8. O primeiro, como indiquei, pressupõe um conhecimento
científico a respeito dos fenômenos radioativos. Esse conhecimento científico
não somente valida o método, mas também estabelece como ele deve ser
utilizado e em que situações. Pelo fato de que pressupõem conhecimento

19. Estou pressupondo, para efeito dessa discussão, que os princípios lógicos, epistemológicos,
metafísicos, etc. têm uma natureza fundamentalmente distinta dos princípios das ciências.
Isso pode ser contestado, contudo, como farei nas várias discussões sobre o naturalismo
ao longo deste livro.
20. Do mesmo modo como Laudan (1980a) refere-se a uma lógica da inferência científica a ser
explicitada por uma teoria do método, o verbete metodologia no dicionário Houaiss também
concede à lógica um papel privilegiado. A metodologia seria um “ramo da lógica que se ocupa
dos métodos das diferentes ciências”. É curioso que, no mesmo dicionário, a acepção seguinte
desse mesmo verbete conceda, agora, à ciência um lugar privilegiado que era, antes, reservado
à lógica (!): “(1.1) Parte de uma ciência que estuda os métodos a que ela própria recorre”.

29
científico, métodos de nível baixo não interessam aos filósofos (que, afinal,
não têm competência para se pronunciarem a respeito da razão pela qual
tais métodos são empregados).
Por outro lado, os filósofos estão envolvidos com os fins últimos da
ciência e com uma justificação propriamente filosófica daqueles métodos
que têm um caráter geral. A generalidade está, neste contexto, associada à
universalidade de uma metodologia – que pretende ser uma reflexão sobre
aqueles métodos empregados em todas as ciências.21 Esse uso que faço do
termo ‘metodologia’, em contraposição ao termo ‘método’, no que diz respeito
à dimensão generalidade não é, contudo, consensual.22
Os ideais de normatividade, generalidade e universalidade para uma
teoria filosófica do método podem ser, contudo, quiméricos. Essa teoria,
em vez de ser normativa no sentido forte do termo, talvez tenha que ser
concebida, de forma mais modesta, como resultado de um trabalho de
esclarecimento, de análise das intuições metodológicas (pré-analíticas) dos
cientistas (de suas imagens de ciência).23
Talvez tenhamos, também, que admitir que tanto o método quanto a
metodologia são particulares a determinadas áreas ou objetos de investiga-
ção e abandonar, consequentemente, o ideal de uma unidade metodológica
para o conjunto das ciências. Nesse caso, a distinção mesma entre método
e metodologia (filosófica) pode ficar comprometida.
Nesta discussão preliminar surgiram questões complexas, que suscitam
muita controvérsia entre filósofos. Haveria uma unidade metodológica das
ciências? Em que medida uma metodologia científica pode ser a priori e

21. Em outros termos, poderíamos tentar defender a existência de uma única teoria (filo-
sófica) do método científico reconhecendo, ao mesmo tempo, a diversidade dos métodos
empregados pelos cientistas.
22. Por vezes, faz-se uso desses termos num sentido exatamente inverso ao que estou pro-
pondo aqui, no tocante a essa dimensão de generalidade: as metodologias seriam particulares
a determinadas áreas das ciências, e o método seria geral. Exemplos desse emprego são:
‘metodologia’ da física, ‘metodologia’ da economia, etc. (as chamadas metodologias especiais
das ciências). Ver Nadeau, 1999, p.413; Salmon, In: Dancy et al. 1993, p.279.
23. O discernimento propriamente metacientífico promovido pela metodologia (entendida
como teoria do método) revelar-se-ia por exemplo: a) no uso de uma terminologia ou de
conceitos específicos, metacientíficos (distintos dos conceitos empregados no discurso
metódico, no nível da linguagem científica); b) na sistematização desses conceitos num
corpo teórico (numa genuína teoria do método).

30
neutra com respeito ao conhecimento substantivo (sobretudo aquele produ-
zido no âmbito das ciências)? Como a metodologia se articula com outras
áreas da filosofia, como a lógica, a epistemologia e a metafísica? Veremos
nos próximos capítulos que as respostas a essas questões variam bastante
de acordo com a orientação filosófica que se adote.

31
32
2

Metodologia e epistemologia

Epistéme é o termo grego para conhecimento. Em Platão, por exemplo,


epistéme opõe-se a doxa (opinião). Em Aristóteles, epistéme designa um
corpo sistematizado de conhecimento: teórico, verdadeiro e demonstrado
a partir de princípios indubitáveis. Epistemologia pode, portanto, ser enten-
dido como teoria do conhecimento: área da filosofia que investiga a natureza
do conhecimento (o que é isso?), as suas origens (ou fontes), modalidades
e limites. Usualmente, a teoria do conhecimento parte de uma análise (ou
definição) da noção de conhecimento, estabelecendo as condições necessá-
rias (e conjuntamente suficientes) para se ter conhecimento. Numa tradição
que remonta a Platão, analisa-se o conceito de conhecimento como crença
verdadeira justificada.1
Partindo-se dessa análise da noção de conhecimento, destacam-se duas
frentes importantes da investigação epistemológica: o desenvolvimento de
teorias da verdade e de teorias da justificação.
As teorias da verdade como correspondência e da verdade como coerência
são exemplos de desenvolvimentos na primeira frente. Aristóteles defendeu
uma versão da primeira teoria: uma proposição é verdadeira se ela representa
um fato ou corresponde a um fato. Uso o exemplo clássico: a proposição ‘a
neve é branca’ é verdadeira se (de fato) a neve é branca. Nessa concepção
correspondentista, a verdade enquanto propriedade de uma proposição é
determinada por um estado de coisas no mundo (a que a proposição, se

1. Recentemente, essa análise foi contestada por Gettier (1963), dando origem aos chamados
‘problemas Gettier’, cuja resolução vem consumindo os esforços de gerações de teóricos
do conhecimento. No contexto das questões investigadas neste livro, podemos adotar a
definição tradicional de conhecimento e ignorar esses problemas.

33
verdadeira, refere-se), e independe de nossa condição epistêmica (daquilo
em que acreditamos, do que consideramos racional ou justificado, etc.).2
Isso já revela um problema com a concepção correspondentista: ela
tenta correlacionar dois polos que são heterogêneos, que têm diferentes
naturezas: uma proposição de um lado (algo com a natureza linguística ou
com a natureza de uma crença) e um estado de coisas no mundo (algo que,
em princípio, possui uma natureza extra-linguística ou extra-mental, algo
exterior a nós e ao que temos acesso direto). Como saber, então, se uma
proposição (ou uma crença com este conteúdo) é verdadeira? Esse problema
é considerado insolúvel pelos que rejeitam a concepção correspondentista e
tentam substituí-la por uma concepção que envolva polos homogêneos, ou
seja, que tenham natureza similar e que, portanto, possam ser comparados.
Uma tentativa nessa direção é, justamente, a concepção coerentista da
verdade, segundo a qual uma proposição (ou a crença correspondente a ela)
é verdadeira se ela for coerente com outras proposições (ou crenças). Para
usarmos o mesmo exemplo, a proposição ‘a neve é branca’ é verdadeira se
for coerente com outras proposições, como a de que ‘a neve reflete luz de
todos os comprimentos de onda’, a de que ‘a neve é composta de cristais de
água’, etc. Note que no coerentismo, para atribuirmos a propriedade verdade a
uma proposição (ou crença), basta compararmos coisas de mesma natureza:
crenças ou proposições. O mundo como algo externo a nós não entra em cena
nesse caso. O correspondentista objetará que, por mais que asseguremos que
um conjunto de proposições é coerente, uma delas (ou a totalidade delas)
pode, ainda assim, ser falsa. Outra maneira de colocarmos a objeção seria:
a crença de que a neve é branca pode ser falsa mesmo que tenhamos todo
um conjunto de crenças correlatas e coerentes em relação a ela.3

2. Segundo essa concepção, portanto, a verdade teria um caráter não epistêmico. A concep-
ção de verdade como coerência, que apresentarei a seguir, aponta, por sua vez, para uma
concepção epistêmica de verdade.
3. Há outras concepções da verdade, como a pragmática, segundo a qual uma crença é
verdadeira (ou a proposição que constitui o seu conteúdo é verdadeira) se ela for eficaz
em guiar uma ação. Este não é um livro de teoria do conhecimento, portanto, não caberia
entrar numa discussão aprofundada a respeito da noção de verdade.

34
Agora vou traçar um panorama de questões centrais e relevantes – para
a investigação que empreendo neste livro –, na outra frente da investigação
epistemológica: a de teorias da justificação. O fundacionalismo é uma teoria
da justificação que remonta, pelo menos, a Descartes e constitui uma proposta
muito influente. O fundacionalista defende que uma crença é justificada
se, e somente se, ela puder ser inferida de crenças básicas cuja verdade (e
justificação) não podem ser questionadas; ou seja, se ela puder apoiar-se
em algum fundamento indubitável. Por exemplo, um fundacionalismo de
tipo empirista poderia defender que crenças que têm origem na percepção
formam uma base de crenças indubitáveis – como a crença que tenho, nes-
te momento, de que estou diante de uma tela de computador. Esta minha
crença estaria justificada, simplesmente, porque eu estou vendo a tela do
meu computador, porque estou tendo esta percepção. Não seria necessário
apelar para outras crenças para justificá-la. Esse tipo de fundacionalismo
tenta justificar o restante de nossas crenças, mesmo aquelas muito distantes
da percepção, a partir de crenças básicas, consideradas autojustificadas.4
Outras teorias da justificação questionam que tenhamos quaisquer
crenças inabaláveis, como espera o fundacionalista e, portanto, estabelecem
relações de justificação mais simétricas entre crenças. Todas as nossas crenças
seriam, nesse caso, passíveis de revisão, por mais básicas que pareçam ser.
O que justificaria, então, uma crença?
Por outro lado, de que modo a justificação e a verdade – duas condições
necessárias para se ter conhecimento, segundo a concepção tradicional – estão
relacionadas? O fato de estarmos justificados em nossas crenças garante que
elas sejam verdadeiras ou, pelo menos, nos indica que nos aproximamos da
verdade? Podemos almejar a verdade ou devemos nos contentar com fins
menos ambiciosos (dadas as nossas capacidades cognitivas e dado o modo
como o mundo é)? Essas são questões tipicamente epistemológicas e vere-
mos que elas se colocam de forma análoga no âmbito da filosofia da ciência.

4. Esse tipo de fundacionalismo pode ser criticado. Mesmo no caso de crenças perceptuais,
sabemos que frequentemente nos enganamos, por exemplo quando acreditamos ter visto
um amigo passando na rua, mas, na verdade, o confundimos com outra pessoa, muito
parecida com ele.

35
1. Teoria do conhecimento e filosofia da ciência
A partir do século XX, o termo ‘epistemologia’ passou a ser considerado,
por determinados autores e correntes filosóficas, sinônimo de ‘filosofia da
ciência’. Muitos defendem, contudo, que esta última área tem âmbito mais
restrito do que aquela: a epistemologia envolveria uma investigação mais
geral, incluindo o conhecimento científico como uma forma particular de
conhecimento. Outros filósofos não veem a filosofia da ciência como uma
mera instância de uma teoria do conhecimento: o conhecimento científico
colocaria problemas lógicos, epistemológicos e metafísicos específicos que
diferem dos problemas colocados pelos produtos das nossas práticas cog-
nitivas ordinárias.
Outros ainda poderão ir além e defender que, ao contrário, o conheci-
mento científico é o melhor modelo que temos do que seja conhecimento e,
assim, veem a filosofia da ciência como a base para qualquer teoria (geral)
do conhecimento.
Interessa-me, no momento, somente frisar – com base nessa afinidade
histórica entre a epistemologia e a filosofia da ciência – que a questão da
justificação dos produtos da atividade científica (tipicamente leis e teorias)
é tão central para esta última área quanto a justificação das crenças é uma
questão central para a epistemologia.5 Podemos também esperar, com base
nessa afinidade, que a legitimidade dos fins e valores epistêmicos persegui-
dos pela atividade científica seja outro tópico central da filosofia da ciência.
Já mencionei vários desses valores (ou fins): verdade, adequação empírica,
poder preditivo, poder explicativo, consistência, simplicidade, etc.6

5. O meu foco aqui é a filosofia da ciência, portanto evitarei o uso sistemático do termo
‘crença’ – como é comum em epistemologia –, dado o seu caráter psicológico. Ao invés de
falar na justificação de crenças nas entidades e processos de que tratam hipóteses ou teorias
científicas (e.g. a crença de que életrons têm uma carga negativa), ou do valor epistêmico
dessas crenças, escreverei, como de praxe, ‘justificação de teorias científicas’ ou ainda ‘valor
epistêmico de teorias científicas’. Por trás dessa mudança de terminologia há questões con-
troversas ligadas ao chamado ‘psicologismo’, que fogem ao escopo deste livro.
6. Usarei preferencialmente a expressão ‘valores epistêmicos’. Outros autores utilizam as
expressões ‘valores cognitivos’, ‘virtudes epistêmicas’ e ‘fins epistêmicos’, que podem ser
consideradas como sinônimos para efeito das discussões que faço neste livro. Dependendo
da concepção de verdade que se adote, ela pode ser considerada não epistêmica (ver a nota 2).

36
Veremos que essas duas questões são de grande relevância para a metodo-
logia científica. Com respeito à primeira questão, métodos estão diretamente
envolvidos na justificação de teorias científicas e, portanto, na racionalidade
das decisões tomadas pelos cientistas (de aceitar ou não determinadas teo-
rias). Métodos como o hipotético-dedutivo,7 por exemplo, indicam quando
uma teoria é adequada empiricamente ou quando devemos descartá-la como
não-adequada às evidências empíricas de que dispomos. Outros métodos
estão envolvidos em aferir a consistência, o poder preditor e outros valores
listados acima. Com respeito a esses valores coloca-se a segunda questão, a
respeito da sua legitimidade.
A questão da legitimidade dos valores e fins é objeto da axiologia (o
estudo dos valores). Como a abordagem deste livro é filosófica, os valores que
nos dizem respeito são, sobretudo, os epistêmicos, que listei anteriormente.
É de grande relevância discutir a legitimidade desses valores epistêmicos
como, por exemplo, se podem ser atingidos ou não.
No caso da verdade – que para muitos é o valor máximo – a situação
é bastante complicada. Dependendo de como entendemos verdade (por
exemplo, se adotamos a teoria correspondentista da verdade), veremos que é
questionável que haja métodos que permitam aferi-la, sobretudo no caso de
teorias científicas. Mesmo que nossos métodos possibilitem atribuir outros
valores epistêmicos às nossas teorias – como a sua adequação empírica ou
poder explicativo – e, portanto, assegurar que somos racionais em aceitá-las
(ou rejeitá-las), isso pode não garantir que elas sejam verdadeiras (ou mesmo
aproximadamente verdadeiras; ver a nota 10).
É chamada de ‘falibilista’ (ou ‘falseacionista’) a posição de que, dados os
métodos de que dispomos, as nossas teorias científicas são sempre falíveis e
passíveis de revisão. A verdade do conhecimento teórico seria inalcançável.
Um problema central da metodologia científica é o de saber se os métodos
adotados pelos cientistas são (ou não) adequados para se atingir determina-
dos fins epistêmicos. Em que medida, por exemplo, os métodos científicos
podem almejar a verdade?

7. O método hipotético-dedutivo será discutido no capítulo 3.

37
Este problema é análogo ao que coloquei na seção anterior: o fato de
termos uma crença justificadamente não assegura que ela seja verdadeira.
No caso da ciência, o problema é ainda mais grave, dada a natureza das
teorias científicas, questão que discuto no capítulo 4.
O problema de se a verdade é um fim legítimo ou alcançável pela ci-
ência é particularmente sensível no caso das teorias que fazem referência
a entidades e processos não-observáveis.8 Por exemplo, a teoria atômica
descreve processos que ocorrem no nível microscópico, envolvendo partí-
culas como prótons e elétrons. Em outro nível, a genética molecular é uma
teoria que descreve processos, também inacessíveis à observação direta,
envolvendo a duplicação de macromoléculas como o DNA, que regulam
o desenvolvimento dos organismos. Essas teorias são altamente valoriza-
das pela comunidade científica por serem adequadas empiricamente, por
explicarem um grande número de fatos e por preverem tantos outros, por
serem consistentes, etc. Mas seriam essas teorias também verdadeiras? Se
o forem, então as entidades que mencionam (prótons, nucleotídeos, etc.)
realmente existem e os processos descritos realmente ocorrem, mesmo que
as evidências que temos a seu respeito sejam indiretas.9
Há muita discussão entre filósofos da ciência a esse respeito, mas pouco
consenso. Os realistas, por exemplo, acreditam que os métodos científi-
cos permitem guiar-nos em direção à verdade mesmo no caso de teorias
como essas.10
Já os não-realistas são céticos a esse respeito (ou agnósticos): o que
importa, dizem eles, é que tais teorias estejam de acordo com as evidências

8. Estou supondo aqui que a observação é feita de forma direta, pelos sentidos, sem uso
de instrumentos. É claro que algo pode ser não-observável ao olho nu, embora observável
com o auxílio de instrumentos.
9. Aqui estou pressupondo a teoria correspondentista da verdade.
10. Realistas que admitem uma concepção correspondentista da verdade enfrentam um
problema complexo: como assegurar que uma teoria que satisfaz às regras do método e
que, portanto, atinge fins epistêmicos como adequação empírica, poder preditivo, etc. seja
verdadeira ou aproximadamente verdadeira? O problema é consequência da heterogeneidade
que apontei anteriormente nos polos que são colocados em correspondência: crenças de
um lado e o mundo de outro. O realista terá que mostrar que os critérios (metodológicos)
adotados para admitir crenças (teorias) científicas garantem que cheguemos à verdade ou
que nos aproximemos dela. A concepção correspondentista da verdade segrega, portanto,
esse valor (ou fim) dos demais valores, que podemos saber quando são alcançados.

38
empíricas disponíveis (observações feitas a olho nu, preferencialmente, ou
aquelas com o auxílio de instrumentos, que são indiretas) e consigam fazer
previsões que possam ser confirmadas. Assim, a genética consegue prever a
frequência com que determinados traços fenotípicos dos pais aparecem na
sua descendência (nas diversas gerações). Não importa se, de fato, existem
moléculas como o DNA, ou se os complexos processos químicos envolvidos
na sua duplicação e na síntese de proteínas de fato ocorrem. Na melhor das
hipóteses devemos, segundo eles, suspender o juízo a esse respeito. Para os
não-realistas, a verdade (entendida em um sentido correspondentista) não
é um fim alcançável da atividade científica.11 Podemos, no máximo, visar
a teorias que sejam adequadas empiricamente, que expliquem um grande
número de fatos e que tenham um grande poder preditivo (para citar so-
mente alguns valores epistêmicos). Em outros termos, para os não-realistas
os métodos utilizados para se avaliar teorias científicas não são capazes de
assegurar quais delas são verdadeiras, e nem mesmo de indicar que avan-
çamos nessa direção. Se esta for mesmo a nossa condição, então a verdade
não seria um fim legítimo da atividade científica.12
Um fundacionalista-empirista em filosofia da ciência enfrentará dificul-
dades em mostrar que crenças a respeito de entidades não-observáveis são
justificadas somente com base em crenças a respeito de entidades observáveis.
Este é o problema da justificação do conhecimento propriamente teórico. 13

11. E mesmo que seja alcançável, não poderemos sabê-lo, dizem filósofos não-realistas
como Laudan.
12. Um não-realista poderia, no entanto, admitir que busquemos a verdade a respeito do
mundo observável de objetos macroscópicos (a despeito dos céticos mais radicais). Ou seja,
pode ser verdadeiro que estou, de fato, diante da minha tela de computador neste momento
(para ficarmos com o mesmo exemplo) ou que o meu telefone está tocando. Ele suspenderia o
juízo, contudo, a respeito dos supostos processos envolvidos na formação da imagem na tela
do meu computador: um bombardeio de elétrons nas moléculas da substância que reveste
a tela, fazendo com que tais moléculas emitam fótons que vão impressionar as retinas dos
meus olhos. Tais processos são descritos por várias teorias científicas, que o não-realista
julgará, simplesmente, como sendo (ou não) compatíveis com o que eu observo e capazes
de prever o que observarei no futuro, dadas certas condições.
13. Um racionalista poderia tentar desenvolver um fundacionalismo que tome outros tipos
de crenças, não-perceptuais, como compondo o nosso estoque de crenças básicas e enfren-
tar, talvez com mais facilidade, problemas como esse. Uma concepção anti-empirista fere,
contudo, as nossas intuições a respeito das bases do conhecimento científico, a respeito do
que, em última instância, justifica uma crença científica.

39
2. Gerativismo e consequencialismo14
Nas discussões anteriores, a respeito dos métodos utilizados pelos cien-
tistas e que agregam valor aos produtos da atividade científica,15 há uma
ambiguidade que gostaria de dirimir nesta seção.
O gerativismo e o consequencialismo são diferentes concepções a res-
peito dos procedimentos que conferem valor epistêmico a produtos da
atividade científica.
Para o consequencialista, a determinação do valor epistêmico de uma
teoria depende de extrairmos as suas implicações ou consequências (as pre-
visões da teoria) e de as confrontarmos com a experiência, o que pressupõe
o uso de determinados métodos. Não importa o modo como foi gerada a
teoria, através do uso de outros métodos (pelo menos em princípio). Por
exemplo, é consequencialista a tese metodológica de que uma teoria que faça
predições corroboradas tem maior valor epistêmico do que uma teoria que
faça uma predição não-corroborada, independentemente do modo como
cada uma delas foi gerada.
Digamos que um cientista tenha proposto uma hipótese porque sonhou
com ela, ou porque ela se conforma às suas concepções místicas. Conta-se,
por exemplo, que Kekulé sonhou que a estrutura da molécula de benzeno
tivesse a forma de um anel. O grande Kepler, por sua vez, acreditava que as
órbitas dos planetas do sistema solar estavam inscritas em sólidos regulares,
porque isso garantiria, a seu ver, de que se trata de um sistema ordenado e
belo. Concepções de ordem metafísica e estética tiveram importância no
modo como geraram as teorias em questão. Suponhamos que não con-
siderássemos aceitáveis tais métodos, ou seja, os caminhos efetivamente
trilhados por tais cientistas para chegar às suas hipóteses ou teorias (ou
seja, que não os considerássemos métodos científicos). Pouco importa, diz
o consequencialista – desde que tais hipóteses ou teorias sejam adequadas
aos fatos e, com base nelas, possamos fazer predições corretas (no caso de

14. O consequencialismo em epistemologia, de que trato aqui, não deve ser confundido
com uma posição, assim nomeada, em metaética.
15. Que valores são esses, que pesos damos a cada um deles e se são alcançáveis é, como
vimos, objeto de disputa.

40
Kekulé, predições a respeito de reações químicas envolvendo o benzeno ou
predições, no caso da teoria de Kepler, a respeito das posições planetárias).
Para o gerativista, em contraste, o modo como uma teoria é gerada, o
método efetivamente empregado para tanto, é crucial para a avaliação que
fazemos dela. O gerativista defende que esses procedimentos empregados
pelo cientista podem conferir valor epistêmico a uma teoria ou hipótese,
independentemente de um eventual controle empírico (teste) das suas con-
sequências, e anteriormente a esse controle.
Por exemplo, uma teoria que foi gerada a partir de um conhecimento
de fundo previamente aceito (seja ele factual, seja teórico) já possui um
valor epistêmico inicial, segundo o gerativista, antes mesmo de derivarmos
qualquer consequência dela, de modo a nos certificarmos de sua adequação
empírica.16 Por exemplo, para alguns cientistas do século XIX, o fato de que
o modelo inicialmente proposto por Bohr para a estrutura do átomo era
análogo à estrutura do sistema solar dava a esse modelo uma credibilidade
inicial. Nos séculos XVIII e XIX, profundamente marcados pelos sucessos
de Newton, o fato de que leis (como a de Coulomb, da atração de cargas
elétricas) tivessem a mesma forma da lei da gravitação era visto como algo
extremamente positivo. Grandes cientistas do século XIX estabeleciam
como condição para que se aceitasse uma nova teoria (como, por exemplo,
a teoria eletromagnética proposta por Maxwell) que ela pudesse ser deri-
vada da mecânica clássica (amplamente aceita à época) ou, pelo menos,
compatível com ela.
O gerativismo e o consequencialismo são, portanto, diferentes concep-
ções a respeito de como métodos e fins estão relacionados nas várias etapas
da atividade científica. Voltarei a tratar dessas concepções nos próximos
capítulos e a mencionar filósofos que adotaram cada uma delas. Quero
enfatizar, na próxima seção, como questões e polêmicas desse tipo revelam
o interesse genuinamente filosófico da metodologia científica.

16. Não há, necessariamente, conflito entre o consequencialismo e o gerativismo. É possível


defender-se, de forma coerente, que o valor epistêmico de uma hipótese ou teoria depende,
em parte, do modo como ela é gerada e, em parte, dos testes a que for, posteriormente,
submetida com base nas suas consequências.

41
*3. Teoria do método e teoria do conhecimento
Com base na forte orientação epistemológica que a filosofia tomou a
partir da modernidade, e que ainda repercute, como vimos, na filosofia con-
temporânea da ciência, é de se esperar que a metodologia (entendida como
teoria do método) só seja vista como tendo importância filosófica na medida
em que ela estiver, de alguma forma, implicada na questão da justificação
dos produtos da atividade científica e na questão da legitimidade dos fins
cognitivos (como vimos, problemas centrais da teoria do conhecimento).
Por outro lado, o modo como se concebe a articulação da metodologia
e da epistemologia pode dar precedência a uma dessas áreas da investigação
filosófica em relação à outra, no que tange à natureza da atividade científica e
de seus produtos. Uma primeira concepção dá à epistemologia uma posição
privilegiada e percebe a metodologia como tendo uma posição subordinada.
Caberia à epistemologia estabelecer a priori a natureza do conhecimento, bem
como os fins a serem idealmente alcançados; à metodologia caberia, então, a
tarefa de indicar os melhores meios para atingi-los, de fazer recomendações
que guiem práticas que pretendam atingir tais fins e gerar conhecimento,
dadas certas condições. No século XX, os empiristas lógicos representam
essa concepção, em suas tentativas de reduzir a metodologia à epistemologia
(e, em última análise, à lógica, como veremos no capítulo 3).
Uma concepção alternativa àquela consideraria, ao contrário, a epis-
temologia como dependente da metodologia, esta última tendo, portanto,
precedência.17 Questões epistemológicas (a respeito da natureza do conhe-
cimento, dos fins a serem perseguidos, etc.) só poderiam ser respondidas
a posteriori, no seio das próprias práticas cognitivas e metódicas. As respostas
a tais questões podem, inclusive, modificar-se à medida que se adquira mais
conhecimento a respeito dos objetos da investigação, das suas condições
e dos sistemas cognitivos (e.g. os cientistas) que a levam a cabo. A pró-
pria investigação define os fins a serem alcançados ou que são alcançáveis.
As questões de método adquirem, nesse caso, precedência, pois pouco ou
nada podemos saber a priori, antes que a investigação se inicie e gere re-

17. Essas possibilidades não esgotam todo o espectro. Podemos imaginar uma posição que não
conceda privilégio a nenhuma dessas áreas, todas estando, por assim dizer, no mesmo plano.

42
sultados. Conhecimento e metaconhecimento (incluindo o de caráter me-
todológico) são, neste caso, produzidos de forma interdependente, no seio
de uma mesma investigação.18
Essa última concepção leva a ver a ciência, antes de tudo, como uma
atividade que se pratica em determinadas condições, envolvendo atores
(sistemas cognitivos) de certo tipo. O caráter essencialmente dinâmico
dessa atividade só pode ser compreendido se o foco estiver na produção do
conhecimento e não somente nos seus produtos. Essa concepção conduz,
também, a se ver as características epistêmicas dos produtos da atividade
científica como dependentes da maneira como são produzidos, ou seja,
dos métodos empregados. Os pragmatistas americanos, Dewey e Peirce,
e mais recentemente Popper, são exemplos dessa postura, já que deram à
metodologia uma posição privilegiada na constituição de uma filosofia da
ciência.19 Veremos, nos próximos capítulos, que Popper considera que a
filosofia da ciência deve compreender como aumentamos o conhecimento,
uma questão propriamente metodológica.
Os metodólogos do século XVII também abraçaram algo próximo
dessa concepção, interessados que estavam numa ars inveniendi, ou seja,
nas estratégias para gerar conhecimento (em oposição a meras crenças não-
-justificadas). Segundo essa perspectiva, os métodos devem contribuir para
justificar as construções (hipóteses, teorias, etc.) por eles geradas. Portanto,
a metodologia teria, nessa concepção, relevância epistemológica, já que a
adoção de métodos adequados forneceria um pedigree epistemológico, uma
justificação aos produtos da atividade cognitiva que emprega tais métodos,
agregando valor a tais produtos. Esta concepção inclui-se no que estou cha-
mando aqui de ‘gerativismo’. Uma das funções de um método de descoberta
seria, nessa perspectiva, a de fornecer credenciais (epistemológicas) a uma
teoria ou a qualquer outro produto gerado com o seu auxílio.

18. No capítulo 13 sugiro, adotando uma perspectiva evolucionista (ou selecionista), que
talvez as próprias questões fundamentais da epistemologia, a respeito da natureza do co-
nhecimento, bem como da axiologia, a respeito dos fins da atividade cognoscente, possam
depender, em última instância, dos métodos empregados para respondê-las, assim conce-
dendo à metodologia uma posição mais destacada.
19. Discutirei em detalhe, nos próximos capítulos, os casos dos empiristas lógicos e de Popper.

43
É possível, contudo, desvincular totalmente a metodologia da episte-
mologia? Pode-se articular uma metodologia que não seja gerativista nem
tampouco consequencialista? Que impacto uma metodologia desse tipo
pode ter sobre a prática científica e sobre a prática filosófica? Essas questões
serão abordadas à medida que formos avançando.

*4. Metodologias construtivas e gerativistas


Quero introduzir aqui uma outra distinção que é, digamos, ortogonal
à que fiz na seção anterior. As metodologias podem ou não ser construtivas,
isto é, podem ou não ter interesse pelo modo como teorias e outros produtos
da atividade científica são (ou podem ser) construídos.
Esse interesse construtivo é, em princípio, independente da preocupação
com o impacto epistêmico do emprego de determinados métodos (isto é,
com a questão de se o uso de determinada estratégia produtiva confere valor
epistêmico ao que é produzido seguindo as suas regras). Portanto, o gerati-
vismo, como o defini, é construtivo, mas metodologias construtivas podem
não ser gerativistas, ou seja, podem não ter qualquer pretensão de conferir
valor epistêmico às teorias construídas com os métodos que recomendam.20
As metodologias do século XVII a que me referi acima eram, ao mesmo
tempo, construtivas – ou seja, respondiam por uma preocupação com a heu-
rística – e gerativistas – ou seja, eram consideradas relevantes do ponto de
vista epistemológico. Por mais diferentes que tenham sido as suas concepções
filosóficas, Francis Bacon e Descartes eram gerativistas pois acreditavam que
o uso dos métodos que propunham conferia valor aos produtos de atividades
cognitivas como a ciência. Por isso dedicaram tantos esforços no sentido de
desenvolverem uma metodologia que não fosse somente consequencialista.
Bacon chegou a acreditar que a aplicação do seu método (das regras que
propôs) deixava pouco ou nenhum espaço para a inventividade ou a prática
dos pesquisadores:

20. No capítulo 6 discutirei uma outra distinção: entre metodologias construtivas (pros-
pectivas) e as reconstrutivas (retrospectivas).

44
O nosso método de descoberta das ciências é de tal sorte que deixa
muito pouco para a agudeza e a robustez do engenho [dos homens],
nivelando toda agudez e inteligência. Do mesmo modo como para
traçar uma linha reta ou um círculo perfeito, desenhando-os com a mão
[não assistida], muito importam a firmeza e a prática, [estas] pouco ou
nada importam usando-se a régua e o compasso; o mesmo se dá com
o nosso método. (Bacon, Novum Organum, Livro 1, LXI, 1952:113)21

Pode-se argumentar que metodologias construtivas são importantes


para a prática científica. Afinal, talvez a parte mais importante dessa prática
esteja envolvida na construção de hipóteses e de teorias. Hoje muito se tra-
balha, por exemplo, no desenvolvimento de programas de computador que
auxiliam o cientista nessa etapa da sua atividade. Um consequencialista pode,
perfeitamente, admitir que cientistas façam uso de métodos construtivos,
heurísticos. Entretanto, ele nega que isso, por si só, tenha relevância filosófica
(e não somente tecnológica, produtiva). Em que medida um interesse por
métodos em função meramente do seu papel construtivo, enquanto techné,
pode associar-se também a um interesse genuinamente filosófico? Discutirei,
em vários capítulos, essa questão polêmica.22

21. Há pequenas diferenças entre esta edição e a citação que Cohen & Nagel fazem dessa
mesma passagem (1972:245). Apoiei-me, para essa tradução livre, em ambas as versões.
Também servi-me da tradução em português da coleção Os Pensadores (Nova Cultural,
1988), mas esta não captura adequadamente o sentido do original. Salvo indicação em
contrário, todas as traduções feitas neste livro são livres.
22. A história da astronomia é uma excelente fonte de exemplos de como cientistas, no caso
astrônomos, variaram os seus compromissos epistemológicos, com implicações para os
métodos utilizados. Ver Abrantes, 2016, cap.1.

45
46
3

Metodologia e lógica

A lógica é tradicionalmente considerada, sobretudo por filósofos, como


fundamental para se articular uma teoria do método científico. Neste capítulo
investigarei em que medida, e em que contextos, a lógica pode contribuir
para a metodologia.1
A lógica é a área da filosofia que investiga, fundamentalmente, a validade
das inferências efetuadas em argumentos. Um argumento é uma sequência
finita de sentenças na qual a última sentença é chamada de conclusão do
argumento, e as sentenças que a antecedem na sequência são chamadas de
premissas do argumento.2 Uma lógica estipula regras que autorizam passa-
gens (inferências) válidas das premissas para a conclusão em vários tipos
de argumento. A validade de uma inferência,3 ou seja, uma determinada

1. Introduzirei somente as noções de lógica que são indispensáveis para a compreensão das
discussões feitas ao longo deste livro. Aqueles interessados numa apresentação mais rigorosa
e completa deverão consultar algum livro especializado em lógica.
2. Utilizarei sistematicamente o termo ‘sentença’ ao longo do texto, em vez dos termos
‘enunciado’ e ‘proposição’. Há muitas variações na terminologia empregada pelos lógicos,
muitas vezes traduzindo diferenças importantes em suas posturas filosóficas. Não caberia,
neste livro, entrar em tais discussões em filosofia da lógica. Para os presentes fins, é im-
portante ressaltar, simplesmente, que as sentenças são objetos linguísticos e, devidamente
interpretadas, podem ser verdadeiras ou falsas.
3. A noção de inferência para alguns autores, como Salmon (1987), possui uma conotação
psicológica, ausente no caso de argumentos, que são objetos linguísticos. Seria, então,
mais correto falar em validade de argumentos, já que a noção de validade pressupõe uma
relação lógica entre sentenças (e não psicológica, entre estados mentais, como crenças). Se
supusermos que as inferências podem sempre ser representadas linguisticamente, não há
problema em aplicar-se a noção de validade a inferências. Não há consenso, tampouco, com
respeito a essa terminologia. Há autores que conferem ao termo ‘argumento’ uma conotação
psicológica, que estaria ausente no termo ‘inferência’. Acompanharei, neste texto, o uso
que faz Salmon desses termos.

47
relação lógica entre as premissas e a conclusão de um argumento, é definida
de modo rigoroso por tais regras.
Um tipo de inferência muito conhecida é a dedutiva, cuja peculiaridade
é a de preservar a verdade das suas sentenças (veremos outras de suas pro-
priedades adiante). Uma inferência dedutiva é válida, portanto, se, em todas
as vezes em que as premissas do argumento forem verdadeiras, a conclusão
do argumento também o for.4
Aristóteles pode ser considerado o pai da lógica por ter sido o primeiro
a estudar, de maneira sistemática, as inferências, em especial, inferências
dedutivas chamadas de silogismos. Um exemplo tradicional de silogismo,
que você certamente conhece, é o seguinte:
Todos os homens são mortais
Sócrates é homem
===========
Sócrates é mortal

A linha dupla, que separa as premissas do argumento da sua conclusão,


representa uma passagem dedutiva. Um silogismo, quando válido, tem a
propriedade das inferências dedutivas que explicitei acima: se as suas pre-
missas forem verdadeiras, a conclusão necessariamente o será.
Um pressuposto da lógica chamada ‘formal’ é que a validade das infe-
rências dedutivas depende exclusivamente da forma do argumento (da sua
sintaxe), e não do conteúdo expresso pelas sentenças envolvidas.5 A lógica
formal investiga a validade das inferências, utilizando-se de uma linguagem
artificial para melhor fazer abstração do conteúdo das sentenças e explicitar
somente as formas de vários tipos de argumentos.6

4. Nesse caso, trata-se de um caso particular de demonstração.


5. As sentenças são sequências bem formadas de símbolos numa linguagem, símbolos esses
que não têm referência, ou uma semântica. Quando importa o significado, ou o conteúdo,
usa-se o termo ‘proposição’, em vez de ‘sentença’. A verdade e a falsidade são propriedades
de proposições e não de sentenças, já que estas possuem somente propriedades formais,
sintáticas.
6. Quando somente a forma das sentenças importa, é comum utilizar-se o termo ‘fórmula’,
em lugar de ‘sentença’. Uma fórmula é uma sequência bem formada de símbolos numa
linguagem particular. Em outras palavras, a fórmula obedece a sintaxe dessa linguagem,

48
Duas regras de inferência muito conhecidas da lógica dedutiva, que serão
particularmente úteis em discussões que farei nos próximos capítulos, são
o Modus Ponens e o Modus Tollens. Elas garantem a verdade da conclusão,
dada a verdade das premissas do argumento. Sejam ‘p’ e ‘q’ duas sentenças
quaisquer. Podemos representar o Modus Ponens da seguinte maneira:
p -> q
p
========
q

Onde o símbolo ‘->‘ representa o conectivo lógico de implicação material.7


O Modus Tollens, por sua vez, pode ser representado da seguinte ma-
neira, usando os mesmos símbolos anteriores e também o símbolo ‘ ~ ‘,
representando a negação:
p -> q
~q
========
~p

Como no caso do silogismo aristotélico acima, nesses dois argumentos


formais a conclusão segue-se necessariamente das premissas, ou seja, se as
premissas forem verdadeiras, a conclusão será necessariamente verdadeira.
Trata-se de uma necessidade lógica. Não importa que sentenças coloque-
mos no lugar de ‘p’ e de ‘q’: sempre teremos essa propriedade (a validade),
que se segue exclusivamente da forma do argumento, das conexões lógicas
entre as sentenças, de acordo com os conectivos lógicos utilizados, e não
do conteúdo das sentenças.8

tendo somente propriedades formais. É importante distinguir as propriedades formais das


sentenças e aquelas dos argumentos.
7. Outros símbolos utilizados para conectivos lógicos são os seguintes: ‘~’ (negação), ‘ . ’ (‘e’,
conjunção), ‘v’ (‘ou’, disjunção). Um modo de definir tais conectivos é através de tabelas
veritativas, que podem ser consultadas em qualquer texto introdutório de lógica.
8. Recorrendo-se à tabela veritativa para a implicação material, pode-se constatar que se
trata de regras de uma lógica dedutiva. A tabela mostra que, quando as premissas de cada
um desses argumentos são verdadeiras, a conclusão também é verdadeira. Outro modo de
traduzir a noção de validade de uma inferência dedutiva é através da noção de verdade lógica
(ou tautologia): é logicamente verdadeiro, nas inferências que acabei de exemplificar, que a
conclusão siga-se das premissas. Trata-se de uma verdade lógica porque isso depende exclu-

49
Essa propriedade puramente formal, lógica, pode ser traduzida em
termos epistemológicos: em inferências dedutivas, se temos certeza das
suas premissas (se não temos dúvida de que são verdadeiras) podemos ter
certeza da conclusão.
Na apresentação inicial do famoso silogismo aristotélico, servi-me de
uma linguagem natural (no caso, o Português). Para deixar mais explícita a
forma lógica daquele argumento, posso também servir-me de uma lingua-
gem artificial. Com este fim tenho, contudo, que sair dos quadros simples
do cálculo proposicional, como nos exemplos do Modus Ponens e do Modus
Tollens, e introduzir as representações simbólicas mais complexas do cálculo
de predicados.
Naquele silogismo, temos os predicados ‘ser homem’ (simbolizemo-lo
por ‘H’) e ‘ser mortal’ (simbolizemo-lo por ‘M’). Se ‘x’ for uma variável –
que pode assumir valores num universo composto de indivíduos – pode-se
formular as sentenças ‘x é homem’ e ‘x é mortal’, de maneira muito mais
compacta, por ‘Hx’ e ‘Mx’, respectivamente. Se o símbolo ‘s’ referir-se ao
indivíduo Sócrates, as sentenças ‘Sócrates é homem’ e ‘Sócrates é mortal’
podem ser formuladas, nessa linguagem artificial, como ‘Hs’ e ‘Ms’, respec-
tivamente. Temos, assim, as duas últimas sentenças do argumento.

sivamente da forma dos argumentos (das relações sintáticas entre premissas e conclusão),
independentemente da interpretação que se dê para as sentenças nele envolvidas e do valor
veritativo associado a cada uma delas, tomadas isoladamente. Dependendo da interpretação
de cada uma das sentenças envolvidas no argumento, elas podem ser verdadeiras ou falsas (e
essa questão não é meramente formal; o seu valor veritativo, no contexto dessa interpretação,
depende de como é o mundo que elas supostamente descrevem). O valor veritativo de cada
uma das sentenças é contingente, portanto, e não logicamente necessário. Em outros termos,
cada uma das sentenças, tomadas isoladamente, pode ser verdadeira ou falsa, dependendo
de como é o mundo a que se referem. Em contraste, a verdade lógica é uma propriedade
global do argumento (ou da inferência) e depende das relações meramente formais, entre
as sentenças do argumento, e não de como o mundo é. Por exemplo, se representarmos a
regra do Modus Ponens através de uma sentença, usando o conectivo lógico de implicação
material para traduzir a relação de consequência (ou de implicação), e o conectivo lógico
de conjunção (‘.’), teremos:
[(p -> q) . p] -> q
Essa sentença composta é logicamente verdadeira – é uma tautologia. O uso da implicação ma-
terial para traduzir a relação de consequência lógica no nível da metalinguagem é respaldado
pelo metateorema da dedução em lógica clássica. Agradeço a Samir Gorsky por essa indicação.

50
A primeira premissa é uma sentença mais complexa, envolvendo o
quantificador universal ‘para todos’, representado pelo parênteses em torno
da variável, como em (x), que se lê: ‘para todo x’. Ela pode, portanto, ser
formulada, na linguagem artificial, do seguinte modo:
(x) (Hx -> Mx),

que se lê: ‘Para todo x, se x é homem, então x é mortal’.9 Como antes,


o símbolo ‘->‘ representa a implicação material.
O silogismo aristotélico acima pode, então, ser representado, usando a
moderna simbologia do cálculo de predicados, pela sequência de sentenças:

(x) (Hx -> Mx)


Hs
==========
Ms

O que esse argumento possui em comum com o Modus Ponens e o


Modus Tollens, a despeito da sua forma mais complexa? Todos eles aplicam
regras de inferência válidas da lógica dedutiva (que engloba tanto o cálculo
proposicional quanto o cálculo de predicados).

1. Inferências dedutivas e indutivas: um quadro comparativo


Ao lado das inferências dedutivas, existem outros tipos de inferência
como a indutiva, a analógica, a abdutiva (ou retrodutiva), etc.
Uma inferência de tipo indutiva, particularmente relevante para a me-
todologia científica, é a que toma como premissas sentenças singulares e
obtém como conclusão sentenças universais. Um exemplo de indução desse
tipo é um argumento que tem sentenças de observação como premissas, e
uma generalização ou lei como conclusão.10

9. Além do quantificador universal, o quantificador existencial é representado, usualmente,


pelo símbolo (∃). Assim, no cálculo de predicados, se quisermos representar simbolicamente
que existe um indivíduo chamado Sócrates, escrevemos: ‘(∃x) x=s’, que se lê: “Existe pelo
menos um x tal que x é s”, onde ‘s’ refere-se a Sócrates.
10. As chamadas sentenças empíricas ou observacionais são, do ponto de vista formal,
sentenças singulares que descrevem fatos ou ocorrências em determinadas regiões do espa-
ço-tempo. Generalizações ou leis têm a forma lógica de sentenças universais, caracterizadas
pela presença do quantificador universal, como na sentença ‘para todo x, se x é homem,
então x é mortal’. Neste livro não pretendo me envolver com a questão da natureza das

51
Por exemplo: estou indo pela primeira vez a um zoológico com a minha
filha e começamos por visitar o setor das aves. Infelizmente, uma chuva
repentina interrompeu o nosso passeio e não pudemos observar aves como
a ema, existentes nesse zoológico, e que não voam. Um exemplo de inferên-
cia indutiva seria a que a minha filha fizesse partindo de várias sentenças
observacionais do tipo ‘esta ave voa’, ‘aquela ali também voa’, ‘aquela acolá
também voa’ e que, com base nelas, concluísse: ‘Todas as aves desse zoológico
voam’. Ou mesmo inferisse uma sentença com maior escopo (ainda mais
geral), sem qualquer restrição espacial: ‘Todas as aves voam’.
Se V representar o predicado ‘voa’, a inferência indutiva acima pode ser
expressa pelo seguinte esquema formal (ou argumento):

Va1
Va2
Va3
(...)
Van
--------------
(x) Vx
onde ‘a1’, ‘a2’, ‘a3’ (...), ‘an’ representam ‘n’ indivíduos do universo de aves.
‘Va1’, ‘Va2’, ‘Va3’, (...), ‘Van’ traduzem as observações de que esses indivíduos
voam, e constituem as premissas do argumento.11 A conclusão do argumento
expressa, simbolicamente, que qualquer que seja ‘x’ nesse universo, ‘x’ voa.

leis. Indico aqui, simplesmente, que o modo como a noção de lei foi introduzida no texto
está conforme uma concepção chamada de ‘regularista’, segundo a qual leis são verdades
universais (fatos gerais) acerca de regularidades observadas na Natureza. Essa concepção é
tributária de uma ontologia empirista e nominalista (ver o capítulo 4). Ela é criticada, por
sua vez, pelos que defendem uma concepção ‘necessitarista’ de lei, segundo a qual leis são
relações entre propriedades, o que pressupõe uma ontologia mais rica que a dos regularistas.
11. Uma alternativa seria formular a conclusão do argumento como uma generalização
empírica (ou lei): ‘Se x é uma ave, então x voa’. Para simplificar a exposição, estou ignorando
a coordenada temporal e as diferenças nas posições das várias aves observadas. Uma ob-
servação sempre se dá num particular instante de tempo e numa localização específica do
espaço. Numa apresentação mais rigorosa, eu teria que especificar, para cada observação,
as três coordenadas espaciais e a coordenada temporal, ou seja, uma quádrupla (x,y,z,t)
para cada ave observada.

52
Trata-se, nesse caso, de uma generalização com base num número
finito de observações feitas no zoológico. Por isso, ela é denominada de
‘indução enumerativa’, pois se enumeram vários casos observados e, a partir
dessa base, generaliza-se, ou melhor, afirma-se que a propriedade observa-
da em alguns casos também é uma propriedade de casos (ou instâncias)
não-observados do mesmo tipo. Ou seja, estende-se ao conjunto de indi-
víduos do universo o que, com certeza, vale para um subconjunto de indi-
víduos, pois assim foi observado. A indução enumerativa é uma inferência
ampliativa, pois nela parte-se do que é observado em determinadas regiões
do espaço-tempo e infere-se que o mesmo vale para todas as regiões.12
Inferências indutivas, como a exemplificada anteriormente, seriam vá-
lidas? Se adotarmos a definição de validade da lógica dedutiva, a resposta é
negativa: a conclusão de uma inferência indutiva pode ser falsa mesmo que as
premissas sejam verdadeiras.13 No exemplo acima, a conclusão a que chegou
a minha filha é falsa – há aves que não voam, inclusive naquele zoológico –,
mesmo que todas as premissas que descrevem as suas observações tenham
sido verdadeiras. A menos que se tenham examinado todos os indivíduos
de um universo restrito (no exemplo, todas as aves do zoológico), esse tipo
de inferência não garante a verdade da conclusão, mesmo que todas as
premissas sejam verdadeiras. Outra maneira de dizer isso, traduzindo em
termos epistemológicos, é: não se pode ter certeza da conclusão de um ar-
gumento indutivo mesmo que se tenha certeza das suas premissas. Por isso
usei uma linha simples para separar as premissas da conclusão, e não uma
linha dupla, como fiz no caso das inferências dedutivas. Note, além disso,

12. Note que, num movimento lógico contrário, de uma sentença universal (e.g., de uma ‘lei’)
pode-se inferir dedutivamente cada uma das premissas adotadas no argumento indutivo
que a tem como conclusão, contanto que se especifiquem as coordenadas espaço-temporais
adequadas, em premissas usualmente denominadas ‘condições iniciais’.
13. Há quem defenda uma aplicação mais ampla da noção de validade, de modo a abarcar
tanto inferências dedutivas quanto indutivas. Não será o caso aqui: adotarei a posição tra-
dicional de restringir a inferências dedutivas a sua aplicação, e empregar a noção de ‘força’
(que admite graus) para caracterizar a relação lógica entre as premissas de um argumento
indutivo e a sua conclusão. Ver, adiante, o quadro Propriedades de dois tipos de inferências.

53
que, se uma das premissas for falsa no argumento indutivo considerado, a
sua conclusão será falsa ou ficará comprometida.14
Veremos que esta é uma das principais diferenças entre inferências de-
dutivas e indutivas, explicitada no quadro a seguir: as inferências dedutivas
preservam a verdade, mas não as inferências indutivas.

Quadro 1
Propriedades de dois tipos de inferência15
Dedutiva Indutiva
1. Uma inferência dedutiva válida explicita, 1. Uma inferência indutiva apresenta uma con-
na conclusão, algo implícito nas premissas. clusão que extrapola o que está contido nas
A dedução não é, portanto, ampliativa. premissas. Em outras palavras, o conteúdo das
premissas é mais restrito do que o conteúdo da
conclusão. Por isso, a indução é dita ampliativa.
2. Se as premissas forem verdadeiras, a con- 2. Uma inferência indutiva cogente pode ter
clusão deve ser verdadeira para que a in- premissas verdadeiras e uma conclusão falsa.
ferência seja considerada válida. As dedu- A indução não preserva, necessariamente,
ções válidas necessariamente preservam a verdade.
a verdade.
3. Se novas premissas são acrescidas a um argu- 3. Novas premissas podem minar completamen-
mento dedutivo válido, e as premissas iniciais te a inferência indutiva; a indução é suscetível
forem mantidas, a inferência continua sendo de erosão ou de enfraquecimento
válida. A dedução não é suscetível de erosão
ou de enfraquecimento.
4. A validade dedutiva é uma propriedade que 4. Inferências indutivas aceitáveis apresen-
não admite graus. Uma dedução é válida ou tam-se com diferentes graus de força. Há
não é; não há meio termo*. induções mais fortes do que outras; em al-
gumas induções as premissas apoiam a con-
clusão de uma maneira mais forte do que em
outras induções.
*Ver a nota 13.

Quero enfocar, no momento, uma das diferenças indicadas no quadro:


o caráter ampliativo da inferência indutiva em contraposição ao caráter
não-ampliativo da inferência dedutiva. Numa inferência indutiva, a con-
clusão vai muito além do que está contido ou representado nas premissas.
No exemplo, a minha filha não examinou todas as aves do zoológico, mas

14. Comparar com argumentos dedutivos válidos, nos quais se pode ter uma premissa falsa
e, ainda assim, ter-se uma conclusão verdadeira.
15. Baseado em Salmon et al. (1999:11).

54
inferiu, mesmo assim, que todas elas possuem uma propriedade (ou conjunto
de propriedades) que observou somente em algumas delas.
Um outro tipo de inferência indutiva, que será objeto de discussão
aprofundada em outros capítulos deste livro, é aquela envolvida quando
fazemos previsões. Um exemplo de previsão seria a que parte de sentenças
traduzindo um certo número de observações, e se infere que observações
da mesma natureza serão feitas no futuro16. Aproveitando o exemplo dado
anteriormente: após ter observado um certo número de aves no zoológico,
a minha filha pode prever que também voa a próxima ave que verá. Note
que, no caso das previsões, a conclusão não tem maior escopo do que as
premissas (como é o caso nas generalizações ou induções enumerativas)
e pode ser expressa por uma sentença singular. Contudo, isso não retira o
caráter ampliativo das previsões, já que se estende, no tempo, o conheci-
mento consubstanciado em um conjunto de observações realizadas (e que
pode ser nomológico, em certos casos).
Existem outros tipos de inferências ampliativas além da indutiva?
Estamos em território controverso, mas podemos citar como candidatas a
inferência analógica e a inferência abdutiva (ou retrodutiva).17
De todo modo, posso generalizar o que disse acima a respeito da in-
dução para todos os tipos de inferência que sejam ampliativas: elas não são
válidas, ou seja, não preservam a verdade. Quando uma inferência amplia
o conteúdo das premissas – que representam, digamos, o conhecimento
certo de que dispomos – a sua conclusão deixa de ser segura. A inferência
totalmente segura, a dedutiva, em nada amplia o nosso conhecimento –
a conclusão do argumento só expõe o que está contido nas premissas.18

16. Pode-se fazer também previsões a respeito de fatos ocorridos no passado, com base em
observações feitas no presente.
17. A controvérsia é se, de fato, essas inferências constituem-se como um tipo distinto
das inferências indutiva e dedutiva, ou se se reduzem a uma combinação destas últimas.
Tratarei da abdução no capítulo 5, quando apresentar as posições de Hanson sobre a des-
coberta científica.
18. Michalsky (1989) propôs a sugestiva imagem de um trompete – isso mesmo, o instru-
mento de sopro – para ilustrar essa relação inversa. Na base do trompete temos o conheci-
mento disponível; próximo da base, na embocadura do trompete, que é cilíndrica, temos
a inferência dedutiva; na ponta do trompete, em que está a maior abertura (representando
o escopo do conhecimento) temos a indução. Em trechos intermediários, temos a analogia
e outros tipos de inferências ampliativas.

55
As inferências ampliativas não garantem a verdade da conclusão, somente
a sua plausibilidade. Em outras palavras, o preço a se pagar pela garantia
da verdade da conclusão, dada a verdade das premissas, é o caráter não-
-ampliativo da inferência.
Isso não quer dizer, entretanto, que nas inferências ampliativas – como
é o caso das indutivas – as premissas não apoiem a conclusão com mais ou
menos força, de maneira mais ou menos decisiva, plausível. O problema é
tornar precisa essa noção de apoio e, se possível, quantificar a força com
que as premissas apoiam uma conclusão em inferências ampliativas, como
a indutiva.19

*2. Inferências ampliativas e metodologias gerativistas


A propriedade de uma inferência ser ampliativa é relevante para a
metodologia, em especial para a que enfoca métodos envolvidos na pro-
dução de conhecimento,20 porque se espera que as regras que norteiam tais
inferências possibilitem ampliar, com alguma margem de segurança, a base
de conhecimento disponível. Em outros termos, se existirem regras lógicas
que normatizem inferências ampliativas, elas poderão configurar métodos
usados na produção de conhecimento, de conhecimento novo.
Em um sentido restrito, o termo ‘lógica’ é entendido como ‘lógica de-
dutiva clássica’21 e, em outros contextos, eventualmente refere-se também às
inferências indutivas. Em um sentido amplo, o termo ‘lógica’ pode entender-se
como razão, método, procedimento, algoritmo, estratégia, heurística, etc.
Neste livro empregarei, em geral, o termo ‘lógica’ em seu sentido restrito,
a menos que haja indicação explícita em contrário. Um dos objetivos deste

19. Pode-se usar o cálculo de probabilidades com esse fim, como fazem os chamados ‘baye-
sianos’, que exploram as implicações epistemológicas do teorema de Bayes. Para uma
discussão mais alentada a respeito de uma lógica indutiva e do teorema de Bayes de modo
particular, ver Zilhão (2010).
20. Desde o último capítulo, eu venho denominando de metodologia ‘gerativista’ aquela
preocupada com a etapa de produção (ou de construção) de hipóteses, teorias, etc. e, simul-
taneamente, com a validação desses produtos (ou seja, com o valor epistêmico agregado a
esses produtos, pelo fato de determinados métodos terem sido empregados para produzi-los).
21. As lógicas ditas ‘não-clássicas’ não serão tematizadas neste livro.

56
capítulo é, justamente, o de investigar em que medida a lógica, entendida
neste sentido, pode embasar a reflexão metodo-lógica.
As regras que normatizam inferências não-ampliativas – como as re-
gras da lógica dedutiva – não teriam relevância, em princípio, para uma
metodologia voltada para a geração de conhecimento novo. Vimos que o
caráter das regras da lógica dedutiva é a de serem estritamente formais, no
sentido de não incorporarem qualquer conteúdo (empírico).22 Portanto, elas
não podem autorizar inferências ampliativas, pois essas, por definição, vão
além do conteúdo das premissas (se quiserem, ampliam o que afirmamos
a respeito do mundo, consubstanciado nessas premissas). De onde poderia
ter surgido esse novo conteúdo, se as passagens lógicas-dedutivas são meras
transformações formais, meras tautologias?23
Isso não quer dizer, entretanto, que a lógica clássica, formal, dedutiva
não possa ter relevância metodológica, no que tange à validação de pro-
dutos (hipóteses, teorias, etc.) já disponíveis, já construídos. Um exemplo
dessa relevância é a análise que farei, mais a frente, do chamado ‘método
hipotético-dedutivo’.

3. Inferências ampliativas e construção de conceitos


Antes de prosseguir, quero chamar atenção para uma ambiguidade
presente na expressão ‘caráter ampliativo’, quando aplicada a inferências.
Voltemos, para tanto, ao exemplo do zoológico. Notem que os mesmos
predicados que estão presentes nas premissas – nesse caso, um único pre-
dicado, o de voar –, também estão presentes na conclusão. Se entendermos
que um predicado representa um conceito (nesse caso, o conceito de voar),
podemos afirmar, portanto, que a indução enumerativa não permite intro-
duzir na conclusão nenhum conceito (ou predicado) novo, que já não esteja
presente nas premissas.

22. Somente no caso das inferências dedutivas, sua validade pode ser atestada pelo exame da
forma dos argumentos que as representam. A aceitabilidade das inferências não-dedutivas
não pode se apoiar, exclusivamente, em considerações formais. Nesse sentido, a sua lógica
subjacente teria um caráter informal.
23. Sobre a noção de ‘tautologia’, ver a nota 8.

57
A indução enumerativa, em particular, não nos indica como formar
conceitos com maior escopo do que os usados na formulação das premissas.
O conceito de ‘locomover-se’, por exemplo, tem maior ordem de generalidade,
nesse sentido, do que o o conceito de ‘voar’, mas não pode ser introduzido
com base em tal tipo de inferência indutiva, para ficarmos no exemplo
do zoológico.
Embora seja bastante comum, é portanto impreciso dizer, mesmo no
caso de uma indução enumerativa, que se ‘passa do particular para o geral’
e que, ao contrário, numa dedução ‘passa-se do geral para o particular’. Se a
palavra ‘ampliação’ for entendida em termos de um aumento da generalidade
(escopo) dos conceitos, deixa-se o quadro estritamente lógico, formal – por
referência ao qual venho, até aqui, entendendo o caráter ampliativo de
uma inferência. Não é demais repetir em que consiste esse quadro formal:
a indução é uma inferência em que se parte de sentenças com certa forma
ou sintaxe (por exemplo, a forma de sentenças singulares, em que se atribui
um predicado a um indivíduo de um certo tipo), para sentenças com outra
forma (a de sentenças universais, em que se atribui um predicado a todos
os indivíduos de um certo tipo). O mesmo predicado, nesse caso, figura
nos dois tipos de sentenças: a singular e a universal. Em outros termos, o
que a inferência indutiva faz é aplicar a um conjunto maior de indivíduos
o predicado (ou o conceito) que fora aplicado somente a alguns deles.24
A diferença entre sentenças singulares e sentenças universais diz respei-
to, exclusivamente, à forma dessas sentenças e não ao grau de generalidade
dos conceitos (predicados) que ocorrem nelas. Quando afirmo, portanto,
que a passagem de um conjunto de sentenças singulares para uma sentença
universal constitui uma inferência ampliativa, não estou extrapolando o
âmbito de uma lógica, entendida no sentido de uma lógica formal.
Note que, no exemplo do silogismo aristotélico – que, como disse, cons-
titui um argumento dedutivo e, portanto, não-ampliativo –, na conclusão

24. Somos, por exemplo, tentados a supor que quanto maior o número de observações
feitas (no exemplo, de aves que voam) com maior probabilidade segue-se a conclusão do
argumento (de que todas as aves voam). É, contudo, extremamente complexa a tarefa de
fundar de modo preciso essa intuição. Este é um dos problemas centrais de uma lógica que
se pretenda indutiva.

58
tem-se um conceito (representado pelo predicado ‘M’, ‘ser mortal’) que é
tão ‘geral’, por assim dizer, quanto os conceitos que aparecem nas premissas
(nesse caso, os conceitos de ‘homem’ e de ‘mortal’).25
Não é necessário dizer que a produção de conceitos é um tópico central
para uma metodologia que se pretenda construtiva. É duvidoso, contudo,
que a lógica – seja ela dedutiva, seja indutiva – possa contribuir para avan-
çarmos nesse campo.
Pode-se tentar articular lógicas que permitam normatizar tipos de
inferências que não se limitem a ampliar a aplicação de um conceito (ou
predicado) já disponível, a novos casos de um mesmo tipo, como numa
indução enumerativa. As inferências analógicas, por exemplo, merecem um
esforço sistemático e normativo que, se tiver sucesso, poderá contribuir para
uma metodologia genuinamente construtiva e, consequentemente, para se
adentrar no espinhoso terreno da descoberta científica.26

4. Haveria uma lógica da descoberta?


Há uma grande controvérsia, na filosofia contemporânea da ciência, a
respeito da possibilidade de se elaborar uma lógica da descoberta. Trata-se,
além disso, de uma expressão ambígua, que não especifica o tipo de
lógica envolvida.
Pelo que foi visto anteriormente, se existir uma tal lógica, ela teria por
objeto a formalização e regulamentação (ou regramento) de inferências de
tipo ampliativo. A noção de descoberta pressupõe, minimamente, que haja
uma ampliação do conhecimento disponível, codificado ou representado nas
premissas de argumentos. Não devemos, portanto, esperar que uma lógica
da descoberta seja uma lógica dedutiva, em que regras independentes de

25. A distinção entre mudanças na forma das sentenças e mudanças na generalidade de


conceitos (o que envolve a produção de novos conceitos) ainda era objeto de discussão entre
os filósofos da ciência do século XIX. Refiro-me a ela na segunda edição do livro Imagens
de Natureza, Imagens de Ciência (2016), no contexto da crítica metodológica de que foi alvo
Darwin quando propôs a sua teoria da evolução.
26. No capítulo 12 dou algumas indicações nesse sentido, ao discutir o papel que modelos
analógicos desempenham na prática científica.

59
qualquer conteúdo empírico (puramente formais) permitam a descoberta
de algo que não conhecemos.27
Aqueles que defendem a existência de algum tipo de lógica da des-
coberta não estão, simplesmente, afirmando que se pode reconstruir lo-
gicamente a descoberta, após ter sido ela feita, ou seja, após já dispormos
do conhecimento novo. Afirmam, isso sim, que o objeto de uma lógica da
descoberta seria o de regulamentar a produção original, vale dizer histórica,
de conhecimento – este seria o resultado de algum tipo de inferência a par-
tir de um conhecimento prévio, codificado em um conjunto de premissas.
Apresentado nesses termos, esse projeto atende a um paradigma inferencial,
numa metodologia construtiva.
Como indiquei anteriormente, a ideia básica por trás da inferência ana-
lógica é, justamente, a de que se pode partir de um conhecimento de fundo já
disponível (seja ele observacional ou teórico) para, modificando-o com base
em procedimentos estipulados em regras, gerar conhecimento novo.
A possibilidade de existirem inferências ampliativas, ou seja, de se poder
ampliar racionalmente, e com segurança, o conhecimento de que se dispõe,
de modo a obter-se conhecimento genuinamente novo, é tradicionalmente
objeto de ceticismo. É famoso o paradoxo que Meno – personagem de um
diálogo de Platão – explicitou e que parafraseio nos seguintes termos: se já se
sabe o que se busca, não faz sentido buscá-lo; se não se sabe o que se busca,
não há nenhum procedimento ou método que indique como fazer a busca...
O paradoxo enfatiza que não se pode procurar de maneira racional, metódica,
inferencial, algo que não se conhece.
Os céticos a respeito da possibilidade de se produzir conhecimento novo
de modo inferencial defendem que, se há inferência, esse conhecimento supos-
tamente novo já estaria implicitamente contido nas premissas do argumento
ou nas regras de inferência. Ele não seria, portanto, genuinamente novo.

27. Pode-se defender que mesmo uma dedução permite expor (e, em certo sentido, descobrir)
um conteúdo que não era conhecido, embora estivesse implícito nas premissas. Quando
se consegue provar um teorema, descobre-se algo que estava implícito nos postulados que
se assume na prova, de que não tínhamos conhecimento. Entretanto, quando falo aqui de
conhecimento novo, é no sentido de um conhecimento que não está contido nas premissas,
nem mesmo de modo implícito.

60
*5. O que seria uma lógica material?
O qualificativo ‘material’ contrapõe-se a ‘formal’ e refere-se, usualmente,
numa tradição aristotélica, a algo que é particular a um indivíduo, diferen-
ciando-o de outros indivíduos. É comum estender o sentido de ‘material’
para denotar o que é particular a um domínio da realidade ou a uma área
do conhecimento.28
As lógicas materiais aplicar-se-iam, então, a domínios particulares de
conhecimento e/ou pressuporiam conhecimento a respeito de tais domí-
nios, contrariamente às lógicas formais que, como frisei anteriormente, são
independentes de qualquer conhecimento (ou neutras com respeito a ele) e,
portanto, teriam uma aplicação geral. As chamadas ‘lógicas materiais’ (em
oposição às lógicas formais) pretendem ser ampliativas e, nessa medida,
poderiam contribuir para a fundamentação de uma metodologia voltada
para a produção do conhecimento.
A questão que se coloca é se tais lógicas materiais e, portanto, as infe-
rências ampliativas que elas autorizam, podem ser reduzidas a inferências
dedutivas, a lógicas de caráter exclusivamente formal. Há tentativas nesse
sentido, por parte de filósofos comprometidos com o dedutivismo, e que se
inserem no que chamei acima de ‘paradigma inferencial’ em metodologia.
Caso se tenha sucesso nessa redução, as inferências ampliativas passariam a
ter o mesmo grau de segurança e de confiabilidade das inferências dedutivas!
Para efetivar tal redução, os dedutivistas exploram estratégias como
as seguintes:
a) Incluir, entre as premissas do argumento, sentenças com maior conte-
údo – sentenças essas que estariam implícitas nas inferências ampliativas – e
que permitissem deduzir a conclusão seguindo regras puramente formais
de inferência;
b) Adotar regras materiais de inferência. Tais regras materiais incorpora-
riam conhecimento específico a determinadas áreas – como o conhecimento

28. O sentido de ‘material’ aqui buscado – que se contrapõe a ‘formal’ – não deve ser con-
fundido com o do mesmo termo quando utilizado para referir-se ao conectivo lógico de
implicação material: um conectivo da lógica formal a que me referi em seções anteriores.

61
tácito que possuem os especialistas – que permitisse efetuar a ampliação do
conteúdo das premissas assumidas.29
Mas como se obtém e se valida o conteúdo incorporado, seja nas pre-
missas implícitas (no caso da primeira estratégia), seja nas regras materiais
de inferência (no caso da segunda estratégia)? A questão das credenciais
desse conteúdo (ou seja, se ele corresponde a um conhecimento confiável)
se recoloca. Por outro lado, inferências não-ampliativas, como a dedutiva,
não podem vir em auxílio, no que tange à geração desse conteúdo. Logo, as
estratégias dedutivistas não têm sucesso. Não resolvem, ao fim e ao cabo, o
problema de como formalizar a descoberta científica; ou seja, não garantem
o sucesso do empreendimento de ampliar, com segurança, a nossa base
de conhecimento.
No caso das regras de inferência dedutivas, vimos que elas são formais
e, portanto, não pressupõem nada a respeito dos conteúdos das sentenças a
que são aplicadas.30 No caso das regras materiais – pelo fato de incorporarem
conhecimentos específicos e serem sensíveis aos conteúdos das sentenças
a que se aplicam –, elas perdem essa neutralidade quanto ao domínio de
aplicação e, consequentemente, a sua generalidade. No capítulo 7, veremos
que a noção de heurística relaciona-se, intimamente, com a noção de lógica
material que tentei articular nesta seção.

6. Lógica e racionalidade
As considerações deste capítulo indicam que se deve ter cuidado em
equacionar lógico e racional, como se faz com muita frequência, sobretudo
entendendo-se ‘lógico’ em termos restritos, como numa lógica formal. Para
tanto, é necessário distinguir uma regra metodológica de uma regra lógica.

29. Os chamados ‘sistemas especialistas’ em inteligência artificial incorporam regras desse


tipo. A esse respeito, remeto o leitor ao capítulo 7, no qual discuto a noção de heurística e
a comparo com a noção de algoritmo.
30. É objeto de discussão em que medida as regras dedutivas de inferência pressupõem
algum conhecimento substantivo – por exemplo, a respeito da nossa psicologia ou dos
nossos padrões habituais de raciocínio. Se esse for o caso, a distinção entre lógica formal e
lógica material tende a tornar-se menos nítida. Ver, também, a nota 3.

62
Uma regra metodológica indica o que é racional se fazer em determinadas
circunstâncias, com base no conhecimento que se possui e tendo-se em vista
determinados fins. Isso, no entanto, não significa que a base ou justificativa
dessa regra tenha um caráter lógico. Assim, uma decisão pode ser tomada
racionalmente (por exemplo, a decisão de se adotar ou de se rejeitar uma
teoria científica), com base em regras metodológicas, mesmo se tais regras
não forem, elas próprias, lógicas ou fundadas em alguma lógica, seja ela de
tipo formal ou mesmo material.31
Veremos, nos próximos capítulos, que as metodologias propostas por
diversos filósofos contemporâneos – que podem ser consideradas tentativas
de se articular uma teoria da racionalidade científica – não resultam da mera
aplicação de alguma lógica.

7. O método hipotético-dedutivo
O chamado ‘método de hipótese’ é considerado por muitos a essência
mesma do método científico, pois visaria explicar um fato através da proposta
de uma hipótese; e hoje consideramos a explicação como um dos objetivos
mais importantes da atividade científica.32
As noções básicas introduzidas neste capítulo permitirão oferecer uma
reconstrução lógica desse método, em termos do que passou a ser conheci-
do como o ‘método hipotético-dedutivo’ (para abreviar, método H-D). No
próximo capítulo mostrarei que reconstruções desse tipo caracterizaram
muito do que se fez em filosofia da ciência no século XX, com o objetivo de
tornar mais claras certas noções usadas na linguagem cotidiana e também
na científica, bem como dar-lhes fundamentação filosófica. Essa discussão
permitirá exemplificar, no contexto do presente capítulo, de que modo a

31. O fundamento de regras metodológicas, ou da racionalidade científica, pode estar em


outro tipo de teoria, como numa teoria da decisão, na teoria da probabilidade ou em uma
ou várias teorias científicas.
32. Ao longo da história da ciência o uso de hipóteses foi, entretanto, objeto de muitas críticas.
Tampouco a explicação foi sempre vista como um objetivo legítimo da prática científica.
Ver, a esse respeito, Abrantes (2016). No capítulo 5 do presente livro menciono, também, a
leitura que Laudan faz da história da ciência no tocante a isso.

63
lógica pode ter aplicações genuinamente metodológicas e, desse modo,
evitar certos equívocos.
Embora o método de hipótese possa ser visto, como sugeri acima, como
objetivando a explicação, ao reconstruí-lo em termos do método H-D fica
claro que não especifica como se constrói (ou se gera) a hipótese, o que levou
muitos filósofos a vê-lo, de modo mais restrito, como voltado unicamente
para a confirmação de hipóteses. Não seria, portanto, um método de des-
coberta, mas sim de justificação.33
Uma hipótese pode, efetivamente, ser considerada confirmada (e, portanto,
o seu emprego justificado) na medida em que uma consequência observacional,
obtida dedutivamente a partir da hipótese, for comprovadamente verdadeira.34
Entretanto, ocorre que, de uma hipótese isolada que tem, por exemplo, a forma
de uma sentença universal (do tipo lei), não se segue nenhuma consequência
observacional. São necessárias condições adicionais (e, frequentemente, hipó-
teses auxiliares) para que se possa derivar uma consequência observacional.
O método H-D conforma-se ao seguinte esquema lógico:

H (hipótese a ser testada)


Ci (condições iniciais)
Ha (hipóteses auxiliares)
===================
O (consequência observacional)
A dupla linha separa, como antes neste capítulo, a conclusão do argu-
mento dedutivo, das suas premissas.
Exemplifico, para facilitar a compreensão desse esquema. Em astro-
nomia, pode-se partir de uma hipótese ‘H’ – a de que a órbita de Marte é
elíptica –, de dados observacionais a respeito da posição desse planeta em

33. Veremos, nos capítulos 4 e 5, que a distinção entre os chamados ‘contextos’ de desco-
berta e de justificação, – uma distinção cara a algumas correntes da filosofia da ciência
– vem justamente delimitar o contexto em que a lógica, entendida em seu sentido restrito,
aplicar-se-ia propriamente ao empreendimento metodológico. Apresento evidências, no
capítulo 5, de que Hempel interpretou o método de hipótese como a última etapa de uma
“investigação científica ideal”, voltada para a validação. Ver, contudo, também no capítulo
5, o modo alternativo como Hanson encarou o método H-D e como ele o relacionou com
outros métodos.
34. A reconstrução que aqui ofereço está afinada com o modo como os empiristas lógicos
lidaram com o problema da confirmação, que será discutido no capítulo 4.

64
certo momento – as condições iniciais ‘Ci’ –, e inferir dedutivamente a sua
posição em outro momento: a consequência observacional ‘O’. Uma hipó-
tese auxiliar ‘Ha’ nesse contexto pode ser, por exemplo, a de que nenhum
outro corpo celeste, além do Sol, exerce um efeito gravitacional significativo
sobre Marte.
Caso a consequência observacional ‘O’ seja uma sentença verdadeira –
como quando permite descrever uma observação feita cuidadosamente –, o
que se pode afirmar a respeito da hipótese ‘H’ em conjunção com as outras
premissas? É muito comum pensar-se que, nesse caso, pode-se afirmar que
‘H’ é verdadeira; ou melhor, que a conjunção das premissas é verdadeira.
No entanto, afirmar isso seria incorrer num erro lógico, numa falácia, pois
não há uma regra de inferência que lhe dê respaldo.35 Se ‘O’ for verdadeira,
o que, no máximo, podemos dizer é que ‘H’ foi confirmada, juntamente
com as outras premissas. Isso, contudo, não impede que ‘H’ seja falsa; outra
observação pode vir a revelar isso. Por esta razão evitarei, sistematicamente,
o uso do termo ‘verificar’ neste caso, preferindo o termo ‘confirmar’, que
não significa provar que é verdadeiro.
Por outro lado, se ‘O’ for falsa, pode-se inferir com segurança, por meio
da regra Modus Tollens (uma regra, como vimos, da lógica dedutiva) que a
conjunção de ‘H’ com as outras premissas é falsa. Diz-se, então, que ‘H’ foi
infirmada ou falseada.
A confirmação que se dá no caso de ‘O’ ser verdadeira não é, contudo,
de uma sentença isolada, mas de um conjunto de sentenças. Além disso, já
sabemos que uma confirmação não constitui uma verificação. Ademais, se ‘O’
é falsa, isso não implica que ‘H’ seja necessariamente falsa, pois as condições
iniciais ‘Ci’ podem estar incorretas; ou então as hipóteses auxiliares podem

35. Esse erro é conhecido como ‘falácia da afirmação do consequente’, pois a derivação
na metalinguagem pode ser representada por uma implicação material em que a con-
junção das premissas implica (materialmente) a conclusão. Simbolicamente, teríamos:
(H . Ci . Ha) -> O . O ponto ‘.’ representa a conjunção lógica e, como antes, ‘->‘ representa a
implicação material. Sob essa forma, é fácil ver que ‘O’ é o consequente, e a conjunção das
premissas é o antecedente da implicação material. A falácia, portanto, consiste em afirmar
que, se ‘O’ (o consequente) é verdadeiro, a premissa (o antecedente) necessariamente tam-
bém o é. Basta inspecionar a tabela veritativa da implicação material para se perceber que
o antecedente pode ser falso, o consequente verdadeiro e, ainda assim, a sentença composta
‘(H . Ci . Ha) -> O ‘ ser verdadeira. Ver a nota 8, acima.

65
ser falsas. Desse modo, ‘H’ poderia ser verdadeira pois basta que uma única
premissa seja falsa para que a conjunção delas seja falsa.
Gostaria de chamar atenção para o fato de que o método hipotético-de-
dutivo, a despeito do termo ‘dedutivo’ comparecer em seu nome, estabelece,
na verdade, uma inferência indutiva: a partir da observação ou instância
corroboradora conclui-se que a hipótese é confirmada.36 A confirmação de
uma hipótese configura uma indução. Em outros termos, a relação entre
uma hipótese e sua instância corroboradora não é uma relação dedutiva,
mas sim indutiva. Terei mais a dizer sobre isso no próximo capítulo.
Por último, volto a enfatizar que o método H-D nada diz a respeito de
como a hipótese ‘H’ foi inicialmente construída ou gerada. Ele pressupõe
que já dispomos, inicialmente, dessa hipótese. Com esse método pode-se,
somente, testá-la com base na evidência disponível. Desse modo, é um
equívoco pensar que se trata de um método de descoberta de hipóteses.
Há, além disso, dois problemas básicos com o método H-D. O primeiro
é que sempre existem várias hipóteses compatíveis com uma dada observação
(ou seja, que implicam a sentença observacional que a descreve). Logo, pelo
método H-D tal evidência empírica confirmaria todas aquelas hipóteses
simultaneamente. Como selecionar então uma delas? Isso não seria possível
com base em critérios exclusivamente empíricos. Ter-se-ia que apelar para
outros valores epistêmicos, de caráter não-empírico, como o critério de
simplicidade, por exemplo. O segundo problema é que nem sempre uma
hipótese tem consequências observacionais obtidas dedutivamente. É o caso,
por exemplo, das hipóteses com um caráter estatístico. O método H-D não
pode ser aplicado a esses casos.
No capítulo 6 reinterpretarei o método H-D de forma mais ampla e
de modo a que se aplique ao teste de teorias científicas, e não somente de
hipóteses isoladas, o que permitirá recapitular, em larga medida, a análise
feita nesta seção.

36. A dedução, como foi visto acima, é usada para extrair a consequência observacional da
hipótese. A confirmação, contudo, ocorre somente na etapa seguinte, ao confrontarmos a
consequência da hipótese com a observação ou a experiência. Ao afirmar que a hipótese
é confirmada – no caso de haver acordo com a experiência – estamos, por assim dizer,
movendo-nos logicamente no sentido oposto ao da dedução, isto é, no sentido que vai da
observação para a hipótese, o que constitui um movimento indutivo.

66
4

A metodologia na filosofia da ciência


do empirismo lógico

Qual o lugar que a metodologia ocupa na filosofia contemporânea da


ciência? Para encetar uma resposta a essa pergunta, considero relevante
remeter à discussão do capítulo 2 sobre a relação entre metodologia e epis-
temologia. Lá distingui duas tendências: uma que subordina a metodolo-
gia à epistemologia e outra que dá à metodologia um lugar privilegiado e
tenta enfrentar os problemas epistemológicos, em particular os colocados
pelas ciências, através de uma abordagem propriamente metodológica.
O empirismo lógico (também conhecido como ‘neopositivismo’) representa
a primeira tendência e o popperianismo representa a segunda.
Os empiristas lógicos estavam interessados, sobremaneira, no pro-
blema epistemológico da justificação dos produtos da atividade científica,
adotando um viés verificacionista.1 Para eles, consequencialistas que eram,
a investigação dos processos que conduzem à construção das hipóteses, leis
e teorias científicas não teria nenhuma relevância para o problema, pro-
priamente filosófico, da sua justificação (ou validação). A distinção entre os
chamados ‘contexto de descoberta’ e ‘contexto de justificação’ constitui um
compromisso central do empirismo lógico. O primeiro refere-se à descoberta
de hipóteses, leis, modelos, teorias, etc., e o segundo contexto seria aquele

1. Veremos no capítulo 6 que Popper também está preocupado com o problema episte-
mológico, mas o seu viés é, entretanto, falseacionista, e não verificacionista. Ele critica os
empiristas lógicos por não se preocuparem com o problema, que considera propriamente
metodológico, do “crescimento do conhecimento”. A preocupação central dos empiristas
lógicos era, de fato, com a reconstrução lógica das teorias, tomadas como objetos linguísticos
estáticos, e não com os métodos envolvidos na dinâmica teórica.

67
em que se justifica tais produtos da atividade científica criadora, construtiva,
que se dá no primeiro contexto.2
O fundacionalismo3 e o logicismo contribuíram para que discussões
propriamente metodológicas não figurassem de forma proeminente no
programa dos empiristas lógicos (ver Quadro 1).
A demarcação entre a ciência e a metafísica é uma questão central
para os empiristas lógicos e isso se revela não só no tratamento que deram
ao papel da matemática nas teorias científicas, mas também no chamado
‘problema dos termos teóricos’, que será abordado mais adiante. Esses dois
problemas recolocam a distinção kantiana entre proposições sintéticas e
analíticas. Para o empirismo lógico, tratava-se de contestar a possibilidade
do sintético a priori, seja na forma de uma linguagem teórica sem base
observacional, seja na de um cálculo.
Na última seção do capítulo, mostrarei as tentativas dos empiristas
lógicos de darem uma solução semântica para o problema da demarcação,
no espírito da chamada ‘virada linguística’ em filosofia.

Quadro 1 - Logicismo
A possibilidade de termos um “núcleo sintético a priori” em nosso conhecimento, par-
ticularmente no conhecimento científico, foi um dos pontos de discussão para as filosofias da
ciência do século XIX, marcadas pela imensa influência de Kant.
As dificuldades tanto do empirismo quanto do racionalismo para responderem ao pro-
blema de como a matemática se aplica à experiência foram enfrentadas por Kant ao supor
que existem formas para a nossa intuição sensível: o espaço e o tempo. A estrutura da nossa
experiência sensível seria, então, condicionada pela nossa estrutura psíquica. Como consequ-
ência do modo como nossa experiência é estruturada pelas formas da intuição, os enunciados
da geometria (euclidiana) e da aritmética expressariam, nessa perspectiva, simultaneamen-
te verdades necessárias e sintéticas (seriam relativos ao espaço e ao tempo como “formas
puras” da intuição). Os enunciados matemáticos se distinguem, desse modo, das “leis” da lógica
pois estas, embora necessárias, nada afirmam a respeito da experiência sensível (são analíti-
cas, portanto).
O desenvolvimento das geometrias não-euclidianas no século XIX abalou profundamente
essa concepção kantiana da natureza das matemáticas.

2. No próximo capítulo entro em detalhes históricos a respeito dessa distinção entre contextos.
3. O fundacionalismo como teoria da justificação foi apresentado, em sua formulação mais
geral, no capítulo 2.

68
Contra esse pano de fundo do kantismo, o papel cada vez mais importante desempenhado
pela linguagem matemática nas teorias da física fez da matemática o que pareceu aos empiristas
lógicos uma porta de entrada para o sintético a priori no conhecimento científico. Mas para
estes, a matemática é vista como puramente formal, e não intuitiva, como em Kant. Mesmo
que não se admita o sintético a priori kantiano existiria, assim mesmo, um elemento a priori
no conhecimento científico, pelo menos de caráter formal? A matemática não corresponderia
a esse elemento a priori?
Mach, em 1868, admitiu a existência de princípios fundamentais a priori, de caráter formal.
Mais tarde, ele rejeitaria qualquer a priori no conhecimento científico. Clifford, Pearson e Hertz
admitiram um elemento a priori puramente formal, ou seja, sem conteúdo empírico.
Com os desenvolvimentos da lógica no final do século XIX, esta questão teve uma resposta
sistemática. Os Principia Mathematica de Whitehead e Russell abriram as portas, já no século
XX, para uma redução da matemática à lógica. Por sua vez, Wittgenstein passou a defender
que as leis da lógica são tautologias, isto é, sentenças vazias de qualquer conteúdo empírico.
As leis da lógica, dito de outra forma, seriam válidas em todos os mundos possíveis.
Os princípios lógicos (e também as proposições matemáticas, no caso de serem mesmo redu-
tíveis àqueles princípios) seriam, por isso mesmo, aplicáveis a um conteúdo qualquer, desde
que este fosse devidamente formalizado. As proposições matemáticas deixam, portanto, de
possuir qualquer caráter sintético a priori. O empirismo lógico adota o logicismo como filosofia
da matemática, que é sintetizada por Carnap nos seguintes termos:
(...) a adjunção da ciência formal à ciência do real não introduz nenhum elemento
objetivo novo, como crêem muitos filósofos, os quais opõem aos objetos ‘reais’ da
ciência do real os objetos ‘formais’, ‘espirituais’ ou ‘ideais’ da ciência formal. A ciência
formal não tem absolutamente nenhum objeto; é um sistema proposicional auxiliar,
desligado de todo objeto e vazio de todo o conteúdo. (Carnap apud Blanché, 1983:114)
Na seção deste capítulo dedicada à estrutura das teorias científicas veremos como os
empiristas lógicos enfrentaram essa questão.

1. O problema da confirmação
Lakatos é enfático em dizer que Carnap, uma figura central do programa
do empirismo lógico, “expropriou” o termo ‘metodologia’, redefinindo-o
como “método de justificação” (Lakatos, 1978b:135). Nas mãos dos empiristas
lógicos, a metodologia tornou-se, segundo ele, uma “lógica da ciência” ou,
mais precisamente, uma lógica (indutiva) aplicada.
Um outro modo de expressar essa apreciação é a seguinte: a metodo-
logia e a teoria da confirmação confundem-se para os empiristas lógicos.
Para ilustrar esse ponto, vejamos como a confirmação tornou-se um pro-
blema central para essa escola, e o tipo de abordagem que foi adotada para
tentar solucioná-lo.
O problema da confirmação é o da fundamentação das inferências não-
dedutivas (vale dizer, indutivas). Neste sentido, o problema da confirmação

69
está intimamente relacionado com o problema da indução que, desde Hume
pelo menos, tem resistido às sucessivas investidas dos filósofos.

Quadro 2 - Hume e o problema da indução


O problema da indução deriva da epistemologia atomística defendida por Hume: os objetos
últimos do conhecimento são impressões (ou eventos), e tais impressões são independentes.
O nosso conhecimento empírico é um conhecimento de regularidades nos eventos. Brown vê
nesta tese a expressão de uma ontologia:

(...) as impressões são para Hume os existentes últimos, os blocos fundamentais da


realidade. O único mundo passível de ser conhecido é o mundo das impressões, e toda
impressão é ontologicamente distinta de cada uma das demais, isto é, a existência ou
inexistência de qualquer impressão é completamente independente da existência ou
inexistência de qualquer outra. (Brown, 1988:19)

Nessa discussão, Brown dá um passo que talvez não deva ser imputado a Hume: de “eventos
na consciência” – que são as impressões e as idéias –, a “eventos no mundo” (ver Harré, 1970:5).

De qualquer dessas formulações do problema da indução segue-se, de todo modo, a


impossibilidade de demonstrarmos qualquer generalização e, consequentemente, a incerteza
incontornável associada a qualquer projeção ou previsão que vá além do que experienciamos.
Como não temos impressões ou experiência de uma conexão necessária entre eventos que
observamos estar regularmente associados no passado, não é possível inferir que eventos do
mesmo tipo estarão regularmente associados no futuro. Particularmente, não temos qualquer
impressão de um poder causal de um evento sobre outro que o sucede; logo, não há garantia
de que no futuro uma causa similar será seguida de um efeito similar.

Por outro lado, não há um raciocínio que nos permita passar, por exemplo, de “tais e
tais X são Y” para “todos os X são Y”. Na impossibilidade de conhecermos a veracidade desta
generalização, não podemos inferir com segurança que, no futuro, ao termos a experiência de
“X”, teremos necessariamente associada a experiência de “Y”. Para Hume, tais associações estão
baseadas unicamente no hábito, e não em qualquer argumento demonstrativo.

Podemos dividir o problema em dois: 1) O problema da confirmação


de hipóteses em que só aparecem predicados observacionais; 2) O problema
da confirmação de hipóteses envolvendo predicados (ou termos) teóricos.
Considerarei, inicialmente, o primeiro deles. A despeito de ser o mais simples,
ele ilustra a abordagem que os empiristas lógicos adotaram com respeito
a temáticas metodológicas de modo geral. Em seguida, indicarei que um
tratamento do segundo problema passa pela questão da estrutura das teorias
científicas, outro tópico central investigado pelos empiristas lógicos.4

4. Uma discussão aprofundada a respeito da estrutura das teorias científicas, bastante


técnica, foge ao escopo deste livro. Ao final do presente capítulo forneço, contudo, os ele-

70
Uma tentativa de tratar o primeiro problema é a teoria da confirmação
por instâncias, desenvolvida por Hempel, outro expoente do programa do
empirismo lógico.

2. Confirmação por instâncias


A proposta é a de elaborar uma teoria exclusivamente sintática da con-
firmação (ou seja, que não leve em consideração aspectos semânticos ou
pragmáticos): a relação entre hipótese e evidência (empírica) deve ser in-
vestigada como uma relação lógica. Esta teoria deve oferecer, nos termos
de Hempel, “critérios objetivos” para determinar quando uma hipótese H
é confirmada por um conjunto de evidências E.
A tarefa da filosofia da ciência é, para esse filósofo, a de propor uma
reconstrução racional dos padrões de confirmação (e infirmação) empre-
gados (intuitivamente) na prática científica. Por ‘reconstrução racional’
entenda-se, nesse contexto, o desenvolvimento de uma teoria da confirmação
que estabeleça um conjunto de critérios de adequação para a confirmação
científica, e defina um conceito de confirmação que satisfaça a tais critérios.
Hempel acredita, em conformidade com os pressupostos do empi-
rismo lógico, que existem critérios puramente formais (sintáticos) para se
estabelecer quando uma hipótese é confirmada, à semelhança dos critérios
de validação das inferências dedutivas (estabelecidos explicitamente por
uma lógica dedutiva). Caso tal empreendimento tenha sucesso, questões
psicológicas, semânticas e pragmáticas não precisariam ser contempladas
por uma teoria da confirmação, que teria por objeto somente uma das fases
do teste de uma hipótese:
Falando de modo geral, nós podemos distinguir três fases no teste
científico de uma dada hipótese (que não necessariamente ocorrem
na ordem em que são listadas aqui). A primeira fase consiste na rea-
lização de experimentos ou observações adequadas e a consequente
aceitação dos protocolos observacionais estabelecendo os resultados

mentos básicos para compreender o que está em jogo, já que esse tópico será mencionado
em vários capítulos.

71
obtidos; a fase seguinte consiste em confrontar a dada hipótese com
os relatórios observacionais aceitos, e.g., averiguando se os últimos
constituem evidência confirmando, desconfirmando (infirmando) ou
irrelevante com respeito à hipótese; a fase final consiste em aceitar ou
rejeitar a hipótese com base na evidência confirmativa ou infirmativa
constituída pelos relatórios de observação aceitos, ou em suspender o
juízo, esperando o estabelecimento de evidência relevante adicional.
O presente estudo investiga quase que exclusivamente a segunda fase.
(Hempel, 1965:40-1)

Hempel enfatiza que a segunda fase é a única das três que possui um
“caráter puramente lógico”. A primeira e a terceira fases têm um caráter
pragmático, pois envolvem decisões dos cientistas. Além disso, enquanto
a segunda e a terceira fases podem ser reconstruídas como envolvendo
relações entre sentenças, a primeira fase – a da aceitação de protocolos de
observação – envolve uma dimensão extralinguística (como a relação causal
entre a experiência do indivíduo, suas observações portanto, e as sentenças
com que as expressa).5

*3. O critério de Nicod


O critério de Nicod aplica-se à confirmação e infirmação de sentenças
do tipo:
(x) (Px -> Qx),

que se lê: ‘ Para todo ‘x’, ‘Px’ implica ‘Qx’ ’


Pressupõe-se que a forma lógica das leis científicas seja a de sentenças
universais deste tipo.

Exemplos:

5. Como nos capítulos anteriores, uso sistematicamente a palavra ‘sentença’, em vez


de palavras como ‘enunciado’, ‘frase’, etc., para designar uma sequência bem formada de
caracteres em uma linguagem (ou seja, um objeto puramente sintático).

72
Px = ‘x é um corvo’; Qx = ‘x é negro’. A sentença universal, neste caso,
seria: ‘Todos os corvos são negros’, ou ‘Se x é um corvo, então x é negro’.
Px = ‘x é um sal de sódio’; Qx = ‘x queima com uma chama amarela’.
A lei seria: ‘Se x é um sal de sódio, então queima com uma chama amarela’.
Px = ‘x é um ácido’; Qx = ‘x torna vermelho o papel de tornassol’.
A sentença universal expressando uma lei seria: ‘Se x é um ácido, então ele
torna vermelho o papel de tornassol’.
Pelo critério de Nicod, sentenças do tipo (x)(Px -> Qx) seriam confir-
madas por instâncias – evidências empíricas expressas por sentenças do tipo
Pa.Qa –, e infirmadas (ou desconfirmadas) por instâncias da forma Pa.~Qa.
Tal critério mostra-se bastante adequado às nossas concepções intuitivas
do que seja a confirmação.
Sentenças envolvendo ~Pa seriam neutras com respeito à sentença uni-
versal (não expressariam evidências confirmando-a ou desconfirmando-a).
Neste ponto convém, uma vez mais, enfatizar que a confirmação de
sentenças é um resultado bem mais fraco que sua verificação. Embora o
empirismo lógico inicialmente pretendesse estabelecer a verificabilidade
como condição de empiricidade, as sentenças universais, sem restrição
espaço-temporal, da forma (x) (Px -> Qx), não são passíveis de verifica-
ção com base em qualquer conjunto finito de evidências. Elas podem, no
máximo, ser confirmadas ou falseadas, de acordo com um critério como o
proposto por Nicod.
Por sua vez, sentenças existenciais, como ‘Existem corvos negros’, podem
ser verificadas, mas não falseadas. No tocante à questão da sua aceitabili-
dade empírica (se verificáveis ou falseáveis) há, portanto, uma interessante
assimetria na relação das sentenças universais, de um lado, e existenciais, de
outro lado, com respeito a sentenças que expressam a evidência empírica.

*4. A condição de equivalência e os paradoxos da confirmação


Espera-se que numa teoria lógica da confirmação, sentenças que pos-
suem formas lógicas equivalentes tenham a mesma relação (lógica) com as
sentenças que as confirmam (ou com as sentenças que as desconfirmam).

73
Veremos, contudo, que surgem curiosos paradoxos se aceitarmos tal critério
de equivalência juntamente com o critério de Nicod.
Consideremos as seguintes sentenças equivalentes a (Px -> Qx):
1. ~Qx -> ~Px; 2. (Px . ~Qx) -> (Rx . ~Rx); 3. (Px v ~Px) -> (~Px v Qx).

Teremos então:
1. (x) (~Qx -> ~Px) é confirmada por ~Qa . ~Pa . Esta última sentença,
porém, não confirma a sentença (x) (Px -> Qx) !
2. (x) [(Px. ~Qx) -> (Rx . ~Rx)] não é confirmada por nenhuma sentença.
3. (x) [(Px v ~Px) -> (~Px v Qx)] : como o antecedente é analítico, esta
sentença é confirmada por ~Px ou por Qx (independentemente). Ou
seja, no caso do nosso exemplo com corvos, qualquer objeto que não
for corvo (como esta folha de papel) ou qualquer objeto negro (como
qualquer letra impressa nesta folha) confirmariam uma sentença com
esta forma. Um resultado no mínimo surpreendente e que temos di-
ficuldade em aceitar.
Aparentemente, portanto, sentenças logicamente equivalentes não
possuem o mesmo tipo de relação lógica com sentenças que expressam a
evidência, o que constitui um complicador para uma teoria, que se pretende
exclusivamente sintática (formal), da confirmação.
Foram feitas diversas tentativas para resolver tal paradoxo e outros
que surgem numa teoria da confirmação desse tipo. Tentou-se, por exem-
plo, contestar que as leis científicas possuem a forma lógica de sentenças
universais. Alguns se inclinaram a abandonar o próprio critério de Nicod.
Hempel (1965) propõe uma maneira alternativa de resolver alguns dos
paradoxos: eles seriam pseudo-paradoxos que surgiriam de uma confusão
entre os planos lógico e psicológico! Ele argumenta do seguinte modo.
Consideremos a lei ‘Todos os sais de sódio queimam com uma chama
amarela’. Pelo critério de equivalência, tal sentença deveria ser confirmada
por qualquer corpo que não seja um sal de sódio (por exemplo, um cubo
de gelo) e que não torne amarela a chama (ver o caso da sentença 1 acima).
Por que deveríamos escandalizar-nos ao notar que o experimento de colocar
um bloco de gelo sobre uma chama, e observar que ele não queima com
uma chama amarela, confirma a lei acima? Porque sabemos, diz Hempel,
por um conhecimento anterior independente, que se trata de um bloco de

74
gelo, e que este se derrete com o contato da chama. Mas esse conhecimento
anterior não deve ser levado em consideração quando se trata de discutir a
relação lógica entre a lei sob análise e esta evidência. Devemos, em vez disso,
considerar que o conjunto de evidências de que dispomos esgota todo o nosso
conhecimento. Se não soubéssemos que o objeto em questão é um bloco de
gelo, observar que ele não queima com uma chama amarela constitui, sem
dúvida, evidência a favor da lei ‘Todos os sais de sódio queimam com uma
chama amarela’. A situação só parece paradoxal se confundimos os planos
lógico e psicológico, e levarmos em consideração elementos estranhos às
sentenças, tomadas isoladamente, e sua relação lógica. Só isto importa para
uma teoria formal da confirmação, como a que busca Hempel.
Além de uma análise dos paradoxos da confirmação, Hempel discute
uma série de condições de adequação para qualquer definição de confirma-
ção, como as condições de consequência especial e de consequência inversa:
Condição de consequência especial: se a evidência observacional confirma
uma hipótese H, ela também confirma toda consequência de H.
Condição de consequência inversa: se a evidência observacional con-
firma uma hipótese H, ela também confirma qualquer outra hipótese que
implique H.
Tais condições também parecem bastante intuitivas. Ocorre, contudo,
que, se as aceitarmos conjuntamente, teremos como resultado que uma
evidência confirma qualquer hipótese! De fato, pela segunda condição, se
H é confirmada, então também o é (H.G). Pela primeira condição, se (H.G)
é confirmada, então G é confirmada. Como G é uma hipótese qualquer,
temos um resultado inaceitável. Isso levou Hempel a rejeitar a condição de
consequência inversa. Mas há propostas alternativas de solução para esse
problema, que mantêm a condição de consequência inversa e rejeitam a
condição de consequência especial.
Hempel propôs uma nova teoria da confirmação que é imune a tais pro-
blemas, mas não a exporei aqui. O meu objetivo é indicar alguns problemas
que surgem do projeto de uma teoria exclusivamente sintática da confirmação
(projeto esse típico do programa do empirismo lógico); e sugerir que uma
teoria da confirmação deva levar também em consideração as dimensões
semântica e pragmática envolvidas na confirmação de uma hipótese.

75
Veremos, na próxima seção, que o filósofo Goodman argumenta, jus-
tamente, que uma teoria da confirmação deve levar em consideração essas
outras dimensões. Entre elas, está a história prévia de testes a que foi sub-
metida a hipótese.
Resta, por último, a questão de se tais teorias da confirmação refletem,
de modo adequado, as situações reais com que lidam os cientistas em sua
prática. Com base nisso, muitos críticos contestaram o interesse de uma
teoria como a de Hempel, mesmo que ela não apresente, internamente,
inconsistências. Essa discussão remete à relevância do próprio trabalho
filosófico, pelo menos como era entendido pelos empiristas lógicos.
Volto a enfatizar que o problema da confirmação, como tratado acima,
restringe-se à confirmação de hipóteses expressas na mesma linguagem da
evidência observacional. No caso de hipóteses expressas numa linguagem
mais rica, envolvendo termos teóricos, o problema torna-se bem mais com-
plexo, como veremos adiante neste capítulo.
Por outro lado, a despeito do seu tratamento em termos lógicos, as
análises da confirmação apresentadas acima têm um caráter qualitativo: elas
não nos permitem determinar o grau de confirmação de uma hipótese. Há
propostas de teorias quantitativas da confirmação, sendo que a mais conhecida
delas é a teoria bayesiana, que está assentada no cálculo de probabilidades.

*5. Verzul
Sim, o título é esse mesmo; não se trata de erro de digitação! ‘Verzul’
(em inglês, grue) é um dos neologismos mais famosos do vocabulário fi-
losófico contemporâneo. Inventado por Goodman, trata-se de um termo
definido de tal forma que possa vir a predicar esmeraldas a mesmo título que
o termo ‘verde’, utilizado habitualmente por falantes da língua portuguesa,
para predicar tais pedras. Vamos à definição de ‘verzul’:
verzul=def ‘examinado até hoje e constatado ser verde, ou que só venha
a ser examinado a partir de amanhã e seja azul’
‘Verde’ predica, para nós, de modo não problemático, as esmeraldas.
Note, contudo, que ‘verzul’, como definido acima, também predica as esme-
raldas que examinamos até hoje! Ou seja, todas elas são verdes e também
são verzuis.

76
O paradoxo que surge é o seguinte: por que estamos dispostos a projetar
o predicado ‘verde’ para uma esmeralda que examinaremos no futuro, mas
não estamos dispostos a projetar o predicado ‘verzul’ (embora todas as es-
meraldas examinadas até hoje sejam também verzuis e, portanto, confirmem
a sentença ‘todas as esmeraldas são verzuis’)? Ou seja, por que não estamos
dispostos a prever que a esmeralda a ser examinada no futuro será azul?
Uma outra maneira de apresentar o paradoxo seria: por que consideramos
que as esmeraldas verdes confirmam a sentença “Todas as esmeraldas são
verdes”, mas não consideramos que as esmeraldas verzuis confirmem a
sentença “Todas as esmeraldas são verzuis” ?
Há várias tentativas de se resolver o paradoxo (ver Stalker, 1994).
A solução proposta por Goodman envolve a ideia de fortificação ou entrin-
cheiramento (entrenchment). Informação histórica a respeito dos usos dos
predicados permite distinguir os predicados que são projetáveis dos que não
o são. Neste caso, pelo fato de o predicado ‘verde’ ter sido mais usado até
aqui em hipóteses (e ter sido mais ‘projetado’) está, portanto, mais fortificado
do que o predicado ‘verzul’. A solução de Goodman apela, portanto, para
a dimensão pragmática da presença de determinados termos em hipóteses
efetivamente empregadas no passado (para descrever, explicar, prever, etc.).
A solução de Quine para o paradoxo é diferente: “(...) predicados pro-
jetáveis são predicados ζ e η cujas instâncias compartilhadas por ambos
contam, todas elas, por qualquer razão que seja, para a confirmação de
‘Todos os ζ são η’ ’’ (Quine, 1987:119).
Combinando o paradoxo dos corvos (que examinei na seção anterior)
com o paradoxo das esmeraldas verzuis, Quine propôs que os complementos
de predicados não sejam projetáveis (‘corvo’ e ‘verde’ são projetáveis, mas
seus complementos ‘não-corvo’ e ‘não-verde’ não o seriam). O raciocínio
de Quine, ao aproximar os dois paradoxos, é o seguinte: a sentença ‘não
corvos e não negros’ não confirma a sentença universal “Todos os corvos
são negros” porque os predicados que lá figuram não são projetáveis. E não
são projetáveis porque são complementos, respectivamente, dos termos
‘corvos’ e ‘negros’. Os complementos não são projetáveis porque as coisas
que os instanciam são menos similares entre si do que as instâncias dos
predicados ‘corvo’ e ‘negro’.

77
Um outro modo de apresentar a solução de Quine seria: predicados
projetáveis são aqueles que predicam coisas que constituem uma espécie ou
tipo natural (natural kind). Nos exemplos anteriores, corvos constituiriam
um tipo natural. O conjunto de coisas que não são corvos (às quais se aplica,
portanto, o predicado ‘não corvo’) não constituiriam um tipo natural. Do
mesmo modo, ‘verzul’ não se referiria a algum tipo natural.

6. A estrutura das teorias científicas: um sobrevoo6


Para o empirismo lógico, a metafísica pode imiscuir-se na ciência por
duas vias: através da presença de termos teóricos na linguagem das teorias
científicas, e através da forma matemática como as teorias, em especial as
da física, se apresentam. Foi fundamental, portanto, da perspectiva dessa
escola, esclarecer esses dois problemas: o do status da linguagem teórica e
o do papel da matemática nas teorias científicas.
Muitas das discussões que fiz neste capítulo e nos capítulos anteriores
pressupõem que o conhecimento científico seja representável sentencial ou
linguisticamente. Isso foi amplamente aceito, sobretudo nos meios filosóficos
anglo-saxônicos da primeira metade do século passado, em decorrência da
chamada virada linguística, mas foi questionado nas décadas que se segui-
ram. A despeito disso, o trabalho feito no âmbito do empirismo lógico em
torno da desse tópico é uma das grandes contribuições desse programa para
esclarecer questões centrais em filosofia da ciência.
Presumirei, na discussão que se segue, que uma teoria científica é um
objeto linguístico. Pode-se, então, levantar as seguintes questões a seu respeito:
i. Qual é a estrutura (sintática) de uma teoria científica?
ii. Qual é a referência de uma teoria científica (de que trata; sobre o
que ela é)?
iii. Qual é a função e o valor cognitivo de uma teoria científica?
As respostas que o empirismo lógico deu a tais questões apoiaram-se
numa concepção da estrutura das teorias científicas conhecida na literatura
especializada como a received view (que traduzirei por ‘visão ortodoxa’).

6. Até aqui, neste livro, a noção de ‘teoria’ foi usada de modo informal. Para uma comple-
mentação histórica, ver Abrantes, 2016, cap. 1, especialmente as pp. 77-79.

78
Segundo essa concepção, as teorias científicas podem ser reconstruídas
como cálculos interpretados.
O cálculo (a exemplo dos cálculos utilizados nas estruturas formais
estudadas em Lógica) constitui a parte puramente formal de uma linguagem.
O cálculo especifica: a) os símbolos primitivos; b) as regras de formação de
fórmulas (palavras e sentenças) da linguagem; c) as fórmulas primitivas ou
axiomas; d) as regras de inferência (que permitem inferir teoremas a partir
dos axiomas).
Como as teorias científicas têm conteúdo empírico, o cálculo de uma
teoria reconstruída deve receber uma interpretação (uma semântica) em
termos empíricos. Um cálculo, por si só, não possui qualquer conteúdo,
não se refere a nenhum objeto, sendo simplesmente uma forma lógica.7
Uma interpretação para o cálculo de uma teoria deve especificar os sig-
nificados empíricos (de pelo menos alguns) dos símbolos e sentenças do
cálculo, ‘conectando-os’, por assim dizer, com a experiência através de regras
de correspondência.
Esta reconstrução da estrutura das teorias permitiu encaminhar, nos
seguintes termos, respostas para as três questões acima:
1. As teorias científicas são representáveis em termos da lógica de pri-
meira ordem, ou seja, como sistemas axiomáticos (cálculos interpretados).
2. Podemos distinguir, numa teoria, proposições expressas numa lin-
guagem observacional e proposições expressas numa linguagem teórica.8
3. O significado e o valor veritativo das proposições observacionais, con-
tendo predicados (termos) observacionais, podem ser aferidos diretamente,
apelando-se para a experiência.

7. Esta reconstrução resolve, dessa forma, um dos problemas, com relação às teorias cien-
tíficas, que se colocavam para os empiristas, qual seja o do papel da matemática nas teorias
físicas. Como defender que todo o nosso conhecimento da natureza é a posteriori, diante
da crença, comum em diversas correntes filosóficas do século XIX, de que a matemática
estaria ligada a uma componente a priori do conhecimento? A solução empirista é a de que
o cálculo simplesmente articula um esquema formal sem qualquer conteúdo empírico já
que, segundo o logicismo, as verdades lógicas são meras tautologias e, assim, não se referem
a nada no mundo.
8. Verdade e falsidade são propriedades de proposições e não de sentenças, já que estas possuem
somente propriedades formais, sintáticas. Quando menciono as proposições observacionais
e as teóricas estou supondo, portanto, que o cálculo já foi interpretado de algum modo.

79
4. As proposições teóricas, contendo predicados (termos) teóricos, não
se referem diretamente à observação ou à experiência imediata. Seu signi-
ficado (conteúdo) e valor veritativo só podem ser aferidos indiretamente,
com base no significado e no valor verdade das proposições observacionais.
O empirismo lógico pressupôs, portanto, uma distinção estrita entre
linguagem observacional e linguagem teórica. Assumindo-se esse esquema,
as proposições teóricas podem ser encaradas de duas maneiras:
4.a. como sintetizando um conjunto de proposições observacionais.
Neste caso, o significado das proposições teóricas reduzir-se-ia ao signi-
ficado das proposições observacionais, e o valor veritativo daquelas seria
diretamente determinado pelo valor veritativo destas;
4.b. como tendo um significado irredutível ao significado das propo-
sições observacionais. Neste caso, o valor veritativo das proposições teóri-
cas só poderia ser indiretamente determinado através das relações lógicas
que o cálculo da teoria estabelece entre tais proposições e as proposições
observacionais.
O tipo de relação que existe entre a linguagem teórica e a linguagem
observacional constitui o chamado ‘problema dos termos teóricos’, que
apresento em seguida.9

7. O problema dos termos teóricos


Pode-se distinguir diferentes níveis na linguagem científica, partindo
da linguagem utilizada para descrever um experimento de laboratório, até
a linguagem utilizada nas proposições mais abstratas das teorias científicas.
Em princípio, a linguagem ordinária permite descrever o que ocorre num
laboratório. Suponhamos que um leigo, sem qualquer formação científica,
entre num laboratório e comece a relatar o que observa (estamos supondo
que ele não dispõe para isso de conceitos científicos). O leigo pode, nessas
condições, afirmar que a agulha de um determinado aparelho que lhe é
desconhecido (por exemplo, um manômetro) está marcando um certo valor.
Ou afirmar que dois líquidos que se misturam mudam de cor e exalam um

9. Essa discussão foi antecipada no capítulo 2 e ilustrada com o estudo de caso sobre a
história da astronomia.

80
cheiro desagradável. Este é o nível mais básico de linguagem. É evidente que
tal linguagem não permite uma descrição científica de um experimento. Para
tal é preciso que se dominem termos ou conceitos técnicos, especializados,
como os de pressão, substância química, calor específico, reação química,
entropia, etc. que estão ausentes da linguagem ordinária.
Numa linguagem propriamente científica, encontramos em primeiro
lugar aqueles termos que são observacionais, ou seja, que se referem dire-
tamente ao que é observável. Esses termos estão normalmente presentes no
que chamamos generalizações empíricas (espera-se que algumas delas sejam
leis científicas genuínas). Para tornar mais presente a que nível de linguagem
estou me referindo, ilustro com a linguagem que é utilizada para apresentar
as leis da termodinâmica. Nessas leis só aparecem conceitos como ‘pressão’,
‘temperatura’, etc., que se referem a grandezas diretamente mensuráveis.10
Se subirmos um degrau na hierarquia de linguagens, encontraremos
os chamados ‘termos teóricos’, que não se referem a nenhum objeto, pro-
priedade ou evento diretamente observável. Para continuarmos no mesmo
domínio do exemplo acima, a teoria cinética dos gases inclui termos como
‘molécula de um gás’, ‘velocidade média das moléculas’, ‘choques das molé-
culas com as paredes do recipiente’, etc. Tais termos não se referem a nada
de diretamente observável.
Proposições que incluem termos teóricos – ou seja, proposições da lin-
guagem teórica – devem ser conectadas, de algum modo, a proposições que
contêm termos observacionais, caso contrário nenhuma ponte se estabelece
entre a teoria e a experiência. A filosofia da ciência do empirismo lógico, em
sua análise da estrutura das teorias científicas, pressupôs essa distinção entre
níveis de linguagem. Numa teoria científica reconstruída como um sistema
axiomático, teríamos três tipos de termos: (a) termos lógicos e matemáticos;
(b) termos teóricos; (c) termos observacionais.
Os termos lógicos e matemáticos, como os conectivos lógicos e termos
relativos a operações como a derivação, integração, etc., apesar de sua rele-
vância, não estarão no foco da presente discussão.

10. Isso, a rigor, não é inteiramente correto. Predicados como pressão, temperatura, etc.
são termos teóricos que precisam ser definidos, através de regras de correspondência, com
base em operações de medida.

81
Os termos observacionais, como vimos, têm por referência experiências
particulares e propriedades fenomênicas. Mas qual seria a referência de ter-
mos teóricos como: célula, gene, átomo, quark, etc., que estão presentes nas
proposições mais abstratas, nos axiomas fundamentais das teorias científicas?
Os empiristas mais radicais gostariam de banir os termos teóricos da
linguagem científica (que eram vistos como uma porta aberta para a meta-
física, juntamente com a matemática utilizada para apresentar as teorias) e
encontrar uma maneira de defini-los explicitamente, relacionando-os aos
termos observacionais através de regras de correspondência (por vezes também
chamadas de ‘leis-ponte’). Caso esse empreendimento tivesse tido sucesso,
as proposições teóricas poderiam ser encaradas como simples abreviações
de descrições fenomênicas (possibilidade exposta em 4a, acima).
Consideremos um exemplo de regra de correspondência para a teoria
atômica de Bohr. Uma proposição teórica do corpo dessa teoria é a seguin-
te: “há emissão, pelo elemento X, de radiação eletromagnética com um
comprimento de onda w, quando ocorrem saltos de elétrons de um nível
de energia (orbital) e2 para outro nível inferior de energia e1, nos átomos
deste elemento”. Os termos teóricos presentes nessa proposição adquirem
significado fazendo-os corresponder, como num dicionário, aos termos da
seguinte proposição: “o espectro do elemento X tem uma raia espectral na
posição y” (Nagel, 1961:98). Note-se que, nesta última proposição, só ocorrem
termos observacionais.
Outro exemplo muito utilizado na literatura é conhecido como o das
duas ‘mesas de Eddington’. A primeira mesa é a que descrevemos em lin-
guagem observacional como um objeto plano, duro e que possui quatro
pernas, etc. Podemos descrever a mesma mesa usando a linguagem da teoria
atômico-molecular, como uma estrutura de moléculas em que atuam forças
eletromagnéticas de atração e de repulsão. Uma maneira de entender como
essas duas descrições se conectam invoca regras de correspondência. Uma
regra de correspondência vinculando os conceitos de ‘dureza’ (predicado ou
termo observacional presente na primeira descrição) e de ‘força eletromag-
nética repulsiva’ (predicado ou termo teórico presente na segunda descrição)
seria: “ ‘o corpo x exerce forças eletromagnéticas repulsivas fortes’ implica ‘o
corpo x é duro’ ” (Cf. Hesse, 1974:38). As aspas simples indicam proposições

82
que estão ligadas pelo conectivo lógico implica, formando uma proposição
complexa (um condicional).11
Para os meus fins aqui, basta entender que as regras de correspondência
nos fornecem uma espécie de “dicionário” (Campbell, 1920; Abrantes, 2004b)
que traduz proposições. Aquelas que, supostamente, descrevem objetos e
fenômenos hipotéticos (em geral, não-observados/observáveis), são tradu-
zidas em proposições que descrevem objetos e fenômenos familiares (em
geral observados/observáveis), conhecidos independentemente da teoria em
questão e descritos numa linguagem observacional.12 Em outras palavras,
o dicionário traduz, via regras de correspondência, a linguagem teórica na
linguagem observacional.
Rapidamente percebeu-se não só que havia obstáculos formais ins-
transponíveis para essa redução da linguagem teórica, mas que, se ela fosse
efetivada, impediria que as teorias científicas desempenhassem suas funções
cognitivas de explicação e de previsão! Reconheceu-se, desse modo, que a
existência de termos teóricos não diretamente conectados com a observação
é condição para que a teoria possa desempenhar suas funções precípuas.
Tal constatação abriu caminho para concepções mais liberais (menos
enquadradas no figurino empirista estrito) da estrutura das teorias científicas.
Passou-se a admitir, por exemplo, que alguns dos termos teóricos fossem só
implicitamente definidos pelas suas relações (fixadas pelo cálculo) com outros
termos definidos explicitamente. Como descreve Suppe:

11. Não entrarei aqui na discussão sobre se o condicional é a forma lógica mais adequada
para as regras de correspondência. As seguintes possibilidades foram discutidas na lite-
ratura especializada: a) as regras de correspondência estabelecem condições necessárias
e suficientes para o uso de um termo teórico. Neste caso, a sua forma lógica seria a de um
bicondicional; b) as regras de correspondência só estabelecem condições suficientes para
o uso de um termo teórico. Neste caso, a sua forma lógica seria a de um condicional; c) as
regras de correspondência só estabelecem condições necessárias para o uso de um termo
teórico (ver Nagel, 1961:100-1).
12. De forma mais geral, a tradução se faz em termos de uma linguagem que já possui um
significado previamente estabelecido e compartilhado. Eventualmente, essa linguagem
pode não ser uma linguagem puramente observacional, mas sim a linguagem de uma teoria
bem estabelecida, confirmada e amplamente aceita, e que se tornou, desse modo, familiar
(ver Abrantes, 2004b).

83
Inicialmente a visão ortodoxa era uma concepção de teorias que atribuía
pouca importância ao aparato teórico (..), sua função sendo pouco mais
do que um meio para introduzir a matemática na ciência. Em sua versão
final, as teorias são consideradas, segundo um ponto de vista realista,
como descrevendo sistemas de não-observáveis que se relacionam às suas
manifestações observáveis de maneira não completamente especificada;
como tal, o aparato teórico é central para sua análise e a ênfase é em
como o aparato teórico se conecta com os fenômenos. (Suppe, 1977a:52)

Esse comentário de Suppe remete ao debate em torno do realismo, que


introduzi no capítulo 2.
A partir dos anos 1950, vários filósofos, ainda comprometidos com o
ideário do empirismo lógico, passaram a dar mais atenção ao papel eviden-
te que desempenham modelos nas ciências (ver capítulo 12) e propuseram
reconstruções da estrutura das teorias científicas compatíveis com a ‘visão
ortodoxa’, mas que, ao mesmo tempo, incorporassem esse aspecto da prática
científica. Seguindo uma sugestão de Carnap, eles adotaram a noção de modelo
semântico empregado em lógica e na metamatemática como uma outra maneira
de interpretar a linguagem teórica, ao lado das regras de correspondência.13

8. Explicação no empirismo lógico


É um lugar comum afirmar que a explicação e a previsão são os objetivos
cognitivos centrais da atividade científica. A simples descoberta e descrição
de um conjunto de fatos, do que ocorre, não constituiria propriamente uma
atividade científica, embora seja razoável supor que constitua uma parcela
importante desta atividade. O conhecimento científico responde, nessa
concepção, a perguntas do tipo: “Por que as coisas são como são; por que
os eventos ocorrem de um modo particular e não de outro?”. Efetivamente,
muitos cientistas não se contentam em constatar e descrever, mas bus-

13. Um modelo semântico é uma estrutura de objetos, propriedades e relações que satisfazem
as sentenças do cálculo. No capítulo 12 distingo essa noção de modelo de outras mais pró-
ximas do uso que fazem cientistas de modelos em sua atividade. Para um aprofundamento
a respeito das várias reconstruções propostas pelos empiristas lógicos da estrutura das
teorias cientistas, no contexto de uma discussão mais ampla sobre a dinâmica de teorias,
ver Abrantes (2004c).

84
cam explicações para a existência das coisas e para os eventos nos quais
estão envolvidas.
Como ponto de partida, podemos definir ‘explicar um evento’ como
a busca de razões e causas para ele, ou ainda a busca das leis que o regem.
O conhecimento científico correlaciona fatos, descobre relações de depen-
dência entre eles, como a de causa e efeito. Tentamos desvendar a natureza
das coisas que observamos e o modo de produção (um mecanismo, por
exemplo) responsável pelos fenômenos. Tentamos estabelecer que os fe-
nômenos ocorrem por necessidade e, não, contingentemente; ou seja, que
ocorrem de um modo determinado e não de qualquer modo.
A filosofia da ciência do empirismo lógico tentou desvincular a análise
da explicação científica de qualquer discussão metafísica (sobre, por exemplo,
a existência de uma ordem na natureza, de causas, de leis da natureza, de
espécies naturais, etc.). Para tanto, os empiristas adotaram uma abordagem
lógico-linguística dessa questão. Desse modo, atendiam à tarefa considerada
por eles central da filosofia da ciência, que é a de esclarecer, reconstruir os
usos e significados da explicação nas diversas práticas cognitivas, e a de
investigar se têm algo em comum.
O chamado ‘modelo nomológico-dedutivo’ de explicação (doravante, mode-
lo N-D) é uma tentativa nesse sentido. Ele foi proposto por Hempel e Oppenheim
e constitui o ponto de partida de toda a discussão contemporânea sobre o
assunto. Segundo tal modelo, toda explicação teria a seguinte estrutura lógica:
(x) (Fx -> Gx)
Fa
===========
Ga

Note-se que a primeira sentença tem a forma de uma sentença universal


e, segundo esse modelo, deve ser uma lei científica. A segunda sentença tem
a forma de uma sentença singular e descreve eventos ou condições de con-
torno (onde as variáveis são especificadas). No caso mais geral, podemos ter
numa explicação várias sentenças de tipo lei e outras sentenças descrevendo
condições iniciais. O conjunto de premissas desse argumento é chamado de
explanans. A sentença que descreve o evento ou fato a ser explicado é chamado
de explanandum e é inferido a partir do explanans.

85
O leitor deve ter notado que essa mesma estrutura lógica já se apresentou
algumas vezes em outros capítulos, e é importante fazer algumas considera-
ções a esse respeito. A primeira ocorrência dessa estrutura foi no tratamento
lógico que dei ao método de hipótese, no final do capítulo 3. Claro está que
ao se empregar o método H-D para se confirmar uma hipótese não se sabe,
num primeiro momento, se ela é uma lei científica. Pode-se argumentar que se
uma hipótese é repetidamente confirmada, em variadas situações, ela torna-se
uma forte candidata a lei. Um requisito mais forte do que este é de que uma
hipótese só adquire o status de lei se ela estiver incorporada em uma teoria
científica bem aceita – ou seja, se ela fizer parte de uma rede de relações com
outras hipóteses ou leis. Mas passamos, nesse caso, a um contexto distinto
daquele em que usualmente o método de hipótese é discutido (e já sugerindo
as limitações de se buscar confirmações de hipóteses isoladas).
A vasta literatura em filosofia da ciência que trata das explicações e, de
modo particular, do modelo N-D de explicação trata de uma série de condições
lógicas e epistemológicas para a aceitabilidade das explicações científicas. Não
caberia aqui entrar nessas considerações, pois este livro não se propõe a cobrir
todo o espectro de temas de filosofia da ciência, já que os meus propósitos
voltam-se, de modo mais restrito, para a metodologia.14 Contudo, creio ser
relevante mencionar, mesmo que brevemente, uma importante consequência
do modelo N-D, e que foi muito enfatizada pelos seus proponentes: a expli-
cação de um evento e a sua previsão admitem a mesma reconstrução lógica.
Segundo o modelo N-D, há uma simetria lógica entre explicar e prever.
Por exemplo, quando um astrônomo prevê que um determinado planeta,
digamos Marte, estará em determinada posição na abóbada celeste, o que
ele faz, segundo essa reconstrução, é deduzir a sentença que descreve tal fato
de um conjunto de sentenças, alguns delas com a forma lógica de leis (e.g.,
a lei da gravitação universal de Newton). Outras sentenças envolvidas nessa
previsão têm a forma lógica de sentenças singulares expressando condições
iniciais, por exemplo, a respeito das posições de Marte e de outros planetas,
efetivamente observadas em determinados instantes de tempo.

14. Para uma introdução à temática da explicação científica, e para uma discussão mais
geral a respeito da existência de leis em ciências como a biologia, ver Lorenzano (2018).

86
O que distinguiria uma explicação de uma previsão, se podem ser re-
construídas logicamente do mesmo modo? Seguindo com o mesmo exemplo,
quando explicamos um fato, este é objeto de uma observação (ou o foi no
passado), enquanto que, na previsão, o suposto evento é localizado no futuro
(caso, evidentemente, a previsão tenha sucesso). A distinção entre explicação
e previsão seria, portanto, meramente pragmática e não lógica.
Muitas objeções foram feitas a essa consequência do modelo N-D.
Argumentou-se que as premissas de muitos tipos de explicação não podem
servir de base para previsões, por exemplo. De toda forma, explicações que são
pedestremente oferecidas em diversas ciências não se conformam ao modelo
N-D, o que compromete a intenção inicial dos seus proponentes de aplicar de
modo amplo essa reconstrução lógica.
Não cabe entrarmos nos detalhes da torrencial literatura sobre explica-
ção científica. Para os meus fins neste capítulo, o modelo N-D ilustra o tipo
de filosofia da ciência que foi desenvolvida no âmbito do empirismo lógico
e reforça o que foi dito, inicialmente, a respeito do lugar que ocupa a meto-
dologia nesse programa.

9. O problema da demarcação e o critério empirista de significado


O Manifesto do Círculo de Viena, publicado em 1929 com o título
A concepção científica do mundo... radicalizou uma postura anti-metafísica
sobretudo entre filósofos da ciência anglo-saxônicos, em especial os que se
engajaram no programa do empirismo lógico.
Esse programa herdou do positivismo do século XIX um de seus
pontos programáticos: a eliminação da metafísica do campo científico.
Para o positivismo na versão de Comte, a metafísica se caracteriza pelo ideal
quimérico de se conhecer as causas dos fenômenos. Nas ciências em sua fase
“positiva”, esse ideal metafísico deveria ser substituído pela descoberta das
relações funcionais entre as variáveis que descrevem os fenômenos, visando
estritamente ao conhecimento das leis que os regem. O positivismo propôs,
portanto, um critério de demarcação entre ciência e metafísica.
Já em d’Alembert vislumbra-se um proto-positivismo, evidenciado pela
sua desconfiança com respeito à noção newtoniana de força. As diversas mo-

87
dalidades de positivismo propostas ao longo do século XIX – representadas
por Comte, Mach, Poincaré, Duhem, entre outros – têm em comum a tese de
que não há possibilidade de conhecimento científico do que é inobservável
(as causas dos fenômenos seriam tipicamente inobserváveis, como o que
Hume chamava de “poderes”). A hipótese atômica foi, consequentemente,
um alvo privilegiado dos ataques positivistas.
No espírito da dita ‘virada linguística’, os empiristas lógicos escolhe-
ram a linguagem como a arena na qual o problema da demarcação seria
abordável.15 Daí a importância que ganhou, nesse programa, o chamado
critério empirista de significado e todas as tentativas de reduzir a linguagem
teórica à linguagem observacional, que se mostraram frustradas, como
vimos anteriormente.
A primeira formulação do critério empirista de significado encontra-se
num livro de Schlick publicado em 1918: o significado de uma proposição
é o método de sua verificação.16 A atribuição de significado está, portanto,
vinculada à possibilidade de se atribuir um valor veritativo às sentenças
através de uma experiência (possível). Stegmüller resume a versão original
do critério empirista de significado nos seguintes termos: “(...) a verificabi-
lidade de um enunciado é condição necessária e suficiente para que ele seja
considerado como dotado de significado empírico” (1977:298, v.1).
Carnap enfatiza que esse critério não se aplica a palavras isoladas, mas
sim a sentenças. Stegmüller (1977:300) exemplifica-o, aplicando esse critério
empirista às teses solipsista e realista (metafísica).17 Os defensores de tais
teses concordam quanto aos métodos para se verificar a sentença ‘existe um

15. A nova tarefa proposta para a filosofia foi a de esclarecer os seus problemas tradicionais
através da análise da linguagem em que são formulados. Isso levaria à pretensa dissolução
de muitos desses problemas, que se mostrariam, na verdade, pseudo-problemas. A filosofia
passaria a ser uma teoria da sintaxe lógica da linguagem científica, e funcionaria como uma
metalinguagem. Desse modo, os integrantes do Círculo de Viena acreditavam estar trazendo
para o domínio da filosofia o mesmo rigor, a intersubjetividade e a progressividade que são
considerados traços característicos do trabalho científico. A despeito disso, o empirismo
lógico não adotou uma postura naturalista em filosofia (que discuto nos capítulos 9 e 10),
apesar das aparências, justamente porque seus partidários continuaram distinguindo a tarefa
filosófica da científica, inclusive no plano metodológico. Ver, a esse respeito, Kornblith (1998).
16. Trata-se do livro Allgemeine Erkenntnislehre.
17. O realismo metafísico não deve ser confundido com o realismo científico, como apon-
tei anteriormente.

88
grande lago na região central do Brasil’. Quando vão além desse ponto (em
que atuam como cientistas empíricos) e afirmam que o lago existe indepen-
dentemente da consciência (realismo), ou a negação desta tese (solipsismo),
penetram no território não significativo da metafísica.
Aquelas sentenças que não pudessem ser verificadas diretamente – e
grande parte das sentenças científicas enquadram-se nessa categoria – só
adquirem significado quando estão logicamente vinculadas, através do
cálculo, a sentenças que têm significado independente do aparato formal
(conforme esmiucei na seção sobre a estrutura das teorias científicas). Mas
já temos aqui uma flexibilização do critério de verificabilidade: inicialmente
aplicável a sentenças isoladas, passa a ser aplicável a sentenças que estão
relacionadas logicamente a outras sentenças num sistema formal.18 Exibe-se
uma tendência em direção a uma concepção holística do significado que é
defendida, por exemplo, por Quine: a unidade de significado não é o termo,
tampouco a sentença, mas um conjunto de sentenças.
Muitos dos problemas tradicionais da filosofia e, particularmente, da
metafísica seriam oriundos do mau uso da linguagem ou do emprego de
uma linguagem inadequada (imprecisa, por exemplo).19
Carnap foi um dos que levou mais longe esse programa, a ponto de
desnudar as suas limitações. Seu ponto de partida no tratamento do problema
da demarcação foi a aparência de correção linguística dos enunciados me-
tafísicos, ou seja, a aparência de serem enunciados significativos veiculando
conhecimento a respeito do mundo. Para Carnap, essa aparência indicava a

18. Hempel (1965) expõe detalhadamente as dificuldades que enfrentou a primeira versão e que
conduziu a um enfraquecimento do critério.
19. Pap ilustra exemplarmente esta concepção da tarefa precípua da filosofia, distinguindo-a
da atividade científica: “Nós propomos a seguinte sugestão: o filósofo não se pergunta
somente por evidências ou razão; ele tem mais consciência do que o cientista mediano,
para não falar do ‘homem comum’, de que a questão do significado é anterior à questão da
verdade (...) Se definirmos, então, a filosofia como uma busca infatigável e sem preconcei-
tos pela verdade nós não conseguimos diferenciá-la da ciência. Se nós a definirmos como
uma busca obstinada pela clareza de significado, chegamos muito mais próximo de uma
definição diferenciadora. O fato de que boa parte da filosofia profissional, nesta época de
especialização científica, está de fato dominada pela análise de significados de termos
fundamentais como ‘causa’, ‘probabilidade’, ‘realidade’, ‘verdade’, ‘bem’, ‘coisa’, ‘certeza’,
‘medida’, ‘mental’, indica que tal definição, embora vaga (como é vaga a palavra definida),
não é inteiramente arbitrária” (1962:4).

89
necessidade de se distinguir correção lógica de correção gramatical (sintática)
nas linguagens naturais. Essa constatação levou-o a construir linguagens
artificiais nas quais a correção lógica acompanhasse a correção gramatical.
Desse modo poder-se-ia desmascarar pseudo-problemas em Filosofia.
Veremos, no capítulo 6, que Popper criticou a versão inicial do crité-
rio verificacionista de significado e a via escolhida pelos empiristas para
resolver o problema da demarcação. Segundo ele, a aplicação desse critério
implicaria não só em recusarem-se como não significativas as sentenças
metafísicas, mas também grande parte das sentenças que encontramos nas
teorias usualmente aceitas como científicas!

90
5

Metodologia e descoberta científica

A metodologia tem algo a dizer a respeito da descoberta científica?


A depender dos filósofos contemporâneos da ciência, a resposta é negativa:
há um evidente desinteresse pelo tema, acompanhado de um ceticismo de
que se possa articular uma metodologia filosófica de cunho gerativista.
Schaffner, num livro publicado em 1993 e dedicado ao tema da descoberta,
especificamente nas áreas de biologia e de medicina, revela essa atitude:
A tese de que o processo de descoberta científica envolve procedimentos
logicamente analisáveis em oposição a saltos intuitivos do gênio não
tem sido, em geral, popular neste século. (Schaffner, 1993:8)

Desde o século XIX, filósofos da ciência da estatura de Herschel e de


Whewell expressavam claramente sua dúvida de que a descoberta científica
pudesse ser objeto de investigação filosófica. Essa dúvida pode ser traduzida
nos seguintes termos: não pode existir uma metodologia gerativista na qual
regras metodológicas possam ser analisadas em termos de regras lógicas.
A descoberta seria o contexto em que a intuição, a criatividade e os saltos
do gênio seriam imunes a uma investigação ou reconstrução filosófica. Uma
metodologia filosófica teria por objeto somente a justificação com um cará-
ter exclusivamente consequencialista. Herschel afirma, nesse sentido, que:
No estudo da natureza, não devemos, portanto, ser escrupulosos a res-
peito de como se alcança um conhecimento de tais fatos gerais, ou seja,
leis e teorias, desde que possamos verificá-los cuidadosamente, uma
vez que tenham sido encontrados... (Herschel apud Laudan, 1980:181)1

1. A citação foi retirada de Herschel, A preliminary discourse on the study of natural phi-
losophy (1830).

91
Whewell foi, por sua vez, um crítico de John S. Mill, que ousou, podemos
dizer, propor métodos no estilo gerativista do velho F. Bacon2:

As concepções pelas quais fatos são ligados uns aos outros são sugeri-
das pela sagacidade dos descobridores. Essa sagacidade não pode ser
ensinada. Ela comumente ocorre por palpite (guessing); e esse sucesso
parece consistir em se propor várias hipóteses tentativas e selecionar a
que é correta.3 Mas o provimento de hipóteses apropriadas não pode
ser construída com base em regras, sem o talento inventivo” (Whewell
apud Schaffner, 1993:9)

Esta postura a respeito da descoberta científica consolidou-se, no século


XX, entre os empiristas lógicos.

1. A distinção entre os contextos de descoberta (CD) e de justificação (CJ)


Nesta parte do capítulo pretendo retraçar os principais marcos histó-
ricos da distinção entre os dois contextos e os argumentos oferecidos a seu
favor. Na segunda e terceira partes analisarei a tendência filosófica oposta,
que contesta a pertinência da distinção e argumenta a favor da relevância
do contexto de descoberta para uma metodologia filosófica.

1.1. Reichenbach
Reichenbach é considerado a principal fonte de referência para a dis-
tinção – cara particularmente aos filósofos da ciência de orientação neo-
positivista – entre os chamados ‘contextos’ de descoberta e de justificação.4
O primeiro corresponde à descoberta (uma terminologia a meu ver mais
adequada seria a de ‘geração’, ‘construção’ ou ‘invenção’) de hipóteses, leis,
modelos, teorias, etc. O segundo contexto seria aquele em que se justifica
ou se valida os produtos gerados no primeiro contexto.

2. A controvérsia entre Whewell e Mill é objeto do capítulo 6, de Abrantes, 2016. Ver,


também, Abrantes (2008).
3. Veremos no capítulo 13 que essa linguagem, tomada de empréstimo ao processo darwinista
de seleção natural, não é fortuita.
4. Reichenbach teria introduzido pela primeira vez essas expressões, que se consolidaram
posteriormente na literatura (1938:7).

92
Reichenbach defende que a epistemologia deve ocupar-se somente do
contexto de justificação. Ele diferencia, na verdade, três tarefas da “episte-
mologia”: a descritiva, a crítica e a de “aconselhamento” (advisory).
Na primeira tarefa, descritiva, a epistemologia pode ser considerada
parte da sociologia: “O conhecimento (...) é uma coisa muito concreta; e
o exame de suas propriedades significa estudar as características de um
fenômeno sociológico” (Reichenbach, 1938:3).
Entre os vários aspectos descritivos desse “fenômeno”, ele menciona o
“sistema do conhecimento”, os “métodos de aquisição de conhecimento”, os
“objetivos” do conhecimento e a “linguagem” na qual ele é expresso.
Note-se que os “métodos”, nessa concepção, estão incluídos entre os
aspectos sociológicos (portanto, descritivos) do “fenômeno” do conheci-
mento. Entre as questões que interessam particularmente à epistemologia
no âmbito da sua tarefa descritiva, Reichenbach inclui as “pressuposições”
do “método da ciência” (1938:3).
Ele ressalva, contudo, que somente as “relações internas”, relativas ao
conteúdo do conhecimento, interessam à epistemologia. As “relações ex-
ternas” – que poderiam ser estudadas, por exemplo, por uma sociologia
da ciência que ignore o conteúdo do conhecimento – não interessam aos
epistemólogos.
Tais relações internas não são, como se poderia esperar, relativas aos
processos psicológicos reais, mas sim interconexões lógicas reconstruídas:
O que a epistemologia pretende é construir processos de pensamento
de modo a que eles teriam que ocorrer se tiverem que ser organizados
num sistema consistente; ou construir conjuntos justificáveis de ope-
rações que podem ser intercaladas entre o ponto de partida e a saída
de processos de pensamento, substituindo os elos intermediários reais.
A epistemologia considera, portanto, um substituto lógico em vez de
processos reais. (Reichenbach, 1938:5)

A tarefa epistemológica é, portanto, a de propor uma reconstrução


racional dos processos psicológicos. Reichenbach inclui, paradoxalmente,
tais reconstruções na tarefa descritiva da epistemologia pois exige que esse
substituto fictício esteja conectado com os processos psicológicos reais
através de um “postulado de correspondência”.

93
Na segunda tarefa, a crítica, a epistemologia é considerada uma “lógica
da ciência” ou uma “análise da ciência”. Reichenbach insiste em distingui-la
da tarefa descritiva, já que a crítica está envolvida, fundamentalmente, com a
validade e a justificação do “sistema de conhecimento” (embora se possa dizer
que uma reconstrução racional, justamente por ser racional, já pressuponha
validação e normatividade). Como vimos, a tarefa descritiva pressupõe a
“lei de correspondência” com os processos reais de pensamento, enquanto
que a tarefa crítica não tem sequer esse compromisso com a descrição de
quaisquer fatos psicológicos.
O termo ‘lógica’, na expressão ‘lógica da ciência’, é entendido por
Reichenbach num sentido amplo, incluindo até o raciocínio indutivo.
Contudo, o “método científico” não é guiado somente pelo “princípio
de validade”, mas também por decisões (volição): por “convenções” (que
não afetam, segundo Reichenbach, o conteúdo do conhecimento) e por
“bifurcações”. Ele dá como exemplos de bifurcações, decisões a respeito
dos objetivos da ciência e do significado de conceitos. Nessa dimensão se
inscreve a terceira tarefa da epistemologia: a de aconselhamento para a
tomada de decisões.
Num livro escrito vinte anos depois, Reichenbach volta a desvincular,
com ênfase, a descoberta da justificação de um produto da atividade científica:
A interpretação mística do método hipotético-dedutivo como um palpite
irracional se origina de uma confusão entre o contexto de descoberta
e o contexto de justificação. O ato de descoberta escapa a uma análise
lógica; não há regras lógicas em termos das quais uma ‘máquina de
descoberta’ poderia ser construída de modo a substituir (take over) a
função criativa do gênio. Mas não é tarefa do lógico responder pelas
descobertas científicas; tudo o que ele pode fazer é analisar a relação
entre fatos dados e uma teoria apresentada a ele como pretendendo
explicar esses fatos. Em outras palavras, a lógica se preocupa somente
com o contexto de justificação. E a justificação de uma teoria em termos
dos dados observacionais é o objeto da teoria da indução. (Reichenbach
apud Schaffner, 1993:10)

94
Quero sublinhar que o método hipotético-dedutivo não é visto por
Reichenbach como um método de descoberta (como é bastante comum),
mas sim de justificação, o que coincide com a análise desse método que fiz
no capítulo 3. De toda forma, Reichenbach é explícito em negar a existência
de uma lógica da descoberta.

1.2. Hempel
Como vimos no capítulo 4, Hempel, ao lado de Carnap, é um dos maio-
res representantes do programa do empirismo lógico em filosofia da ciência
e, tipicamente, faz eco às opiniões defendidas por Reichenbach a respeito
da opacidade filosófica (lógico-metodológica) do contexto de descoberta:
Enquanto o processo de invenção pelo qual as descobertas científicas são
feitas é uma regra guiada psicologicamente e estimulada pelo conheci-
mento prévio de fatos específicos, seus resultados não são logicamente
determinados por eles; o modo pelo qual hipóteses científicas ou teorias
são descobertas não pode ser espelhado num conjunto de regras gerais
de inferência indutiva. (Hempel, 1965:5)5

No que tange à justificação, sua postura é claramente consequencialista,


como a que fora defendida por Herschel mais de um século antes:
O que determina a robustez (soundness) de uma hipótese não é o modo
como se chega a ela (que pode ter sido sugerida por um sonho ou aluci-
nação), mas pelo modo como se sustenta quando é testada, i.e. quando
confrontada com os dados observacionais relevantes. (Hempel, 1965:6)

Defender o contrário, diz Hempel, seria confundir “questões lógicas


com psicológicas”. Num artigo com o significativo título “Investigação cien-
tífica: invenção e verificação” (1974), Hempel analisa as “quatro etapas de
uma investigação científica ideal”: a observação, a classificação, a indução e
a validação, e monta uma crítica ao que julga ser uma “concepção indutiva
estreita da investigação científica”.6

5. Compare-se com a discussão feita no capítulo 3 em torno do que Losee chama um ‘para-
digma inferencial’.
6. Compare-se essa discussão com a apresentada no capítulo 4, no contexto do problema
da confirmação, na qual Hempel concentra-se na fase de teste (validação) de hipóteses e

95
Na etapa da observação, ele lembra que os fatos são avaliados como re-
levantes sempre relativamente a uma hipótese. O mesmo pode ser dito para
a segunda etapa, de classificação. Sendo ainda mais enfático do que Hempel,
não seria incorreto dizer que uma particular classificação é uma hipótese.
Quanto à terceira etapa, Hempel descarta a tese de que a indução re-
sume-se a um conjunto de regras mecânicas, algorítmicas. Seu principal
argumento baseia-se no fato de que as teorias científicas são repletas de
termos teóricos.7 As sentenças que incluem tais termos não podem ser
logicamente inferidas de sentenças que só incluem termos observacionais:
A transição dos dados à teoria requer uma imaginação criadora.
As hipóteses e as teorias científicas não são derivadas dos fatos obser-
vados, mas inventadas com o fim de explicá-los... [constituem] palpites
felizes. (Hempel, 1974:27-8)

Os novos recursos conceituais e linguísticos consubstanciados nas


hipóteses e teorias científicas (comparados aos disponíveis nos relatos de
observação) só podem, portanto, resultar de “palpites felizes”. Ele fornece
exemplos, tirados da história da ciência, dessa “imaginação criadora” na
geração das teorias. Kepler foi influenciado por doutrinas místicas em suas
concepções cosmológicas. O sempre citado Kekulé descobriu a estrutura da
molécula de benzeno a partir de ideias que lhe teriam surgido em sonho:
No seu esforço para achar uma solução do seu problema, o cientista
pode soltar as rédeas de sua imaginação e o rumo do seu pensamento
criador pode ser influenciado até por noções cientificamente discutíveis.
(Hempel, 1974:28-9)

Essa liberdade em fazer uso das mais diversas fontes inspiradoras no


contexto de descoberta não afeta, diz Hempel, a “objetividade científica”:

propõe que ela possa ser reconstruída em termos puramente lógico-formais. Ver, também,
a seção ‘O método hipotético-dedutivo’ do capítulo 3.
7. Sobre a distinção entre linguagem observacional e linguagem teórica, consulte-se a
discussão sobre a estrutura das teorias científicas do capítulo 4. Faço considerações sobre
a etimologia da palavra ‘teoria’ em Abrantes, 2016, cap. 1.

96
(...) pois as hipóteses e as teorias que podem ser livremente inventadas
e livremente propostas não podem ser aceitas se não passarem pelo
escrutínio crítico, especialmente pela verificação das implicações capazes
de serem observadas ou experimentadas. (Hempel, 1974:29)

Esta passagem expressa, uma vez mais, uma postura consequencialista


em metodologia.
Mesmo em matemática, arremata Hempel, área na qual se usa fun-
damentalmente o raciocínio dedutivo, a descoberta (e.g., de teoremas não
triviais) requer “(...) engenho inventivo; demanda capacidade adivinhatória,
imaginativa, retrospectiva”.
Ele enfatiza que as regras da lógica dedutiva não devem ser, portanto,
entendidas como regras de descoberta, mas sim de validação (Hempel,
1974:30).

No que se refere à quarta etapa, de validação de uma hipótese, Hempel


propõe que ela se dê conforme o “método de hipótese”. Neste método, os
dados fornecem “suporte indutivo” ou confirmação para a hipótese. O método
de hipótese não pode ser visto como um método de descoberta – como já
bem assinalara Reichenbach –, e Hempel propõe que se vejam as regras de
indução do mesmo modo que as regras de dedução: como propriamente
atuantes no contexto de justificação, em que as hipóteses são validadas.

1.3. E. Nagel
O trabalho de Nagel, embora possa ser mais apropriadamente locali-
zado já no período de crise do empirismo lógico, reflete ainda as grandes
orientações desse programa em filosofia da ciência.
Ele aponta o “método de investigação” como um dos três aspectos
distintivos da ciência atual.8 Ele não acredita que haja um método no sen-
tido de “um conjunto de regras fixas, aceitas de maneira geral e orientadas
a proporcionar a descoberta de soluções para qualquer problema” (Nagel,
1967:18). Nesse contexto, Nagel distingue “método” de “técnica”:

8. Isso corresponde ao que chamei, na Introdução a este livro, de uma “imagem de


ciência-como-método”.

97
As técnicas, via de regra, variam de acordo com o assunto de que se
trata e podem alterar-se rapidamente com o progresso tecnológico. De
outro lado, todas as ciências empregam um método comum em suas
investigações, na medida em que utilizam os mesmos princípios de
avaliação da evidência; os mesmos cânones para julgar a adequação
das explicações propostas; e os mesmos critérios para selecionar uma
dentre várias hipóteses. Em suma, o método científico é a lógica geral,
tácita ou explicitamente empregada para apreciar os méritos de uma
pesquisa. (Nagel, 1967:18)

Note-se que para Nagel o método, contrariamente a uma técnica, deve


ter um caráter geral e ser comum às várias ciências.9 Não é, portanto, surpre-
endente a aproximação, que já encontramos anteriormente, entre método e
lógica, já que esta é, presumivelmente, formal, abstrata e, portanto, indepen-
dente de conteúdo substantivo (conhecimento específico em determinada
área). Por outro lado, o método, como entendido por Nagel, está envolvido
na justificação e, de acordo com a mesma orientação consequencialista que
encontramos em outros filósofos, o método é utilizado, particularmente, para
“selecionar uma dentre várias hipóteses”. Não há regras para se gerar tais
hipóteses. Elas devem, após a sua formulação, ser submetidas ao controle
empírico, ao estilo consequencialista.
Do mesmo modo que Hempel, Nagel sublinha, além disso, que a coleta
de fatos pressupõe hipóteses prévias que guiam a observação e indicam
quais fatos são relevantes.
Podemos encapsular essas teses de Nagel na seguinte fórmula: se há um
método científico geral, abstrato e único, ele está implicado no contexto de
justificação e não no contexto de descoberta. Neste último contexto, teríamos
“técnicas” aplicáveis a problemas particulares em áreas circunscritas. Tais
técnicas seriam dependentes de conhecimentos (sobre objetos, processos,
etc.) também particulares, como discuti no capítulo 1.

9. No primeiro capítulo fiz algumas considerações sobre os usos dos termos ‘técnica’ e
‘método’ no contexto da discussão de uma hierarquia de métodos, indo dos mais particu-
lares aos mais gerais.

98
2. Hanson e a racionalidade da descoberta científica
A partir dos anos 1950, no bojo de uma reação ao programa do empi-
rismo lógico que já vinha enfrentando dificuldades, um dos tópicos focados
foi, justamente, a possibilidade de se separar, de forma nítida e absoluta, os
momentos da descoberta e da justificação. As seções anteriores não devem
ter deixado dúvida de que os filósofos envolvidos naquele programa defen-
deram, de forma particularmente enfática, essa distinção.
Hanson foi um dos primeiros a fazer uma crítica ao que chamou de
“concepção hipotético-dedutivista”, “formalista” e “reconstrutivista” da ciência,
concepção esta que teria excluído, a seu ver, o contexto de descoberta do
âmbito filosófico. Para Hanson, o contexto de descoberta deve interessar aos
filósofos da ciência porque também possui uma dimensão lógica e racional,
e não exclusivamente empírica (psicológica, sociológica, histórica, etc.).
Hanson critica tanto a posição indutivista à la Mill (indução por enu-
meração) como a concepção hipotético-dedutivista que atribui a Whewell
e aos empiristas lógicos. Em lugar disso, apoia-se na proposta de Peirce de
que um tipo de inferência retrodutiva (ou abdutiva), irredutível tanto à in-
ferência indutiva como à dedutiva, estaria na base da descoberta científica.
Na leitura de Hanson, Peirce concebia a abdução como uma “inferência
lógica”, ou seja, limitada por “regras lógicas” mesmo que de modo “fraco”.
Hanson expõe do seguinte modo a forma dessa inferência:
1. Observa-se certo fenômeno surpreendente, P;
2. P seria explicável se uma hipótese H fosse correta;
---------------------
Portanto, há razões para se acreditar que H é correta.10

Hanson distingue o “enfoque” abdutivo, de um lado, dos enfoques


indutivo e hipotético-dedutivo, de outro.
Em uma abdução, a hipótese H não é sugerida pela observação repetida
do fenômeno P, como no caso de uma indução enumerativa. Além disso,
numa abdução o fenômeno P é “surpreendente”, ou seja, constitui uma
anomalia. Em outras palavras, P contraria as nossas expectativas, tendo em

10. Esquema adaptado de Hanson (1977:184).

99
vista o conhecimento de fundo que possuímos (por exemplo, constituído por
teorias bem estabelecidas). Uma abdução sempre pressupõe, portanto, um
conhecimento de fundo, contrariamente ao que se espera de uma indução
simples, de tipo enumerativo.
Em um argumento retrodutivo, a hipótese ou teoria sugerida estru-
tura os fatos, como faz um modelo, promovendo uma Gestalt conceitual,
não sendo simplesmente derivada destes, como numa indução. Hanson
vincula a abdução às suas concepções a respeito da contaminação teórica
da observação: as hipóteses e teorias científicas não seriam derivadas de
observações puras, ou simples resumos de observações, como pretende um
certo indutivismo ingênuo. Toda observação é, em maior ou menor grau,
contaminada por nossas crenças. Uma hipótese ou teoria, ao “estruturar” os
fatos num sistema, explica-os, mostrando que são de um determinado tipo
e explicitando as relações que possuem com outros tipos de fatos.
Por outro lado, contrariamente ao que pretende o enfoque H-D, numa
abdução a relação das hipóteses com as observações não seria a de mera
confirmação. Deduzir consequências de uma hipótese é, para Hanson, algo
“pedestre”, bastante trivial, se já se dispõe da hipótese. Como sublinhei no
capítulo 3, o método H-D nada diz, efetivamente, a respeito de como H é,
em primeiro lugar, gerada.
Hanson acredita que a abdução fornece bases racionais para se propor
um certo tipo de hipótese que explique o fato surpreendente, mas isso é
discutível. Ele retoma, de fato, a distinção de Peirce entre: 1) razões para se
aceitar uma hipótese H e; 2) razões para se sugerir, a princípio, a hipótese
H. No contexto de descoberta haveria razões, segundo ele, para se suge-
rir um tipo de hipótese como plausível. Não se trata de mera intuição ou
palpite. Afirmar a plausibilidade de um tipo de hipótese, entretanto, não
equivale a afirmar que uma hipótese particular seja verdadeira, o que ca-
beria propriamente ao contexto de justificação. Hanson acredita, portanto,
na possibilidade de uma “lógica do prosseguimento”, ou seja, na existência
de razões para que se prossiga na investigação de um certo tipo de hipótese
(por exclusão de outros tipos).11

11. Estou traduzindo logic of pursuit, no original, por lógica do prosseguimento.

100
Não há, para Hanson, uma diferença essencial entre as espécies de “razões”
que atuam no contexto de justificação e as que atuam no contexto de descoberta.
Ele dá grande ênfase ao papel das “razões analógicas”, que alicerçam a
plausibilidade inicial de muitas hipóteses nas ciências (entre outros tipos de
razões, como as baseadas em considerações de simetria). Por exemplo, o que
teria fornecido plausibilidade à hipótese proposta por Kepler de que a órbita
de Júpiter é elíptica foi o seu conhecimento prévio de que a órbita de Marte é
elíptica, juntamente com a percepção de similaridades entre Júpiter e outros
planetas do sistema solar, como Marte. Mas a analogia, seguramente, não pode
assegurar, em definitivo, a verdade de uma hipótese particular, ou mesmo que
seja uma instância de um tipo de hipótese à exclusão de outros tipos. Para
tanto, é preciso confirmar a hipótese no contexto de justificação, recorrendo,
como de praxe, a observações.
Várias críticas foram feitas, entretanto, à relevância dos “argumentos re-
trodutivos” como fornecendo alguma racionalidade ao contexto de descoberta,
como pretende Hanson.
Não é claro, do modo como Hanson apresenta tais argumentos, como
a hipótese do tipo H é efetivamente gerada. Ele não explicita, por exemplo,
o papel desempenhado pelo conhecimento de fundo nessa geração, se é que
existe algum (além de responder pela nossa surpresa diante de uma observação
anômala). Nesse sentido, a geração de uma hipótese continua sendo tão mis-
teriosa na abdução, como apresentada por Hanson, quanto no método H-D.
Uma outra crítica sublinha que o argumento retrodutivo de Hanson não
permite selecionar uma hipótese dentre as várias, logicamente possíveis, que
explicam os mesmos fatos.12 O que precisaríamos, para isso, é de bases para
fazermos uma inferência pela melhor explicação.
Acredito, contudo, que algumas sugestões de Hanson são aproveitáveis
para se articular uma teoria da descoberta científica, como a distinção entre
razões para se sugerir um tipo de hipótese versus razões para se sugerir uma
hipótese particular. As referências ao raciocínio analógico como base para a
descoberta também foram incorporadas por metodólogos que se inspiraram
em seus trabalhos.

12. Apontei esse problema da subdeterminação das teorias pelas evidências empíricas
disponíveis quando discuti, no capítulo 3, o método H-D.

101
3. A descoberta e a justificação podem ser desvinculadas?

3.1. A interação entre os contextos


Além de Hanson, vários outros filósofos questionaram a separabilidade
entre o CD e o CJ, mostrando que, na verdade, os dois contextos intera-
gem e apresentam características comuns do ponto de vista de uma análise
filosófica. Como recurso de exposição, simbolizo com o símbolo ‘’, nos
comentários que se seguem, as direções em que se evidenciam as influências
de um contexto sobre o outro.
(D  J)
Ter informação a respeito do modo como se deu uma descoberta é,
frequentemente, relevante e, mesmo, indispensável para aferirmos sua jus-
tificação (pelo menos parcial), para avaliarmos a sua plausibilidade, etc. Ou
seja, a avaliação de um produto da atividade científica não pode ignorar o
contexto de (sua) descoberta.Vimos que o gerativismo em metodologia
supõe, justamente, que o modo como uma hipótese ou teoria foi construída
é relevante para a sua avaliação preliminar.
Um caso muito citado é o da regra metodológica da pré-designação, que
pode ser formulada nos seguintes termos: uma teoria que prediz ou explica
fatos novos – ou seja, fatos não-conhecidos, ou então fatos conhecidos, mas
que não tenham sido levados em conta na construção da teoria – tem mais
valor do que uma teoria que só explica fatos conhecidos ou que tenham
sido levados em conta na sua construção. Esta regra, que parece bastante
intuitiva, não pode ser assimilada por uma abordagem da justificação que
não leve em conta os fatores temporais, históricos, tipicamente envolvidos
no contexto da descoberta.
Outra regra metodológica relacionada com a anterior, e também bastante
intuitiva, é a que exige que os fatos que validam uma teoria não sejam os
mesmos envolvidos na sua construção. Novamente, ter informações a respeito
do contexto de descoberta é essencial para o contexto de justificação. Seria
mesmo estranho se assim não fosse: que cientista (ou filósofo) se disporia
a avaliar uma hipótese ou teoria sem ter qualquer informação a respeito da
sua procedência, das suas origens?

102
De forma mais ampla, devemos nos perguntar se a psicologia (da ciência),
a história (da ciência), a sociologia (da ciência), etc. – que frequentemente
descrevem e explicam os processos que ocorrem no contexto de descober-
ta – são mesmo irrelevantes para a metodologia filosófica (voltada para o
contexto de justificação). Em outros termos, o conhecimento empírico seria
mesmo dispensável para se tomar decisões a respeito da aceitabilidade de uma
hipótese ou teoria, para se fazer juízos normativos? O exemplo da regra da
pré-designação sugere que não é bem assim, que pelo menos a história (da
ciência) é relevante para a filosofia da ciência. Pode-se defender, também,
que os processos psicológicos de raciocínio, em cientistas envolvidos na
criação e formulação de uma hipótese, fornecem prima facie credibilidade
a ela.13 Nesse caso, a psicologia da ciência teria algo a dizer de relevante para
a filosofia da ciência. Ao mesmo tempo, todos concordam que a justificação
nas ciências envolve, em última análise, a comunidade científica, não se
restringindo aos juízos de um único indivíduo. Logo, é de se esperar que a
sociologia da ciência, que trata justamente das relações entre os cientistas,
seja também relevante, ao lado da psicologia, para o tópico da relação entre
CD e CJ.14 Se considerarmos a justificação de crenças um problema filosófico
central, então a filosofia da ciência deve levar em consideração o CD.
Uma teoria científica, por outro lado, não é estática, mas constantemente
modificada. E o modo como ela é modificada, os métodos envolvidos na
sua transformação, são certamente relevantes para a sua avaliação num
dado momento desse processo. Temos aí mais um caso de embricamento
entre os dois contextos. São, na verdade, raros os casos em que uma teoria
submete-se à avaliação como se estivesse acabada, pronta: usualmente ela é
considerada uma proposta provisória e sofre ajustes sucessivos seguindo uma
heurística, e avaliações parciais a cada ajuste. Veremos que a metodologia
proposta por Popper e, sobretudo, a proposta por Lakatos tentam capturar
essa dinâmica e seu impacto epistemológico.

13. O confiabilismo em teoria da justificação – que propõe que uma crença é justificada
se os processos psicológicos que a geraram são confiáveis – desenvolve essa intuição no
contexto de uma teoria geral do conhecimento. A. Goldman é um dos seus articuladores.
14. No capítulo 13 desenvolvo esse ponto no contexto de uma epistemologia evolucionista,
segundo a qual a comunidade científica pode ser vista como um dos níveis em que ocorre
a seleção de uma hipótese, além do nível do cientista individual.

103
(J  D)
E o caso do contágio inverso, da descoberta pela justificação? O modo
como se gera uma hipótese não é indiferente a uma avaliação da sua plau-
sibilidade, pelo menos inicial. Além disso, julgamos (ou não) que se trata
de uma descoberta e de uma contribuição para a pesquisa!
A avaliação dá-se, na verdade, a cada passo da investigação científica.
Não se pode distinguir uma etapa que seria, digamos, indiferente a questões
de validade e outra que, por sua vez, seria indiferente ao modo como um
produto da atividade científica foi obtido originalmente. Um cientista só
acata um resultado da sua pesquisa como sendo uma descoberta se possui
indicações de que é válido, plausível, original, de que oferece solução para
um problema, etc.
O objeto de uma “lógica do prosseguimento” (Hanson) é, justamente,
o de calcular a probabilidade prévia de uma hipótese. Normalmente, esse
cálculo não é meramente formal, mas se baseia em conhecimento de fundo
– por exemplo, se a hipótese está em conformidade com uma imagem de
natureza. A heurística que possibilitou gerar a hipótese em geral também
pressupõe um conhecimento de fundo.15 As “razões analógicas” de Hanson
têm esse caráter heurístico, como vimos. Há, portanto, maneiras racionais
de direcionarmos a geração de hipóteses, de restringirmos o espaço de bus-
ca, sem nos perdermos na seleção de um número infindável de hipóteses
propostas aleatoriamente, como no método de tentativa e erro.16
Podemos, portanto, concluir que D  J, ou seja, que os dois contextos
usualmente se superpõem e se constrangem mutuamente de várias modos,
mesmo que eles possam (ou mesmo devam) ser analiticamente distinguidos.

*3.2. O contexto de justificação é passível de uma análise lógica?


Uma crítica ao privilégio que determinadas escolas filosóficas dão ao
contexto de justificação aponta para a dificuldade de se elaborar uma ló-

15. Veremos que a metodologia de programas de pesquisa científica, de Lakatos, contempla


esse ponto.
16. Contudo, no capítulo 13 apresento argumentos, com base numa epistemologia evolu-
cionista, que apontam para uma necessidade, em última instância, de um tateamento ‘às
cegas’ na geração de conhecimento novo.

104
gica da justificação ou, caso se prefira, de se fazer uma análise lógica do
CJ. Vimos que a motivação (filosófica) para uma distinção CD/CJ foi a de
que somente o último contexto seria passível de uma análise lógica e não o
primeiro – a lógica17 sendo o instrumento filosófico por excelência, dentro
de uma tradição filosófica como a do empirismo lógico.
Um dos problemas centrais para essa tradição foi, justamente, o cha-
mado problema da confirmação, discutido no capítulo 4. Empiristas lógicos,
como Hempel, tentaram elaborar uma teoria exclusivamente sintática da
confirmação (ou seja, uma teoria que não envolvesse elementos semânticos
ou pragmáticos), que investigasse a relação entre hipóteses e evidência (em-
pírica) como uma relação estritamente formal. Essa teoria pretendia oferecer
critérios objetivos para se determinar quando uma hipótese é confirmada
pela evidência. Hempel acreditou, em conformidade com os pressupostos
do EL, que existiriam critérios puramente formais (sintáticos) para se esta-
belecer quando uma hipótese é confirmada, à semelhança dos critérios de
validação das inferências dedutivas, estabelecidos explicitamente por uma
lógica dedutiva. Contudo, vimos no capítulo 4 que esse projeto enfrentou
inúmeras dificuldades, levando a paradoxos que se mostraram insuperáveis
de uma perspectiva estritamente formal.
Há filósofos que concluem, a partir de fracassos como esse, que tam-
pouco o CJ é passível de uma análise exclusivamente lógico-formal e que,
portanto, ambos os contextos mostram-se igualmente impermeáveis a esse
tipo de análise. Desse ponto de vista, eles se apresentam em igualdade de
condições frente à investigação filosófica. Ambos os contextos podem, em
princípio, ser reconstruídos racionalmente, o que não significa, contudo,
que essa reconstrução tenha um caráter formal.
As críticas a uma suposta separabilidade entre os contextos de descoberta
e de justificação dão a dimensão da tarefa a ser realizada: a de desenvolver
uma metodologia filosófica que seja não somente consequencialista, mas
também gerativista; não somente reconstrutivista (limitando-se a análi-
ses retrospectivas da atividade científica), mas também prospectiva; e que

17. Devemos especificar o tipo de lógica (ver o capítulo 3). Nesta seção, refiro-me a uma
lógica dedutiva.

105
aborde a geração e a avaliação de uma hipótese ou teoria em seu efetivo
embricamento. Só nessa medida as reflexões metodológicas dos filósofos
podem capturar a complexidade da investigação científica e, desse modo,
colaborar para o seu aperfeiçoamento.

*3.3. Enfrentando o desafio


Este livro pode ser visto como uma tentativa de levar a sério o desafio
colocado ao final da última seção. Para indicar como se pode avançar na
direção de uma teoria do método que atenda aos requisitos aí colocados,
gostaria de mencionar as posições de dois filósofos contemporâneos que
adotam uma nova postura diante das questões abordadas.
Schaffner (1993), apoiando-se em grande medida na literatura de inte-
ligência artificial sobre descoberta mecanizada (em particular nos trabalhos
de H. Simon), divide a prática científica em três fases: da geração, avaliação
preliminar e justificação de novas hipóteses e teorias.
Schaffner critica Hanson por não ter feito a distinção entre uma “lógica
da geração” e uma “lógica da avaliação preliminar”.18 Ambas as fases estariam
incluídas no que Schaffner chama de “domínio da descoberta científica”
(o correspondente ao contexto de descoberta de Reichenbach) e que não
deve ser confundido, defende ele, com o “domínio da justificação científica”
(o correspondente ao contexto de justificação de Reichenbach). Schaffner
argumenta que as duas fases incluídas no “domínio de descoberta” são,
ambas, passíveis de uma “análise lógica e filosófica”.
McLaughlin (1982), por sua vez, chama atenção para a tendência em se
confundir questões empíricas e questões lógicas, em filósofos como Kuhn
e Feyerabend, críticos da distinção entre os contextos de descoberta e de
justificação como feita tradicionalmente.19 Contrariamente a esses críticos,
McLaughlin mantém a distinção entre esses dois tipos de questões, mas, ao
mesmo tempo, em oposição aos empiristas lógicos, considera que ambas

18. Creio que essa crítica a Hanson é injusta, mas não vem ao caso aqui entrar nessas que-
relas, mas focar nos argumentos apresentados por Schaffner.
19. No capítulo 11 trato das implicações metodológicas do quadro que Kuhn nos oferece
da atividade científica.

106
podem ser colocadas tanto com respeito ao contexto de descoberta (ou,
como ele prefere, contexto de “invenção”) quanto com respeito ao contexto
de justificação (ou de “avaliação”).
Assim, é uma questão empírica (no caso, psicológica) saber quais são as
causas das decisões que toma um cientista, seja quando inventa uma hipótese
ou prossegue investigando-a (contexto de descoberta), seja quando a aceita
ou rejeita (contexto de justificação). Por outro lado, é uma questão lógica
saber quais são as relações inferenciais entre essa hipótese e as proposições
observacionais que a sugerem (contexto de descoberta) ou que a testam
(contexto de justificação).
McLaughlin denuncia, portanto, dois tipos de “irracionalismo”. O primei-
ro deles estaria associado a posições defendidas por Popper e Reichenbach,
entre outros, chamando-o, não sem alguma ironia, de um “irracionalismo
vienense”. Para este tipo de irracionalismo, a invenção é irracional, e não
há possibilidade nem mesmo de uma reconstrução racional do contexto de
invenção. Esse irracionalismo tampouco admite a existência de elementos
empíricos no contexto de avaliação, equacionando, de forma simplista,
invenção = psicologia, de um lado, e avaliação = lógica, de outro.
O segundo tipo de irracionalismo estaria representado por Kuhn e
Feyerabend, que negam a possibilidade de se distinguir os contextos de
descoberta e de justificação, bem como as questões lógicas das ques-
tões empíricas.
McLaughlin defende, portanto, que elementos empíricos – que even-
tualmente influenciam a aceitação ou rejeição de uma hipótese – podem
não ter nenhuma relação com a racionalidade. Por outro lado, uma reflexão
racional (por exemplo, a respeito de problemas empíricos e conceituais)
é, frequentemente, decisiva quando um cientista inventa, aceita ou rejeita
uma hipótese.

4. Infalibilismo e lógica da descoberta


Hoje parece haver consenso entre filósofos de que, se há racionalidade na
descoberta científica, ela não pode ser reduzida a considerações lógico-formais.
A situação não foi sempre assim, contudo, e durante muito tempo atribuiu-

107
se relevância filosófica ao projeto de desenvolver uma lógica da descoberta.
Um otimismo a esse respeito, ou um franco pessimismo, reflete diferentes
posições epistemológicas ou imagens de ciência.
Laudan apresenta evidências históricas de que o interesse dos filósofos
dos séculos XVII e XVIII por uma lógica da descoberta era motivada, em
última instância, pela preocupação (filosófica, ele sublinha) com a questão
da justificação. Pensava-se que uma lógica da descoberta deveria fornecer
uma garantia (warrant) epistêmica às teorias geradas por sua aplicação:
“(...) uma lógica da descoberta funcionaria epistemologicamente como uma
lógica da justificação” (Laudan, 1980b:176).
Na reconstrução que faz Laudan da história da metodologia (1980b),
a partir do século XIX foram propostas lógicas da justificação consequen-
cialistas, ou seja, que concedem apoio epistêmico a teorias ou hipóteses
exclusivamente em função das suas consequências, ignorando o modo como
foram geradas (ver o capítulo 2). Desde então, os filósofos desinteressaram-
se por buscar uma lógica da descoberta. Isso porque, em última análise, seu
interesse sempre tinha sido com a justificação mesmo, sobretudo quando
buscavam lógicas da descoberta.
Outra associação interessante sugerida por Laudan é entre o consequen-
cialismo em metodologia e o falibilismo em epistemologia. O infalibilismo,
segundo Laudan, era o que motivava a busca por lógicas da descoberta,
pois se sabia que uma metodologia consequencialista não pode assegurar
que uma teoria é verdadeira (dada a falácia da afirmação do consequente).
Nickles também sublinha que um otimismo epistemológico não pode es-
tar associado ao consequencialismo, mas sim ao gerativismo, já que este
último não incorre, supostamente, nessa falácia. Logo, somente uma lógica
da descoberta pode satisfazer o infalibilista (epistêmico). Nessa leitura de
Laudan, com a consagração do falibilismo a partir do século XIX, a busca por
lógicas da descoberta perdeu a sua motivação epistemológica original. No
século XX, o falibilismo está no cerne da filosofia da ciência de K. Popper,
como veremos no capítulo 6.
Outro ponto interessante ressaltado por Laudan é que a procura por
lógicas da descoberta coincide, em geral, com períodos em que os produtos

108
típicos da atividade científica não envolvem termos teóricos, ou então com
períodos de grande desconfiança no valor das hipóteses em ciência. Nesses
períodos, é mais fácil acreditar que se pode passar com segurança da ob-
servação, ou de relatos de experiência, para a teoria. Historicamente, uma
das razões para o descrédito em que caiu o gerativismo teria sido o fracasso
da metodologia newtoniana de “dedução a partir dos fenômenos” (ver o
Apêndice neste capítulo).
Nos períodos em que predominam teorias genuínas (ou seja, aquelas
que envolvem uma linguagem teórica) há uma tendência a desprezar-se a
busca por lógicas da descoberta, pois não se considera plausível que possa
haver alguma lógica, algoritmo ou conjunto de regras que garanta a passagem
da observação a tais teorias.
O interesse recente por uma lógica da descoberta, na análise de Laudan,
não parece ter nenhuma motivação epistemológica (isto é, interesse pela jus-
tificação das crenças), mas unicamente com a construção de teorias enquanto
“artefatos”. Esse interesse distingue-se, portanto, da preocupação judicativa
tradicional dos filósofos. Laudan pergunta-se, então: que interesse filosófico
pode ter a construção de artefatos? Não é de se estranhar, diz Laudan, que
a preocupação com a construção de artefatos venha a nutrir-se das ciên-
cias empíricas – como a psicologia, a antropologia e a sociologia (Laudan,
1980b:182).20 Laudan está aqui comprometido com o caráter normativo da
epistemologia (ver capítulo 2).
No capítulo 7, sobre metodologia e heurística, voltarei a discutir essa
posição de Laudan. Nos próximos capítulos, o pensamento de alguns dos
filósofos acima mencionados merecerão uma análise mais detida.

5. Uma ilustração histórica: método e metodologia em Newton


Laudan mencionou, acima, uma “metodologia newtoniana”, e acho ins-
trutivo neste capítulo, que tem um caráter mais histórico, situar as suas con-

20. Laudan está, provavelmente, referindo-se aqui ao interesse pela descoberta mecanizada
em inteligência artificial. Nesse contexto, é relevante a distinção que fiz (no cap. 2) entre
metodologias construtivas e metodologias gerativistas, que tomei emprestado de Nickles
(1987b, 1987c).

109
siderações no século XVII e dar a palavra ao próprio Newton. Este apêndice
serve também para ilustrar as discussões que fiz no capítulo 1.
Embora hoje aceitemos a importância de se formular hipóteses para que
a ciência atinja os seus objetivos (explicativos e preditivos), isso não foi sempre
assim. Em grande parte da história das ciências predominou um ceticismo a
respeito do que era chamado o ‘método de hipótese’ (ver capítulo 3).
Na história da astronomia, por exemplo, o uso de hipóteses foi, por vezes,
visto como um desvio provocado pelos excessos especulativos de uma imagi-
nação científica não restringida pela experiência. Newton é muito conhecido
por ter rejeitado o uso de hipóteses em física. Não há, contudo, uma discussão
elaborada em sua obra sobre questões de método. Em alguns raros trechos ele
tenta, entretanto, explicitar algumas regras metodológicas.
Newton entendia como sendo hipóteses as especulações dos mecanicistas
cartesianos em torno da causa da gravidade, no contexto do século XVII.21
O famoso “Escolio Geral” dos Principia é um desses lugares em que ele é
enfático em rejeitar hipóteses e defender um indutivismo estrito (Laudan
provavelmente se referia a esse trecho)22:
Até aqui explicamos os fenômenos dos céus e de nosso mar pelo poder
da gravidade, mas ainda não designamos a causa desse poder (...). Mas
não fui ainda capaz de descobrir a causa dessas propriedades da gravi-
dade a partir dos fenômenos, e não construo nenhuma hipótese (I frame
no hypotheses; hypotheses non fingo); pois tudo que não é deduzido dos
fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e as hipóteses, quer me-
tafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm
lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia as proposições particulares
são inferidas dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução...
(Newton, Col. Os Pensadores, 1987:170)23

21. Por trás do hypotheses non fingo newtoniano há um misto de sabedoria metodológica e
de adesão a uma metafísica neoplatônica. Retrospectivamente e, portanto, anacronicamente,
podemos avaliar que Newton – independentemente das suas razões metafísicas – teve uma
acurada sensibilidade metodológica: de que era prematuro buscar-se, com os conhecimentos e
recursos disponíveis à época, uma explicação da gravitação. Para mais detalhes a respeito das
controvérsias no século XVII em torno de uma teoria da gravitação e questões metodológicas
correlatas, ver Abrantes, 2016.
22. Neste, e em outros trechos, Newton usa tanto o termo ‘dedução’ quanto ‘indução’ para
se referir ao mesmo tipo de inferência.
23. Tradução revista com base no original em inglês. In: Britannica, Great Books, 1954, vol. 34.

110
Em uma seção anterior dos Principia, Newton explicita algumas regras
que devem nortear a pesquisa científica.

5.1. Regulae Philosophandi (Regras de argumentacão em filosofia)24


Regra I
Não se hão de admitir mais causas das coisas naturais do que as que sejam
verdadeiras e, ao mesmo tempo, bastem para explicar suas aparências.
Regra II
Logo, nós devemos aos mesmos efeitos naturais, na medida do possível
atribuir as mesmas causas.
Regra III
As qualidades dos corpos que não admitem nem intensificação nem re-
missão de graus, e que se encontram associadas a todos os corpos dentro dos
limites de nossa experiência, devem ser estimadas como qualidades universais
de todos e quaisquer corpos.
Regra IV
Em filosofia experimental nós devemos estimar como acuradamente, ou
muito aproximadamente, verdadeiras aquelas proposições inferidas por indução
geral a partir dos fenômenos, a despeito de quaisquer hipóteses contrárias que
possam ser imaginadas, até que outros fenômenos ocorram, pelos quais elas
possam se tornar mais acuradas, ou passíveis de exceção.
Nós devemos seguir a regra de que o argumento de indução não pode ser
evadido (evaded by) por hipóteses (Newton, 1954: 270-1).

Note-se que, na Regra IV, Newton retoma, em outros termos, o hypothe-


ses non fingo prescrito na passagem anteriormente citada do Escólio Geral.

24. As regras foram traduzidas por mim com base na 3ª ed., de 1726, dos Mathematical
principles of natural philosophy (Newton, 1952). Com exceção da Regra IV, não incluo aqui
os comentários que Newton faz às demais regras. Nas várias edições dos Principia, Newton
alterou não somente os títulos (inicialmente as chamava de ‘hipóteses’; depois veio a cha-
má-las de ‘regras’), mas também o seu conteúdo. Note-se que, na Coleção Os Pensadores,
as regras são tiradas da 1a edição dos Principia, onde Newton ainda as chama de ‘hipóteses’.

111
112
6

A metodologia falseacionista

Pode-se defender que uma posição falseacionista em metodologia


antecede os desenvolvimentos em filosofia da ciência do século XX, mas
não pretendo aqui retraçar os eventuais precursores de Popper. Não há
dúvida, de todo modo, de que foi o maior representante contemporâneo
dessa metodologia.
Popper foi um crítico do empirismo lógico, embora tenha compartilhado
com essa escola muitas posições. Ao concentrar sua atenção somente nos
produtos da pesquisa, isolados do processo de produção (da prática que os
gerou), o empirismo lógico certamente contribuiu para a análise das carac-
terísticas lógico-semânticas de tais produtos, devidamente reconstruídos (a
tarefa básica da filosofia da ciência para esta escola). Porém, em contrapartida,
essa escola perdeu de vista a dinâmica científica, tornando-se incapaz de
compreender o processo de crescimento do conhecimento científico que,
para Popper, constitui o problema central da filosofia da ciência. Pode-se
ver a contribuição deste filósofo como, justamente, a de reintroduzir essa
dinâmica na reflexão filosófica sobre a ciência. Isso permitiu que ele promo-
vesse uma inflexão na filosofia da ciência do século XX em direção a uma
consciência propriamente metodológica.
Popper mantém, contudo, a distinção entre os contextos de descoberta
e de justificação, considerando somente este último como passível de análise
filosófica. Portanto, desde já é preciso deixar claro que a metodologia, para
Popper, tem por objeto não os métodos de descoberta, mas os métodos de
justificação. Em outras palavras, as normas metodológicas que este filósofo
propõe aplicam-se aos produtos da atividade científica e não à sua geração.

113
Só aparentemente, contudo, a perspectiva popperiana mantém-se estática
como a do empirismo lógico já que, como mostrarei, ele admite uma dinâ-
mica no próprio contexto de justificação.

1. Popper crítico do empirismo lógico


Popper, como os empiristas lógicos, estava preocupado com o problema
de como demarcar a ciência em relação à metafísica (ou às pseudo-ciências).
Entretanto, essa demarcação, segundo ele, não deve pressupor uma solução
para o problema da indução nem se basear num critério de significado, como
o critério verificacionista adotado pelos empiristas lógicos. A metafísica não
se distingue da ciência pelo fato de as sentenças metafísicas não terem signi-
ficado (pelo fato de não serem verificáveis, em consonância com o critério de
significado adotado pelos empiristas lógicos).1 Para Popper, o problema da
demarcação deve ser resolvido através da articulação de uma metodologia e
não por contorcionismos semânticos. A ciência caracterizar-se-ia pelos seus
métodos e não pelo conhecimento substantivo incorporado, por exemplo,
em teorias com determinadas características lógico-semânticas.2
Popper propôs uma separação dos problemas da demarcação e da in-
dução. A refutabilidade das teorias científicas é, para ele, uma solução para
o primeiro problema. A metodologia, entendida como uma ars inveniendi
(arte da invenção), deve ser distinguida da metodologia como fornecendo
critérios para a aceitabilidade ou validação dos produtos da atividade científi-
ca, isto é, tipicamente teorias. Popper defende que a filosofia da ciência nada
tem a dizer acerca da fase construtiva do trabalho científico. O filósofo tem
por objeto o contexto de justificação e não o de descoberta. A metodologia
popperiana é, nesse sentido, retrospectiva e não prospectiva.
Além disso, Popper é, declaradamente, um consequencialista. A sua
metodologia apresenta, contudo, traços gerativistas, como revela uma das

1. Ver o capítulo 4 para uma análise dessa solução semântica para o problema da demarcação,
proposta pelos empiristas lógicos. Popper chegou a admitir que as proposições metafísicas
podem ter um papel positivo no contexto de descoberta, ao sugerirem hipóteses a serem
posteriormente testadas. Para exercerem essa influência, contudo, as proposições metafísicas
certamente não podem ser vácuas, isto é, desprovidas de conteúdo empírico ou de significado.
2. Isso corresponde ao que chamei na Introdução de uma ‘imagem de ciência-como-método’.

114
principais regras metodológicas que propõe: a de que não se admitem mo-
dificações ad hoc numa teoria (mais sobre essa regra será exposto adiante).
Para aplicarmos essa regra é preciso saber como uma teoria foi gerada, ou a
que modificações ela foi submetida no passado. Só assim podemos avaliar a
cientificidade da dinâmica de que participa. Este problema, de uma tensão
entre uma postura consequencialista e algumas exigências metodológicas
com ressonâncias gerativistas, vai tornar-se mais agudo em Lakatos, um
discípulo de Popper.3

2. A metodologia popperiana e a lógica


Feitas essas considerações preliminares, passo a expor o uso que a
metodologia refutacionista (ou falseacionista) que propõe Popper faz de
determinadas regras de inferência da lógica dedutiva.4 Quero, no entanto,
desde já alertar o leitor para uma leitura incorreta, embora bastante comum,
de Popper: a metodologia que ele propõe não é uma simples decorrência da
aplicação da lógica dedutiva, como pode parecer à primeira vista. Mostrarei
isso na próxima seção.
Basicamente, Popper caracteriza a atividade científica como uma tenta-
tiva constante de refutar nossas conjecturas (hipóteses, teorias, etc.). Numa
perspectiva indutivista, o cientista visa a verificar ou a provar suas construções
teóricas, com base na evidência empírica. Popper defende, ao contrário, que
a refutação, e não a verificação, é o fim da atividade científica, esta sendo
retratada como essencialmente crítica.
O falseacionismo explora ao máximo o Modus Tollens que, sabemos,
traduz uma inferência válida; ao mesmo tempo, Popper chama atenção para
a falácia da afirmação do consequente.
Popper supõe, como muitos outros filósofos, que a forma lógica dos
produtos típicos da atividade científica é a de sentenças universais irrestritas.

3. Ver também as críticas feitas à separação entre os contextos de descoberta e de justifica-


ção, que abordei no capítulo 5. A despeito disso, Popper mantém-se um partidário dessa
separação, como disse acima.
4. Comparar a apresentação que se segue com a discussão que fiz no capítulo 3 sobre o mé-
todo H-D, que antecipou alguns dos pontos aqui discutidos. O problema da confirmação,
discutido no capítulo 4, também se relaciona com esse tópico.

115
Tais sentenças, como é notoriamente o caso das leis científicas, não podem
ser verificadas, mas só falseadas. Se um astrônomo admite a hipótese de que
‘todos os corpos celestes têm formas esféricas perfeitas’ – como acreditavam
os aristotélicos –, mas observa posteriormente (como fez Galileu através da
luneta) que a lua possui inúmeras irregularidades na sua superfície, então ele
deve abandonar sua hipótese. A hipótese foi refutada pela experiência. Não
importa quantas confirmações anteriores tenha havido desta hipótese (todas
as vezes que olhamos para o céu a olho nu temos várias oportunidades de
confirmar essa hipótese). Uma única instância em contrário deve levar ao
seu abandono (ou à sua modificação, que deve ser feita com base em regras
bastante estritas, como veremos na próxima seção).
Digamos que uma hipótese ou conjunto de hipóteses – compondo
uma teoria ‘T’ – implica uma sentença observacional ‘O’ descrevendo uma
previsão da teoria.5 Podemos escrever, simbolicamente:
T -> O
Esta sentença composta possui, portanto, a forma lógica de uma implica-
ção material em que ‘T’ é o antecedente e ‘O’ é o consequente da implicação,
descrevendo uma previsão da teoria.
No exemplo que acabei de dar, a hipótese da forma esférica perfeita dos
corpos celestes pode vir acompanhada de outras hipóteses a respeito dos
movimentos dos corpos celestes. Platão e Aristóteles acreditavam que todos
os corpos celestes movem-se com movimentos circulares e uniformes (ou
resultam de uma composição de vários desses movimentos), hipótese que
foi central na constituição de um programa em astronomia que durou mais
de vinte séculos.6 Esses movimentos circulares teriam, além disso, a Terra

5. Um sentença observacional é aquela que só possui termos referindo-se a entidades, pro-


priedades, processos, etc. observáveis. Ou seja, uma sentença observacional descreve seja
uma observação efetivamente realizada ou uma observação passível de ser realizada (por
exemplo, no futuro, como é o caso numa previsão).
6. Caso a relação entre ‘T’ e ‘O’ seja entendida como uma inferência dedutiva, teríamos que
usar algum outro símbolo representando a consequência lógica no nível da metalingua-
gem. Não é relevante para as discussões deste livro a diferença entre o nível da linguagem
e o da metalinguagem. Sobre a possibilidade de se usar a implicação material, como faço
aqui, ver a nota 8 do capítulo 3. Estou também ignorando que o antecedente da implicação
usualmente inclui condições iniciais e hipóteses auxiliares, formando uma outra sentença,
mais complexa, ‘T*’, no antecedente da implicação (T* -> O).

116
como centro (mais uma hipótese, portanto). Suponhamos que com base
nessa teoria geocêntrica (que, para efeito dessa ilustração, considero como
composta por essas três hipóteses) possamos prever a posição, num certo
instante de tempo, de um corpo celeste, digamos Marte. Estou admitindo
que esta previsão possa ser reconstruída como uma implicação: a teoria
implica que Marte estará nessa posição num certo instante de tempo. Como
saber se isso acontece na realidade? Através da observação. A olho nu ou
com o uso de instrumentos observa-se, no instante determinado, se Marte
encontra-se na posição prevista no céu. Caso a observação coincida com a
previsão da teoria, pode-se afirmar que ‘O’ é uma proposição verdadeira.7
Ou seja, podemos agora admitir duas premissas num possível argumento
(numero-as para facilitar a análise):
1) T -> O
2) O

Que conclusão se pode tirar, com base nessas premissas, a respeito


do status epistêmico da teoria T? Ela foi confirmada (ou corroborada)
pela observação.
Uma confirmação não é, contudo, uma verificação. Não se pode con-
cluir, com base nessa observação e em formas lógicas válidas, que a teoria é
verdadeira. Isso seria cometer a falácia da afirmação do consequente, como
assinalei no capítulo 3. Se o consequente de uma implicação material for
verdadeiro, do ponto de vista lógico o antecedente pode ser falso e, mesmo
assim, a implicação como um todo ser verdadeira.
Esse ponto tem uma importante consequência metodológica: uma teoria
falsa pode fazer previsões verdadeiras! Em particular, a teoria geocêntrica
do nosso exemplo, embora saibamos hoje que é falsa, fez várias previsões
corretas e foi, durante séculos, a base teórica para um trabalho científico em
astronomia e para aplicações, como a elaboração de calendários, por exemplo.

7. Estou aqui simplificando tremendamente. Por exemplo, estou abstraindo o fato de que
toda observação possui um grau de incerteza, entre outras coisas devido à precisão, sempre
limitada, dos aparelhos de medida utilizados. Em casos reais nunca temos uma previsão
teórica que coincide exatamente com o resultado de uma observação. Temos que tolerar
um certo grau de discrepância para podermos confirmar a teoria.

117
Consideremos, agora, o caso em que a observação não coincide com a
previsão da teoria. No exemplo dado, procurou-se Marte no lugar previsto,
no instante determinado e Marte não estava lá, mas em outro lugar. Pode-se,
portanto, dizer que ‘O’ é falsa (ou, equivalentemente, pode-se afirmar ~ O).
Nesse caso, afirmamos as seguintes sentenças como premissas:
1) T -> O
2) ~ O

O que concluir, nesse outro caso, a respeito do status epistêmico da


teoria T? Ela foi infirmada, falseada ou refutada (use o termo que lhe soar
melhor, pois são sinônimos) pela observação. Se tivermos certeza a respeito
do valor verdade de ‘~ O’, podemos ter certeza que a teoria ‘T’ é falsa, usando
o Modus Tollens, uma regra de inferência da lógica dedutiva.8 Ou seja, temos
agora o seguinte argumento válido:
1) T -> O
2) ~ O
===========
3) ~ T

A linha dupla tracejada separa a conclusão (3) de um argumento dedu-


tivo, das suas premissas (1) e (2). Se podemos nos assegurar que as premissas
são verdadeiras, então a conclusão (~ T) será necessariamente verdadeira.
Isso equivale a dizer, neste caso, que a teoria revelou-se falsa no confronto
com as evidências.
Simplificando muito, como veremos na discussão que se segue, a me-
todologia falseacionista afirma que observações podem – por esse tipo de
aplicação de regras da lógica dedutiva – falsear uma teoria (mostrar que ela
é falsa), mas nunca podem nos assegurar que uma teoria é verdadeira. Por
mais que uma teoria seja confirmada por uma série de N observações, sempre
haverá a possibilidade de ela ser falseada pela observação N+1. Trata-se de
uma aplicação da lógica dedutiva ao caso da relação entre uma hipótese (ou
uma teoria, por exemplo) e a evidência empírica.

8. Sobre essa regra de inferência, ver o capítulo 3.

118
Repetindo o que disse acima, sentenças universais irrestritas não podem
ser verificadas, somente falseadas. Popper admite que o núcleo das teorias
científicas é formado por tais sentenças (ou seja, por leis científicas, com a
forma lógica dos assim chamados ‘enunciados nomológicos’). Portanto, uma
teoria pode ser reconstruída como uma conjunção (lógica) de enunciados
nomológicos (digamos, h1, h2, h3... hn). Podemos escrever, portanto, que
T <-> h1 . h2 . h3... hn (o ponto aqui representando o conetivo lógico ‘e’ numa
conjunção de hipóteses). O Modus Tollens, no exemplo acima, pode ser,
portanto, reformulado da seguinte maneira:
1) (h1 . h2 . h3 ... hn) -> O
2) ~ O
===============
3) ~ (h1 . h2 . h3 ... hn)

Mas sabemos que a negação de uma conjunção é equivalente logica-


mente a uma disjunção:
~ (h1 . h2 . h3 ... hn) <-> ~h1 v ~h2 v ~h3 ... v ~hn

Aqui estou usando o símbolo ‘v’ para representar o conetivo lógico ‘ou’,
e o símbolo ‘<->’ para representar a equivalência lógica.
A interpretação desse resultado é a seguinte: se uma teoria é falseada,
então é falseada uma, várias ou todas as sentenças que compõem essa teo-
ria. O que coloca uma questão difícil: como saber que parte da teoria (que
sentença ou grupo de sentenças) é falsa e deve, portanto, ser descartada
ou modificada (supondo-se que há outras partes que são verdadeiras)? As
inferências acima não nos permitem essa determinação fina do que é falso
na teoria. O que sabemos, pela inconsistência entre a evidência empírica e
a teoria, é que esta última, como um todo, tem algum problema.9
Voltando ao exemplo acima, se a teoria astronômica geocêntrica é
falseada, talvez somente a hipótese geocêntrica seja falsa (e tenha que ser
abandonada), e possamos manter a hipótese de que os movimentos dos

9. Podemos colocar em dúvida as observações, pois cometemos erros ao observar, utilizando


instrumentos ou não. Aqui estou supondo que a observação seja fidedigna. Mais à frente
apontarei as complicações decorrentes de colocarmos em dúvida as supostas evidências
empíricas, aquilo que Popper chama de “base empírica”.

119
astros são circulares e uniformes.10 Mas não podemos ter certeza, com base
somente no Modus Tollens, de que a refutação deve ser dirigida somente
para esse elemento da teoria. Essa indeterminação será aproveitada, como
veremos, pela crítica convencionalista ao critério popperiano de demarcação.
Quero agora, antes de concluir, voltar ao que disse no início desta seção:
o problema da demarcação não pode ser resolvido, numa perspectiva po-
pperiana, em bases estritamente lógicas (por uma análise das formas lógicas
de sentenças e das relações lógicas entre sentenças), contrariamente ao que
os resultados acima parecem sugerir. Se fosse esse o caso, a metodologia de
Popper seria bastante simplista e pouco original! As coisas são bem mais
complicadas, mas também mais interessantes. As regras metodológicas
popperianas pressupõem, na verdade, muito mais do que certas regras sim-
ples de inferência da lógica dedutiva.11 Elas pressupõem um compromisso
com uma particular concepção da finalidade do “jogo da ciência” (Popper,
1993:56). E, nesse campo, a lógica não pode vir em nosso auxílio.

3. A concepção popperiana de metodologia


O título mesmo desta seção indica que as considerações que se seguem
têm um caráter metametodológico, ou seja, abordam não uma metodologia
em particular, mas a natureza mesma da metodologia científica. No capí-
tulo 9 vou expandir essa discussão e considerar uma variedade de posturas
em metametodologia.
Popper recusa-se a considerar as questões metodológicas como meras
questões de lógica aplicada (como almejavam os empiristas lógicos). Em uma
nota bastante esclarecedora em seu clássico A Lógica da Pesquisa Científica,12
Popper aponta o dilema colocado pelos empiristas lógicos:
(...) Nos dois anos que precederam a publicação desta obra, minhas
idéias eram criticadas pelos adeptos do Círculo de Viena, afirmando-se
impossível uma teoria do método que não fosse nem ciência empírica

10. Copérnico fez algo nessa linha: manteve o dogma platônico da circularidade, mas tirou
a Terra do centro imóvel do cosmo (colocando o Sol em seu lugar).
11. Não se confunda, portanto, o que estou denominando aqui de ‘regras metodológicas’,
com as regras lógicas que introduzi no capítulo 3.
12. A primeira edição deste livro, em alemão, data de 1934. A primeira edição inglesa é de 1959.

120
nem pura Lógica – pois o que saísse desses dois campos era totalmente
sem sentido (Popper, 1993:53, nota *1).

Popper rejeita tanto a primeira alternativa, que ele chama de “naturalista”,


quanto a segunda, mais no espírito do empirismo lógico.
Sua terceira via é a de apelar para uma “convenção”, que se justifica em
termos de uma finalidade atribuída ao jogo da ciência e, em última instância,
em “juízos de valor” (Popper, 1993:38- 40).
É incorreto dizer, portanto, que a metodologia popperiana se fundamen-
ta exclusivamente na lógica dedutiva (particularmente no Modus Tollens).
O critério falseacionista de demarcação, por si só, é na verdade alvo fácil de
críticas convencionalistas (inspiradas no filósofo francês de fins do século
XIX, Pierre Duhem).13 Tais críticas alegam que é sempre possível salvar
uma teoria da refutação fazendo modificações periféricas nela (e manten-
do seu núcleo de sentenças fundamentais). Em última análise, uma teoria
científica seria sempre aceita por convenção e não podemos ter esperanças
nem mesmo de falseá-la (já havíamos perdido as esperanças de verificá-la!).
Popper reconhece que não é possível responder a essa crítica de um ponto
de vista estritamente lógico.
A crítica convencionalista ao critério falseacionista de demarcação
obriga Popper a admitir, então, que um ideal de ciência (um compromisso
com certos valores ou fins) não pode justificar-se em termos lógicos (seja
em termos de uma lógica indutiva ou dedutiva). Veremos, na próxima
seção, que esta posição de Popper está associada a uma teoria hierárquica
de racionalidade.
A crítica convencionalista leva Popper a admitir que os cientistas estão
continuamente modificando suas teorias para adequá-las à experiência,
salvando-as do falseamento. Cabe à filosofia da ciência estabelecer regras a
respeito de como essas modificações devem ser feitas.
A metodologia de Popper pode ser vista como composta basicamente
de um critério de demarcação (a refutabilidade) e de um conjunto de regras
metodológicas subsidiárias. Mencionei, anteriormente, a regra que proíbe
modificações ad hoc em uma teoria científica, para salvá-la do falseamento.

13. Popper distorce, na verdade, as posições de P. Duhem, que são muito mais sofisticadas
do que transparece aqui. Ver, a esse respeito, Abrantes (1989; 2016, p. 361-68).

121
Esta regra é equivalente a esta outra: ‘somente são aceitáveis modificações
que não reduzam o grau de falseabilidade ou de testabilidade da teoria’.
Um exemplo clássico de modificações ad hoc numa teoria, visando evi-
tar a refutação, é fornecido, justamente, pelo programa em astronomia que
serviu de exemplo na seção anterior. Agora estamos admitindo que não se
trata de uma teoria, mas de um programa, ou seja, que várias modificações
foram feitas na versão inicial da teoria mantendo-se, contudo, o seu núcleo.
Para Ptolomeu, um dos mais importantes astrônomos que participaram
desse programa, os astros movem-se em torno da Terra em órbitas circulares
simples ou passíveis de descrição em termos da composição de movimen-
tos circulares (chamados de ‘epiciclos’). Quando um astrônomo fazia uma
previsão, com base numa versão dessa teoria – por exemplo, a respeito da
posição de Marte em determinado momento, como no exemplo anterior – e
que não era confirmada pela observação, ele usualmente adotava a estratégia
de acrescentar mais desses epiciclos. Assim, a teoria escapa do falseamento:
a instância falseadora torna-se uma instância confirmadora do programa!
Para Popper, esse programa (ou essa prática, mais precisamente) não
seria científico, pois os cientistas que nele trabalham valem-se de métodos
inaceitáveis. O mínimo que se deve exigir, a cada modificação numa teoria,
é que o seu conteúdo empírico aumente (ou seja, que ela faça a previsão
de novas observações que a versão anterior da teoria não possibilitava).14
A prática científica caracteriza-se não somente por “conjecturas e refuta-
ções” – o título de uma das obras de Popper (1982) –, mas pelo crescimento
do conhecimento. As pseudo-ciências e a metafísica imunizam-se contra
a refutação com estratagemas (métodos não-científicos) semelhantes aos
utilizados pelos astrônomos ptolomaicos.
Os diagramas a seguir ilustram a distinção entre ciência e metafísica
como sendo uma distinção a respeito dos métodos aceitos para se modificar
sistemas conceituais:

14. No jargão popperiano, cada versão teórica deve ter mais “falseadores potenciais” do que
a versão que a precedeu no programa. Uma previsão é um falseador potencial no sentido de
que, se não se confirmar, leva ao falseamento da versão teórica em que se baseou.

122
1. A ciência como atividade

2. A metafísica como atividade

Onde: To, T1, T2 ... constitui uma série de teorias propostas sequencialmente ao longo
do tempo - o eixo horizontal (t); ϕ é o número de falseadores potenciais de cada teoria
(o eixo vertical); M é uma teoria metafísica (sem falseadores potenciais)

As regras metodológicas são, portanto, “elaboradas com o objetivo de


assegurar a aplicabilidade de nosso critério de demarcação”, diz-nos Popper
(1993:57). A refutabilidade é considerada como a garantia do caráter empírico
dos produtos da atividade científica:
Coloca-se de início uma regra suprema, que serve como uma espécie
de norma para decidir a propósito das demais regras e que é, por isso,
uma regra de tipo superior. É a regra que afirma que as demais regras
do processo científico devem ser elaboradas de maneira a não proteger
contra o falseamento qualquer enunciado científico. (Popper, 1993:56)

123
Com isso, Popper reconhece que:
(...) somente com respeito a métodos aplicados a um sistema teórico,
torna-se possível indagar se estamos diante de uma teoria convencio-
nalista ou empírica. (Popper, 1993:86)

É preciso, portanto, investigar o passado, a história de uma teoria, para


podermos nos pronunciar quanto à sua cientificidade. Temos que comparar
as sucessivas versões teóricas do programa para ver se as modificações que
foram implementadas atenderam às regras metodológicas popperianas.
Uma análise meramente estática da estrutura de uma teoria científica (por
exemplo, das relações lógicas entre as sentenças que a compõem e as senten-
ças que traduzem a evidência empírica) não é suficiente para julgarmos sua
cientificidade. O critério popperiano de demarcação aplica-se, na verdade,
à dinâmica do desenvolvimento teórico, e não a uma teoria tomada isolada
e estaticamente.
Nesse sentido, compreende-se que a sua filosofia da ciência (ou me-
todologia) seja uma teoria das regras do método científico; essas regras
metodológicas pretendem assegurar o crescimento do conhecimento – o
fim último do trabalho científico para Popper.

4. A teoria hierárquica de racionalidade


A metodologia de Popper está associada a uma concepção hierárquica
da relação entre conhecimento substantivo, metodologia e axiologia. Segundo
essa concepção, as disputas intelectuais em ciência são resolvidas passan-
do-se de um nível a outro numa hierarquia. O esquema seguinte permite
visualizá-la e sintetiza uma concepção particular de racionalidade científica:
Nível de Desacordo Nível de Resolução
3. Axiológico -------------> (Nenhum)
2. Metodológico -------------> Axiológico
1. Factual/Teórico -------------> Metodológico

Segundo a chamada ‘teoria hierárquica de racionalidade’, as divergências


num nível são resolvidas apelando-se para um consenso num metanível;
sobe-se, portanto, um grau na hierarquia.

124
Os defensores da teoria hierárquica supõem, normalmente, que o consen-
so no nível axiológico é condição para que se tenha uma atividade racional,
pois não haveria possibilidade de se resolver racionalmente os conflitos neste
nível sem iniciar um regresso infinito (apelando-se indefinidamente para
metaníveis, ou seja, subindo-se na hierarquia). Esta talvez seja a principal
limitação desta teoria: os conflitos no nível axiológico – que são comuns na
história da ciência – não podem ser tratados no âmbito da teoria hierárquica.
No caso de Popper, como vimos, ele é obrigado a adotar por convenção
determinados valores (ou fins) para a atividade científica, em particular o
fim de crescimento do conhecimento. No âmbito da teoria hierárquica de
racionalidade que ele esposa, não há como justificar tal fim (apelando-se para
um nível meta-axiológico, por exemplo, o que iniciaria o regresso). Popper é
obrigado a fazer uma parada dogmática no nível axiológico. O que equivale
a dizer que disputas nesse nível não poderiam ser resolvidas racionalmente.
Veremos, mais a frente, que Laudan propôs uma alternativa a essa teoria
hierárquica, que permite evitar esse resultado incômodo.
No capítulo 13, apresentarei as tentativas que fez Popper, em trabalhos
da sua última fase, de associar a sua metodologia falseacionista a uma epis-
temologia evolucionista, e terei a oportunidade de aprofundar discussões
epistemológicas que adotam uma ótica inspirada na biologia.

125
126
7

Metodologia e heurística

A questão da racionalidade envolvida nos procedimentos que levam


à construção de hipóteses e teorias nas ciências e, relacionada a esta, do
interesse filosófico em se analisar ou se reconstruir tais procedimentos re-
mete, por um lado, a uma discussão sobre a existência de uma lógica e/ou
de algoritmos para a descoberta e, por outro, à existência de heurísticas que
não somente aumentem a eficiência desses procedimentos, mas que também
confiram alguma plausibilidade inicial aos seus resultados. O objetivo deste
capítulo é investigar em que medida a distinção entre algoritmo e heurística
é relevante para uma questão metodológica central: há possibilidade de
se desenvolver uma metodologia gerativista ou temos que nos contentar,
enquanto filósofos, com uma metodologia consequencialista?

1. Algoritmos e heurísticas
Um algoritmo1 é um procedimento especificado claramente em seus
mínimos detalhes, de modo a que possa ser mecanizado, como numa com-
putação. Exemplos simples de algoritmos são os que aprendemos na escola
para realizar uma adição mais complicada, extrair a raiz quadrada de um
número, etc. Um algoritmo não deixa margem para inteligência, intuição ou
criatividade – a cada etapa concluída do procedimento, o algoritmo especi-
fica detalhadamente o que fazer a seguir, sem ambiguidade. Um algoritmo

1. Há alguma controvérsia a respeito da etimologia dessa palavra. Uma das hipóteses é


que teria sido cunhada a partir do sobrenome de um matemático persa do século IX, Abu
Jaafar Muhammad ibn Mûsâ al-Khowârizmi. A definição precisa de algoritmo deve-se a
Church, Turing e Post, nos idos de 1930. Eles provaram que há equivalência entre processos
mecânicos e cálculos formais.

127
garante, por último, que o resultado (por exemplo, a resposta a um problema
claramente especificado, como o de obter as raízes de uma equação algébrica
de segundo grau) pode ser alcançado num número finito de passos.
Outra característica associada a algoritmos é a possibilidade de se-
rem implementados nos mais diferentes substratos físicos, ou seja, a sua
neutralidade com respeito aos equipamentos materiais que dão suporte ao
procedimento. Os programas de computador são algoritmos que bem ilus-
tram esse ponto. Um programa para edição de textos, por exemplo, pode ser
implementado em computadores com arquiteturas diferentes, construídos
com diferentes materiais e que, portanto, realizam as operações, no nível
físico do suporte físico (hardware), de maneiras completamente diferentes.
Assim, uma mesma computação (por exemplo, uma operação aritmética
como a subtração) pode ser feita numa máquina de calcular eletrônica, dessas
de bolso, bem como num ábaco. Os processos físicos, causais, envolvidos
em cada uma dessas calculadoras à medida que o algoritmo, o cálculo, se
desenvolve, são completamente diferentes (processos eletrônicos no primeiro
caso e mecânicos no segundo), mas isso não afeta o resultado.2
Como um procedimento com as características de um algoritmo se
distingue de uma heurística? A palavra ‘heurística’ vem do grego, heuriskein,
e significa encontrar ou descobrir. Enquanto um algoritmo, por definição,
garante a solução de um problema (ou de forma mais geral, a obtenção de
um resultado), uma heurística propõe simplesmente a melhor estratégia,
ou uma boa estratégia, para a sua solução, sem a garantir.
O interesse recente por heurísticas, inclusive entre filósofos, foi moti-
vado pelo desenvolvimento de métodos de busca heurística em inteligência
artificial (IA).3 Dado um problema especificado nos seus mínimos detalhes,
o objetivo da busca é encontrar a solução para ele num determinado espa-

2. A eficiência (medida em termos do tempo gasto, por exemplo) na realização do proce-


dimento pode variar dependendo da calculadora utilizada, ou seja, do hardware que lhe
dá suporte.
3. Podemos, nesses casos, falar de ‘heurísticas formais’, como sugere Nozick (1995:164), e
cujas regras são, portanto, mecanizáveis. Isso não elimina, entretanto, a distinção entre
algoritmos e tais heurísticas, como estabeleço no texto. Quando Nozick menciona as heu-
rísticas não-formais, ele indica que estas não são mecanizáveis, e que seus princípios, para
serem aplicados, envolvem “compreensão, inteligência e habilidade” (1995:164).

128
ço de soluções possíveis. Como restringir a busca de modo a aumentar a
eficiência do processo, diminuindo, por exemplo, o tempo necessário para
encontrar a solução?
Pense no caso desses programas que fazem um computador jogar xadrez.4
Dada uma certa disposição de peças no tabuleiro, o problema é encontrar
a melhor jogada em cada caso. O computador poderia usar de força bruta e
examinar cada uma das jogadas possíveis (admitidas pelas regras do jogo)
e compará-las, com base em algum critério, tendo em vista o objetivo fi-
nal, que é dar um xeque-mate. Esse procedimento não é nada eficiente, ou
mesmo factível dentro de um intervalo razoável de tempo, já que o jogador
(nesse caso, o computador que está implementando o programa) tem que
antecipar as jogadas do adversário, examinando vários cursos que a partida
pode tomar. O espaço de busca pode ser representado por uma árvore em
que cada ramificação constitui um curso possível da partida. Não é viável
explorar todos os ramos e suas inúmeras bifurcações toda vez em que se tem
que decidir uma jogada. Mesmo para um computador ultra-rápido, capaz
de realizar centenas ou milhares de operações por minuto, essa estratégia
de força bruta não é factível, dadas as limitações de tempo e de memória
para armazenar as representações simbólicas de cada curso de ação possível.
Aí é que entram em cena as heurísticas, que objetivam restringir o
espaço de busca, sugerindo que não vale a pena explorar determinadas rami-
ficações desse espaço, determinados cursos possíveis de jogadas sucessivas.
Uma heurística incorpora conhecimento – neste exemplo, o conhecimento
disponível nos manuais de xadrez a respeito de boas e más estratégias de
jogo. Esse conhecimento é baseado em partidas clássicas, que mostram como
evitar ciladas óbvias (ou não tão óbvias) e como aumentar a probabilidade
de se conquistar melhores posições frente ao adversário tendo-se em vista
o objetivo final do jogo. Uma heurística para se jogar xadrez não pode as-
segurar, entretanto, que o xeque-mate será dado, mesmo se a estratégia de
busca sugerida for fielmente seguida.

4. Um desses computadores, o deep blue, ficou famoso por ganhar, num torneio, de um
campeão mundial de xadrez.

129
Pode-se distinguir duas classes de estratégias de busca: estratégias não-
informadas (ou cegas; o que chamei acima de estratégias de força bruta) e
estratégias informadas (ou heurísticas). As últimas usam informação es-
pecífica a respeito do problema (informação sobre a estrutura do espaço
de busca; sobre o grau de proximidade entre metas intermediárias e metas
finais, etc.) para aumentar a eficiência no alcance da meta (por exemplo, a
descoberta da solução para um problema). Heurísticas são, nesse contexto,
métodos informais baseados no conhecimento de especialistas em domínios
particulares. Os chamados sistemas especialistas em IA incorporam esse
conhecimento especializado. No nosso exemplo, uma heurística para se
jogar xadrez tenta incorporar o máximo de conhecimento acumulado por
gerações de grandes enxadristas.
Pode-se organizar heurísticas numa hierarquia, indo de heurísticas
mais gerais, com aplicabilidade ampla, àquelas adequadas para lidar com
problemas particulares, em domínios restritos. Quanto mais conhecimento
específico a um domínio é incorporado a uma heurística, menos ampla é a
sua aplicação na solução de problemas.
Portanto, as características básicas de heurísticas são as seguintes:
1. Heurísticas são métodos ou estratégias que aumentam a eficiência
(relativamente à de um mero palpite, chute ou atuação aleatória) na reali-
zação de uma tarefa – por exemplo, na resolução de problemas. Para tanto,
as heurísticas incorporam conhecimento a respeito da tarefa, a experiência
acumulada a respeito de sucessos e fracassos nas tentativas prévias de rea-
lizá-la (o que explicito na característica que se segue);
2. Heurísticas pressupõem informação a respeito do espaço de busca e
dos melhores caminhos a serem percorridos – especificando, por exemplo,
metas intermediárias a serem alcançadas e avaliando-as com respeito à
sua maior ou menor proximidade da meta final – com base na experiência
anterior (de especialistas) na exploração desse espaço;
3. Heurísticas, contrariamente a algoritmos, não garantem que a tarefa
será realizada com sucesso.
No que diz respeito à característica (1), as heurísticas mais eficientes,
ou mais fortes, pressupõem mais informação específica a respeito da tarefa

130
a ser realizada. Nesse sentido, heurísticas são métodos adequados a domí-
nios particulares e são aperfeiçoadas na medida em que incorporam mais
conhecimento (experiência, informação) a respeito da tarefa. Quanto mais
conhecimento possuímos de um domínio – quanto mais experiência pos-
suímos de cursos de ação que tiveram sucesso e daqueles que fracassaram
em intervenções nesse domínio no passado – melhores heurísticas somos
capazes de desenvolver.
Com respeito à característica (2), podemos hierarquizar as heurísticas
com respeito à quantidade de informação que pressupõem. Num extremo,
temos a heurística em que a geração de soluções, de ações, é aleatória, a
busca não sendo informada a respeito da tarefa e/ou a respeito do espaço
de busca, ou seja, dos melhores caminhos a serem trilhados para se alcançar
a meta final. Por exemplo, uma heurística fraca, como a de gerar e testar, de
tentativa e erro, é extremamente flexível – na medida em que pode aplicar-se
à resolução de qualquer tipo de problema, à consecução de qualquer tarefa
–, mas sua eficiência é muito baixa, exigindo muito tempo e/ou recursos. Na
heurística de gerar e testar, não há qualquer restrição para o que é gerado
(por exemplo, o comportamento de um animal hipotético frente a uma si-
tuação que lhe é completamente nova) – nenhuma informação incorporada
a respeito da sua adequação para a tarefa a ser realizada. Mesmo assim, o
que se gera é, em seguida, testado como uma resposta para o problema que
foi colocado.
No extremo oposto, temos heurísticas fortes, muito eficientes por serem
especializadas na resolução de problemas de um tipo particular, por incor-
porarem informação a respeito de uma tarefa específica e, nessa medida, não
têm flexibilidade, ou simplesmente não podem ser utilizadas para resolver
problemas de outros tipos.5
Quanto à característica (3), é comum afirmar-se que heurísticas são
métodos “suficientemente eficientes” (uma expressão que devemos a H.
Simon) – dadas as condições objetivas com que se tem que lidar em qualquer
situação real – e não métodos que seriam considerados ótimos em termos

5. Pode se fazer um paralelo entre o que chamei de ‘lógicas materiais’ no capítulo 3 e heurís-
ticas: ambas incorporam conhecimento a respeito de um domínio particular de aplicação.

131
absolutos e em condições ideais. Se comparadas com algoritmos, heurísticas
são rápidas e sujas, isto é, pouco seguras, embora eficientes no sentido de
indicarem rapidamente cursos de ação, soluções para problemas prementes.
Um problema que exige uma resposta rápida é o enfrentado por alguém
em situação de perigo, em que sua vida corre risco, por exemplo, num in-
cêndio. A pessoa, em geral, não tem tempo para comparar diferentes cursos
de ação e pesar qual seria a melhor, minimizando o perigo. Está claro que
ela pode dar-se mal fazendo uma escolha ruim, agindo de qualquer modo,
aleatoriamente ou instintivamente,6 automática e irrefletidamente, sem pen-
sar; mas nessas situações é melhor agir rápido do que não fazer nada, ficar
paralisado ou agir lentamente. A heurística de gerar e testar, por exemplo
(que corresponde a agir aleatoriamente), é muito rápida, mas, ao mesmo
tempo, suja demais, colocando riscos elevados no caso deste exemplo. Não
temos, por vezes, outra opção senão fazer alguma coisa sem pensar.
Além disso, agentes reais – que não possuem a ilimitada capacidade
de processamento, de tempo e de memória de agentes ideais – têm limi-
tações estruturais que restringem a sua capacidade de responder a uma
situação determinada. Cherniak (1986), num livro clássico, aplica a teoria
da complexidade computacional e se baseia em resultados empíricos em
psicologia para elaborar o conceito de um “agente minimamente racional”,
justificando a racionalidade, em determinadas situações, no emprego de
heurísticas “rápidas e sujas”: “(...) que podem ser, portanto, indispensáveis
para um desempenho melhor do que o aleatório ao mesmo tempo que evita
a paralisia computacional” (1986:134).
Resumindo: uma tarefa pode ser realizada usando-se algoritmos ou
heurísticas. Em geral, os custos para agentes reais, em termos de tempo
e outros recursos, são muito diferentes em cada caso e determinam que
método, que procedimento será adotado. A quantidade de conhecimento
que se tem a respeito da tarefa a ser realizada também é um fator crucial.

6. Comportar-se com base em instinto é diferente de agir aleatoriamente, já que se pode


defender que o instinto baseia-se em mecanismos que incorporam informação a respeito
de situações típicas com que a espécie lidou em contato com o ambiente, informação que
foi assimilada ao longo da história filogenética da espécie.

132
Por vezes, dependendo da tarefa e/ou das condições, só nos resta agir ale-
atoriamente, irracionalmente.

2. A heurística e os filósofos da ciência


A quase completa ausência de investigações em torno de uma meto-
dologia construtiva e gerativa na filosofia contemporânea da ciência (e que
eram comuns até o século XIX) talvez possa ser explicada pela falha em se
distinguir algoritmos de heurísticas.7
Por entenderem que a geração de conhecimento científico só pode ser
um objeto legítimo de investigação filosófica se tomar a forma de um algo-
ritmo, de um procedimento formal, Popper e outros filósofos tipicamente
não abrem espaço para a heurística. Eles concebem de modo estreito demais
a tarefa da metodologia, numa perspectiva logicista.
No capítulo 5, vimos que Laudan distingue, tipicamente, o problema
epistemológico colocado pela ciência (voltado para a justificação dos pro-
dutos da atividade científica), do problema heurístico de “como se pode
maximizar a rapidez (rate) com que teorias e leis novas e prometedoras são
geradas” (1980:182).
A heurística estaria voltada exclusivamente, em sua concepção, para a
eficiência na construção de teorias e não incluiria uma preocupação judicativa
(como se propõe uma metodologia gerativista e não somente construtiva).
O contexto de descoberta coloca, para Laudan, problemas heurísticos re-
lacionados com a produção de teorias somente enquanto “artefatos”, mas
isso não teria interesse filosófico (leia-se ‘epistemológico’). Teorias, contudo,
são mais do que artefatos: elas possuem algum valor epistêmico (como a de
serem adequadas empiricamente ou não) e somente nessa medida interes-
sam ao filósofo. Vale, nesse sentido, citar por completo a conclusão desse
seu artigo, em que compara a filosofia da ciência com a filosofia da arte e a
filosofia do direito:

7. Essa hipótese foi sugerida por Nickles (1977, 1987b).

133
Colocado de forma simples, uma teoria é um artefato, talhada talvez por
certas ferramentas (e.g., por regras implícitas de busca). A investigação
do modo de manufatura de artefatos (sejam eles potes de argila, bisturis
cirúrgicos ou pílulas de vitamina) não é, normalmente, vista como
uma atividade filosófica. E de modo bastante correto, já que as técnicas
apropriadas a tais investigações são aquelas das ciências empíricas, tais
como a psicologia, a antropologia e a fisiologia. O filósofo da arte não
está preocupado, enquanto filósofo, a respeito de como uma escultura
é esculpida a partir de uma peça de granito; nem um filósofo do direito
está preocupado com a mecânica de se redigir uma peça de legislação.
Similarmente, é preciso ainda que se mostre que as regras governando
as técnicas pelas quais teorias são inventadas (se existirem tais regras)
são os tipos de coisas com as quais os filósofos se interessam e para as
quais têm competência. (Laudan, 1980:182)

Já tivemos a oportunidade de encontrar esse tipo de ceticismo a respeito


de uma metodologia propriamente gerativa, que não somente – usando os
termos de Laudan – lide com técnicas ou métodos para se talhar teorias
(certamente algo que interessa aos cientistas), mas que também tenha im-
plicações epistemológicas (o foco de interesse dos filósofos).

3. A heurística popperiana
Vimos que Popper ilustra, exemplarmente, esse ceticismo ao repetir à
exaustão que não há uma lógica da descoberta, a despeito de ter escolhido,
para a tradução inglesa do seu clássico, o título The logic of scientific discovery
(literalmente, A lógica da descoberta científica).8
Com isso ele queria dizer que não há uma lógica – entendida como um
cálculo formal, mecanizável – que forneceria como saída teorias científicas
aceitáveis, tendo como entrada observações (mais precisamente, sentenças
observacionais). Daí a sua crítica aos indutivistas, que nutrem a ilusão de
existir uma tal lógica. Popper rejeita a ideia de que possamos gerar uma

8. Em português o título (que mais se aproxima do original em alemão), A lógica da pes-


quisa científica, ainda mantém, para o leitor desavisado, uma conotação relacionada com
a descoberta científica.

134
teoria verdadeira a partir de um conjunto (finito) de sentenças observacio-
nais, o que configuraria, para ele, uma prova, uma verificação dessa teoria.
Em outros termos, se existisse uma lógica que oferecesse uma tal garantia,
a geração de uma teoria (uma descoberta) e a sua verificação (ou, de modo
mais amplo, sua justificação ou probabilização9) confundir-se-iam. Popper
revela, portanto, a sua herança neopositivista ao distinguir de forma absoluta
os contextos de descoberta e de justificação – apesar de suas críticas, como
vimos em capítulo anterior, a outros compromissos desse movimento em
filosofia da ciência.
Popper oscila, na verdade, entre a rigidez de um algoritmo e a permis-
sividade do método de conjecturas e refutações, o que leva alguns analistas a
apontarem para a esquizofrenia da sua metodologia. No contexto de desco-
berta, “vale tudo” (parafraseando Feyerabend) – apelar para mitos, metafísica,
sonhos, etc. O processo criativo é considerado essencialmente irracional,
psicológico. No contexto de justificação, contudo, impera o rigor lógico, a
racionalidade e a inflexibilidade na aplicação das regras metodológicas.10
Uma maneira de romper com essa concepção de método como um
procedimento algorítmico, como uma lógica da descoberta (ou uma lógica
da ciência, como preferem outros),11 seria ver o método, no contexto de
descoberta, como um conjunto de heurísticas.
O método popperiano de conjecturas e refutações corresponderia, nessa
perspectiva, a uma heurística extremamente fraca (na verdade, à mais fraca
de todas as heurísticas): gerar e testar, tentativa e erro.12 Esse talvez seja o
preço a pagar por qualquer metodologia, como a popperiana, que pretenda

9. Pode-se ver, de modo mais amplo, que o objetivo de uma lógica indutiva é calcular a
probabilidade de uma hipótese ou teoria (probabilizá-la). Torna-se difícil, entretanto, saber
o que essa probabilidade mede já que, por exemplo, a noção de verdade aproximada é, ela
própria, bastante problemática.
10. Podemos interpretar o projeto de Feyerabend em Contra o Método (1977) como o de
estender o vale tudo popperiano a ambos os contextos!
11. ‘Lógica’ está sendo entendida aqui no seu sentido restrito, como propondo um conjunto
de regras de inferência que asseguram a verdade das conclusões assumindo-se a verdade
das premissas de um argumento. Ver o cap. 3.
12. Há uma sugestiva analogia entre a heurística de gerar e testar e o processo biológico de
seleção natural – de variação cega e de seleção pelo ambiente. Popper, de fato, explorou essa
comparação em vários dos seus escritos, chegando a interpretá-la de forma literal nos seus
escritos dos anos 1960, numa tentativa de desenvolver uma epistemologia evolucionista.
Tratarei desse tópico no capítulo 13.

135
ser geral e neutra com respeito ao conhecimento substantivo (conhecimento
a respeito de entidades e processos no mundo). Vimos que heurísticas fortes
incorporam conhecimento a respeito de um domínio particular, a respeito
da tarefa a ser realizada.
Nessa perspectiva, pode-se fazer duas críticas à metodologia popperiana.
Pode-se colocar em dúvida, em primeiro lugar, se o método de conjec-
turas e refutações, por corresponder a uma heurística muito fraca, é capaz
de promover o progresso em direção ao fim epistêmico da ciência (seja ele
a verdade, a adequação empírica ou algum outro), sem que haja qualquer
delimitação prévia do espaço de busca, com base em heurísticas mais fortes.
Isso porque o número de soluções possíveis para um problema científico é
imenso (por exemplo, o problema de encontrar a melhor hipótese que ex-
plique um dado conjunto de fatos admite um grande número de soluções).
Caberia, justamente, a uma heurística – enquanto uma estratégia in-
formada – explorar de forma mais eficiente o espaço de busca científica,
incorporando conhecimento substantivo na resolução de problemas e res-
tringindo, desse modo, o número de soluções possíveis. Quanto mais forte
a heurística – quanto mais específica ela for a um domínio de problemas
–, mais ela restringe as hipóteses a serem exploradas. O preço a se pagar,
entretanto, é que se perde, nesse caso, em termos de generalidade (e os
filósofos relutam em pagá-lo...): quanto mais forte a heurística, menor o
seu âmbito de aplicação.
Em segundo lugar, pode-se também questionar o lado, digamos, asser-
tivo, da metodologia de Popper, com respeito ao contexto de justificação,
quando exige que uma hipótese ou teoria seja eliminada (falseada) ou, no
mínimo, modificada (sem ser de modo ad hoc), quando há uma inconsistência
entre o que ela prevê e o que efetivamente se observa. Por exemplo, Nickles
(1987b:115) defende que a metodologia popperiana precisaria incorporar
alguma análise da racionalidade do processo de descoberta (conjecturas) para
que faça algum sentido o rigoroso eliminativismo crítico que a caracteriza
(refutações). Veremos no próximo capítulo que Lakatos, embora seja um
discípulo de Popper, considera o falseacionismo uma metodologia muito
arriscada, pois pode eliminar uma teoria a despeito do seu valor epistêmico.

136
Isso sugere que a decisão de se ignorar ou não o contexto de descoberta,
para efeito de se articular uma metodologia científica, tem consequências
epistemológicas que deveriam interessar mais aos filósofos da ciência.13
A discussão que farei da metodologia lakatosiana permitirá aprofundar
esse ponto.

4. Eliminação e correção14
No capítulo 3 mencionei o paradoxo de Meno que nos leva a pensar que
não há método para se construir conhecimento novo pois, se é realmente
novo, não sabemos sequer o que buscamos. Veremos no capítulo 13 que
esta parece, também, ser uma implicação de epistemologias que adotam o
modelo da evolução biológica para pensar as questões da origem e dinâmica
do conhecimento científico.
A situação não é, em geral, tão desesperadora quanto sugerem o para-
doxo e as epistemologias evolucionistas; não nos encontramos, em geral, tão
às escuras. Usualmente buscamos nas ciências uma hipótese que permita
explicar uma observação que fizemos. Não só sabemos, em linhas gerais,
o que buscamos (no caso, uma explicação para o fato), como partimos,
no mínimo, desse conhecimento empírico (do próprio fato).15 Buscamos,
então, um novo tipo de conhecimento, nomológico, teórico, que explique a
observação. Conhecemos algo a respeito do fato, mas desconhecemos a sua
explicação. A lei, hipótese ou teoria é o conhecimento novo que buscamos.
É patente que o simples conhecimento do fato, daquilo que queremos
explicar (o explanandum), não indica qual é a explicação (o explanans),
sobretudo se ela tiver um caráter teórico, ou seja, se ela envolver conceitos
(termos, predicados) que não estão disponíveis na representação (concei-
tuação) do fato. Uma inferência indutiva, como vimos, não permite saltar
esse fosso.16
Usualmente também dispomos, além do conhecimento do explanandum,
de um conhecimento prévio acumulado: tanto empírico, quer dizer, outras

13. No capítulo 5 discuti com mais detalhes esse tipo de argumento contra uma separação
absoluta entre os dois contextos.
14. Baseio-me aqui numa sugestão de Blachowicz (1989).
15. A discussão que fizemos da abdução em Hanson ressalta a importância desse conheci-
mento preliminar do fato em si.
16. Mostrei no capítulo 5 que, no caso da abdução, Hanson não nos oferece, tampouco, uma
resposta satisfatória a esse respeito.

137
observações, quanto teórico. Isso pode significar algum alento para os que
acreditam na possibilidade de uma metodologia gerativista, voltada para a
descoberta. Esse conhecimento prévio acumulado nos permite, em geral,
restringir o espaço de busca, o espaço de hipóteses plausíveis para o fato
observado, mesmo se não permite construir, de forma direta, o explanans.
O conhecimento prévio, incorporado a uma heurística, limitaria o espaço
de busca. Outra possibilidade, mais ambiciosa, seria a de desenvolver heu-
rísticas que permitissem modificar o conhecimento prévio que possuímos,
corrigi-lo de modo a explicar, por exemplo, o fato observado.
Blachowicz (1987, 1989), distingue lógicas da descoberta que são fraca-
mente gerativas, das que são fortemente gerativas. As primeiras incluem os
processos de eliminação que estabelecem restrições (constraints) ao espaço
de busca, ao espaço de explicações plausíveis para o fato observado, com
base no conhecimento prévio disponível.
Entre as lógicas gerativas fortes estão os processos de correção, que
envolvem a produção de conhecimento genuinamente novo com base em
modificações no conhecimento de que já dispomos e tendo em vista explicar
um fato observado.
Este conhecimento prévio pode, também, sugerir modelos ou analogias
que permitam construir o explanans, dar um primeiro passo nessa direção.
Esse é o objetivo do raciocínio analógico ou, mais especificamente, da mo-
delagem analógica, de que tratarei em outro capítulo.
Uma lógica da descoberta, mesmo que fraca, oferece muito mais do que
uma metodologia consequencialista, como a proposta por Popper, poderia
supor. No próximo capítulo mostrarei que mesmo um popperiano como
Lakatos desenvolveu uma metodologia na qual a modelagem desempenha
um papel central nos programas de pesquisa científica. Estes são, efetiva-
mente, movidos por uma heurística que pressupõe um conhecimento de
fundo aceito.

138
8

A metodologia de programas
de pesquisa científica

Há várias diferenças entre as filosofias de Popper e de Lakatos tanto no


plano metodológico quanto no metametodológico.1 No plano metodológico,
Lakatos preocupa-se com os aspectos construtivos da atividade científica, que
são praticamente ignorados por Popper. Efetivamente, a heurística possui
uma importância central no modo como Lakatos concebe a sua metodologia
de programas de pesquisa científica (que abreviarei, doravante, por MPPC).
Farei, em seguida, uma apresentação crítica dos principais temas ligados
ao que poderíamos chamar de uma tradição falseacionista popperiana e dos
vários desenvolvimentos que sofreu desde seu arcabouço inicial, desenvol-
vido por Popper em seus primeiros escritos, que datam do início da década
de 1930. Acredito que essa visão de conjunto contribuirá para uma melhor
compreensão da metodologia de Popper e de suas motivações, mas o leitor
que quiser somente ter uma apresentação sucinta da MPPC proposta por
Lakatos pode saltar as seções iniciais e ir diretamente para a seção IV.
As ciências naturais foram tradicionalmente caracterizadas pela utili-
zação de um método indutivo que demarcaria seus produtos teóricos, por
exemplo, das especulações metafísicas. Tal método possibilitaria a formulação
de generalizações, de sentenças universais (como as leis científicas), a partir
de sentenças singulares, observacionais.2 Uma lógica indutiva nortearia o

1. Além dos níveis dos métodos e das metodologias, introduzo aqui um terceiro: o das me-
tametodologias. O capítulo 9 é dedicado inteiramente a este último nível e discutirei, em
particular, as diferenças entre as metametodologias de Popper e de Lakatos.
2. Utilizarei os termos sentenças ‘singulares’, ‘observacionais’ ou ‘factuais’ aproximada-
mente como sinônimos. No entanto, o termo ‘singular’ remete à forma lógica da sentença

139
procedimento da passagem de sentenças singulares a sentenças universais, ou
seja, garantiria epistemicamente o aumento de conteúdo empírico associado
a tal passagem (vimos anteriormente que as inferências indutivas são am-
pliativas, contrariamente às inferências dedutivas). A lógica da investigação
científica se identificaria, nessa concepção, com a lógica indutiva. Usualmente
denomina-se ‘indutivismo’ o compromisso com esse conjunto de teses.
Vimos no capítulo 6 que Popper foi um incansável opositor ao induti-
vismo, argumentando que todas as tentativas de resolução do problema da
indução – ou seja, o de justificar as inferências indutivas como garantindo, em
alguma medida, as suas conclusões – resultaram em dificuldades insuperáveis.
O seu projeto em filosofia da ciência pode ser apresentado como uma
tentativa de solucionar o problema da demarcação independentemente do
problema da indução. Para Popper, o caráter empírico da ciência pode ser
assegurado sem apelarmos para uma lógica indutiva. Como vimos, em vez
de um método indutivo, ele defende um dedutivismo na confrontação das
hipóteses da ciência com os dados empíricos, num espírito consequencialista.3
A sustentação lógica da sua proposta pode ser resumida no seguinte: embora
não possamos transmitir a verdade de sentenças singulares às sentenças
universais (dado o caráter ampliativo dessa inferência), podemos deduzir
– através das regras da lógica dedutiva clássica – sentenças singulares a
partir de sentenças universais. Tais sentenças singulares podem ser, então,
confrontadas com outras sentenças singulares que descrevem os resultados
da observação (ou da experimentação). Se as consequências que derivamos
da hipótese – formulada, tipicamente, em termos de uma sentença universal
– entrarem em choque com essas sentenças da base empírica, diremos que a
hipótese é falseada (usando, para tanto, o Modus Tollens). Em outras palavras,
embora não possamos verificar uma sentença universal (ou de alto nível),

(em contraste com ‘universal’), indicando que a sentença possui alguma restrição espaço-tem-
poral, diferentemente de uma sentença universal, como vimos no capítulo 3. Já os adjetivos
‘observacional’ e ‘factual’ possuem, claramente, um caráter epistemológico, opondo-se a
‘teórico’ (remetendo, por sua vez, na matriz da virada linguística de que participaram os
empiristas lógicos, à distinção entre uma linguagem observacional e uma linguagem teó-
rica; ver o capítulo 4). Quanto à sua forma lógica, uma sentença observacional ou factual
é, tipicamente, representada por uma sentença singular.
3. Como disse antes, trata-se de algo análogo a um método hipotético-dedutivo; mas a
metodologia de Popper vai muito além de reafirmar esse método.

140
podemos falseá-la. Caso não haja choque entre as consequências deduzidas e
as sentenças de base, a sentença universal (hipótese, lei ou teoria) é mantida
provisoriamente, até ser submetida a novos testes. Neste caso, diz-se que a
sentença foi corroborada. A corroboração de uma sentença universal não
tem, portanto, qualquer caráter de prova. Todos os produtos teóricos da
ciência são, para Popper, falíveis.
O falseacionismo de Popper oferece, portanto, um novo critério de
demarcação: somente as sentenças passíveis de falseamento são científicas.4
É importante ressaltar a diferença entre este critério e o defendido pelo in-
dutivismo. Para esta corrente, uma sentença é dita ‘científica’ se ela é passível
de verificação (se pudermos demonstrar a sua verdade) ou, no mínimo, se
pudermos associar a ela uma certa probabilidade, com base na evidência
empírica disponível.
Lakatos propôs uma sugestiva reconstrução histórica das várias versões
do falseacionismo.5 Utilizarei, no que se segue, tal reconstrução para colo-
car em evidência os problemas lógicos, epistemológicos e históricos que o
novo critério de demarcação popperiano coloca, e as motivações para se
modificar tal critério. Segundo essa reconstrução, o falseacionismo pode
se apresentar em três versões: o falseacionismo dogmático, o falseacionismo
metodológico e o falseacionismo metodológico sofisticado. A metodologia
que propõe Lakatos pode ser vista como um desenvolvimento a partir dessa
última versão do falseacionismo.

1. O falseacionismo dogmático
O Falseacionismo Dogmático (FD) é empirista sem ser indutivista.
Para tal versão do falseacionismo, a base empírica (o conjunto de sentenças
observacionais necessárias para o falseamento de uma teoria, por exemplo)

4. Sugeri no capítulo 7 que um modo mais correto seria ver o falseacionismo de Popper
como um critério para demarcar uma atividade (e.g. científica) caracterizada por certos
métodos, e não para demarcar objetos linguísticos, como na formulação desta passagem.
5. Essa reconstrução histórica é, em grande medida, uma ficção, sem se comprometer com
a história real da metodologia filosófica. Lakatos afirma, inclusive, que algumas metodo-
logias, como o falseacionismo dogmático, não tiveram defensores! O que não diminui o
interesse pedagógico e filosófico da empreitada, ao preencher uma lacuna no espaço lógico
das metodologias possíveis.

141
é estritamente verdadeira, indubitável. No entanto, vimos que mesmo se
aceitarmos que a base empírica é composta de sentenças verdadeiras, infa-
líveis, essa propriedade epistêmica não pode ser transmitida indutivamente
às teorias: estas últimas mantêm-se falíveis.6
Para o FD existe uma divisão natural, psicológica, entre sentenças de
alto nível, especulativas, e as sentenças singulares, observacionais. Se uma
sentença é considerada, por tal critério psicológico, observacional (ou
factual), então ela é verdadeira. As sentenças observacionais são verificadas
a partir dos fatos, mas não as sentenças de alto nível, teóricas.
A certeza associada à base empírica do FD (poderíamos dizer, sua infa-
libilidade) tem uma séria consequência: o falseamento de uma teoria, nessa
versão do falseacionismo, possui o caráter de uma desprova. Se uma teoria
for falseada por estar em conflito com a base empírica, ela será considerada
falsa e deverá ser, por conseguinte, abandonada.
O critério de demarcação vinculado ao FD pode ser assim descrito:
uma teoria é científica se ela possui um conjunto de falseadores potenciais
(em outros termos, se ela possui uma base empírica).
A crítica de Lakatos ao FD é feita em três frentes: lógica, epistemológica
e histórica.

1.1. Crítica lógica


O FD é insustentável logicamente pois sentenças observacionais (ou
factuais) não podem ser provadas a partir de fatos brutos. Sentenças só po-
dem justificar-se (logicamente) com base em outras sentenças. Vimos que
a lógica normatiza, efetivamente, relações inferenciais entre sentenças, que
constituem entidades linguísticas. Um fato, obviamente, não é uma entidade
linguística. Portanto, a relação entre um fato e uma sentença observacional
que descreve esse fato não é uma relação lógica! Pode ser, por exemplo, uma
relação causal: alguém pode argumentar que o fato de que está chovendo
lá fora neste momento causa a verdade da sentença ‘está chovendo lá fora
neste momento’ ou da minha crença nisso. Mas relações lógicas têm que

6. No capítulo 2, vimos que a indução não preserva a verdade.

142
ser distinguidas de relações causais. Portanto, não faz sentido dizer que um
fato prova uma sentença, pois a prova é uma relação lógica entre sentenças
inseridas num argumento.

1.2. Crítica epistemológica


Vimos que o FD pressupõe que haja uma divisão natural, absoluta,
entre sentenças especulativas (teóricas) e sentenças observacionais. Esta é
uma tese epistemológica, que pode ser questionada. De um lado, não exis-
tem observações sem certo grau de expectativa. O nosso olhar é seletivo.
As observações são, em certa medida, contaminadas pelo que esperamos, a
partir do que acreditamos.7 E essas crenças, sobretudo no domínio científico,
podem ser altamente especulativas.
Por outro lado, os dados experimentais da ciência moderna dependem
de teorias interpretativas, ou seja, teorias usadas para interpretar os resulta-
dos de experimentos, frequentemente muito complexos. Tais resultados são,
além disso, obtidos através do uso de instrumentos que pressupõem outras
teorias – às vezes de nível tão elevado quanto o da própria teoria sob teste
– que explicam o seu funcionamento e/ou que foram utilizados para a sua
construção. Pense na quantidade de teoria que está incorporada em um mi-
croscópio eletrônico, em um acelerador de partículas ou em um computador.
Esses instrumentos são, apesar dessa quantidade de teoria materializada, por
assim dizer, nos seus componentes, circuitos, arquitetura, etc., usados para
testar teorias científicas. Os próprios instrumentos pressupõem, portanto,
outras teorias científicas que são tomadas como não problemáticas (mas
que podem ser questionadas a qualquer momento). Lakatos conclui que
não há uma separação natural entre sentenças teóricas e sentenças factuais
(observacionais), contrariamente ao que pressupõe o FD.

7. A tese da contaminação teórica da observação foi intensamente defendida por Hanson


(ver capítulo 5) e por Kuhn (ver capítulo 11), entre outros filósofos que, a partir dos anos 1950,
iniciaram uma crítica contundente à pretensa nitidez da divisão entre linguagem teórica
e linguagem observacional. Esta foi uma tese central para a reconstrução da estrutura das
teorias científicas proposta pelos empiristas lógicos (ver capítulo 4).

143
1.3. Crítica histórica
Por último, caso seja aceito o critério de demarcação do FD, ele levaria
a rejeitar como não-científicas grande parte das teorias importantes propos-
tas ao longo da história da ciência. Tais teorias não são capazes de negar a
possibilidade sequer de um único evento singular observável numa região
limitada do espaço-tempo. Uma teoria interdita um determinado evento
somente quando a tomamos em conjunção com uma hipótese que negue a
possibilidade de existir outro fator, em qualquer outra região espaço-tem-
poral, que possa estar influindo no evento em questão.
Ilustremos esse ponto com a seguinte situação: um cientista, com base
numa teoria T (por exemplo, a mecânica de Newton) e numa série de dados
a respeito do que se conhece do sistema solar (por exemplo, a respeito da
massa e posição dos nove planetas conhecidos), prevê a existência de um
décimo planeta, nunca antes detectado, além de Plutão.8 A sentença ‘existe
um décimo planeta no sistema solar além de Plutão e ele se encontra na
posição tal no momento tal’ torna-se um falseador potencial da teoria (que
é considerada científica justamente porque tem falseadores potenciais como
este). Suponhamos que o cientista não tenha cometido qualquer erro de
cálculo e que as condições iniciais que ele supôs para poder fazer a previsão
estejam corretas.
Há um alvoroço na comunidade científica que se prepara para realizar
observações a esse respeito. Potentes telescópios são orientados para a posi-
ção prevista desse suposto planeta, mas, depois de muita observação, nada é
visto. Isso significa que a teoria foi falseada? De forma alguma. Por exemplo,
o cientista pode dizer que o planeta não foi observado porque existe uma
nuvem de poeira cósmica que oculta o planeta quando se tenta observá-lo
a partir da Terra. Portanto, para que a teoria seja falseada é preciso negar
a existência de tal nuvem. Temos que admitir a hipótese de que não existe
um outro fator, em qualquer outra região espaço-temporal, que possa estar
impedindo a observação do planeta. Esse tipo de hipótese é formulada

8. Recentemente, Plutão foi destituído da sua condição de planeta, embora não tenha sido
uma decisão consensual na comunidade dos astrônomos. Isso não invalida o exemplo
desenvolvido no texto.

144
através de uma sentença com a estrutura de uma sentença universal de
não-existência e, portanto, não pode ser absorvida pela base empírica de
um FD (já que ela não pode ser verificada empiricamente).
Logo, os rígidos critérios metodológicos do FD rejeitariam a teoria em
nosso exemplo (a teoria de Newton!) como metafísica, como não-científica,
bem como grande parte dos produtos teóricos considerados de relevância
pela comunidade científica. A decisão de aceitar essas teorias é julgada como
irracional pelo metodólogo que brande FD como oferecendo um critério
de demarcação (científico/não-científico; racional/irracional). Para esse
falseacionista dogmático, a maior parte da história da ciência mostrar-se-á,
portanto, irracional! O que você acha, leitor: devemos avaliar a história da
ciência dessa maneira ou devemos rejeitar o FD como um produto meto-
dológico duvidoso?

2. O falseacionismo metodológico
O Falseacionismo Metodológico (FM) pertence ao grupo de metodo-
logias que Lakatos classifica de ‘convencionalistas’. A versão mais radical
de uma metodologia convencionalista teria sido defendida por Duhem e
Poincaré.9 Nessa versão, as teorias científicas são consideradas meros sistemas
organizadores de fatos. Portanto, elas não são nem verdadeiras, nem falsas:
são mais ou menos eficazes como sistematizadoras de sentenças factuais.
A substituição de uma teoria por outra se justificaria por critérios como o
de simplicidade, apesar da sua carga de subjetividade. A manutenção de
um determinado sistema teórico é resultado, portanto, de uma decisão
metodológica, de uma convenção, já que os resultados de observações e
experimentos, por si só, não são capazes de forçar o abandono do mesmo.
O FM foi bastante influenciado pelo convencionalismo em metodo-
logia. De fato, o FM substitui o ineficaz critério de demarcação do FD por
um outro que consegue, através de uma série de decisões metodológicas,
tornar as teorias (científicas) falseáveis.

9. Não importa se essa atribuição é correta ou não. Como já disse anteriormente, os po-
pperianos leram mal Duhem, mas isso não vem ao caso aqui. Na verdade não interessa,
nessa reconstrução proposta por Lakatos, se de fato essas metodologias foram propostas
por algum filósofo real. Trata-se de uma história fictícia.

145
Para enfrentar a crítica lógica à pretendida infalibilidade da base empírica
do FD, os metodólogos que defendem o FM consideram que tal base empírica
também é aceita por convenção, num determinado momento histórico, pela
comunidade científica. Embora não seja possível provar (ou verificar) em de-
finitivo as sentenças observacionais, tais metodólogos argumentam que existe,
na prática, um razoável grau de consenso entre os cientistas acerca daquelas
sentenças observacionais que podem, provisoriamente, ser consideradas bem
estabelecidas. Tal consenso entre os cientistas pode, eventualmente, sofrer
abalos e, como toda decisão, não possui um caráter definitivo. No entanto, por
meio de tal decisão os cientistas podem utilizar as sentenças factuais da base
empírica para falsear uma determinada teoria. Convém ressaltar, porém, que,
pela natureza convencional da base empírica no FM, o falseamento não mais
possui o caráter de desprova, como no FD. Uma sentença universal falseada
não é, forçosamente, falsa!
O FM não considera, tampouco, que haja uma separação natural entre
sentenças universais e sentenças singulares (observacionais). Essa versão do
falseacionismo admite que os assim considerados dados experimentais da
ciência pressupõem, na verdade, todo um arsenal de teorias (interpretativas,
incorporadas em instrumentos, etc.) que devem ser consideradas (por decisão)
suficientemente corroboradas para fazerem parte de um conhecimento de
base não-problemático. Sem essa decisão metodológica de considerar como
não-problemáticas determinadas teorias, o cientista não poderia, a rigor,
falsear ou confirmar outras teorias (testá-las, enfim).
Além disso, o FM tem como lidar com o problema – que se colocou, como
vimos, para o FD – de hipóteses que neguem a existência de um determinado
evento ou de efeitos perturbadores sobre aquilo que se está tentando observar.
Tais sentenças universais de não-existência, que, como assinalei antes, não são
verificáveis, podem ser assimiladas pela base empírica do FM através de uma
decisão metodológica que as considere não problemáticas. No exemplo que
dei anteriormente, a comunidade científica pode considerar não problemática
a hipótese de que não existem nuvens cósmicas além de Plutão, que impeçam
a observação de um eventual décimo planeta naquela região. Essa hipótese,
embora não seja inquestionável de forma absoluta, é assimilada na base em-
pírica e a teoria pode, então, entrar em conflito com essa base e ser falseada.

146
Lakatos ressalta que o FM pode estender seu convencionalismo a ponto
de aceitar que uma teoria não falseável pelo conjunto de decisões anteriores
seja assim mesmo rejeitada, se ela porventura entrar em choque com outra
teoria aceita pela comunidade científica. É o caso dos sistemas metafísicos
que entram em conflito com teorias bem estabelecidas. Por exemplo, o FM
pode considerar o criacionismo (apesar do seu caráter metafísico)10 falseado
pelo fato de ser incompatível com a teoria darwinista da evolução (aceita
amplamente pela comunidade científica). Note que o conflito não é entre
uma teoria e a experiência, mas entre uma teoria e outra teoria, ambas de
alto nível especulativo.
Toda essa carga convencionalista do FM não impede, argumenta Lakatos,
que sejam estabelecidos critérios objetivos (inter-subjetivos, no caso, pois
envolvem o consenso em um grupo), racionais, para a rejeição de uma dada
teoria. Nisso, o FM se diferencia do convencionalismo: a experiência conti-
nua sendo, em última instância, o juiz de qualquer teoria proposta por uma
atividade que se pretenda científica. Ao cabo de um conjunto de decisões
metodológicas que estabeleçam quais são os falseadores potenciais de uma
teoria, ela poderá ser confrontada a essa base empírica. Se o resultado for
o falseamento, ela deve ser abandonada; se for a corroboração, ela é aceita
até um novo teste.

2.1. Crítica ao FM
Lakatos considera o FM uma metodologia extremamente arriscada, pois,
apesar do grande número de decisões convencionais que pressupõe, ela julga
com severidade os produtos teóricos. Um “jogo da ciência” (uma expressão
de Popper) que siga as regras do FM pode ser um desastre epistemológico.
Ao mesmo tempo, admite Lakatos, o FM é logicamente impecável. Neste
plano, não há qualquer possibilidade de crítica. Lakatos propõe, então, uma
crítica histórica ao FM.11 Há muitas evidências, na história da ciência, de
que as regras do FM não são seguidas pelos cientistas:

10. Pode ser questionado se o criacionismo não possui falseadores potenciais. Ver, por
exemplo, Laudan (1996).
11. O caráter dessa crítica histórica a metodologias é um tópico à parte, relativo ao histo-
ricismo como metametodologia, na versão proposta em seu artigo “História da Ciência e

147
a) os testes de teorias ao longo da história da ciência não se apresentam
como um simples conflito teoria-experiência, mas, em geral, como um
conflito entre, pelo menos, duas teorias e a experiência;12
b) as experiências mais interessantes têm como função principal a
corroboração de teorias, e não o seu falseamento.
A partir de tal crítica, Lakatos expõe uma versão sofisticada do FM que,
em alguns aspectos, fora desenvolvida por Popper. Essa versão tenta, por
um lado, reduzir os riscos epistemológicos do FM, diminuindo o grau de
convencionalismo desta última metodologia; por outro lado, a nova versão
do falseacionismo pretende acomodar-se melhor aos fatos históricos.

3. O falseacionismo metodológico sofisticado


A origem do Falseacionismo Metodológico Sofisticado (FMS) está na
crítica convencionalista à possibilidade do procedimento de falseamento.
As ciências maduras, afirmam os convencionalistas, caracterizam-se por um
grau elevado de estruturação teórica. Nos procedimentos de falseamento,
não nos encontramos diante de hipóteses isoladas, mas de hipóteses es-
truturadas em vastos sistemas teóricos. As inconsistências que porventura
existam são entre sistemas teóricos e sentenças observacionais. O que false-
amos, portanto, não são hipóteses isoladas, mas teorias articuladas. Nesses
casos – continuam os convencionalistas –, as inconsistências teoria/fatos
podem ser eliminadas pela introdução de hipóteses auxiliares, ou por uma
reinterpretação adequada dos termos da teoria (modificações semânticas).
Uma anomalia (uma inconsistência teoria/fatos) pode ser absorvida sem que
tenhamos que rejeitar por completo a teoria. O falseamento pode sempre ser
evitado se lidamos com teorias que apresentam certo grau de complexidade.
Essa é a tese de Duhem- Quine, à qual já fizera referência anteriormente.

suas reconstruções racionais” (Lakatos, 1978d). Trato da temática metametodológica no


capítulo 9. Ver também a nota 27 do capítulo 10.
12. Um exemplo, sempre citado, é o das teorias corpuscular e ondulatória da luz em meados
do século XIX: o experimento de Foucault permitiu falsear a primeira corroborando, simul-
taneamente, a última. Este caso é também interessante por outra razão: a comunidade de
físicos da época já havia, em grande medida, optado pela teoria ondulatória, antes mesmo
de estarem disponíveis experimentos cruciais. Para detalhes a respeito desse episódio his-
tórico, ver Abrantes (2016).

148
Popper reconheceu a procedência dessa crítica: o convencionalismo
é uma metodologia não passível de crítica de um ponto de vista lógico.
A determinação de não aceitar a imagem de ciência que subjaz ao con-
vencionalismo fundamenta-se em considerações acerca da finalidade da
ciência. A atividade científica, na concepção de Popper, deve propor-se a
aumentar nossos conhecimentos acerca da realidade, e isso não ocorrerá
se nos apegarmos dogmaticamente a uma teoria, salvando-a das anomalias
através de estratagemas convencionalistas.
O falseamento das teorias científicas deve resultar, portanto, de uma
decisão metodológica fundada numa axiologia. Tal decisão deve proibir o
uso de estratagemas convencionalistas para salvaguardar a teoria do false-
amento: a introdução de hipóteses auxiliares com esse fim só é aceitável no
caso de haver um efetivo aumento da classe de falseadores potenciais da
teoria. Caso contrário, tal ajuste será considerado ad hoc e rejeitado como
não-científico (ou não-racional) do ponto de vista da metodologia adotada.
O FMS difere da versão ingênua do falseacionismo metodológico pelo
seu critério de demarcação (pelas regras de aceitação de produtos teóricos)
e pelos procedimentos que propõe para o falseamento de uma dada teoria.
Para o FMS, não basta que uma teoria tenha falseadores potenciais para
que ela seja aceita como científica. Tal decisão deve avaliar como essa teoria
foi, inicialmente, gerada. A teoria tem que ser, portanto, contextualizada
historicamente. O que se avalia não é mais uma teoria isolada, mas sim os
processos de ajuste que a geraram a partir de teorias aceitas previamente.
Isso tem uma séria implicação para o que se considera a unidade de avalia-
ção metodológica: o FMS não atribui a qualidade de ser científica a teorias
isoladas, mas a séries teóricas.
O critério de demarcação do FMS pode, então, ser formulado como se
segue. Dada uma série teórica T1, T2, T3, etc., resultado de ajustes sucessi-
vos em cada teoria da série, necessários para fazer frente a anomalias, esta
série é dita progressiva (ou seja, ela é aceitável) se cada teoria da série tem,
relativamente à sua predecessora imediata:

149
a) um conteúdo empírico adicional (ou em excesso). Isto é, se ela prevê
fatos novos (se possui novos falseadores potenciais) e não esperados à luz da
teoria que a precede na série (explicando, ademais, os sucessos desta última); 13
b) uma parte, pelo menos, do conteúdo empírico adicional que seja
corroborado.
Uma série que não obedeça a tais condições é dita ‘degenerada’ e deve
ser rejeitada pelos critérios de demarcação do FMS.
Lakatos chama a condição (a) de progressividade teórica e a condição
(b) de progressividade empírica. Se a série em questão é empírica e teorica-
mente progressiva, dizemos então que cada teoria da série é falseada pela
sua sucessora na série.
O falseamento para o FMS não é, portanto, como para o FM, o resultado
do confronto de uma teoria com a sua base empírica. O falseamento possui
um caráter histórico e resulta de um confronto de (pelo menos) duas teorias
com a base empírica. Um fato só falseia uma teoria se ele, simultaneamente,
corroborar uma nova teoria que a substitua de modo progressivo.
Nessa versão do falseacionismo, uma anomalia não é, por si só, uma
condição suficiente para refutar uma teoria. Na versão ingênua do falsea-
cionismo metodológico, não se faz distinção entre uma anomalia e uma
contra-evidência. Na versão sofisticada, uma anomalia só se torna uma
contra-evidência para uma dada teoria se existir uma nova teoria que ex-
plique progressivamente a anomalia. Uma explicação, para ser científica,
racionalmente aceitável, tem que ser progressiva. Se propusermos uma
nova teoria para explicar a inconsistência entre uma velha teoria e um fato,
tal explicação só será considerada científica se novos falseadores potenciais
forem previstos pela nova teoria. O nosso conhecimento deve crescer com
a sucessão de teorias.
É importante notar que o FMS valoriza as instâncias corroboradoras.
São estas últimas, e não as inúmeras anomalias – sempre presentes em
qualquer momento do desenrolar de uma certa série teórica – que são de-
cisivas. As chamadas ‘experiências cruciais’ para uma determinada teoria

13. O leitor reconhecerá que essa regra foi estabelecida por Popper e leva a se rejeitarem
modificações ad hoc nas teorias científicas.

150
só podem ser consideradas como tais à luz de uma nova teoria que a substi-
tua progressivamente.
O abandono da prescrição de falsearmos instantaneamente uma teoria, que
caracterizava o FM – substituindo-a pela exigência de corroboração do conteú-
do em excesso, adicional – diminui consideravelmente os riscos epistemológi-
cos associados ao alto grau de convencionalismo associado àquela metodologia.
Se uma determinada teoria enfrenta uma anomalia, se existe uma incon-
sistência teoria/fato, o FMS não precisa definir aqueles setores do sistema
teórico que devem ser considerados não problemáticos, para então efetuar o
ajuste. Podemos tentar substituir qualquer parte do sistema. Caso obtenhamos
uma nova teoria empírica e teoricamente progressiva, a teoria inicial será
falseada. Caso não consigamos desta vez, tentamos alterar uma outra parte
do sistema, até obtermos uma nova teoria que substitua progressivamente
a anterior. Não há falseamento enquanto não existir uma nova teoria em
condição de substituir a anterior.
No caso em que um determinado resultado experimental for incompa-
tível com uma teoria, pode-se ainda utilizar o recurso de questionar a teoria
interpretativa ou a teoria implícita na obtenção de tal resultado (teorias essas
incorporadas nos instrumentos que o produziram). Em vez do modelo mo-
no-teórico de teste, temos um modelo pluri-teórico. Trata-se, aqui, não mais
de resolver inconsistências entre uma teoria e um conjunto de fatos, mas
sim inconsistências entre duas teorias e as evidências empíricas disponíveis.
Para resolver a inconsistência deve-se tentar substituir uma das teorias, ou a
outra, ou ambas, e optar pela situação em que haja o máximo de conteúdo
empírico adicional corroborado. O FMS permite ao teórico, portanto, co-
locar em questão os fatos obtidos pelo experimentador. É evidente que tal
situação não pode se estender indefinidamente. O conjunto de resultados
experimentais continua sendo, para o FMS, o árbitro final. Simplesmente
concede-se mais fôlego para a ciência teórica, evitando-se os riscos de um
falseamento instantâneo (e prematuro) pela ciência experimental.
Lakatos ressalta, também, o papel que desempenha a proliferação de
teorias no FMS. Por que esperar o surgimento de uma anomalia para iniciar
o processo especulativo? Podemos iniciar a busca de alternativas teóricas sem

151
aguardar que a teoria aceita seja falseada. Lakatos, e também Feyerabend,
ressaltam que frequentemente a proliferação de teorias é uma condição
necessária para a descoberta de falseadores para uma teoria aceita.
O FMS possui, ademais, outra atitude diante de sistemas metafísicos
(sistemas não-falseáveis). Eles não precisam ser eliminados caso entrem em
conflito com uma teoria falseável, porém bem estabelecida (como pregava
o FM). Tais sistemas metafísicos podem ser incorporados a teorias falseáveis,
desde que tal incorporação resulte na previsão de fatos novos. Caso tal in-
corporação não leve a um ajustamento progressivo, tais sistemas metafísicos
devem ser abandonados.
O problema que vê Lakatos no FMS é que esta metodologia não per-
mite compreender a continuidade que se observa nas séries de teorias da
história da ciência. Assim, o FMS admite que sentenças de nível baixo sejam
adicionadas a uma teoria, mesmo que não se harmonizem com as sentenças
de alto nível, nucleares, da teoria – desde que este ajuste seja progressivo.
Esta é, portanto, uma crítica histórica.
Lakatos buscou, então, uma nova metodologia que seja capaz de re-
construir racionalmente essa característica das séries históricas de teorias
científicas: a sua continuidade.

4. A metodologia de programas de pesquisa científica


A Metodologia de Programas de Pesquisa Científica (MPPC) resulta de
uma crítica sistemática (de caráter lógico, epistemológico e histórico) a diver-
sas metodologias, como o indutivismo e diferentes versões do falseacionismo.
Em particular, Lakatos parte da constatação de que a história da ciência
não se apresenta como uma sucessão de teorias isoladas, desconectadas,
mas exibe séries teóricas que integram um mesmo programa de pesquisas
científicas (PPC). Este pode, eventualmente, dar lugar a outros programas
ou ser substituído por eles. A metodologia das ciências maduras não pode
favorecer, por conseguinte, uma pura e simples sucessão de tentativas e erros
(conjecturas e refutações), como fazem diferentes versões do falseacionismo.
Dentro de um programa de pesquisa científica (PPC), uma série de
regras metodológicas deve assegurar a continuidade no desenvolvimento

152
do programa.14 Este ponto é central, pois revela a importância que Lakatos
atribui à heurística na atividade científica, ponto que destaquei logo na
abertura deste capítulo.
Um PPC caracteriza-se por três componentes: um núcleo duro, uma
heurística positiva e uma heurística negativa.
O núcleo duro de um PPC é formado por um conjunto de sentenças
universais que, por decisão metodológica, são mantidas irrefutáveis (ou
não falseáveis). Essas sentenças são ‘metafísicas’ num sentido estritamente
popperiano do termo.
A heurística negativa de um PPC tem por função proteger (do falseamento)
o núcleo duro do programa, através da geração de hipóteses auxiliares.
Somente esse cinturão de proteção pode sofrer mudanças para fazer frente às
anomalias que surgem naturalmente durante o desenvolvimento de qualquer
programa. A MPPC exige que cada passo, cada ajuste efetuado no cinturão
de proteção, resulte num aumento do conteúdo empírico do programa
(ou seja, cada passo deve conduzir à previsão de novos fatos).15 Mas não é
necessário que cada passo também seja progressivo, no sentido de que tais
previsões se confirmem, em parte ou integralmente (que sejam corroboradas
por observações efetivas). Lakatos distingue, como vimos, progressividade
teórica de progressividade empírica. A corroboração das previsões – isto é,
a progressividade empírica – pode ser intermitente, o que permite a adesão
dogmática a um programa diante de refutações momentâneas.
A heurística positiva consiste em estratégias de modificação dos ele-
mentos refutáveis do programa, ou seja, dos componentes teóricos da capa
de proteção. A heurística positiva sugere continuamente hipóteses auxilia-
res, além de modelos cada vez mais sofisticados que simulem a realidade.
As anomalias são ignoradas pelo cientista, pois ele sabe que um modelo é

14. Para acomodar a continuidade de um PPC, Lakatos faz mais uma concessão ao convencio-
nalismo. Vimos que as várias versões do falseacionismo somente admitiam que aceitássemos
por convenção sentenças singulares ou observacionais. A MPPC admite, da mesma forma que
o convencionalismo de Duhem, que sentenças universais sejam admitidas por convenção.
A diferença entre a MPPC e o convencionalismo é que a primeira estabelece critérios para
a rejeição de tais sentenças universais em determinadas condições, que explicitarei adiante.
15. Em termos mais precisos, cada versão teórica resultante das mudanças promovidas
no cinturão de proteção deve implicar novas sentenças observacionais (novos falseadores
potenciais), não previstas pelas versões teóricas anteriores do programa.

153
uma idealização e, portanto, uma representação imperfeita dos fenômenos.
O cientista prossegue, pois, na direção apontada pela heurística positiva
do PPC, esperando que as anomalias sejam progressivamente digeridas
pelo programa. Nessa metodologia, as corroborações das variantes teóricas
do programa, mesmo que intermitentes, são mais importantes do que as
refutações.16 Isso representa um significativo distanciamento com respeito
a Popper, que desqualificava as corroborações em favor dos falseamentos.
A heurística positiva indica como gerar uma série de modelos com
base nos pressupostos metafísicos do núcleo duro do programa. Por isso,
Lakatos também a chama de um “princípio metafísico”.17 Ele, nesse aspec-
to, levou adiante as intuições de Popper a respeito do papel positivo que
a metafísica pode desempenhar no contexto de descoberta científica (em
franco contraste com a intenção dos empiristas lógicos de banir a metafísica
do campo científico).
A metodologia lakatosiana não é, portanto, indiferente e imune a crenças
substantivas, ao contrário: a metafísica (ou imagem de natureza) de cada
programa de pesquisas, preservada em seu núcleo duro, informa a heurística
positiva. A metafísica de cada programa delimita o espaço de problemas,
restringe os tipos de solução considerados aceitáveis e fornece indicações de
como gerar tais soluções. Usando a terminologia que introduzi anteriormente,
a heurística positiva de Lakatos é uma estratégia informada.
A MPPC responde pela relativa autonomia da dimensão teórica, espe-
culativa, da ciência (frente à dimensão experimental), como se verifica na
história das ciências maduras. Numa ciência madura, as teorias são elaboradas
segundo uma estratégia, as refutações sendo esperadas e, mesmo, antecipadas.
As corroborações são, por sua vez, indícios relevantes da progressividade do
programa, de que se está indo na direção certa, por assim dizer. Em outras
palavras, para Lakatos as ciências maduras têm força heurística.
Um PPC preserva sua identidade, sua continuidade, na medida em que
os pressupostos metafísicos do núcleo duro mantêm-se inalterados, bem
como a heurística positiva do programa.

16. Ressaltei acima que as corroborações são também valorizadas pelo Falseacionismo
Metodológico Sofisticado.
17. Ver Lakatos (1978a:51).

154
Contrariamente ao convencionalismo em metodologia, no entanto, a
MPPC estabelece critérios para julgar a progressividade ou a degenerescência
de um programa. Cada modificação nas variantes refutáveis do programa
deve ser teoricamente progressiva, e exige-se uma corroboração intermitente
do conteúdo empírico adicional. Além disso, impõe-se que haja continui-
dade na heurística positiva do programa.18 Caso essas condições não sejam
atendidas, o programa é considerado degenerescente, abrindo caminho para
a sua substituição por outro programa.
Porém, Lakatos reconhece que os critérios de avaliação de um PPC de-
vem ser aplicados flexivelmente. Ele não crê em racionalidade instantânea.
A cientificidade de um programa só pode ser julgada, a rigor, retrospectiva-
mente, após o programa conseguir algum avanço teórico. Assim, ele admite
que programas jovens possam levar muitos anos antes de preverem novos fatos,
ou antes de terem pelo menos parte deles corroborados. Mesmo programas
antigos, com muitos sinais de degenerescência, podem surpreender com uma
revitalização heurística.
Portanto, à luz da MPPC a degenerescência de um programa não é con-
dição suficiente para que ele seja abandonado. Tal condição é dada, em última
instância, pela existência de um programa rival que explique os sucessos do
anterior e que demonstre ter maior força heurística.

5. Metodologia e epistemologia em Lakatos


Quais são as implicações epistemológicas do viés construtivista19 bas-
tante presente na MPPC? A despeito de todas as referências que Lakatos faz
à epistemologia – e que você pode conferir na apresentação feita acima do
desenvolvimento do falseacionismo – a resposta, surpreendente, é: não muitas!
Em Lakatos, os sucessos obtidos pela heurística de um particular programa

18. Vimos que Popper caracterizou somente uma situação na qual uma teoria pode ser
considerada ad hoc. De uma perspectiva lakatosiana, podemos distinguir três situações
distintas em que um programa pode ser considerado ad hoc: a) caso não haja progressivi-
dade teórica, o programa é avaliado como ad hoc1 (o equivalente à situação caracterizada
por Popper); b) é avaliado como ad hoc2 se não houver progressividade empírica; c) por
último, não havendo uma continuidade na heurística positiva, ele é avaliado como ad hoc3.
19. É característico de uma metodologia construtiva a preocupação com a heurística, ou seja,
com o modo como teorias são produzidas. Ver, a esse respeito, os capítulos 2 e 7.

155
de pesquisas não conferem confiabilidade às versões teóricas construídas
segundo os seus preceitos, como aponta Nickles de forma bastante elucidativa:
(...) apesar da sua ênfase em heurística, Lakatos não admite que heurísticas
que tiveram sucesso no passado podem fornecer aconselhamento confiável
a respeito de que meios são disponíveis para se atingir objetivos futuros
(Nickles, 1987b:120).
Ao fim e ao cabo, Lakatos mantém-se fiel ao consequencialismo poppe-
riano. A razão disso, segundo Nickles, é que Lakatos acreditava – seguindo
nisso a Popper – que o gerativismo só pode ser fundacionalista, como no
caso do indutivismo. Isso transparece na seguinte passagem: “A contradição
básica na filosofia da ciência tanto de Whewell quanto de Duhem é a sua
fusão do poder heurístico com a verdade provada. Popper separou essas
duas coisas” (Lakatos apud Nickles, 1987c:203).
Para Nickles (1987c:183), essa combinação entre poder heurístico e
verdade provada não é forçosa: heurísticas podem ser genuinamente gera-
tivistas e compatíveis com um não fundacionalismo e com o falibilismo.20
Embora Lakatos seja um consequencialista, ele é, ao mesmo tempo,
um construtivista. A metodologia de Lakatos é, nesse sentido, sui generis,
na medida em que concede importância central à heurística (ou seja, sua
metodologia possui um caráter construtivo), mas, ao mesmo tempo, a heu-
rística de um programa não fornece um pedigree epistemológico às versões
do programa geradas seguindo seus preceitos. Alguns intérpretes de Lakatos,
como Nickles, vêem nisso uma virtual contradição:
A metodologia de Lakatos tentou hibridizar duas tradições metodoló-
gicas incompatíveis. De um lado, Lakatos reteve a idéia de uma tradição
gerativista: de que novas teorias devem ser motivadas por um corpo
de resultados prévios e princípios orientadores plausíveis, ou mesmo
derivadas dos mesmos, o que Lakatos denominou [respectivamente]
o núcleo duro e a heurística positiva do programa. Por outro lado, ele

20. Entretanto, Nickles reconhece que nem todas as heurísticas conferem valor epistêmico
– muitas têm uma função puramente econômica, isto é, relativa à eficiência, relação custo/
benefício, etc. Cf. Laudan e a preocupação construtiva da metodologia contemporânea
como uma preocupação exclusiva com a produção de artefatos, sem valor epistêmico (tese
que apresentei no capítulo 5).

156
abraçou a visão de Popper de que uma nova predição feita com sucesso
é a única fonte de suporte empírico para a ciência; portanto, a maneira
como asserções científicas são (ou podem ser) geradas não fornece
suporte epistêmico de nenhuma espécie. (Nickles, 1987c:182)

De fato, vimos que as regras metodológicas lakatosianas julgam um


programa negativamente se não há fidelidade à heurística.21 Simetricamente,
por que não avaliar positivamente (como tendo maior valor epistêmico)
os produtos da pesquisa que resultam de uma aplicação da heurística do
programa? Isso seria admitir certo grau de gerativismo, o que Lakatos,
paradoxalmente, não aceita.22

21. Como assinalei na nota 13, o programa é considerado, nesse caso, ad hoc3.­­
22. Diversos historiadores da ciência adotaram a metodologia lakatosiana como referência
para as suas reconstruções históricas. Ver, por exemplo, Howson (1976). Para uma discus-
são sobre a relevância da filosofia da ciência para a historiografia da ciência, ver Abrantes
(2002; 2016).

157
9

Metametodologias

Este capítulo trata de como teorias do método (metodologias) podem


ser avaliadas. Pelo menos em princípio, a avaliação de teorias filosóficas
envolve procedimentos distintos da avaliação de teorias científicas. Deve-
se distinguir, por exemplo, uma justificação (ou fundamentação) a priori,
de uma justificação empírica (a posteriori) de uma metodologia. Teriam a
lógica e/ou a epistemologia, por exemplo, condições de fornecer um funda-
mento (filosófico, a priori) para a metodologia, pelo menos para as regras
metodológicas de alto nível?
Ao longo deste capítulo mostrarei, contudo, que uma teoria do método
pode ter, ao fim e ao cabo, uma base empírica, o que coloca em questão o
ideal filosófico de oferecer uma fundamentação a priori para uma posição.1
Como esta é uma tese sobre a metodologia (ou teoria do método), é usual
dizer-se que é uma tese metametodológica.
No capítulo 1, havia feito uma distinção entre os níveis do método e
da metodologia. Sugiro, agora, que se introduzia um terceiro nível, no qual
se situaria um discurso judicativo (avaliador) acerca da(s) metodologia(s)2:
3. Metametodologia
2. Metodologia
1. Método

1. O naturalismo em metametodologia coloca em questão que a filosofia possa oferecer


alguma justificativa a priori para um método científico. Isso será aprofundado mais adiante,
e também no capítulo 10.
2. O risco de um regresso infinito já se coloca porque podemos querer justificar uma me-
tametodologia apelando para um nível metametametodológico e assim por diante, o que
não parece um bom prenúncio para a investigação que ora se inicia!

159
O nível do método é o da prática científica. Os outros dois níveis, da
metodologia e da metametodologia, seriam afetos à prática metacientífica.
Veremos que a articulação entre eles depende de como se concebe a relação
entre as atividades científica e metacientífica (nesta última, incluindo-se a
atividade filosófica).3
Passo a apresentar como filósofos de diferentes orientações abordam
essa questão e as relações entre esses três níveis.

1. Como o problema metametodológico coloca-se


para os popperianos?
O fim da atividade científica é, tanto para Popper quanto para Lakatos,
a geração de teorias verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras, e eles
acreditam que a adoção da(s) metodologia(s) que propõem promova tais fins.
Popper fracassou, entretanto, em suas tentativas de fornecer à metodologia
falseacionista uma justificação epistemológica, ou seja, em mostrar que o
emprego dessa metodologia promove os valores epistêmicos considerados
legítimos, típicos, constitutivos das ciências e alcançáveis por estas.4
Lakatos enfatiza que Popper, ao separar o problema da indução do
problema da demarcação – e ao atribuir à filosofia da ciência a tarefa central
de resolver o segundo deles através de propostas metodológicas –, retirou
toda determinação epistemológica do falseacionismo. Em suma, Popper não
conseguiu mostrar, com base numa teoria epistemológica ou lógica, que
essa metodologia particular é adequada para se atingir a verdade, ou para
promover o progresso científico. Sem essa determinação epistemológica,
uma metodologia reduz-se a um conjunto de ‘regras do jogo científico’, a
uma ‘definição de ciência’ – expressões usadas por Lakatos. As metodologias
propostas pela filosofia da ciência tornam-se, então, meras convenções. Seria

3. A filosofia da ciência tem um papel central, mas não exclusivo, nessa prática metacien-
tífica, que pode incluir outras investigações sobre a ciência que não tenham um caráter
estritamente filosófico, como as levadas a cabo pelas chamadas ‘ciências da ciência’, como
a história da ciência, a sociologia da ciência, etc. Para uma defesa de um âmbito mais amplo
para a metaciência, ver Radnitzky (1970).
4. Popper tentou articular, sem muito sucesso, uma noção de “verosimilitude” (ou “veros-
similhança”), necessária para fornecer à sua metodologia falseacionista uma base propria-
mente epistemológica.

160
como ensinar as regras de xadrez (os movimentos que são permitidos ou
não para os vários tipos de peças) e várias heurísticas (jogadas ofensivas e
defensivas clássicas) sem garantir que, desse modo, o objetivo do jogo, que
é dar um xeque-mate, poderá ser alcançado com maior probabilidade. Esta
é a raiz do convencionalismo popperiano em metametodologia, de que
tratarei na próxima seção.
Lakatos reconhece, explicitamente, que a sua metodologia de programas
de pesquisa científica não possui, tampouco, um embasamento propriamente
epistemológico. Ele sugere uma maneira de criticar metodologias, mesmo
“sem fazer qualquer referência direta a uma teoria epistemológica (ou mes-
mo lógica) e sem usar diretamente qualquer crítica lógico-epistemológica”
(1978d:122). Essa proposta metametodológica de Lakatos – que discutirei
mais a frente neste capítulo – foi denominada ‘intuicionista’ e constitui
uma alternativa ao convencionalismo popperiano em metametodologia.

2. O convencionalismo como metametodologia


No capítulo 6 citei uma passagem de Popper na qual ele menciona
a posição dos “membros do Círculo de Viena” – ou seja, dos empiristas
lógicos – de que a metodologia só pode ser uma ciência empírica, ou então
reduzir-se à pura lógica. Não haveria, segundo essa corrente filosófica, uma
terceira possibilidade.
No caso de a metodologia ser uma ciência empírica, ela consistiria no
“estudo do comportamento efetivo dos cientistas ou do processo efetivo
empregado na ‘Ciência’ ’’ (Popper, 1993:54). Essa seria a concepção de meto-
dologia que Popper qualifica de ‘naturalista’. As razões invocadas por Popper
para não admitir tal concepção de metodologia incluem o fato de que ela
não poderia, neste caso, ter qualquer valor normativo ou crítico. Trata-se
da famigerada falácia naturalista: se a metodologia pretende ter um caráter
prescritivo, suas normas (o que deve ser feito) não podem ser derivadas de
descrições (do que é feito). Em outras palavras, a simples descrição de um
procedimento ou, de modo geral, de uma ação, não a torna um modelo,
um ideal ou base para uma norma. Resta saber se há outras modalidades
de naturalismo em metametodologia – distintas do modo como Popper

161
define esta posição – que concebam as teorias do método como empíricas
em alguma medida, mas que sejam imunes à falácia naturalista. Tratarei
dessa questão adiante.
Popper também rejeita a concepção da metodologia como lógica aplica-
da, que ele e Lakatos atribuem aos empiristas lógicos. No capítulo 6, chamei
atenção para uma leitura equivocada que vê o falseacionismo popperiano
nesses termos. Mostrei, então, que as regras de inferência da lógica dedutiva,
em particular o Modus Tollens, não são capazes de fundar essa metodologia:
Popper tem que admitir, por convenção, certos fins para a investigação
científica. Sublinho que as escolhas concernentes a tais fins não podem ser
feitas em bases lógicas ou racionais.5
Portanto, podemos afirmar que a metodologia para Popper não é uma
ciência empírica nem, tampouco, lógica aplicada, mas possui um caráter
convencional. Esta é a terceira via que propõe Popper, além das duas outras
distinguidas pelos empiristas lógicos.
Resumindo-se, portanto: para Popper, a decisão de se adotar uma
determinada metodologia não pode ser tomada com base em evidências
empíricas (ou, eventualmente, com base em conhecimento substantivo, em
teorias científicas), nem com base em lógica. Uma metodologia justifica-se
(ou critica-se) quando certos fins são estipulados para a atividade científica.
O convencionalismo em metodologia (não confundir com o convencio-
nalismo em metametodologia) – que admite sem problemas estratégias ad
hoc para a modificação de teorias falseadas – pode, por exemplo, ser criticado
pelo fato de não favorecer o fim de aumentar o nosso conhecimento do
mundo (um fim tipicamente popperiano). Para Popper, esse fim não pode
ser justificado, sendo simplesmente aceito por todos os que compreendem

5. Ironicamente, Popper rejeita o convencionalismo de Duhem com respeito à aceitabili-


dade de teorias científicas, mas adota o convencionalismo num metanível, com respeito
à aceitabilidade de metodologias. Para o convencionalismo em metametodologia, uma
metodologia se justifica na medida em que se compromete com um determinado fim para
a atividade científica, aceito por convenção. Outro modo de esclarecer a diferença entre
esses dois filósofos da ciência seria o seguinte: para Duhem uma teoria científica é adotada
por convenção, enquanto que para Popper uma axiologia é adotada por convenção (e esta
é parte integrante da sua metodologia).

162
o caráter da atividade científica; portanto, é um fim adotado por convenção.6
É nesse sentido que se pode dizer que Popper é um convencionalista em
metametodologia (embora rejeite o convencionalismo em metodologia!).
Isso coloca, contudo, um sério problema (metametodológico): como
julgar uma definição de ciência, uma metodologia que se apresenta como
uma convenção? Popper argumenta que sua definição de ciência deve ser
julgada pelas suas consequências; por exemplo, pela sua capacidade de resol-
ver certos problemas em epistemologia (como o problema da demarcação).
Ou ainda, pela conformidade desta definição com “a ideia intuitiva que
[o cientista] tem acerca do objetivo de suas atividades” (Popper, 1993:57).
Contudo, essas respostas não são totalmente convincentes para muitos
filósofos, como veremos.

3. Retomando as questões inicialmente colocadas


O problema central de uma teoria filosófica do método científico é,
como disse, o de assegurar que se seguindo uma determinada regra meto-
dológica, ou um conjunto de regras prescritas, avança-se em direção aos
fins considerados legítimos e últimos da atividade científica.7
No capítulo 2 discuti a legitimidade dos fins/valores epistêmicos, uma
questão axiológica. Essa questão está intimamente relacionada à que levanto
no presente capítulo: em que bases podemos afirmar que um método é
adequado e eficiente para atingir os fins perseguidos?
Supondo-se que a metodologia filosófica tenha um caráter normativo,
o que nos permite justificar uma norma metodológica? O que nos garante
que uma regra metodológica deve (ou não) ser seguida?

6. Para Laudan, o convencionalismo de Popper em metametodologia conduz ao relativismo,


pois não haveria base racional para se justificar a aceitação de uma particular metodologia,
como o falseacionismo. A esse respeito, ver a controvérsia envolvendo Laudan e Worrall,
que apresento no capítulo 10.
7. Note-se que na formulação mesma da questão estou pressupondo que as regras metodo-
lógicas tenham um caráter instrumental (e, não, categórico) por associarem métodos a fins.
Este ponto ficará mais claro quando eu apresentar, ao final deste capítulo, o naturalismo
normativo de Laudan. Pode-se defender, entretanto, que, se o fim é a verdade – a depender
também de como esta é entendida (ver o capítulo 2) –, não haveria como se distinguir se
a regra tem um caráter instrumental ou categórico (ver Kantorovich, 1993:53). Agradeço a
Howard Sankey por chamar a minha atenção para esse ponto numa comunicação pessoal.

163
Uma resposta talvez venha de pronto à mente do leitor: ‘Ora, uma re-
gra metodológica, ou um método, deve ser recomendado se ele se mostrou
eficiente em outras oportunidades!’. Em outras palavras, ele é recomendável
se promoveu os valores considerados constitutivos da atividade, no caso
a científica, todas as vezes (ou na maioria das vezes) em que foi usado.
Estaremos, então, justificados em prescrever tal método com base nesse
histórico de sucessos.
Essa é a resposta pragmática à questão que coloquei acima, mas é
considerada insatisfatória por aqueles que querem saber por que o método
em questão foi eficiente; eles buscam uma genuína justificativa para propor
uma regra metodológica, além de um mero registro dos seus sucessos. Sem
isso, como garantir que o método terá sucesso no futuro somente com base
no fato de ter sido eficiente no passado? Afinal, esse sucesso pode ter sido
casual ou fortuito (o fim pode ter sido atingido independentemente do
método utilizado, por exemplo).8
Por outro lado, como se evitar a referência a fins? É possível avaliar
o(s) método(s) científico(s) (ou uma teoria do método científico) de outro
modo senão instrumentalmente?
Podemos tentar adotar uma abordagem descritiva: observar o que os
cientistas fazem. O método científico seria um conjunto de rotinas, técni-
cas e procedimentos de que lançam mão cientistas de diferentes áreas para
resolver uma variedade de problemas, teóricos ou experimentais. O método
corresponderia, portanto, aos procedimentos habitualmente empregados
pelos cientistas, confundindo-se com a própria investigação. Essa aborda-
gem, como vimos acima, é rejeitada por Popper como sendo naturalista.
Há, de fato, vários problemas com essa abordagem descritiva.
Primeiramente, ela pressupõe que saibamos quem são os cientistas e como
distingui-los dos que não são. Essa distinção teria que ser feita de forma
independente dos métodos que os cientistas adotam, para não cometermos
petição de princípio ou cairmos em circularidade, pressupondo justamente
o que se pretende determinar!

8. Voltarei a tratar da justificação pragmática em metametodologia no capítulo 10.

164
Em segundo lugar, talvez os procedimentos empregados sejam mais
variados do que imagináramos inicialmente, e não consigamos encontrar
algo que seja comum às várias práticas científicas. Ou ainda, pode ser que
não detectemos uma regularidade que nos permita generalizar e determinar
um ou, talvez, alguns poucos métodos (científicos). Por outro lado, essa
abordagem descritiva, por si só, não permite uma explicação sobre o porquê
de certo método ser utilizado ou uma justificação para isso. Estaríamos
somente constatando o seu uso.
Em vez dessa abordagem meramente descritiva, empírica, podemos
esperar que um cientista, por exemplo, empregue de modo consciente um
ou vários métodos e, se solicitado, seja capaz de justificar o seu uso (e não
simplesmente adotá-los automaticamente, como uma rotina). Uma justi-
ficativa que o cientista poderia apresentar seria que essa constitui a melhor
estratégia para atingir o fim pretendido, dadas as circunstâncias. Mas, nesse
caso, os fins são reintroduzidos e voltamos a admitir uma perspectiva ins-
trumental, o que pretendíamos contornar.
Após essa recapitulação das questões em aberto, continuo examinando,
na próxima seção, maneiras de se responder a tal imbróglio metametodológico.

4. O intuicionismo como metametodologia: o caso de Lakatos


Uma posição alternativa à de Popper em metametodologia é defen-
dida por Lakatos, entre outros. Ele reconheceu, como afirmei no início do
capítulo, a dificuldade de se fornecer uma fundamentação ou justificação
epistemológica para metodologias.
Em busca de uma saída, Lakatos procurou um meio termo entre o des-
critivismo e o convencionalismo em metametodologia. Ele tentou dar uma
resposta historicista à questão: ‘Como podemos criticar uma convenção?’.
A história da ciência desempenharia, nessa perspectiva, um papel crítico
com respeito às metodologias propostas pelos filósofos da ciência.
Sua proposta é a de que podemos confrontar metodologias (ou teo-
rias da racionalidade) rivais, comparando as reconstruções racionais do
passado da ciência a que dão lugar ao serem incorporadas num programa
historiográfico de pesquisa. A melhor metodologia seria aquela que, desse

165
modo, conseguisse reconstruir (racionalmente) maiores parcelas do pas-
sado da ciência. Sempre restarão resíduos de irracionalidade na história
da ciência – admite Lakatos –, mas o progresso metodológico tenderia a
reduzi-los gradualmente.
Esse teste histórico de metodologias requer, contudo, que adotemos
como não problemáticas as intuições de uma elite científica com respeito
àqueles episódios históricos considerados paradigmas de cientificidade,
vale dizer, de racionalidade.9
A metametodologia de Lakatos representa bem o que Laudan (1986)
classifica como um intuicionismo em metametodologia: a tarefa da filosofia
da ciência seria a de articular, explicitar ou explicar as intuições pré-ana-
líticas dos cientistas (ou as de um subgrupo da comunidade científica).
Essas intuições podem ser acerca de casos exemplares de cientificidade,
colhidos na atualidade ou no passado. As metodologias (gerais) propostas
pelos filósofos devem estar, para o intuicionismo, em equilíbrio com essas
intuições pré-analíticas dos cientistas a respeito de casos particulares de boa
ciência. Um dos pressupostos questionáveis do intuicionismo é de que haja
um consenso mínimo em torno desses casos exemplares.
Outra crítica comum é a de que a metodologia perde, nessa perspectiva,
seu papel crítico, normativo. Além disso, o intuicionismo parece envolver-
se numa circularidade viciosa. Por exemplo, no caso de Lakatos, como
delimitar a “elite científica” (ou determinados juízos pré-analíticos) sem já
pressupor uma concepção de cientificidade e, portanto, uma metodologia
(entendida enquanto uma proposta de demarcação ciência/ não ciência,
como em Popper)?10

*5. A estratégia de equilíbrio reflexivo


A estratégia de equilíbrio reflexivo (ER) constitui uma alternativa tanto
à postura que atribui às normas filosóficas um caráter a priori, quanto às

9. O intuicionismo não se caracteriza, contudo, por um compromisso necessário com o


historicismo, ou com uma base empírica histórica. O intuicionista pode admitir, inclusive,
que tais casos paradigmáticos não sejam reais, mas somente possíveis (Laudan, 1986:118-9).
10. Para mais desenvolvimentos a respeito do intuicionismo de Lakatos, ver Abrantes (2002).

166
abordagens que, ao fim e ao cabo, eliminam a normatividade, como é o caso
do historicismo kuhniano, que veremos no capítulo 11.
Essa estratégia foi proposta, inicialmente, por Goodman (1965) para
a justificação das normas de inferência em lógica (indutiva e dedutiva) e,
mais tarde, estendida por J. Rawls (1971) para o caso das normas éticas.
Filósofos da ciência propuseram a mesma estratégia para a justificação das
normas metodológicas.
Segundo essa estratégia, a justificação das normas ou regras (morais,
de inferência ou metodológicas, segundo o caso) resulta de um processo
de ajuste mútuo: entre normas morais e juízos morais particulares, no caso
da ética; entre regras e a prática inferencial ordinária dos indivíduos, no
caso da lógica. No caso da metodologia, o ajuste mútuo seria entre regras
metodológicas e juízos efetivados na prática científica.
O ajuste tem mão dupla, sem que haja privilégio do nível normativo
com respeito ao nível empírico (das práticas). Tampouco há absolutos, ou
imutabilidade, em qualquer nível: as regras podem ser revistas se estiverem
em conflito com as práticas; mas estas últimas também podem ser criticadas
com base nas regras. As regras mantêm, então, o seu caráter normativo,
mesmo que fraco, já que não refletem meramente as práticas correntes.
Ao se atingir o equilíbrio, ou a coerência entre tais níveis, as regras (e, ao
mesmo tempo, as práticas) são consideradas justificadas. O nível das regras
em parte justifica, em parte explica as práticas (morais, lógicas, científicas).
Esse modelo bastante simples de equilíbrio, envolvendo somente dois
níveis, é insatisfatório porque permite aceitar práticas e regras flagrantemente
equivocadas ou errôneas. Tentativas de se sofisticar o modelo levaram à in-
clusão de outros níveis, que também teriam que chegar a um equilíbrio com
os anteriores. Vários autores consideram necessário incluir, por exemplo,
um nível de teorias (que podem ser científicas ou filosóficas). Essas teorias
sistematizariam (ou explicariam) as regras, com base em princípios filosó-
ficos de nível mais alto: metafísicos, epistemológicos, etc..

167
5.1. A estratégia de equilíbrio reflexivo em metametodologia
Fica transparente, após essa apresentação, que Laudan e Lakatos apli-
caram um modelo de equilíbrio reflexivo à questão da justificação de meto-
dologias. Seguindo a terminologia proposta pelo primeiro, denominarei tal
estratégia de ‘intuicionista’ (configurando uma metametodologia alternativa
ao convencionalismo de Popper e também às diversas formas de naturalismo).
Para o intuicionismo, como vimos, a tarefa da filosofia da ciência é, em
última análise, a de articular, explicitar ou explicar intuições pré-analíticas
a respeito de casos exemplares, ou paradigmáticos, de cientificidade ou de
racionalidade.
Enquanto Laudan é permissivo, admitindo as intuições da “maior parte
das pessoas com educação científica” (Laudan, 1977:160), Lakatos restringe,
como vimos, sua base empírica às intuições de uma elite científica (de um
subgrupo, portanto, da comunidade).
Lakatos sugere, além disso, que podemos confrontar metodologias ou
teorias da racionalidade rivais, comparando as reconstruções racionais do
passado da ciência a que dão lugar. Lakatos acredita que, embora seja difícil
chegar a um consenso quanto a um critério universal de cientificidade ou
de racionalidade, há um razoável (e estável) consenso quanto à cientifici-
dade de realizações particulares. Nenhum representante da comunidade
científica contemporânea contestaria o caráter científico das realizações
de um Galileu, de um Newton ou de um Darwin. Uma boa metodologia
deve, então, reconstruir tais intuições da comunidade científica (a respeito
do valor de realizações particulares) como uma história interna da ciência.
Portanto, para o intuicionismo, a base empírica que permite testar
uma metodologia – via a reconstrução da história a que dá lugar – é o
conjunto de juízos de valor da comunidade científica atual (ou uma parcela
selecionada desta). Essa base é, portanto, consensual e valorada, o que leva
Lakatos a dizer que é, na verdade, uma base “quase-empírica”. Essa conse-
quência valeu a Lakatos a crítica de que a filosofia da ciência se limitaria a
acatar uma determinada ideologia profissional, sendo incapaz de formular
padrões universais e objetivos de racionalidade que pudessem alicerçar
alguma crítica à prática dos cientistas (Feyerabend, 1985). Lakatos não tem

168
problemas em admitir, explicitamente, a importância, para a filosofia da
ciência, das intuições pré-analíticas destes últimos:
Até hoje foram as normas científicas aplicadas instintivamente pela elite
científica em casos particulares que constituíram o principal padrão
de referência das leis universais do filósofo. O progresso metodológico
ainda encontra-se atrasado em relação aos veredictos científicos ins-
tintivos (...) O principal problema é o de encontrar, se possível, uma
teoria da racionalidade científica real, e não o de interferir, legislando
sobre as ciências mais avançadas através da filosofia da ciência (Lakatos,
1978a:153-4).

Essa postura de Lakatos conduz a uma aproximação entre os padrões


metodológicos propostos pelos filósofos e aqueles efetivamente empregados
pelos agentes históricos: os próprios cientistas, nesse caso.
Eu incluo, portanto, o intuicionismo entre as estratégias de equilíbrio
reflexivo. Em última análise, as regras metodológicas são justificadas na
medida em que estejam em equilíbrio com tais intuições pré-analíticas.
A mediação da reconstrução historiográfica no caso de Lakatos é, contudo,
um recurso particular da sua posição metametodológica. O fundamental
é que não se aceitaria uma metodologia (ou uma teoria da racionalidade)
que implicasse que a maior parte das decisões tomadas pelos cientistas ao
longo da história foram irracionais.11
Laudan, em trabalhos posteriores ao seu livro de 1977, renegou as suas
posições iniciais e tornou-se um crítico do intuicionismo, propondo uma
metametodologia alternativa: o naturalismo normativo.

*6. O modelo de equilíbrio reflexivo de Kantorovich


Kantorovich propôs um modelo de equilíbrio reflexivo “amplo” para a
justificação metametodológica contendo, além dos níveis da prática científica
e das regras metodológicas, um terceiro nível, de teorias metodológicas, e um

11. Do mesmo modo que, na estratégia de Goodman, não se aceitaria uma regra de infe-
rência que estivesse em conflito com a maior parte das inferências que os indivíduos fazem
no seu dia a dia.

169
quarto, de teorias da racionalidade. Nesse modelo, as teorias metodológicas
sistematizam as regras em sistemas amplos, consistentes.
Kantorovich serve-se de uma analogia com a explicação nas ciências.
Não basta a adequação empírica para que uma teoria seja considerada
uma explicação satisfatória dos fenômenos. Exige-se, também, que ela seja
adequada a uma imagem de natureza (ou a uma metafísica). Do mesmo
modo, uma condição necessária para justificar uma teoria metodológica (e,
consequentemente, as regras que sistematiza) é que seja compatível com
uma teoria da racionalidade. Como exemplos de teorias da racionalidade,
Kantorovich menciona o logicismo, o sociologismo e o evolucionismo.
Embora se busque o equilíbrio entre regras metodológicas e a prática
científica, no modelo de Kantorovich a decisão de não corrigir uma regra
metodológica em conflito com a prática pode ser motivada pela aceitação
de uma particular teoria da racionalidade. Essas teorias de nível muito abs-
trato permitem explicar a atitude de inflexibilidade com respeito a algumas
regras metodológicas (num modelo simples, como o de Goodman, não há
como explicar porque não estamos por vezes dispostos a rever regras me-
todológicas, mesmo quando estão em conflito com práticas estabelecidas).
Entretanto, os paradigmas de racionalidade não são absolutos: podem
sofrer mudanças ao longo da história. Um paradigma de racionalidade não
é baseado numa primeira filosofia. Ele apoia-se tanto em fatores externos à
ciência – por exemplo, os princípios epistemológicos e metafísicos –, quan-
to em fatores internos, relativos à história da ciência e à prática científica
(Kantorovich, 1988:126-7).12
A ER ampla distingue-se do historicismo metafalseacionista de tipo
kuhniano (de que trato no capítulo 11), na medida em que uma metodologia
não é necessariamente abandonada se ela não acomodar as intuições pré-a-
nalíticas dos cientistas. Os intuicionismos de Lakatos e de Laudan podem
também ser considerados historicistas, mas coadunam-se, contudo, com o

12. Para Kantorovich, o paradigma de racionalidade baseia-se, em última instância, na


racionalidade do senso comum, em nossas crenças a respeito da natureza humana e da
nossa relação epistêmica com o mundo. No capítulo 10 apresentarei posições naturalistas
discordantes a esse respeito. Kantorovich (1988:133) admite, em todo caso, que esse paradigma
possa ser parcialmente influenciado também por concepções científicas.

170
espírito de um equilíbrio reflexivo amplo e podem, nessa medida, assegurar
o caráter normativo da metodologia.
Há um compromisso, além disso, com o ideal de universalidade e com o
caráter abstrato da metodologia. Isso se revela, por exemplo, no pressuposto
de que há um consenso mínimo a respeito de intuições fundamentais, ou
seja, em torno de um núcleo de racionalidade que seria comum aos mais
diversos episódios da história da ciência.
A ER, sobretudo nas suas modalidades mais simples, não aponta
para uma interdependência entre metodologia e conhecimento substan-
tivo. O equilíbrio reflexivo ignora os níveis axiológico e factual-teórico da
teoria hierárquica, que discuti no capítulo 6 e que também são tematizados
pela teoria reticular de racionalidade, que analisarei no próximo capítulo.
Voltemos, antes de concluir, às posições naturalistas.

7. O naturalismo como metametodologia


Mencionei o modo como Popper concebe o naturalismo: como a redução
da metodologia a uma ciência empírica, a uma atividade meramente descri-
tiva. Uma das consequências disso é que a metodologia perde o seu caráter
normativo. Há, no entanto, propostas naturalistas que também defendem a
irredutibilidade da metodologia ao conhecimento substantivo (científico) e,
ao mesmo tempo, asseguram o caráter normativo da metodologia. Elas são
naturalistas, entretanto, na medida em que deixam margem para vínculos
ou conexões entre a metodologia (filosófica) e o conhecimento científico
que, desse modo, restringem-se mutuamente.

7.1. O naturalismo normativo de Laudan


A tese central do naturalismo normativo (NN) é que as regras metodo-
lógicas têm a forma de imperativos hipotéticos, vinculando meios (regras
de validação ou normas) a fins (valores epistêmicos). Usualmente não se
percebe tal estrutura porque os fins são escamoteados na formulação das
regras metodológicas. Um exemplo de regra metodológica seria:

171
R. “Prefira teorias que façam previsões novas corroboradas a teorias
que somente expliquem fatos conhecidos”.13
Com o fim explicitado, podemos reformulá-la assim:
R’. “Se buscamos teorias que resistam a testes empíricos sucessivos,
então devemos aceitar somente aquelas que tenham feito previsões novas
corroboradas”.
Com a explicitação do antecedente, as regras metodológicas adquirem
a forma de imperativos condicionais hipotéticos:
R’. “Se o seu objetivo (fim) é y, então você deve (ou não) fazer x”.
R’ estabelece uma relação (instrumental) entre meios e fins, que pode
agora se vincular à nossa experiência de que “fazer x promove (ou não) y
com maior (ou menor) frequência”. A eficácia de R’, ou sua justificativa,
depende de uma asserção declarativa contingente com a forma:
D. “Fazendo x é mais provável que se promova y (comparando-se com
estratégias alternativas)”
D possui a forma de uma lei estatística (de uma asserção condi-
cional declarativa).
R’ só se justifica se temos evidência da verdade (ou alta probabilidade)
de D. A asserção condicional declarativa é, portanto, condição necessária
para R’. As regras metodológicas, embora tenham um caráter imperativo,
podem, portanto, através dessa reconstrução, ser validadas empiricamente.
Resta saber qual seria a base empírica (ou a evidência empírica dispo-
nível) para se empreender tal validação. A história da ciência, diz Laudan,
“oferece um registro esplêndido de ações e de decisões aproximando-se,
ao longo do tempo, da realização de fins que a maioria de nós considera
serem importantes e desejáveis” (1987a:28). Ou seja, os registros históricos
forneceriam evidências a favor de asserções condicionais declarativas do
tipo D ou contrárias a estas.
Entretanto, independentemente dessa questão da base empírica, a
proposta de Laudan parece estar ameaçada por um círculo vicioso ou pelo
regresso infinito: para testarmos a asserção declarativa D (e a regra R’ asso-

13. Uma versão dessa regra já nos é conhecida: trata-se da regra 6, que serviu de ilustração
para as análises introdutórias do capítulo 1.

172
ciada) necessitamos pressupor a mesma regra R’, ou outras regras metodoló-
gicas que, para serem validadas, pressupõem, por sua vez, outras regras que
precisam ser validadas, e assim por diante. Este problema é clássico (uma de
suas versões é conhecida como o trilema de Fries), e a alternativa ao círculo
vicioso e ao regresso infinito seria uma parada dogmática, convencional
ou consensual. Seríamos obrigados, nesse caso, a eleger pelo menos uma
regra metodológica que não precise ser validada (justificada). As saídas
que Laudan propõe para tal impasse não foram consideradas satisfatórias.14
É importante frisar, por último, que o naturalismo proposto por Laudan
em metametodologia tem pretensões normativas, contrariamente ao modo
como Popper define o naturalismo. No entanto, uma metodologia não possui
nada de absoluto para Laudan: as regras que propõe podem ser modificadas,
ou mesmo descartadas, em função da dinâmica axiológica e/ou teórica.15
Encontram-se, em vários filósofos, análises da estrutura das regras
metodológicas análogas às de Laudan. Radnitzky (1984), por exemplo, de-
fende que a metodologia é uma espécie de tecnologia, isto é, um conjunto
de recomendações sobre os melhores meios para se atingir um determinado
fim. A metodologia consistiria no estudo da adequação entre os métodos
e os fins da ciência; e para Radnitzky, esse estudo terá que pressupor, pelo
menos em parte, o conhecimento científico (mencionei esta tese na segunda
parte do capítulo 1).

14. Não pretendo detalhar aqui as críticas que foram feitas ao NN de Laudan.
15. Veremos no capítulo 10 que o sistema reticular de racionalidade possui um equilíbrio
instável, em que nenhuma das dimensões (teórica, metodológica e axiológica) pode servir
de ponto arquimediano.

173
174
10

Metodologia e metafísica

Vimos que a lógica e a epistemologia podem contribuir para o desen-


volvimento de uma teoria filosófica do método. Neste capítulo, pretendo
examinar a relevância da metafísica, uma outra área tradicional da filosofia,
para esse empreendimento metodológico.
Os capítulos anteriores deram uma ideia da controvérsia entre filósofos
da ciência a respeito do status da metafísica e das suas relações com a ciência.
No capítulo 4 mostrei que os empiristas lógicos, na esteira do positivismo,
tentaram banir a metafísica como um pseudo-conhecimento. Para tanto,
adotaram uma abordagem semântica na tentativa de resolver o problema
da demarcação: um critério empirista de significado (e indiquei, naquele
capítulo, que vários foram propostos) mostraria que as sentenças da meta-
física não possuem significado e que, consequentemente, não lhes podemos
atribuir um valor de verdade (ou seja, a rigor não seriam proposições).1 Além
disso, não haveria conhecimento a priori, como pretenderam os metafísicos,
somente a posteriori, como o produzido no âmbito das ciências.
Vimos no capítulo 6 que Popper tentou reabilitar a metafísica, embora
tenha mantido em sua filosofia da ciência vários dos pressupostos e pro-
blemas caros aos empiristas lógicos, como o problema da demarcação.2 Ele
propôs regras metodológicas que, no contexto de justificação (ver capítulo 5),
demarcassem a atividade científica de uma atividade que se poderia cha-
mar de ‘metafísica’ por se recusar a aceitar os ditames da experiência nos

1. Exemplos de sentenças metafísicas, apontados pelos empiristas lógicos, são as que afirmam
a realidade do mundo exterior e a existência de Deus.
2. Por exemplo, Popper sugeriu que várias teses metafísicas (por exemplo, a respeito da
causalidade) fossem convertidas em regras metodológicas. Não me deterei neste ponto.

175
casos de falseamento. Popper foi enfático ao afirmar que uma solução para
o problema da demarcação não poderia ter um caráter semântico, como
pretendiam os empiristas lógicos, mas sim metodológico. Ao admitir a
metafísica como um discurso com sentido, Popper reconheceu, inclusive,
a sua eventual contribuição para a descoberta científica.
Lakatos foi além, restabelecendo a plena vigência da metafísica nos
programas de pesquisa científicos, como examinei no capítulo 8. Ressalto
que a imunização da metafísica contra o falseamento é, para Lakatos, so-
mente provisória: a derrocada de um programa de pesquisa, por mostrar-se
não progressivo, conduz ao abandono do seu núcleo duro e da metafísica
aí involucrada, por assim dizer.
As implicações metodológicas do modo como Popper e Lakatos tra-
taram a metafísica e encararam suas relações com a atividade científica
devem ter ficado claras no tratamento detalhado que fiz das suas posições
nos capítulos 6 e 8.
No capítulo 11 mostrarei que a noção de paradigma em Kuhn incorpora,
em uma das suas dimensões, uma metafísica, que é assumida tacitamente
pelos participantes da atividade científica dita “normal”.
A história da ciência oferece, efetivamente, evidências de que, em qual-
quer período, os cientistas admitiram, consciente ou inconscientemente,
explícita ou implicitamente, determinadas imagens de natureza que não
podiam ser submetidas diretamente ao crivo da experiência (Abrantes, 2016).
Tais imagens – que eventualmente são sugeridas pela metafísica filosófica
ou originam-se de outras fontes, como a própria ciência e o senso comum
– funcionam como ontologias, em geral assistemáticas e tácitas, fixando
os constituintes que são considerados últimos ou essenciais da realidade,
suas modalidades de interação, bem como os processos fundamentais dos
quais participam.
Essas imagens de natureza fornecem a matéria-prima para modelos e
metáforas, que são geratrizes e elementos constitutivos das teorias científicas.
As imagens de natureza influenciam, por outro lado, as decisões a respeito da
aceitabilidade de explicações e o desenvolvimento de métodos considerados
adequados à investigação, restringindo e orientando a atividade científica.

176
O sucesso dos programas de pesquisa científicos leva naturalmente a
um maior enraizamento de uma particular imagem de natureza ou, no caso
de insucesso, à sua revisão ou seu descarte por completo. Ou seja, não só
as metafísicas especulativas dos filósofos podem condicionar as imagens
de natureza dos cientistas, mas, ao inverso, a própria dinâmica científica, o
sucesso ou insucesso dos programas de pesquisa científica podem, no final
das contas, ter um impacto sobre a metafísica com base no enraizamento
das imagens de natureza pressupostas por tais programas, ou no descarte
de tais imagens por parte dos cientistas.

1. O status da metafísica
A controvérsia a respeito da possibilidade de um conhecimento a priori
de caráter metafísico, e das relações deste com o conhecimento científico
(empírico), não se restringe à filosofia da ciência, nem se traduz em termos
de respostas a um pretenso problema da demarcação.
Neste capítulo quero ampliar um pouco mais o escopo da discussão
sobre as relações entre ciência e metafísica, e sobre a possibilidade de um
conhecimento a priori neste campo, mas sem a pretensão de abordá-lo em
profundidade, o que me afastaria dos objetivos que persigo neste livro. De
forma mais modesta, quero apresentar a seguir algumas posições conflitantes
a esse respeito, e que servirão como um pano de fundo para as discussões
metodológicas a que retornarei mais à frente neste capítulo.
O termo ‘metafísica’ recebeu as mais diversas conotações ao longo da
história da filosofia. Menciono aqui as duas principais: a aristotélica – que
via a metafísica como o empreendimento de desvendar o ser enquanto ser,
enquanto realidade independente da mente (e, portanto, da experiência) – e a
kantiana, na qual a metafísica consiste, de forma mais restrita, numa análise
das categorias do entendimento, implicadas no nosso conhecimento dos
fenômenos.3 Pressuporei, no que se segue, a concepção que os aristotélicos
faziam do objeto da metafísica.

3. Não distinguirei metafísica de ontologia (a ciência do ser enquanto ser), salvo menção
explícita em contrário, embora na tradição kantiana, sobretudo, isso possa ou mesmo deva ser
feito. Kant considerava que o númeno, ou a coisa-em-si, é incognoscível. Consequentemente,

177
A argumentação filosófica, nas diversas áreas, emprega noções muito
gerais como as de ‘evento’, ‘estado’, ‘tipo’, ‘particular’, ‘universal’, ‘proprie-
dade’, ‘relação’, ‘substância’, ‘causa’, etc. Tais noções podem ser objeto de
uma metafísica geral, entendida como uma teoria das categorias (Loux,
1998). A tarefa do metafísico seria a de “considerar todas as coisas que
existem e classificá-las nas espécies mais gerais a que são subsumidas” expli-
citando, ademais, as relações entre as categorias resultantes dessa operação
(Loux, 1998:13; 16-7).
Aqueles que rejeitam a possibilidade de se construir uma metafísica a
priori, ou sua pertinência, defendem que o conhecimento científico cumpre
o papel insubstituível de colocar à disposição do metafísico uma amostragem
de objetos a partir da qual este poderia, através de “procedimentos indutivos”,
chegar às categorias mais gerais e abstratas (como as exemplificadas acima).
A metafísica seria, por assim dizer, destilada do conhecimento científico,
mas guardaria um grau mais elevado de abstração do que o discurso cien-
tífico – o que se mantém compatível com a autocompreensão dos filósofos
a respeito da especificidade do seu trabalho (em contraste com o trabalho
científico) e do nível em que ele se dá (Abrantes, 2004c).
Loux argumenta, no entanto, que diante dessa visão a respeito do envol-
vimento das ciências no empreendimento metafísico, fica difícil compreender
as divergências, que são comuns, entre os filósofos que a ele se dedicam:
[Essa concepção] pressupõe que os metafísicos começam o seu trabalho
confrontados com a totalidade dos objetos que são dados de forma não

ele defendeu que a metafísica deveria redefinir-se como uma ciência dos limites do conheci-
mento humano. O conhecimento não pode, em particular, tomar legitimamente por objeto
o que está além de uma experiência possível do sujeito (justamente a coisa-em-si, que Kant
não negava ter algum modo de existência, mesmo que nos sendo inacessível). A possibilidade
de uma metafísica transcendente (que incluía, tradicionalmente, a teologia racional, a psico-
logia racional e a cosmologia racional) é, portanto, rejeitada por Kant, que só admite uma
metafísica imanente, que se restringe aos objetos de uma experiência possível. Na tradição
aristotélica, a partir de Duns Scoto sobretudo, expandiu-se o âmbito da metafísica de modo
a incluir não só uma referência a seres reais como também a seres possíveis. Wolff dividiu
a metafísica em duas partes: a geral (o que se poderia chamar propriamente de ‘ontologia’)
e a especial. Esta última envolve as acima referidas ciências de Deus, da alma e dos corpos
(Kim & Sosa, 1995:312; Loux, 1998). A filosofia da natureza pode, nesse sentido wolffiano,
ser considerada uma subárea da metafísica especial: a cosmologia racional.

178
problemática, e que o seu trabalho é encontrar os nichos nos quais
colocar os objetos na sua totalidade. O fato é, entretanto, que os filósofos
discordam acerca das categorias, discordam a respeito de quais objetos
há. Não existe um conjunto dado de objetos sobre os quais todos os
metafísicos concordam (Loux, 1998:14).

De que recursos especiais disporia, entretanto, a filosofia para pretender,


ainda hoje, articular um conhecimento a priori sobre o mundo, o homem, a
sociedade ou qualquer outro objeto, que ignore o conhecimento acumulado
nas diversas ciências?
Os naturalistas em filosofia consideram quimérica essa pretensão. Mas
há uma variedade de posições entre os filósofos que abraçam o naturalismo. 4
Para Kitcher (1998), a rejeição do a priori é, efetivamente, uma com-
ponente central do naturalismo. Kornblith, por sua vez, defende uma na-
turalização da metafísica, indo de encontro à posição representada por
Loux. Deve-se especificar, segundo o primeiro, os constituintes, tipos de
sistema e níveis ontológicos da realidade com base nas melhores teorias
científicas disponíveis:
As atuais teorias científicas são ricas em suas implicações metafísicas.
A tarefa do metafísico naturalista, como vejo, é simplesmente de extrair
as implicações metafísicas da Ciência contemporânea. Uma metafísica
que vai além dos compromissos da ciência simplesmente não se apoia na
melhor evidência disponível. Uma metafísica que não admite compro-
missos tão ricos quanto aqueles de nossas melhores teorias científicas
atuais, pede-nos para estreitar o escopo da nossa ontologia de um modo
que não resistirá ao escrutínio. Para o naturalista, simplesmente não há
rota extracientífica para a compreensão metafísica. (Kornblith, 1998:149)

Kornblith não aceita, portanto, metafísicas que vão além dos objetos
apontados pelas nossas melhores teorias científicas.5 Mas ele, tampouco,
aceita metafísicas que restrinjam a gama de referentes das teorias nas diversas
ciências, como fazem posições fisicalistas redutivas:

4. Investigo a pluralidade de posições chamadas de ‘naturalistas’, em diferentes áreas da


filosofia, numa série de artigos (Abrantes, 1993a, 1993b, 1998a, 2004c, 2004d).
5. O naturalismo de Kornblith pressupõe, evidentemente, o realismo científico.

179
A essa altura da história, a filosofia não tem credenciais para fazer isto.
Eu creio que os filósofos devem ser mais modestos, e tentar construir
teorias filosóficas que sejam cientificamente bem informadas, em vez
de tentar informar as ciências com alguma espécie de intuição extra-
científica (Kornblith, 1998:169).

Ele representa, portanto, uma tendência claramente cientificista, ao


defender que as teorias científicas têm – ao contrário do que acreditaram
tradicionalmente os filósofos – precedência tanto com respeito à metafísica
quanto à epistemologia6:
(...) e não porque haja uma razão a priori para se confiar na ciência
acima da filosofia, mas sim porque há um corpo teórico-científico que
provou seu valor na previsão, explicação e aplicação tecnológica. Isso
dá ao trabalho científico uma espécie de fundamento que nenhuma
teoria filosófica teve até hoje. Somente ao tornar a filosofia contínua
com as ciências, conforme Quine sugeriu, poderemos provê-la com
um fundamento adequado. Isto é o que, creio eu, os positivistas lógicos
esperavam fazer, mas seu desejo de dar à filosofia tal base foi frustra-
do pelo método a priori que eles empregaram, um método que teve
sucesso somente em isolar a teorização filosófica dos resultados cien-
tíficos e dos métodos científicos que os positivistas tanto respeitavam.
(Kornblith, 1998:168)

Note que Kornblith sublinha, corretamente a meu ver, que os empiristas


lógicos não eram naturalistas no modo como entendiam a atividade filosófica.
Mas desenvolver esse ponto não vem ao caso para os meus propósitos aqui.
Em consonância com o naturalismo que Kornblith apregoa, somente
deveríamos postular a existência daquelas entidades e processos descritos
pelas teorias científicas “bem sucedidas”.7 Pode ser motivo de controvérsia,

6. Kornblith também defende o projeto de uma naturalização da epistemologia. Para o


naturalismo nessa área da filosofia, ver o capítulo 13 e a nota 4, acima.
7. É evidente que se coloca, de imediato, a questão de quem está autorizado a estabelecer
os critérios de sucesso. O naturalista não dispõe, obviamente, do recurso a uma filosofia
primeira, restando-lhe a convicção de que a circularidade, que surge inevitavelmente, não
seja viciosa, como afirmam os seus críticos. Ver, adiante, a discussão sobre pragmatismo
e naturalismo.

180
entretanto, quais ciências poderiam suprir o metafísico com o conhecimento
necessário para realizar a sua tarefa. Kornblith, por exemplo, não faz restrições
e inclui até as ciências humanas. A constatação da diversidade das ciências
tem, para ele, implicações metafísicas pois nos leva, inclusive, a reconhecer a
existência de espécies naturais (natural kinds) apontadas pelas ditas ‘ciências
especiais’, como a psicologia, e que tais espécies têm poder causal genuíno.8
Entretanto, essa metafísica não-reducionista, que nos apresenta uma
realidade estratificada, embora seja compatível com o estágio atual do
conhecimento produzido pelas várias ciências, não é consensual entre
os naturalistas.
Ladyman e colaboradores (2009), por exemplo, veem a tarefa de uma
metafísica naturalizada como a de buscar uma unidade nos quadros de mundo
que as várias ciências nos oferecem: “A metafísica, como nós a entendemos
aqui, é o empreendimento de elucidar criticamente as redes de consiliência
através das ciências” (2009:28).
Eles concedem, contudo, uma primazia à física nesse empreendimen-
to, e são críticos daqueles que, embora se apresentem como naturalistas,
defendem uma “des-unidade” das ciências, como Dupré (1993), ou que se
comprometem com uma ontologia em que há diversos níveis de realidade,
como vimos em Kornblith.
Ladyman e colaboradores (1993) também rejeitam o compromisso com
o senso comum de muitos filósofos, o que para eles tem implicações “con-
servadoras”; defendem, por conseguinte, um cientificismo sem amarras, e
não “domesticado” pelas intuições com base no senso comum, usualmente
empregadas na análise conceitual realizada pelos filósofos (cf. Abrantes, 2011a).
Qual a relevância dessas controvérsias em torno de uma eventual na-
turalização da metafísica para a temática metodológica que é o foco do
presente livro?

8. Isso tem grande relevância para o tratamento do problema mente-corpo. Ver Abrantes
(2011a).

181
2. Uma hierarquia de regras metodológicas
Tratar da relevância da metafísica para uma teoria do método envolve
uma investigação não somente do grau de dependência que os métodos
científicos (ou as regras metodológicas) possuem com respeito às (supostas)
propriedades mais gerais do mundo – investigadas, justamente, pela metafí-
sica –, mas da medida em que tais regras podem ser justificadas apelando-se
para considerações de outra ordem.
No capítulo 1, sugeri que as regras metodológicas podem ser hierarqui-
zadas segundo o seu grau de generalidade e de abstração – indo das regras
de nível alto às de nível mais baixo. Lá sugeri que as regras de nível alto
seriam passíveis de análise, explicação e/ou justificação a partir de teorias
filosóficas (lógicas, epistemológicas e metafísicas, basicamente), enquanto
que regras de nível baixo já o seriam por teorias científicas. Ambos os tipos
de regras são normativas, mas as bases da sua normatividade diferem de
acordo com o seu envolvimento com considerações filosóficas ou científicas.
Uma proposta de distinção entre tais níveis metodológicos seria, portanto:
1. As regras metodológicas de nível mais alto são abstratas e formais,
no sentido de não pressuporem crenças substantivas9 a respeito de um setor
particular ou, mesmo, de um mundo particular. Tais regras poderiam, por
exemplo, ser fundadas numa lógica formal, numa teoria geral do conheci-
mento ou numa metafísica geral. Elas seriam, nessa medida, aplicáveis aos

9. As expressões ‘crença substantiva’ e ‘conhecimento substantivo’ são muito utilizadas


neste capítulo e foram empregadas, embora com menos frequência, nos capítulos anteriores,
pelo que cabe aqui precisar o seu sentido. Segundo o dicionário Houaiss (2001), o termo
substantivo “designa um ser real ou metafísico” e, em outra acepção relacionada, constitui
uma “classe de palavras com que se denominam os seres, animados ou inaminados, con-
cretos ou abstratos, as coisas ou partes delas, os estados, as qualidades, as ações (...)”. Venho
usando ‘conhecimento substantivo’ nessa acepção, como aquele a respeito do mundo (ou da
realidade; não estou distinguindo esses termos) físico, biológico, psicológico, etc., obtido
sobretudo (mas não exclusivamente) pela atividade científica. A metafísica, como área da
filosofia, também propõe crenças substantivas, embora empregue, supostamente, métodos
não-empíricos (teríamos, nesse caso, crenças geradas a priori). Deixando-me levar pelo jogo
das palavras, a expressão ‘crença adjetiva’ indicaria conteúdos (ou teses) que qualificam as
crenças substantivas (ou o conhecimento substantivo). A metodologia e a axiologia, por
exemplo, sistematizariam teses adjetivas, na medida em que qualificam métodos (e.g., a tese
de que ‘este método é adequado para atingir tal fim’, dentre outras) e teorias (e.g., a tese de
que ‘esta teoria é adequada empiricamente’, ‘... é preditiva’, ‘... é explicativa’, ‘... é simples’,
‘... é consistente’, etc.).

182
mais diversos objetos científicos e, quiçá, a qualquer mundo possível, além
de serem implementáveis em qualquer sistema cognitivo (real ou possível).
Por essas características, tais regras interessam sobremaneira aos filósofos.
2. As regras de nível baixo pressupõem crenças substantivas sobre as
propriedades e leis do nosso mundo (ou de um setor dele), fundamentadas
empiricamente, ou seja, a posteriori. Nessa medida, as regras nesse nível
têm um uso restrito a certos domínios, são implementáveis em sistemas
cognitivos particulares.10
Coloca-se, então, com respeito a estas últimas regras, de nível baixo, a
seguinte questão: como é obtido o conhecimento relevante para fundá-las
(justificá-las)? Se elas dependem do conhecimento produzido a posteriori
pelas diversas ciências há risco de circularidade: esse conhecimento (re-
presentado por teorias científicas, por exemplo) pode ter sido gerado e/ou
validado pela aplicação dessas mesmas regras, e o círculo se fecha...
Um modo de não cair em circularidade seria defender que a justificação
dessas regras pressupõe um conhecimento a priori: seja de caráter lógico e
epistemológico, ou então de caráter metafísico (compondo uma metodologia
propriamente filosófica).
Por enquanto, deixarei de lado esse problema colocado pelas regras
de nível baixo e vou dedicar-me a analisar a fundamentação das regras de
nível alto que, por terem supostamente uma fundamentação a priori, não
nos envolveriam em circularidade viciosa.
Nos capítulos 2 e 3, tratei das contribuições da epistemologia e da ló-
gica para a metodologia, e não pretendo voltar às considerações que lá fiz.11
Volto-me, no presente capítulo, para as contribuições da metafísica para
uma teoria do método.

10. Pode-se, analogamente, propor uma hierarquia de lógicas, indo de lógicas como a
dedutiva – que seria exclusivamente formal e não suporia conhecimento substantivo – às
diversas lógicas ditas ‘materiais’, como tematizei no capítulo 3. Um padrão formal de in-
ferência aplica-se a todos os mundos possíveis, enquanto que regras que supõem conheci-
mento substantivo aplicam-se a um mundo particular. No capítulo 1, por sua vez, distingui
método de técnica.Vimos também, no capítulo 7, que podemos hierarquizar as heurísticas
segundo o grau com que incorporam conhecimento a respeito de domínios específicos de
investigação. Ver, também, a distinção, que propus no capítulo 3, entre regras metodológicas
que normatizam decisões racionais, de um lado, e regras lógicas, de outro.
11. Vimos que mudanças na epistemologia e na lógica (embora nesta última as mudanças
sejam bem mais raras) podem ter impacto sobre a metodologia.

183
Se aceitarmos algum grau de naturalização da metafísica ou, ao menos,
uma forte interdependência entre metafísica e ciência, o que se coloca é a
medida na qual a metodologia é informada pelo conhecimento substantivo
e construída com base em métodos empíricos. Em outras palavras, se há um
continuum entre metafísica e ciência, como defendem os naturalistas, e se a
metafísica está envolvida na justificação de uma metodologia, então crenças
substantivas (metafísicas e/ou científicas) estão intimamente envolvidas
nesse projeto. Se for esse o caso, surge o mesmo problema apontado acima
com respeito às regras de nível baixo. A rigor, a distinção entre tais tipos de
regras não é absoluta, mas somente de grau!
Muitos filósofos defendem que todas as regras metodológicas, mesmo
as de nível mais alto, pressupõem em algum grau teses a respeito de como é
o mundo, suas propriedades, tipos de objetos e eventos que aí ocorrem, etc.
Como fica, então, a pretensão normativa da metodologia? Como justificar
racionalmente a adoção das regras metodológicas (o que constitui, como
vimos, o objetivo central de uma teoria do método)?
Veremos na próxima seção algumas respostas a essas questões.

3. A teoria reticular de racionalidade


Os filósofos da ciência usualmente defendem uma concepção hierár-
quica entre conhecimento e metaconhecimento12: um conjunto de crenças é
validado se passar pelo crivo de regras metodológicas, mas a validação destas
últimas não depende do conhecimento substantivo-científico. Portanto,
segundo essa concepção há uma assimetria na relação entre conhecimento e
metaconhecimento, concedendo-se a este último uma posição privilegiada.13
Quando discuti a metodologia de Popper, destaquei que ela exemplifica
uma teoria da racionalidade que pressupõe uma hierarquia em três níveis:
o do conhecimento substantivo (incorporado em teorias científicas, fun-

12. Venho usando, preferencialmente, os termos ‘ciência’ e ‘metaciência’, como no final da


seção anterior.
13. Como vimos na última seção, essa posição privilegiada seria resultado, justamente, das
bases supostamente a priori, propriamente ‘filosóficas’, da metodologia. Esta se sustentaria
em teorias lógicas, epistemológicas e metafísicas, independentes do conhecimento científico,
empírico, obtido a posteriori.

184
damentalmente), o da metodologia e o da axiologia. Disputas em cada um
desses níveis são resolvidas racionalmente apelando-se para um consenso
no nível imediatamente superior.
Assim, se há divergências entre cientistas em torno de duas teorias a
respeito do mesmo domínio de fenômenos (por exemplo, as divergências,
no século XIX, entre partidários da teoria corpuscular da luz e partidários
da teoria ondulatória da luz),14 elas podem ser, em princípio, resolvidas se
houver um consenso no nível metodológico (por exemplo, um consenso
em torno do falseacionismo como metodologia).
Como vimos, a teoria hierárquica parece conduzir a uma parada dog-
mática, tal como uma convenção no nível axiológico. Para fazer face a este
e a outros problemas da teoria hierárquica de racionalidade, Laudan (1984)
propôs uma alternativa, que chamou de ‘teoria reticular da racionalidade’.
Basicamente, Laudan contesta que os conflitos só possam ser resolvidos
subindo-se na hierarquia. Ele argumenta que, frequentemente, dá-se justa-
mente o oposto: o nosso conhecimento a respeito do mundo (incluindo o
mundo humano, social) pode ser relevante para defendermos ou rejeitarmos
uma determinada metodologia.
Um dos exemplos que oferece é o da descoberta do efeito placebo, que
conduziu a uma revisão dos métodos empregados para o teste de medica-
mentos e à introdução de métodos do tipo duplo-cego (esse método serviu de
exemplo para as discussões preliminares que fiz no capítulo 1). Reconhecer
essa influência do conhecimento sobre o metaconhecimento aponta para
uma naturalização da metodologia:
(...) nossas visões a respeito dos procedimentos adequados para in-
vestigar o mundo foram significativamente afetadas pelas mudanças
em nossas crenças a respeito de como o mundo funciona (...) Existe,
portanto, uma circularidade central, mas não viciosa, em nossos pro-

14. Este é um dos exemplos dados por Popper de como um experimento crucial (no caso,
o experimento de Foucault que mediu a velocidade da luz em diferentes meios) permitiu
que se decidisse a favor da teoria ondulatória da luz adotando-se, para isso, a metodologia
falseacionista. Esse experimento falseou a teoria corpuscular e confirmou, ao mesmo tem-
plo, a teoria ondulatória. Há outros relatos históricos mais plausíveis mostrando que, por
outros motivos, de caráter não-empírico, a comunidade científica da época já havia aceitado
amplamente a teoria ondulatória, na versão articulada por Fresnel. Ver Abrantes (2016).

185
cedimentos avaliativos: nós usamos certos métodos para estudar o
mundo e aqueles mesmos métodos podem servir, inicialmente, para
autenticar descobertas que expõem as limitações daqueles mesmos
métodos. (Laudan 1984: cf. nota 13, acima).

Vimos no último capítulo que Laudan defende que as regras metodo-


lógicas têm a forma de imperativos hipotéticos. Se for este o caso, é de se
esperar que tais regras, mesmo as de caráter muito abstrato, pressuponham
crenças substantivas. As regras metodológicas só se aplicariam, nesse caso, a
um mundo particular (ou tipo de mundo) com as propriedades descritas por
um conhecimento substantivo (científico ou metafísico). As regras podem ser
completamente inadequadas para guiar a pesquisa num outro mundo possível,
ou para resolver problemas em domínios radicalmente novos de fenômenos.15
A teoria reticular proposta por Laudan envolve, de modo análogo, certo
grau de naturalização da axiologia, já que a metodologia e o conhecimento
factual/teórico (substantivo) passam também a restringir a aceitação de um
conjunto de fins (metas ou valores) para a investigação científica.
Laudan tenta mostrar, efetivamente, que divergências axiológicas podem
ser racionalmente resolvidas através de várias estratégias. Pode-se criticar
um fim ou valor proposto para a atividade científica, argumentando-se que:
(a) o fim é irrealizável ou utópico (e.g., a infalibilidade das teorias);
(b) o fim é impreciso, arbitrário ou ambíguo (e.g., a simplicidade ou a
inteligibilidade das explicações);
(c) não dispomos de critérios para saber quando o fim é alcançado por
uma teoria particular (e.g., a verdade);
(d) o fim não é realizado pelas teorias efetivamente produzidas pelos
cientistas (e.g., o amplo abandono das exigências da filosofia mecânica radical,
em sua modalidade cartesiana, no século XVIII);

15. Com o advento da mecânica quântica, por exemplo, descobriu-se que o microcosmo das
partículas elementares é regido por leis completamente diferentes das que regem o mundo
macroscópico. Essas partículas possuem propriedades diferentes daquelas com que estamos
habituados a lidar em nosso mesocosmo. Portanto, é de se esperar que no microcosmo
falhem muitas das regras metodológicas que empregamos ordinariamente e que, talvez,
tenhamos que abandonar certos valores que nos são caros (como, por exemplo, os associados
a uma imagem determinista de natureza; a respeito desta imagem, ver Abrantes [2016]).

186
(e) o fim não se coaduna com os valores implícitos na prática da comu-
nidade, indicando uma incompatibilidade entre ideais filosóficos e valores
efetivamente atuantes (imagens de ciência).
Um exemplo da estratégia (e) foi o abandono do hypotheses non fin-
go newtoniano. O indutivismo era, até a segunda metade do século XVIII,
a metodologia aceita pela maioria dos cientistas (em geral, tacitamente).
A difusão de teorias que pressupunham hipóteses sobre entidades não-ob-
serváveis (como fluidos elétricos, flogístico, calórico, etc.) criou, por sua vez,
um clima mais favorável ao uso de hipóteses (Laudan, 1984:82).16
Essas estratégias correspondem a diferentes modalidades de críticas a
valores ou fins cognitivos. O tipo de crítica formulada em (c) exemplifica
como uma discussão epistemológica pode ter implicações para a meto-
dologia. Laudan é um não-realista e, portanto, não admite que a verdade
seja um fim alcançável pela ciência. Ele argumenta que não temos nem
mesmo como saber se nos aproximamos da verdade quando atingimos fins
epistêmicos reconhecíveis, como a adequação empírica, o poder preditivo,
o poder explicativo, a consistência, etc. Em outros termos, não teríamos
acesso a essa propriedade chamada ‘verdade’ 17 e, logo, não seria legítimo
ou razoável almejá-la.
As críticas formuladas em (d) e (e) ilustram como a prática científica
tem impacto sobre a axiologia, o que Laudan interpreta como uma evidência
de que esta pode ser naturalizada.
A teoria reticular de racionalidade rejeita, de toda forma, a unidire-
cionalidade nas relações entre os níveis, como se dá na teoria hierárquica
(exposta no capítulo 6). Os níveis passam, agora, a se articular em rede,
como ilustra o diagrama:

16. A difusão de uma imagem materialista de natureza no século XVIII também é um


exemplo da estratégia (e), na medida em que propiciou um otimismo epistemológico a
favor do uso de hipóteses na investigação dos fenômenos ligados à vida, que no século XIX
passou a denominar-se ‘biologia’ (para estudos detalhados desses episódios históricos, ver
Abrantes, [2016]).
17. Essa argumentação de Laudan depende de uma particular concepção da verdade, no caso
a concepção correspondentista. Em outras concepções do que seja verdade (por exemplo, a
concepção coerentista), essa propriedade seria perfeitamente reconhecível. Ver o capítulo 2.

187
Cada vértice desse triângulo pode sofrer mudanças em função de
pressões exercidas por mudanças ocorridas nos outros vértices (isso está
representado, no diagrama acima, por flechas, ligando-os). Portanto, haveria
como se argumentar racionalmente a favor de mudanças em qualquer um
dos vértices, incluindo o que corresponde aos fins (axiologia), com base em
mudanças ocorridas nos demais.
A teoria reticular de racionalidade acata, portanto, o impacto metodo-
lógico e axiológico de mudanças ocorridas no conhecimento substantivo (re-
presentado pelo vértice ‘teorias’), o que constitui o foco do presente capítulo.

4. Uma ilustração histórica


No advento do chamado ‘método experimental’ temos um exemplo de
como mudanças na nossa visão de mundo (nas imagens de natureza ou, de
forma mais sistemática, na metafísica) podem levar a mudanças nos métodos
científicos. Esse episódio histórico, que mencionei rapidamente no capítulo
1, ilustra a interdependência entre metodologia e conhecimento substantivo.
Antes do século XVII, predominava uma imagem de natureza influen-
ciada, sobretudo, pela metafísica aristotélica, segundo a qual somente po-
dem ser objeto de conhecimento científico os movimentos ditos ‘naturais’
– leia-se, aqueles movimentos que resultam de uma tendência interna ao
móvel, que corresponderia à sua essência, fazendo o papel de causa final.
Qualquer perturbação desse movimento natural, qualquer causa eficiente
externa impede, segundo Aristóteles, que se conheça a natureza do mó-
vel – o objeto último do conhecimento dos processos naturais. Em outras
palavras, circunstâncias ou condições que são exteriores ao móvel em nada
contribuem para determinar a sua natureza, que, nessa imagem teleológica,

188
caracteriza-se justamente por ser um princípio autônomo, autossuficiente
e interno de movimento.
A nova imagem mecanicista de natureza, que se consolidou a partir do
século XVII, eliminou as causas finais e a distinção ontológica entre causa
interna e causa externa, tão central para Aristóteles. O mecanicismo foi,
portanto, um requisito para que a experimentação viesse a ser considera-
da, na modernidade, um método adequado para se obter conhecimento a
respeito da Natureza.18

*5. A controvérsia a respeito de tipos de regras metodológicas


Há quem conteste, entretanto, que todas as regras metodológicas pres-
supõem crenças substantivas. Worrall, por exemplo, defende que pelo menos
alguns “princípios” (ou regras, para usar o termo que venho adotando)
metodológicos, de nível muito abstrato e geral, não envolvem crenças a
respeito do mundo particular em que vivemos (incluindo crenças sobre o
aparato cognitivo que efetivamente temos), mas basear-se-iam unicamente
em pressupostos que não seriam passíveis de revisão. Ele chama tais regras de
“procedurais”19 – nos seus termos, “princípios imutáveis, abstratos e formais
de boa ciência” – distinguindo-as das regras “substantivas” (Worrall apud
Laudan, 1989:373). Tal núcleo de uma metodologia seria, a seu ver, propria-
mente filosófico e imune a mudanças que se dão em nossas crenças a respeito
dos supostos objetos, propriedades e processos do mundo (particularmente
aqueles descritos pela ciência e que são, eventualmente, incorporados em uma
metafísica ou imagem de natureza, para usar um conceito que me é caro).
Essa metodologia proporia regras eficazes para se atingir os fins últimos da
ciência em todos os mundos possíveis (cf. nota 10).
Worrall argumenta, nessa linha, polemizando com Laudan, que este
último estende demasiadamente o domínio da metodologia, incluindo regras
muito específicas (como a que recomenda o emprego de procedimentos

18. Em filósofos como Descartes, a imagem mecanicista de natureza foi alçada à condição
de uma genuína metafísica, pelo seu caráter sistemático e explícito. Para mais detalhes a
respeito desse episódio, consultar Abrantes (2016).
19. O termo ‘procedural’ é tomado de empréstimo ao jargão jurídico, pelos autores (Laudan,
1989:373)

189
duplo-cego no teste de medicamentos, discutida acima) que, certamente,
são regras substantivas e, portanto, modificáveis com o avanço do conhe-
cimento científico. Regras de nível mais elevado de abstração e de caráter
formal não poderiam ser afetadas por modificações que, porventura, ocorram
no conhecimento substantivo-científico e, nessa medida, seriam invariáveis.20
A regra metodológica “as teorias devem, quando possível, ser testadas
contra suas rivais plausíveis” seria um exemplo de uma regra procedural.
Contudo, diante dos argumentos de Laudan, Worrall (1989:385-6) admite que
mesmo esta regra pressupõe características de um mundo particular e, portanto,
não teria a pretensa aplicabilidade a todos os mundos possíveis de uma regra
procedural. A diferença entre regras procedurais e substantivas seria, então,
somente de grau, como defende Laudan. Worrall argumenta, entretanto, que,
no caso de regras muito abstratas, ninguém admite seriamente que possam
ser revistas – embora reconheça que pressupõem propriedades muito gerais
do mundo (e que se apoiariam em crenças substantivas).
Laudan (1981) chama de “purista” a concepção de que a mudança me-
todológica é motivada, exclusivamente, por mudanças na filosofia especiali-
zada (leia-se, no presente contexto, a lógica, a epistemologia e a metafísica).
Em vez do modelo purista – exemplificado por Worrall – Laudan defende
que mudanças metodológicas são sempre resultado de mudanças em nossas
crenças substantivas.21 Em outras palavras, mudanças metodológicas podem
ser motivadas por mudanças em nossas teorias científicas, não se incorrendo
no relativismo desde que sejam racionalmente motivadas (com base na teoria
reticular de racionalidade, por exemplo).

20. Essa invariabilidade da metodologia seria imprescindível para não cairmos no relativismo.
A posição relativista, no entendimento de Worrall (1989), corresponde a admitir que nada
seria fixo no empreendimento que chamamos ‘ciência’, incluindo as regras metodológicas
seguidas pelos seus praticantes. Laudan caracteriza o relativismo de modo diferente: ele
decorreria de não termos base racional para aceitar (ou rejeitar) uma determinada tese (seja
ela substantiva, metodológica ou axiológica).
21. O purismo a que alude Laudan e a teoria hierárquica de racionalidade reforçam-se
mutuamente. Ressalto, de passagem, que F. Bacon já reconhecia a possibilidade de uma
interdependência entre metodologia e conhecimento substantivo quando afirma que “(...)
a arte da descoberta desenvolve-se com o aumento das próprias descobertas” (Bacon apud
Rossi, 1992:147).

190
Considerações como as de Laudan apontam para uma nova concepção a
respeito da relação entre ciência e metaciência (a metodologia estaria incluída
nesse metanível).
A tese de que haveria uma interdependência de metodologia e conhe-
cimento substantivo é aceita por muitos filósofos.22 Shapere, à semelhança
de Laudan, critica o que ele chama de “abordagem dos níveis” na filosofia
tradicional da ciência. Essa abordagem supõe que haja um nível de “ideias,
métodos, regras que governa os procedimentos da ciência e que, nesse
sentido, estaria acima e seria independente do processo científico” (1987:7).
Num artigo anterior, Shapere faz a mesma crítica às chamadas “visões pres-
suposicionistas da ciência”, que defendem a tese de que “existe algo que é
pressuposto pela empresa de aquisição do conhecimento, mas que é imune
à revisão ou rejeição à luz de qualquer conhecimento ou quaisquer crenças
adquiridas” (1980:61). Ele defende, ao contrário, que ocorrem mudanças em
todos os níveis, que são interdependentes. A metodologia, em particular, sofre
alterações em resposta a mudanças em nosso conhecimento do mundo.23
Acompanhando Nickles (1987b), qualificarei de realista a concepção de
que todo método pressupõe algum conhecimento acerca do mundo. Para
a concepção apriorista, por seu turno, os métodos não dependeriam de co-
nhecimento a respeito do mundo, sendo, portanto, neutros com respeito a
qualquer conteúdo substantivo. O logicismo e o bayesianismo dão suporte,
por exemplo, a concepções metodológicas aprioristas.24

*6. Outras posições a respeito da justificação das regras metodológicas


Nickles identifica, além das duas posições que acabo de apresentar,
uma terceira que chama de pragmática: um bom método é simplesmente

22. Encontramos versões dela em autores tão diferentes quanto Feyerabend (1985), Shapere
(1980:67, 70, 71-2, 75-6, 78), Boyd (1980:614; 1992: 207) e Newton-Smith (1981:221-2), para citar
somente alguns.
23. Um problema que se coloca para tais teses da interdependência de metodologia e co-
nhecimento substantivo é que parecem conduzir ao relativismo (implicação que o próprio
Feyerabend explorou à saciedade), já que não poderia haver um padrão imutável e universal
de racionalidade. Vimos, na nota 20, como Laudan responde a essa crítica.
24. O que Nickles classifica como ‘apriorismo’ corresponde, grosso modo, ao modelo que
Laudan denomina de ‘purista’.

191
aquele que funciona na prática.25 Esta posição opõe-se em princípio à rea-
lista, pois nega que a menção a um conhecimento a respeito do mundo (ou
de um setor deste) seja necessária para que justifiquemos nossos métodos.
Isso não impede que algum conhecimento substantivo esteja implicitamente
envolvido no funcionamento dos nossos métodos, mas unicamente que a
justificação destes últimos não requer que ele seja explicitado.
Rescher (1977) apresenta essa abordagem pragmática servindo-se do
seguinte modelo sistêmico:

A justificação pragmática de uma metodologia da investigação26


(extraído de Rescher, 1977:66)

Nickles compromete-se com uma quarta posição, que denomina deheu-


rística, e que pretende estabelecer um grau de compromisso entre as posições
realista e pragmática. Segundo este filósofo, essas últimas posições “negli-
genciam a justificação heurística do método, baseada em estudos cognitivos
do homem e da aprendizagem em máquinas [machine learning]” (Nickles,
1987b:124). A justificação heurística do método não se limita a reconhecer
a relevância das teorias da física, da biologia, etc. para a metodologia, mas
aponta, sobretudo, para a relevância da psicologia cognitiva e da sociologia
da ciência. Estas últimas indicam, por exemplo, como se deve administrar
a alocação de recursos intelectuais, via de regra escassos.

25. Mencionei, de passagem, o pragmatismo no capítulo 9.


26. Cf. Hooker (1995:183).

192
Ao defender um meio termo entre as posições realista e pragmática,
Nickles aproxima-se de Laudan, afirmando a interdependência entre método
e teoria científica (conhecimento substantivo) sem admitir, contudo, qual-
quer ascendência de um desses polos com respeito ao outro no que tange
à justificação (ascendência que ocorre na posição realista, por exemplo).
Kantorovich, por sua vez, defende posições próximas às de Worrall ao
argumentar que um método de descoberta deve ser geral, e não específico a
um domínio particular do conhecimento ou aplicável somente a problemas
particulares. O filósofo da ciência tem por objeto, segundo ele, a “natureza
da ciência per se” e, portanto, se há lugar para uma metodologia filosófica,
esta não pode limitar-se a arrolar métodos particulares empregados por cien-
tistas em domínios específicos, como o método para resolver uma equação
matemática ou para descobrir a composição química de uma substância:
“Os filósofos devem estar interessados, em vez disso, nos métodos gerais
refletindo maneiras racionais de aquisição de conhecimento” (Kantorovich,
1993:56).
A posição de Kantorovich é, portanto, muito distinta da de Nickles, já que
este último, como vimos, aproxima a metodologia da heurística, defendendo
que não há mais lugar para um monismo metodológico (Nickles, 1987b:127).
O preço a pagar pela excessiva generalidade e formalismo é, segundo este
filósofo, a irrelevância da metodologia dita ‘filosófica’ para não-filósofos.27

27. Embora numa primeira avaliação Kuhn, ao criticar a universalidade e imutabilidade da


metodologia popperiana – como veremos no capítulo 11 –, pareça reagir ao caráter abstrato
da metodologia, talvez o seu historicismo tenha lhe traído, como observou sugestivamente
Nickles (1987b). A história da ciência é chamada por Kuhn a validar (ou não) as metodologias
propostas pelos filósofos. Esta modalidade de validação historicista, argumenta Nickles,
pressupõe que uma metodologia deva ser geral. Um metafalseacionismo ao estilo kuhniano
(em que evidências empíricas da história da ciência podem falsear uma metodologia filo-
sófica) estaria, portanto, comprometido com o ideal de generalidade em metodologia, isto
é, com o ideal de um método único, aplicável a qualquer ciência, em qualquer momento
histórico. Portanto, o historicismo que pressupõe vai ao encontro de correntes filosóficas
ortodoxas para as quais uma metodologia deve ser abstrata e formal (ou seja, indiferente a
conteúdos substantivos e imune a mudanças nestes)!

193
*7. Versões do naturalismo em filosofia da ciência
No capítulo 9 e na apresentação que fiz acima da teoria reticular de
racionalidade espero que tenha ficado patente o compromisso de Laudan
com o naturalismo. Há, contudo, diferentes versões do naturalismo em
metodologia (cf. nota 4).
Rosenberg (1985; 1990; cf. 2000, p.152-5), por exemplo, defende uma
versão radical de naturalismo segundo a qual as teorias têm precedência rela-
tivamente às metodologias (a visão tradicional, como vimos, defende o inverso).
O caráter prescritivo das regras metodológicas deriva, segundo ele, da veraci-
dade da teoria que explica a sua eficácia (ver, por exemplo, o caso dos métodos
de datação examinados no capítulo 1). Para ele, teorias científicas explicam
causalmente a eficácia das regras metodológicas (e, desse modo, as justificam).
Mas o inverso não se dá: as regras metodológicas não podem explicar porque
as teorias são verdadeiras (não determinam causalmente a verdade das teorias).
A proposta de Rosenberg constitui, portanto, uma alternativa tanto ao
modelo purista quanto ao pragmático de metodologia.
Laudan rejeita o naturalismo extremado de Rosenberg por implicar, a seu ver,
seja na redução da metodologia ao conhecimento substantivo – comprometendo
a pretensão normativa da metodologia –, seja na sua pura e simples eliminação:
Estou inclinado a ver preocupações normativas e descritivas como entre-
laçadas em virtualmente toda forma de investigação humana. Nenhuma
delas é eliminável ou redutível à outra; no entanto, ambas comportam-se
epistemicamente de modo bastante similar, de sorte que não precisamos
de epistemologias distintas para lidar com regras e com teorias. (Laudan,
1990a:56)

Na verdade, Rosenberg (1990) também faz uma distinção entre regras


metodológicas de nível baixo e regras abstratas. Ambas seriam explicadas por
teorias, que fornecem a tais regras sua força prescritiva: no primeiro caso, por
teorias científicas e, no segundo caso, por teorias filosóficas. Mas Rosenberg,
sendo um naturalista, não traça uma fronteira nítida, absoluta, como faz Worrall,
entre teorias filosóficas e científicas, vendo um continuum entre elas, com di-
ferenças somente no seu grau de abstração. Exemplos de tais teorias (no caso,

194
epistemológicas) seriam o empirismo, o realismo e o instrumentalismo. Cada
uma dessas teorias impõe restrições à metodologia, pois definem o que pode ser
conhecido (já que não pode implica em não precisa, uma máxima naturalista).
Há na literatura várias críticas ao(s) naturalismo(s) em metodologia e em
metametodologia. Uma vertente contesta que todas as regras metodológicas
pressuponham conhecimento substantivo, e Worrall, como vimos, a repre-
senta bem.
Além dessa discussão sobre a relação entre regras metodológicas e
conhecimento substantivo, o naturalismo é usualmente criticado por ser
incompatível com a normatividade da metodologia, ou então por envolver-se
em circularidade viciosa ao defender, em todos os casos, que haja alguma
interdependência de metodologias e teses substantivas a respeito de como
o mundo é constituído (ou de como nós, partes desse mundo, somos cons-
tituídos). Metametodologias como as propostas por Laudan, Rosenberg e
Kantorovich, entre outros, mostram, contudo, que o naturalismo não neces-
sariamente conduz ao abandono do caráter normativo da metodologia e ao
impasse conhecido como a ‘falácia naturalista’. Como mostrei no capítulo
9, o naturalismo normativo proposto por Laudan responde cabalmente à
primeira crítica, mas talvez não se livre de cair em circularidade.28

28. Para uma discussão perspicaz de diferentes versões do naturalismo em filosofia da


ciência e um tratamento naturalista do problema da contaminação teórica da observação,
que apresentei no capítulo 5, ver Godfrey-Smith, 2003.

195
196
11

A metodologia da ciência “normal”

T. Kuhn provocou uma importante inflexão nos rumos da filosofia da


ciência ao colocar em questão pressupostos fundamentais da orientação
dominante à época, o empirismo lógico, e também do falseacionismo po-
pperiano. Kuhn romperá com essa tradição – logicista e normativa – em
filosofia da ciência, assumindo um compromisso com a prática científica
real e não somente com um ideal filosófico de ciência.
Neste capítulo vou concentrar-me, mantendo-me fiel à orientação geral
do livro, nas implicações metodológicas da abordagem kuhniana, em particular
no que diz respeito ao que ele descreve como a ciência normal. Na primeira
parte farei uma apresentação geral dessa abordagem e, na segunda, discutirei
de forma mais aprofundada os seus aspectos propriamente metodológicos.
A nova atitude que Kuhn adota na compreensão da atividade científica
representa uma ênfase nas questões de fato e não somente nas questões de
direito – tradicionalmente consideradas o objeto da epistemologia. Uma
das consequências disso é que a fronteira entre o contexto de descoberta e
o contexto de justificação, embora não se dissolva completamente, tende,
contudo, a tornar-se menos nítida.
Kuhn defendeu que a filosofia da ciência deve envolver-se com in-
vestigações empíricas, particularmente a respeito dos aspectos históricos
e psicossociais da atividade científica. O seu livro clássico, A estrutura das
revoluções científicas,1 compõe-se, em grande medida, de estudos a respeito
de episódios da história das ciências.2

1. No que se segue, referido somente como Estrutura.


2. Kuhn restringe seus estudos de caso às ciências naturais. Tentativas de transpor as suas
análises para o domínio das ciências humanas são bastante arriscadas, se pretendermos

197
As máximas metodológicas popperianas, por exemplo, em sua pretensão
normativa, passam a ser vistas como um sistema de valores que, eventual-
mente, pode ser adotado por um determinado grupo. Mas Kuhn argumenta
que a metodologia falseacionista não reflete os métodos e os valores típicos
dos grupos científicos em sua prática concreta (como mostram os historia-
dores e sociólogos da ciência, por exemplo).
A partir de Kuhn, a ciência passa a ser reconhecida como uma atividade
realizada por comunidades específicas, e em períodos históricos deter-
minados. O conhecimento científico, como produto desta atividade, está
marcado indelevelmente por tais fatores circunstanciais. Kuhn apresentou
evidências históricas de uma grande variabilidade nos valores e métodos
adotados na comunidade científica. Com base em tais evidências, é difícil
manter a tese de que há uma racionalidade única, supra-histórica, a atuar
na atividade científica.3

1. O quadro kuhniano do desenvolvimento das ciências


Segundo Kuhn, a história da ciência apresenta-se como uma alternân-
cia de períodos de continuidade e de crise, culminando com rupturas. Nos
períodos de continuidade, que ele designa por ‘ciência normal’, a atividade
científica se caracterizaria por um progresso cumulativo de conhecimentos,
balizada por um paradigma unanimemente aceito pela comunidade científica.
Para Kuhn, o critério fundamental para caracterizar se são científicas
as pesquisas conduzidas em um certo domínio, ou melhor, se essa atividade
de produção de conhecimentos constitui uma ciência, é a existência de um
conjunto de certezas comuns ao grupo que a realiza. Kuhn chama esse con-
junto de certezas de um ‘paradigma’. Essas certezas envolvem não somente
uma teoria aceita unanimemente pelo grupo, mas compreende também
os métodos e valores envolvidos na avaliação dos produtos da atividade

manter algum compromisso com as suas intenções, seu instrumental teórico e a pesquisa
histórica que as sustenta.
3. A consequência mais criticada da imagem kuhniana de ciência é, justamente, o relativismo
a que parece conduzir. Mas essa não será a minha ênfase aqui.

198
do grupo. Esses elementos de um paradigma encontram-se associados de
maneira inextricável e veremos o porquê mais a frente.
Segundo Kuhn, as ciências, antes de atingirem sua maturidade (ou seja,
um período de normalidade, como caracterizado anteriormente), passam
por um período pré-paradigmático, em que não há consenso em torno de
um paradigma.
Cada período de ciência normal é seguido por um período de crise, de
ciência extraordinária em que deixa de haver consenso na comunidade cientí-
fica. Nesse sentido, ele se assemelha ao período pré-paradigmático com uma
diferença: os que vivem o período extraordinário já tiveram a experiência de
viver um período de ciência normal, com as vantagens associadas à vigência
de um consenso entre os pares. Na fase de ciência extraordinária indivíduos
e/ou grupos no interior da comunidade científica passam a defender teorias
distintas e a ter critérios incompatíveis a respeito da relevância de problemas
e soluções, sobre a adequação entre métodos e fins, em função de esposarem
diferentes valores e de divergências em outros níveis. Tais períodos não se
prolongam por muito tempo, garante Kuhn. A crise termina o mais rápido
possível com uma revolução científica através da qual uma das correntes se
torna hegemônica, impondo um novo enquadramento conceitual-teórico,
metodológico e axiológico, necessário para dar início a um novo período
de ciência normal.
A ciência normal possui, na descrição de Kuhn, um caráter eminente-
mente conservador. Nela, os cientistas não têm por finalidade – contrariamen-
te ao que preconiza Popper, por exemplo – refutar teorias ou propor outras
novas, que as substituam. Ao contrário, há uma intolerância considerável
com tentativas de se questionar o paradigma aceito. A pesquisa nessa fase é
inteiramente dirigida para o aperfeiçoamento do paradigma, para a solução
de quebra-cabeças dos seguintes tipos:
(i) Determinação de fatos considerados significativos no âmbito do
paradigma. Tenta-se determiná-los com precisão crescente e em circunstân-
cias variadas. Os problemas desse tipo são, em geral, associados à pesqui-
sa experimental;

199
(ii) Possibilitar o confronto teoria/fatos e aumentar o acordo entre as
consequências teóricas e os dados empíricos. Por exemplo, no que tange à
pesquisa teórica, trata-se de deduzir consequências empíricas com a ajuda
de hipóteses suplementares, modelos, idealizações, aproximações, etc., que
aumentem a interface entre o quadro teórico e o mundo da experiência;
(iii) Reformulação do paradigma,4 visando a melhorar sua coerência
interna (lógica), sua simplicidade e outras propriedades consideradas im-
portantes pela comunidade científica nesse período.
É importante ressaltar, antes de prosseguirmos, que Kuhn concebe a
ciência como uma atividade de resolução de problemas.5 Por exemplo, na
tipologia acima, mencionei problemas teóricos e problemas empíricos. Além
dessa peculiaridade, Kuhn é também original pela sugestão de como tais
problemas (quebra-cabeças) são resolvidos: modelando novos problemas
à luz de problemas já resolvidos, vistos como similares. Aprofundarei este
ponto, absolutamente central para o meu enfoque, ao final deste capítulo.
A resistência dos cientistas à mudança de paradigma está, segundo
Kuhn, funcionalmente ligada à eficácia da atividade normal e ao progresso
realizado nesse período. A ciência normal fornece as condições psicológicas
para uma atividade progressiva. O paradigma assegura ao pesquisador que
os problemas que ele tenta resolver têm solução (motivo pelo qual Kuhn
os chama de ‘quebra-cabeças’). O paradigma não somente coloca os pro-
blemas a serem resolvidos, como limita a natureza das soluções aceitáveis,
indicando os caminhos a serem trilhados (os métodos a serem adotados)
na busca dessas soluções.
Além disso, as características conservadora e progressiva da ciência
normal paradoxalmente criam, segundo Kuhn, as condições para que se
precipite a crise que abre caminho para o período de ciência extraordinária.
A passagem à ciência extraordinária tem lugar quando o que seria
somente mais um quebra-cabeças da ciência normal passa a ser visto como

4. Seria melhor falar, nesse caso, de reformulação da teoria, sobretudo se entendermos


paradigma como um conjunto de exemplares (ver adiante).
5. Essa concepção é bastante original, quando comparada às abordagens tradicionais em
filosofia da ciência, e foi explorada, após Kuhn, por vários filósofos da ciência, como Laudan
(1977).

200
uma anomalia. Tipicamente, todos os esforços despendidos para se assegurar
o acordo entre o que é esperado ou previsto à luz do paradigma, de um lado,
e os dados empíricos, de outro, parecem fracassar. As pesquisas visando à
assimilação da anomalia conduzem a um enfraquecimento do consenso
vigente, possibilitando a proliferação de novas hipóteses, teorias, métodos,
valores, em desacordo com o paradigma anteriormente aceito. Estão esta-
belecidas, nessa etapa extraordinária, as condições para uma investigação
crítica dos fundamentos e dos pressupostos do paradigma então aceito e para
o confronto entre concepções rivais. O que era, antes, aceito implicitamente,
tacitamente, passa a ser explicitado e questionado.6
As crises, por sua vez, abrem caminho para uma revolução científica,
isto é, para a substituição de um paradigma por outro, em um certo domínio
de pesquisas. Nesse processo de substituição – que ocorre no contexto de um
conflito aberto entre grupos com concepções rivais – os procedimentos de
avaliação que funcionam na ciência normal não são de nenhuma utilidade
para se decidir a respeito de qual das concepções é, objetivamente, a melhor.
O que é compreensível, se considerarmos que os critérios metodológicos
de avaliação, a axiologia (conjunto de valores cognitivos) e a metafísica (ou
imagem de natureza),7 são parte integrante do que é consensual em uma
tradição de ciência normal e, portanto, constituem o paradigma aceito. Se há
divergência em todos esses níveis, não há como comparar as concepções em
confronto. Esse argumento leva Kuhn a defender a tese de que os paradigmas
que se sucedem são incomensuráveis. Literalmente, esse termo indica que
não há acordo a respeito de uma medida comum que possibilite comparar
o antigo e o novo paradigma. O que motiva o uso, por Kuhn, do termo
‘revolução’ para caracterizar a transição (descontínua) de uma tradição de
ciência normal a uma outra, através da emergência de um novo paradigma.
Esse foi o aspecto mais polêmico do quadro kuhniano do desenvol-
vimento científico. Se revoluções científicas são elementos constitutivos e,

6. Nesse sentido, essa fase leva os cientistas a se colocarem questões filosóficas (metafísicas,
metodológicas, epistemológicas, etc.) que não despertam seu interesse, ou não são conside-
radas relevantes, num período de ciência normal. Ver o capítulo 10, onde discuto a relação
entre metodologia e metafísica.
7. Ver Abrantes (1998b).

201
portanto, inevitáveis do desenvolvimento das ciências, como evitar suas
implicações claramente relativistas? Como podemos dar à palavra ‘ciência’
um significado preciso e estável, que nos permita demarcá-la de outras
atividades? Em que medida podemos defender que há progresso científico
tirante os períodos de ciência normal?
Embora essas questões tenham sido intensamente discutidas, e mere-
ceram uma atenção especial por parte de Kuhn, não serão o meu foco aqui.
Na minha leitura, as maiores contribuições de Kuhn para uma compreen-
são do fenômeno científico estão na sua caracterização da ciência normal.
Além disso, é aí que encontramos sugestões relevantes para uma discus-
são metodológica.

2. Formação científica normal


A formação dos cientistas em uma tradição de ciência normal apre-
senta, segundo Kuhn, um traço peculiar: a utilização de manuais de ensino,
ao invés da literatura original que instaurou aquele domínio particular
de pesquisas. Kuhn faz coincidir a origem dos manuais e os primórdios
da atividade propriamente científica em um certo domínio, marcado pela
emergência do primeiro paradigma.
O surgimento de um paradigma tem como consequência a modifica-
ção no caráter dos comunicados e relatórios de pesquisa. Estes se tornam
muito mais especializados, pois pressupõem o paradigma aceito pelo grupo
de especialistas. Os comunicados – voltados agora para os especialistas e
utilizando-se de uma linguagem cada vez mais técnica, hermética – deixam
para os manuais a tarefa de expor os fundamentos necessários para o seu
entendimento, ou seja, para uma inserção no paradigma vigente. Na fase
pré-paradigmática, como ainda não há um conjunto de certezas comuns aos
que trabalham num particular domínio de pesquisas, os comunicados que
apresentam os seus resultados têm que explicar os conceitos que não são de
domínio público, além de explicitar e justificar os pressupostos metafísicos,
teóricos, metodológicos, etc. do trabalho realizado.
A emergência do primeiro paradigma afasta, portanto, definitivamente os
especialistas dos não-especialistas. Estes últimos, durante o período pré-pa-

202
radigmático, podiam ainda compreender os relatórios de pesquisa que eram
autoexplicativos e menos técnicos. Isso não mais ocorre na ciência normal.
Os manuais têm um papel funcional na atividade científica, segundo
Kuhn. Eles são instrumentos extremamente eficazes para introduzir novos
pesquisadores na tradição normal de uma certa especialidade, ou seja, para
transmitir o paradigma aceito.
Em contrapartida, essa eficácia tem por efeito ocultar a historicidade do
conhecimento científico. Como os manuais têm como única função introduzir
o futuro profissional em uma particular tradição de ciência normal, eles são
reescritos após cada revolução científica e expõem o último paradigma aceito
unanimemente pelo grupo. Os manuais dão, em consequência, a impressão
de que o passado deságua diretamente no presente e ocultam, desse modo,
a existência de descontinuidades e crises na história da ciência.
Os manuais induzem também a outras crenças. Os futuros cientistas
têm, por exemplo, a impressão de que as aplicações do paradigma que
estão aí expostas constituem provas da sua validade. Na realidade, afirma
Kuhn, tais aplicações não têm a função de justificar o paradigma, mas sim
de apresentá-lo, pois, como veremos, o paradigma é constituído por tais
aplicações. Os manuais visam a iniciar o estudante no domínio do para-
digma. Isso é visível no fato de que os manuais não apresentam jamais as
interpretações alternativas, nem tampouco problemas que o grupo ainda
não tenha conseguido resolver.

3. Algumas críticas a Kuhn


Vou concentrar-me, no que se segue, às críticas de Popper ao quadro
que nos apresenta Kuhn do desenvolvimento das ciências, não somente
porque isso explicita as diferentes concepções que possuem da metodologia
científica, mas também, de forma mais ampla, a respeito da tarefa mesma
da filosofia da ciência.
Popper, como vimos, propõe um ideal de ciência em que conjecturas
audaciosas são seguidas por refutações dramáticas. Para Popper, o cientista
deve sempre estar disposto a abandonar suas convicções ou a modificá-las
no confronto teoria/experiência, seguindo regras metodológicas estritas.

203
Com seus estudos de caso históricos, Kuhn tenta mostrar, ao contrário,
que os cientistas dificilmente estão dispostos a abandonar um paradigma:
a atividade científica normal possui um caráter conservador. A mínima
modificação num paradigma enfrenta, normalmente, grandes resistências.
Kuhn chega a argumentar que tal resistência é funcional, na medida em que
possibilita o progresso característico da ciência normal e cria as condições
para que o paradigma aceito seja colocado em questão, enfraquecendo a
crença em sua validade. Sem dúvida é uma das aporias kuhnianas a tese de
que um apego ao dogma é condição para que uma crítica radical ao para-
digma possa surgir no período de ciência extraordinária! 8
Popper reconheceu, em seu debate com Kuhn, que a ciência normal
kuhniana capta aspectos realmente presentes na atividade científica contem-
porânea. Mas ele não aceita que o cientista proceda da maneira descrita por
Kuhn, defendendo que ele deve proceder segundo as regras metodológicas
do falseacionismo.
A filosofia da ciência é normativa para Popper. A ciência normal é, nesse
sentido, uma prática condenável na perspectiva dos critérios metodológicos
que defende e, a rigor, não-científica. Kuhn, ao contrário, não faz filosofia da
ciência nesse sentido, já que considera que essa área deve adequar os seus
padrões ideais de cientificidade à prática científica real, como revelada por
investigações empíricas, tanto históricas quanto sociológicas e psicológicas.
Nesse sentido, o chamado ‘debate Popper-Kuhn’ revelou a impossibi-
lidade de um verdadeiro diálogo. Suas divergências remetem, em última
instância, ao estatuto mesmo da filosofia da ciência e a respeito das rela-
ções dessa área com as chamadas ‘ciências da ciência’. As metodologias dos
filósofos devem ou não ter compromisso com a prática científica real? Em
caso afirmativo, como pode a filosofia da ciência continuar reivindicando
um estatuto normativo frente à ciência?
Kuhn, na sua polêmica com Popper, afirma que no período helenís-
tico – em contraste com o período clássico da filosofia e da ciência gregas,
no qual é quase impossível uma delimitação entre essas práticas –, várias

8. Kuhn usa o termo ‘dogma’ no título de um dos seus artigos (Kuhn, 1963) para enfatizar
a atitude que os cientistas têm frente ao paradigma durante a ciência normal.

204
áreas aproximaram-se, talvez pela primeira vez na história, da normalidade
científica, pois nelas cessou o confronto entre escolas e o debate crítico:
Já no período helenístico, a matemática, a astronomia, a estática e as
partes geométricas da óptica haviam abandonado este modo de discurso
em favor da solução de quebra-cabeças. (Kuhn, 1977b:273)

Essa reconstrução histórica ilustra o uso que faz Kuhn da historiografia


da ciência. Ele foi, de fato, responsável pelo papel central que a história da
ciência passou a desempenhar nos debates filosóficos contemporâneos,
após o interregno anti-historicista marcado pela hegemonia do empirismo
lógico. Os efeitos desse historicismo se fizeram sentir em muitas correntes
da filosofia da ciência.9 Lakatos, por exemplo, embora tenha sido um po-
pperiano, foi muito influenciado por esse aspecto da abordagem kuhniana
do fenômeno científico.
A Metodologia de Programas de Pesquisa Científica de Lakatos pode,
efetivamente, ser vista como uma tentativa engenhosa de salvar a abordagem
popperiana em filosofia da ciência, após os ataques de Kuhn. O objetivo de
Lakatos foi o de salvaguardar o caráter normativo da filosofia da ciência
e, ao mesmo tempo, acatar aspectos da crítica kuhniana, reconhecendo a
história da ciência como uma instância legítima (embora não última) de
teste das teorias da racionalidade (metodologias) propostas pelos filósofos.
Vimos que Lakatos empreendeu uma crítica histórica ao falseacionismo
popperiano. Esta crítica foi a de que a metodologia de Popper não explica
a continuidade das séries de teorias científicas, como revelada pela história
da ciência (as similaridades com a ciência normal kuhniana não são for-
tuitas). Os programas de pesquisa científica de Lakatos são, nesse sentido,
sucedâneos dos paradigmas de Kuhn, tornados palatáveis à sensibilidade
dos racionalistas críticos.
Apesar de todas as concessões que faz a Kuhn, Lakatos mantém-se um
popperiano ao defender a separação estrita entre contexto de descoberta
e contexto de justificação. Lakatos mantém-se um intransigente defensor
da tese de que a ciência deve ser uma atividade racional, claramente de-

9. Ver a esse respeito a nota 27 do capítulo 10.

205
marcável das chamadas pseudo-ciências. Ele reconhece, contudo, que não
há racionalidade instantânea: a atividade científica possui um dinamismo
que só pode ser avaliado em longo prazo e retrospectivamente.10 Lakatos
defendeu, além disso, que a filosofia da ciência encontra-se a reboque dos
padrões de racionalidade utilizados intuitivamente pelos cientistas. Nesse
sentido, o filósofo da ciência deve aceitar que o seu papel é mais modesto –
o de explicitar e sistematizar essas intuições – sem nunca perder de vista a
prática científica real e os padrões de racionalidade adotados implicitamente,
intuitivamente, pelo cientista. Usando a distinção que propus no primeiro
capítulo, a metodologia científica – entendida como teoria (filosófica) do
método – não pode perder de vista o seu objeto: os métodos efetivamente
empregados pelos cientistas, bem como os fins que estes perseguem em
sua prática efetiva.

4. Paradigmas
Desde Kuhn o termo ‘paradigma’ vulgarizou-se, e vem sendo empre-
gado com os mais diversos sentidos, com os mais diversos objetivos, em
contextos estranhos àquele em que foi originalmente concebido. Kuhn é,
em grande medida, responsável por esta situação: ele próprio empregou
o termo ‘paradigma’ com diversos sentidos em seu livro mais conhecido.
Contudo, podemos tentar – utilizando as respostas e re-orientações
do próprio Kuhn frente às críticas e interpretações, a seu ver equivocadas,
de Estrutura – precisar melhor suas intenções e objetivos ao forjar o termo
‘paradigma’ para analisar a atividade científica.
No posfácio à Estrutura, Kuhn redefine a noção de paradigma em
termos do que ele passou a chamar de ‘matriz disciplinar’. As componen-
tes de tal matriz seriam: (a) generalizações simbólicas (expressões de leis
científicas); (b) elementos metafísicos (modelos ou analogias preferidas);
(c) valores; (d) exemplares.

10. Esse excessivo liberalismo de Lakatos na aplicação das normas metodológicas que propôs
foi argutamente explorado por Feyerabend, que pregou um “anarquismo epistemológico” em
que “tudo vale” (Feyerabend, 1985), ou seja, que não devem haver restrições metodológicas
de espécie alguma na atividade científica.

206
Kuhn coloca agora toda a ênfase nos exemplares. Ele afirma que esta
era a ideia que tinha em mente quando empregou, originalmente, o termo
‘paradigma’ para descrever a ciência normal. Essa discussão é absolutamente
essencial para se compreender corretamente Kuhn e se avaliar a radicalidade
e novidade da sua proposta, inclusive no plano metodológico, que é o meu
foco neste livro.
Por ‘exemplares’ Kuhn entende um conjunto de problemas e de solu-
ções-padrão que materializam o consenso da comunidade científica, guiando
sua prática num período de ciência normal, e que são transmitidos pelos
manuais durante a formação dos cientistas. Espera-se que, por modela-
gem, o cientista, em seu trabalho científico normal, consiga resolver novos
problemas, pautando-se pelas soluções já estudadas anteriormente para
problemas similares.
Segundo Kuhn, a ideia de exemplar lhe foi sugerida por evidências
relativas à formação científica. Os estudantes são introduzidos num novo
campo por exposição a exemplos compartilhados (exemplares) de problemas
e soluções. O estudante aprende a servir-se de toda a bagagem conceitual de
uma tradição científica pelo estudo desses exemplares ou, melhor dizendo,
pelo seu uso na resolução de problemas. A aprendizagem tem sucesso se
os estudantes são capazes de resolver novos problemas, similares a esses
problemas exemplares.
São exemplares nos manuais de física as aplicações das leis de Newton
a sistemas mecânicos simples, como um corpo em queda livre, uma bola
rolando num plano inclinado, um peso oscilando numa mola ou um pên-
dulo simples. São exemplares nos manuais de biologia modelos de relações
ecológicas simples envolvendo um predador, uma presa e vários tipos de
recursos. São exemplares nos manuais de química os problemas resolvidos
de equilíbrio de reações envolvendo substâncias simples.
Espera-se que o estudante (e, mais tarde, os profissionais) sejam capa-
zes de decompor problemas mais complexos em termos desses problemas
simples e/ou de adaptar novos tipos de problemas a tais problemas já resol-
vidos. Para tanto é preciso uma percepção das similaridades – que podem
situar-se num nível muito abstrato, sobretudo no caso dos quebra-cabeças

207
da ciência normal – entre problemas ainda não resolvidos e problemas já
resolvidos e que fazem parte do acervo comum da comunidade científica
da área em questão.
Kuhn também alude às evidências colhidas pelo historiador da ciência,
que raramente encontra consenso na comunidade em torno de regras, mas
sim em torno de problemas e soluções. Na atividade normal do cientista,
e não somente em sua formação, a resolução de quebra-cabeças é também
guiada por relações de similaridade ou analogia: trata-se de estender sua
perícia adquirida na resolução de problemas-padrão, a novos problemas
julgados análogos (para tanto, esses novos problemas têm, frequentemente,
que ser adaptados, reformulados em termos dos problemas conhecidos).
A ciência normal não é, portanto, uma atividade na qual uma teoria é apli-
cada, ou um problema é resolvido, seguindo-se “regras” (Kuhn, 1970a:46).
Muito menos uma atividade na qual uma teoria é testada ao ser confrontada
com a experiência.
Um paradigma não é, portanto, primariamente, uma teoria.11 Inserir-se
numa tradição de pesquisa não significa aprender e usar uma teoria, adotar
regras metodológicas e valores explícitos, mas sim compartilhar um conjunto
de exemplares numa atividade coletiva.
As implicações desta noção de paradigma, enquanto referência norte-
adora da formação científica e da prática científica normal, são de grande
vulto e surpreendentes.
Kuhn oferece, em primeiro lugar, análises interessantes da formação
do cientista e do papel desempenhado pelos manuais no processo de apren-
dizagem. O caráter em grande parte tácito do paradigma decorre do modo
como ele é internalizado pelos futuros membros da comunidade científica.
Kuhn enfatiza, por exemplo, que um paradigma não se aprende por meios
exclusivamente verbais (Kuhn, 1972:226), mas numa prática envolvendo
o contato com os fenômenos naturais. Desse modo, os exemplares (ou o
paradigma) tornam-se o meio através do qual os membros da comunidade
científica aprendem a ver o mundo.

11. Sobretudo se entendermos a teoria como um objeto linguístico, uma estrutura sentencial
interpretada, como na reconstrução proposta pelos empiristas lógicos da estrutura das
teorias científicas.

208
Os exemplares não são relevantes somente para a formação dos cientis-
tas, mas também guiam a sua prática normal quando se tornam membros
efetivos da comunidade de especialistas.
Também essa noção de paradigma enquanto conjunto de exemplares
é central para compreender o caráter da ciência extraordinária e o que
se passa nas revoluções científicas no modelo kuhniano. O fato de que o
conhecimento necessário para desenvolver a atividade científica normal
é em grande medida tácito faz com que as divergências entre partidários
de paradigmas distintos sejam anteriores à expressão linguística destas: a
incomensurabilidade remete a um nível, digamos, pré-linguístico.
A noção de similaridade, ou de analogia, é central para compreendermos
a noção de paradigma em Kuhn, a maneira como se dá a iniciação científica
e como a ciência normal é conduzida.
Infelizmente, Kuhn é muito vago acerca do que conta como uma si-
milaridade entre problemas e/ou soluções e acerca das bases para juízos
de similaridade. No máximo, encontramos algumas sugestões a respeito
de como se articulam as diversas componentes de uma matriz disciplinar
nesses juízos de similaridade.
Kuhn afirma que a similaridade entre exemplares e novos problemas
é, de algum modo, descoberta pelo estudante:
O estudante descobre, com ou sem a assistência do seu instrutor, uma
maneira de ver seu problema como semelhante a um problema que ele já
havia encontrado. Tendo visto essa semelhança e assimilado a analogia
entre dois ou mais problemas distintos, ele pode inter-relacionar sím-
bolos e ligá-los à natureza nos modos que anteriormente mostraram-se
efetivos. (Kuhn, 1970a:189)

Generalizações simbólicas, como a segunda lei de Newton, F=ma, ad-


quirem significado e são aplicadas à natureza através de exemplares. Antes
dessa interpretação, as generalizações simbólicas são puramente esquemá-
ticas, formais, meras sequências de símbolos, podendo ser manipuladas
sintaticamente, através da lógica ou da matemática.
Antes de manipular lógica ou matematicamente tais esquemas de lei,
diz Kuhn, antes mesmo de ter evidência empírica diretamente relevante,

209
o cientista normalmente já sabe a que sistemas particulares aplica-se esse
formalismo (eu mencionei, acima, alguns exemplares comuns aos manuais
de física).
A questão central para Kuhn é, portanto, a de “como cientistas vinculam
formas simbólicas à natureza” (Kuhn, 1977c:301).12 E remata, mais adiante:
(...) uma habilidade adquirida de ver semelhanças entre problemas
aparentemente distintos preenche nas ciências uma parte significativa
do papel usualmente atribuído às regras (...). Uma vez que um novo
problema é visto como análogo a um problema previamente resolvido,
segue-se tanto o formalismo apropriado quanto uma nova maneira de
ligar suas consequências simbólicas à natureza. Tendo visto a seme-
lhança, simplesmente usam-se as vinculações que se mostraram efetivas
antes (Kuhn, 1977c:306).

Portanto, o problema central para Kuhn é o de como se aprende a vin-


cular representações à natureza. E os exemplares desempenham, para ele,
essa função semântica. Tais representações, ressalta Kuhn, não se restringem
às simbólicas, mas incluem “imagens, diagramas e, acima de tudo, exercícios
de demonstração e de laboratório” (Kuhn, 1977a:505).
Permanecem, de toda forma, dúvidas a respeito da noção de similaridade.
Kuhn estava ciente da seguinte objeção: juízos de similaridade pressupõem
critérios de relevância. Sem tais critérios, qualquer coisa é similar (ou não)
a outra com respeito a algum conjunto de propriedades arbitrariamente
escolhidas. Mas Kuhn não admite responder à pergunta similaridade com
respeito a quê? Uma resposta levaria, segundo ele, a explicitar um conjunto
de regras, exatamente o que não está disposto a conceder.
A “percepção de similaridade” é, segundo Kuhn, “tanto lógica quanto
psicologicamente anterior a quaisquer dos critérios numerosos através dos
quais a mesma identificação de similaridade poderia ter sido feita” (1977c:308).
Kuhn ilustra esse ponto com uma criança aprendendo a distinguir
diferentes tipos de pássaros num zoológico, organizando-os em classes
com base em relações de similaridade com exemplares que lhe são mos-

12. Ou ainda, a questão de como a linguagem teórica adquire significado.

210
trados, isto é, animais representativos (protótipos) dessas diversas classes.
Esse processo de aprendizagem dispensa regras.13 A situação seria análoga,
defende Kuhn, à exposição a exemplares na formação dos cientistas e no
modo como problemas são resolvidos na ciência normal. Kuhn reconhece
que o caso científico é muito mais complexo, mas também aí o conhecimento
seria “assimilado e armazenado em exemplos compartilhados” (1977c:313).
Kuhn frequentemente adota, em sua discussão a respeito do papel
de exemplares, uma perspectiva cognitiva. Ou seja, ele distingue pro-
cessos cognitivos com base em regras daqueles com base em exempla-
res. Ele serve-se, também, de uma terminologia tomada de empréstimo à
inteligência artificial.14
A noção de paradigma foi introduzida, afirma Kuhn, para explicar a
evidência de que a atividade científica, considerada em seus aspectos cog-
nitivos, não é guiada por um conjunto de regras, mas por um conjunto de
“exemplos compartilhados de uma prática que teve sucesso” (Kuhn, 1977c:318).
Na Discussion de 1977 Kuhn não deixa dúvidas quanto à sua posição:
Portanto, quando eu digo similaridade ao invés de regras, eu não estou
querendo dizer similaridade ao invés de algum método determinável
de processamento; eu estou querendo dizer um método de processa-
mento com base em similaridade, ao invés de um com base em critérios
(Kuhn, 1977a:511).

A tese kuhniana de que grande parte do conhecimento científico tem


um caráter tácito foi influenciada por Polanyi. Para esse filósofo, são de pouca
ou nenhuma valia para a prática científica as tentativas de explicitar regras,
ou máximas, correspondendo aos procedimentos ou métodos empregados
– sejam eles regras para a descoberta, ou para a justificação. Com respeito
à descoberta científica, existe um fosso lógico entre uma descoberta e as
bases nas quais se assenta, o que impede a explicitação de regras formais,
tornando quimérica toda tentativa de mecanizá-la (meu termo), ou reduzi-la

13. Kuhn refere-se, nesses contextos, às discussões de Wittgenstein sobre a percepção de uma
semelhança de família como estando na base da atribuição de conceitos (como o de jogo).
14. Para simulações computacionais do raciocínio analógico e suas aplicações à filosofia da
ciência, ver Abrantes (1999b).

211
a uma mera ‘computação’ (termo empregado por Polanyi). Toda tentativa
de aplicação de regras formais enquanto guias para a ciência em construção
revela a ambiguidade de tais regras. Isso decorre, em parte, do embricamento
entre métodos e conhecimento substantivo (Polanyi, 1973:167).

5. A ciência normal é guiada por exemplares e não por regras


Embora Kuhn use a noção de regra em diferentes sentidos, é certo que
ela abrange as regras metodológicas.15 Nesse contexto, a sua tese central é
que a prática científica não é guiada por regras lógicas ou metodológicas
explícitas, mas por um know-how implícito nos exemplares a que o cientista
foi exposto durante a sua formação. A atividade científica normal não é guia-
da e restringida por regras, mas sim por exemplares. O paradigma impõe,
por modelagem, regras implícitas à atividade científica normal, que Kuhn
considera consistir basicamente na resolução de quebra-cabeças.
Estamos muito distantes do gerar e testar popperiano, já que o para-
digma restringe, através dos exemplares que o constituem, o que pode ser
feito e o que é considerado aceitável.
Kuhn ressalta que tais regras encontram-se misturadas de maneira inex-
tricável num período de ciência normal e, comumente, não são explícitas.
O historiador pode, a posteriori, explicitá-las e hierarquizá-las. No período
de ciência extraordinária, essa explicitação passa a constituir um importante
objeto da atividade científica, que incorpora preocupações filosóficas com
a fundamentação do conhecimento científico.
Exemplares possuem tanto uma função heurística quanto outra avaliativa
e axiológica. A noção de paradigma enquanto conjunto de exemplares pro-
blematiza, portanto, a distinção entre contexto de descoberta e de justificação.

15. Há uma grande ambiguidade no uso, por Kuhn, do termo ‘regra’. Ele designa, em alguns
momentos, leis ou teorias. Por vezes, tais regras referem-se a imperativos metafísicos. Em
outros momentos, as regras designam definições explícitas de conceitos empíricos. Em ou-
tros ainda, designa preceitos ou regras metodológicas stricto sensu, imperativos a respeito da
instrumentação a ser utilizada e de como fazê-lo. Em outros momentos, as regras referem-se
a valores cognitivos, como o de simplicidade (Ver, por exemplo, Kuhn, 1972:57-60; Hoynigen-
Huene, 1993:136, 139-40).

212
A heurística da ciência normal é baseada em conteúdo, já que os exem-
plares são problemas resolvidos em determinada área, envolvendo certo
tipo de linguagem, técnicas, etc. No entanto, a resolução de problemas na
ciência normal não é guiada por regras, mas por exemplares e relações
de similaridade.
Se há uma metodologia associada à ciência normal – como descrita
por Kuhn – trata-se de uma alternativa seja a uma metodologia baseada
em regras lógicas, seja a uma metodologia baseada em regras heurísticas
(ver capítulo 7).16

16. A metodologia kuhniana pode ser redescrita em termos do que, atualmente, chama-se
em IA de ‘raciocínio baseado em casos’, em vez de ‘raciocínio baseado em regras’. Nessa
nova abordagem da resolução de problemas, modelos, analogias e metáforas desempenham
um papel central.

213
214
12

Modelos e simulação

Em várias oportunidades mencionei a importância de modelos e ana-


logias para a atividade científica. Vimos no capítulo 11 como Kuhn inclui
os modelos no que denomina ‘matriz disciplinar’, descrevendo a atividade
científica normal como pautada por exemplares, ou seja, por problemas e
soluções-padrão. Novos problemas, considerados similares (ou análogos)
aos exemplares, são resolvidos modelando-se, por assim dizer, novas soluções
a partir de soluções a problemas antigos, adaptando-as aos parâmetros dos
problemas a serem resolvidos.
Mostrei também que em Lakatos os programas de pesquisa científica
desenvolvem-se guiados por uma heurística positiva que, fundamentalmen-
te, sugere os modelos a serem construídos para os fenômenos ou sistemas
sob estudo.
O emprego de modelos (e que chamarei, doravante, de ‘modelagem’)
está associado a um conjunto de métodos amplamente utilizados em ciên-
cia, com diferentes fins. Um deles será objeto de atenção particular neste
capítulo: a simulação.

1. Modelos
O termo ‘modelo’ é ambíguo, sendo usado tanto por cientistas quanto
por filósofos com uma pluralidade de significados. Uma tarefa metodológica
importante é a de categorizar tais modelos, mostrar os contextos em que
são usados e para que fins.

215
Vou distinguir abaixo três tipos de modelos (com alguns subtipos) e
várias relações de modelagem, sem pretender cobrir todos os casos. Veremos
que as fronteiras entre tais tipos nem sempre são muito nítidas.

1.1. Modelos semânticos (tipo 1)


Um modelo, nesse sentido do termo, é uma interpretação de um cálculo,
ou seja, uma estrutura de objetos, propriedades e relações que satisfazem
as sentenças de um cálculo, tornando-as proposições verdadeiras sobre um
mundo particular.
Este é o sentido usual do termo ‘modelo’ em matemática e lógica. Vimos
no capítulo 4 que os empiristas lógicos apropriaram-se dessa noção de
modelo em sua tentativa de fazer uma reconstrução lógica da estrutura das
teorias científicas.
Note-se que a modelagem é aqui vista como uma relação entre um
sistema simbólico (um cálculo) e um universo idealizado de objetos, pro-
priedades e relações. Frequentemente, a modelagem consiste numa relação
entre dois sistemas simbólicos, como mostrarei a seguir.1

1.2. Modelos analógicos (tipo 2)


Teorias familiares, amplamente aceitas e corroboradas são, frequente-
mente, a fonte de modelos analógicos para gerarem outras teorias, aplicáveis
a novos domínios de fenômenos.
Neste segundo sentido, a modelagem é uma relação entre duas repre-
sentações, por exemplo, duas teorias: uma teoria do sistema ou domínio de
fenômenos conhecido e familiar (usualmente chamada de ‘fonte’) e uma
teoria, em construção, de um novo sistema ou domínio de fenômenos (usu-
almente chamada de ‘alvo’). Neste contexto, fala-se do raciocínio analógico

1. Há uma ambiguidade entre os filósofos que participaram do programa do empirismo lógico


a respeito da natureza dos modelos. Por vezes, eles são apresentados como um conjunto de
entidades, ou seja, coisas não-linguísticas ou estruturas, adotando uma abordagem conjun-
tística. Em outros momentos, modelos são considerados objetos linguísticos, ou seja, um
conjunto de proposições. Discuto aprofundadamente, em Abrantes (2004b), as tentativas
feitas pelos empiristas lógicos para incorporar a noção de modelo em sua reconstrução da
estrutura das teorias científicas.

216
como uma heurística para a construção de teorias em novos domínios de
fenômenos a partir de teorias familiares (que serviriam de fonte de modelos
analógicos). As relações são complicadas, envolvendo uma teoria-fonte, um
modelo analógico e uma teoria-alvo.
Trabalhos recentes em ciência cognitiva têm dividido o raciocínio
analógico em vários subprocessos elementares: a seleção de uma fonte, sua
representação (ou re-representação), o mapeamento das representações da
fonte e do alvo e, finalmente, a extensão ou transferência da representação
do domínio fonte para o domínio alvo.2

1.3. Modelos como representações de sistemas reais (tipo 3)


Essas representações podem ser simbólicas (por exemplo, uma equa-
ção matemática), icônicas (por exemplo, um desenho, um mapa, etc. ) ou
materiais. Vou limitar-me a discutir, a seguir, as representações dos dois
primeiros tipos e deixarei as representações materiais para quando discutir
os modelos do tipo 5.
Exemplos de modelos do tipo 3 incluem: o modelo de uma empresa
(e.g., um fluxograma); o modelo de um artefato (e.g., um motor); o modelo
molecular de um gás (adotado pela física estatística); o modelo mecânico
do éter (pressuposto por diversas teorias em óptica e em eletromagnetismo
ao longo do século XIX; ver Abrantes [2016]); o modelo de Bohr para o
átomo; o modelo de uma célula; o modelo do cérebro/mente como sistema
de processamento de informação, etc.
Para ser uma representação de um sistema, o modelo deve guardar
alguma similaridade com o sistema. Quando discuti, no capítulo 11, a des-
crição que Kuhn faz da ciência normal, apontei para as dificuldades com a
noção de similaridade. Um modelo não representa todas as entidades que
compõem um sistema, com todas as suas propriedades e interrelações. Se
esse fosse o caso, o modelo seria uma duplicação do sistema e não cumpriria

2. Para mais detalhes a respeito de uma abordagem cognitivista do raciocínio analógico,


ver Abrantes (1999b). Compare-a com o modo como apresento as inferências analógicas no
capítulo 3. Para o papel que analogias desempenham na dinâmica de teorias, ver Abrantes
(2004b).

217
sua função. O modelo nesse sentido é, portanto, uma representação ideali-
zada na medida em que faz abstração de características do sistema que são
consideradas irrelevantes.
O que condiciona o que é considerado relevante, o que deve ser abstra-
ído, os aspectos sob os quais o modelo e o sistema real são tomados como
similares? Discuto, a seguir, três respostas a essa questão.
a) Uma metafísica ou visão de mundo permite distinguir o que é es-
sencial do que é acidental no sistema investigado.
Metafísicas podem ser sugeridas por teorias científicas ou filosóficas.3
Por exemplo, vários físicos e filósofos a partir do século XVII distinguiram
as qualidades ditas ‘secundárias’ das qualidades ‘primárias’, considerando
somente essas últimas como objetivas ou essenciais aos sistemas físicos.4
Qualquer modelo de um sistema físico deveria incluir, segundo eles, somente
as qualidades primárias (basicamente, as qualidades atribuídas à matéria,
acrescidas do movimento) e fazer abstração das qualidades secundárias
(associadas à nossa experiência fenomênica). Em consonância com essa
metafísica mecanicista, na física moderna as máquinas foram tomadas como
modelos de sistemas físicos.
b) A construção de um modelo é condicionada, além disso, por nossos
objetivos e interesses, ou seja, há uma dimensão pragmática na construção
de modelos.
A esse respeito, destaco dois objetivos da modelagem em ciência: (i)
aplicar teorias; (ii) simular a dinâmica de um sistema.
Em ciência, os modelos visam usualmente aplicar teorias, possibilitando
a explicação, a previsão e o controle dos fenômenos. Veremos que os modelos
também têm um papel fundamental no teste de teorias. Dedicarei toda uma
seção ao papel que modelos desempenham na simulação.
Se o objetivo é, por seu turno, quantificar ou construir uma teoria ma-
temática do sistema, há que se fazer abstração daqueles aspectos do sistema

3. Investiguei as relações entre metafísica e ciência no capítulo 10. A distinção, nesse contexto,
entre teorias científicas ou filosóficas nem sempre é nítida e definitiva.
4. Para um estudo de caso a respeito dessa ontologia associada à Revolução Científica, ver
Abrantes (2016).

218
que não podem ser traduzidos em termos da ferramenta matemática de que
se dispõe, o que me leva ao ponto seguinte.
c) Limitações analíticas e/ou psicológicas condicionam a escolha
de modelos.
As ferramentas matemáticas escolhidas ou disponíveis podem forçar-
nos a simplificar os nossos modelos mais do que desejaríamos. Imaginem a
dificuldade em se aplicar a mecânica newtoniana a sistemas reais empregando
somente geometria em vez do cálculo diferencial e integral, como Newton
optou por fazer nos Principia! 5
Por sua vez, limitações psicológicas (ligadas aos nossos hábitos mentais,
como a exigência de inteligibilidade ou de compreensão) podem levar-nos a
só conceber ou admitir modelos que sejam análogos a sistemas que nos são
familiares. W. Thomson é conhecido por ter afirmado que só compreendia
uma teoria se ela fosse acompanhada de um modelo mecânico do sistema a
que se aplicava. Por essa razão, ele foi um crítico das versões finais da teoria
eletromagnética de Maxwell, quando este não mais se apoiava em modelos
mecânicos (ver Abrantes [2016]).

1.4. Modelos como estruturas abstratas (tipo 4)


Estruturas abstratas podem ser puramente sintáticas (formais, estru-
turas simbólicas não-interpretadas) ou interpretadas, como as estrutu-
ras matemáticas.
Cálculos são exemplos de estruturas simbólicas não-interpretadas. Neste
caso, contudo, estamos de volta aos modelos semânticos (tipo 1). Defini um
modelo desse tipo como um conjunto de proposições verdadeiras a respeito
de algum conjunto de objetos, propriedades, etc. (um universo), tendo a
mesma estrutura formal, o mesmo cálculo, da teoria modelada. Braithwaite
(1955), por exemplo, um filósofo ainda comprometido com o empirismo
lógico, considera que o modelo e a teoria são interpretações diferentes do
mesmo cálculo (ver o capítulo 4).

5. Como é sabido, Newton não fez uso, nos Principia, do cálculo de fluxões que inventara.

219
Estruturas matemáticas, por sua vez, não são puramente sintáticas
pois já vêm associadas a uma interpretação (possuem uma semântica, se
assim se preferir). Estruturas matemáticas podem ser consideradas, nesse
sentido, um subtipo de modelo como representação (tipo 3), mesmo que
elas não representem qualquer sistema real, nesse caso. Uma equação
diferencial, por exemplo, pode representar a dinâmica de um sistema real,
mas, para isso, seus símbolos têm que receber interpretações adicionais, em
termos das propriedades desse sistema particular. A equação ainda seria
uma representação muito abstrata do sistema; chamemo-la de um modelo
matemático do sistema.

1.5. Modelos concretos de sistemas reais (tipo 5)


Esse tipo de modelo pode também ser considerado um subtipo do
terceiro tipo de modelo. Eu tenho em mente, aqui, modelos materiais, como
aqueles modelos de avião que encontramos em agências de viagem; ou
ainda as réplicas usadas nos experimentos realizados em túneis de vento,
com a finalidade de testar as propriedades aerodinâmicas de um avião.
É certo que os objetivos são completamente distintos em cada um desses
casos e, consequentemente, as características do sistema real (nesse caso, o
avião) que são consideradas relevantes (tendo em vista os fins perseguidos).
O modelo proposto por Watson e Crick para a molécula de DNA (com que
posaram para a célebre foto feita quando anunciaram a sua descoberta) é
outro exemplo desse tipo de modelo.
Modelos concretos e o sistema real modelado podem ser vistos como
diferentes materializações, ou realizações de uma estrutura matemática (e
aí voltamos aos modelos de tipo 4). Esse tipo de modelo é frequentemente
utilizado para simular o comportamento de um sistema, tópico que inves-
tigarei adiante.
Integrando, então, os subtipos 4 e 5 na caracterização mais geral que
fiz do terceiro tipo de modelo, a modelagem é aqui uma relação entre uma
representação (simbólica, icônica ou material) e um sistema real.

220
2. Teorias e modelos
Antes de discutir as simulações computacionais e o papel que desem-
penham na ciência contemporânea, é conveniente esclarecer os aspectos
nos quais modelos e teorias distinguem-se e relacionam-se, enquanto
representações simbólicas dos seus objetos.6
Ao se construir teorias normalmente objetiva-se mais do que sim-
plesmente descrever e prever o comportamento de sistemas particulares.
Elas podem representar não só sistemas particulares, mas também tipos de
sistemas (Hughes, 1997:S330). Além disso, teorias usualmente tratam não
só de sistemas reais, mas também de sistemas possíveis.
Modelos, entendidos como representações idealizadas de sistemas físicos
particulares, podem ser distinguidos de teorias com base nas considerações
que se seguem:
a) Teorias, se comparadas com modelos, usualmente têm maior abran-
gência e generalidade do que esses últimos; teorias tipicamente revelam que
sistemas que, à primeira vista, parecem diferentes constituem, na verdade,
instâncias de um mesmo tipo de sistema, representado num nível suficien-
temente abstrato.
Um exemplo desse feito teórico foi a unificação que Maxwell promoveu
entre a óptica e o eletromagnetismo, ao mostrar que a mesma teoria pode
abarcar os fenômenos de ambos os domínios. Essa teoria permitiu descrever
as ondas luminosas como instâncias de ondas eletromagnéticas.7

6. No capítulo 4 expus a visão ortodoxa da estrutura das teorias, também conhecida como a
concepção ‘sintática’, articulada pelos empiristas lógicos. A chamada concepção ‘semântica’
foi proposta como uma alternativa à anterior. Os termos ‘sintático’ e ‘semântico’ são usados
de forma ambígua nesse contexto e prestam-se a mal-entendidos. Na concepção dita ‘sintá-
tica’, modelos semânticos (ver acima) desempenham uma função central na interpretação
do cálculo da teoria, que é considerada como um objeto linguístico. Na concepção dita
‘semântica’, uma teoria não é, fundamentalmente, um objeto linguístico e não representa,
diretamente, sistemas reais. A teoria, nesta concepção, define um conjunto de modelos. Se
a teoria for adequada, esses modelos é que representam, de algum modo, sistemas reais.
Sobre esta formulação da concepção semântica, ver Giere (1988:79).
7. Na sua primeira versão, a teoria eletromagnética de Maxwell adotou um modelo mecânico
para o éter, que supunha ser um meio-suporte para a propagação das perturbações eletro-
magnéticas (ver Abrantes [2016]). Este modelo é um exemplo de modelo analógico do tipo 2.

221
b) Espera-se que teorias cumpram uma função explicativa, revelando os
mecanismos hipotéticos, via de regra inobserváveis, que causam ou produ-
zem os fenômenos observados. Não se trata de somente descrever e prever
o comportamento observável do sistema. Pode-se argumentar, contudo, que
este critério admite, implicitamente, uma concepção realista, entre outras
concepções possíveis do valor cognitivo das teorias científicas.8
Idealizações e aproximações são normalmente consideradas pelos fi-
lósofos da ciência como procedimentos inevitáveis em ciência por razões
basicamente pragmáticas: a possibilidade de efetuar cálculos, dados os re-
cursos matemáticos e computacionais disponíveis; ou ainda em função de
fins que nos colocamos como, por exemplo, o de simplicidade das nossas
construções teóricas. Em função de tais idealizações e aproximações, teorias
seriam, na melhor das hipóteses, aproximadamente verdadeiras e, na pior
das hipóteses, intentam somente “salvar os fenômenos” (ou serem empiri-
camente adequadas; ver nota 8).
Filósofos de uma orientação realista, como Ellis (1992) defendem, ao
inverso, que os cientistas fazem idealizações não por razões pragmáticas,
mas para alcançar a finalidade última da ciência, que seria, no seu entender,
a de descobrir as propriedades essenciais de tipos de sistemas e processos. As
ciências físicas, em especial, lidam com tipos naturais, fundados metafisi-
camente. Com esse fim, é necessário abstrair as propriedades essenciais das
acidentais, percebendo sistemas e processos particulares como instâncias
de tipos ideais de sistemas e processos. De uma perspectiva realista, como
vimos, os cientistas buscam não somente descrever sistemas e processos em
suas particularidades, mas sobretudo desenvolver explicações essencialistas

8. No capítulo 2 apresentei a controvérsia entre realistas científicos e não-realistas a respeito


do status cognitivo das teorias. Um célebre exemplo histórico é o programa de salvar os
fenômenos em astronomia, representado pela série de teorias geocêntricas iniciada com
Ptolomeu, e que admitiu desde concepções realistas até instrumentalistas sobre o seu status
cognitivo (para detalhes, ver Abrantes [2016]). Segundo os instrumentalistas, uma teoria
deve ser avaliada somente pela adequação empírica de suas previsões, o que nada garanti-
ria a respeito da sua verdade (mesmo aproximada). Se formularmos tais divergências em
termos ontológicos, para o realista o real não se confunde com o fenomênico, ou com o
comportamental. Para este, uma teoria deve, portanto, incorporar modelos e referir-se aos
mecanismos não-observáveis que são a causa do que nos revelam os sentidos. O empirista
(que adota também uma postura anti-realista) nega essa distinção entre real e fenomênico,
ou suspende o juízo a esse respeito.

222
dos fenômenos observados, buscando seus mecanismos causais subjacentes.
É evidente que tal posição exige compromissos ontológicos, e pode haver
ampla margem de divergência quanto a isso.
c) Os princípios ou leis de teorias fundamentais (e.g., a mecânica clás-
sica, a teoria eletromagnética, a mecânica quântica, etc.) são formulados de
modo muito abstrato, e sua aplicação a sistemas particulares pressupõe que
modelos de tais sistemas sejam incorporados à teoria.
Por exemplo, a equação de Schrödinger – um dos princípios básicos
da mecânica quântica –, para que seja aplicada a um sistema como o átomo
de hidrogênio, é necessário que se elabore um modelo de tal sistema. Do
mesmo modo, as leis de Newton só são aplicáveis a um sistema mecânico
particular, como um pêndulo, se tivermos um modelo desse sistema. Nos
séculos XVIII e XIX foram propostos diversos modelos de corrente elétrica
(como os de um ou de dois fluidos, que podiam ou não se combinar, etc.),
necessários para a aplicação das leis gerais da teoria eletrodinâmica.
Na terminologia de Bunge (1973, 1985), um modelo de um sistema
(como o átomo e o pêndulo nas ilustrações anteriores), quando é incorpo-
rado a uma teoria fundamental, torna-se um modelo teórico. Por exemplo,
um meteorologista parte das equações gerais da hidrodinâmica e da ter-
modinâmica e as aplica na previsão dos fenômenos com base num modelo
teórico da atmosfera.
Um modelo teórico pode tornar-se cada vez mais complexo com o
objetivo de aumentar a adequação e a precisão das previsões da teoria que
o incorpora. Assim, foram propostos diversos modelos de átomo com o
objetivo de diminuir o grau de idealização e de esquematismo dos mode-
los inicialmente propostos. No caso de uma teoria fundamental revelar-se
empiricamente inadequada, isso normalmente é atribuído às idealizações
feitas nos modelos a ela incorporados e não aos princípios da teoria.
d) Há teorias que, contrariamente a teorias fundamentais, aplicam-se
a um domínio restrito de fenômenos e não têm uma pretensão explicativa,
no sentido de que não fazem hipóteses a respeito dos mecanismos não-ob-

223
serváveis que causam os fenômenos observados. Por isso, são chamadas
de teorias ‘fenomenológicas’ e, a rigor, não são distinguíveis de modelos.9
Teorias fenomenológicas são bastante comuns em ciências jovens.
Há vários exemplos de tais teorias em economia, em ecologia e nas ciências
sociais. Exemplos na física seriam a óptica geométrica (em comparação com
as teorias em óptica física) e a termodinâmica (em comparação com a teoria
cinética dos gases). Uma astronomia meramente observacional (como a de
Ptolomeu ou a de Copérnico) é dita ‘fenomenológica’ por não pressupor
uma física que especifique as causas dos movimentos dos astros (ver, nesse
contexto, a nota 8).

3. Simulação
A simulação tornou-se, sobretudo com o advento do computador, um
dos métodos mais importantes da ciência contemporânea. Inicialmente,
distinguirei vários sentidos de simulação, relacionando-os com diversas
noções de teoria, de modelo, etc. Discutirei, em seguida, em que medida o
computador tornou-se um novo ambiente no qual se efetuam experimentos
substituindo, em determinados casos, a experimentação convencional, seja
a realizada em laboratório, seja em ambientes naturais. Tratarei também de
responder a uma outra questão, que deve ser distinguida da anterior: o que a
simulação computacional introduz de novo no relacionamento entre teorias
e evidência empírica (tópico que investiguei sobretudo nos capítulos 2 e 4)?
Adoto, como ponto de partida provisório, a seguinte caracterização do
que seja uma simulação: “Experiência ou ensaio realizado com o auxílio de
modelos” (Holanda, 1975:1313).
Um modelo deve ser similar ao sistema real, mas que tipo de similaridade
é requerida para que o modelo se preste a simulações científicas? Em geral,

9. Teorias são, por vezes, chamadas de modelos, nas seguintes circunstâncias:


a) quando temos teorias muito especulativas, no sentido de pouco corroboradas;
b) quando temos teorias envolvendo um alto grau de abstração e de idealização;
c) quando se trata de teorias quantitativas, em particular no domínio das ciências sociais.
Neste último caso preferi, no texto, usar a terminologia de Bunge: ‘teorias fenomenológicas’.
Todas as teorias têm, em maior ou menor grau, as características apontadas em (a) e (b), o
que torna equívoco o uso do termo ‘modelo’ (todas as teorias seriam modelos, nesse caso,
e seria inútil tentar distingui-los). Quanto ao uso (c), ver o texto. Cf. Brodbeck (1959).

224
privilegiam-se similaridades formais: quando se pode fazer corresponder
as relações envolvendo os componentes do modelo e/ou suas propriedades,
de um lado, e as relações envolvendo os componentes e/ou propriedades do
sistema real, de outro. Não é necessário que o modelo e o sistema compar-
tilhem, por exemplo, propriedades materiais.
Considere-se, mais uma vez, o exemplo de uma réplica material de um
avião, usada como modelo em simulações envolvendo propriedades aero-
dinâmicas. Este modelo é normalmente feito com materiais completamente
diferentes (por exemplo, o plástico) dos empregados num avião real, e tem
propriedades como peso, tamanho, etc., também distintas das propriedades
deste último. O que importa nessas simulações é que determinadas relações,
espaciais no caso, sejam preservadas.
Portanto, um modelo faz, em geral, abstração dos aspectos materiais
do sistema em estudo. Ou seja, a analogia ou similaridade entre o mode-
lo e o sistema representado, requerida por uma simulação, não é do tipo
material.10 Os componentes do modelo podem não possuir algumas (ou
todas) as propriedades materiais dos componentes correspondentes no
sistema modelado.
Réplicas materiais e representações simbólicas podem, ambas, servir
de base para simulações. Mas simulações são normalmente feitas, hoje em
dia, com base em estruturas abstratas, e não com base numa particular
implementação material dessas estruturas. Portanto, modelos do tipo 4 são,
em geral, os mais utilizados em simulações.
Estruturas matemáticas são o tipo mais comum de estrutura abstrata
usada em simulações. Assim, uma equação diferencial pode representar a
dinâmica de um sistema físico desde que seus símbolos sejam interpretados
convenientemente, constituindo-se num modelo matemático de tal sistema.

10. Quando dois sistemas são substancialmente (ou materialmente) análogos, eles com-
partilham várias propriedades. Assim, dois livros são materialmente análogos, por serem
compostos, em geral, dos mesmos materiais; dois seres vivos são análogos por comparti-
lharem determinadas substâncias químicas, etc. Dois sistemas são formalmente análogos
quando há uma correspondência entre partes ou propriedades de ambos, de tal modo que
as relações (entre tais partes ou propriedades) sejam preservadas. Não há necessidade de que
compartilhem, além disso, quaisquer propriedades materiais. Assim, uma esfera armilar
pode ser um modelo do sistema solar, desde que preserve certas proporções envolvendo
distâncias, movimentos relativos entre planetas, etc.

225
Se a dinâmica de dois sistemas é representada por equações que têm
a mesma forma, ou seja, se tais sistemas são estruturalmente similares, um
deles pode ser usado para simular o comportamento do outro.11
Por exemplo, um oscilador elétrico (composto de um capacitor e de
uma bobina) pode ser usado como um modelo de um oscilador mecânico
– como, por exemplo, um corpo pendurado no teto por uma mola. As leis
que governam tais sistemas – respectivamente as leis do eletromagnetismo
e as da mecânica – não são as mesmas. Contudo, o comportamento desses
sistemas é descrito por equações diferenciais que têm a mesma forma:
x d2x /dt2 + kx = 0
L d2I/ dt2 + (1/C) I = 0
onde L é a impedância, C a capacidade e I a corrente.
Outros exemplos seriam simulações elétricas de sistemas acústicos.12
O uso cada vez mais difundido de modelos matemáticos confirma a
tendência formalista da ciência a partir do século XVII. A motivação fun-
damental para adotar uma metafísica mecanicista na física moderna, por
exemplo, foi justamente a de possibilitar a construção de teorias matemáticas
para os fenômenos físicos.

3.1. Simulação e comportamento


Os exemplos anteriores revelam que, usualmente, o que pretendemos
simular é o comportamento de um sistema. O termo ‘comportamento’ refe-
re-se à dinâmica observável do sistema, e não aos mecanismos internos que
causam ou geram essa dinâmica. Um modelo presta-se a uma simulação se
o seu comportamento for análogo ao do sistema simulado.
Portanto, tendo em vista a simulação, um sistema é usualmente modelado
simplesmente como uma caixa preta com entradas e saídas, ignorando-se
os seus mecanismos internos (Bunge, 1973:101).

11. Kroes (1989) ressalta que a simples similaridade nômica de dois sistemas (ou seja, o fato
de obedecerem às mesmas leis) não é suficiente para que um deles possa simular o outro.
É necessário que os sistemas sejam estruturalmente similares.
12. Exemplos históricos do uso de analogias no século XIX incluem a analogia entre a propa-
gação do calor e a eletrostática, proposta por Thomson, e a analogia entre a eletrodinâmica e
o movimento de fluidos em tubos, proposta por Maxwell. Para detalhes, ver Abrantes (2016).

226
Para simularmos o sistema, é preciso encontrar as regras dinâmicas que
permitem, dadas certas entradas, obter as saídas correspondentes, exibidas
pelo comportamento conhecido do sistema. Se entradas correspondentes no
modelo (via transformações com base em regras dinâmicas) geram saídas
correspondentes, então temos uma (boa) simulação do sistema. A simila-
ridade buscada é entre relações envolvendo entradas (inputs) e as saídas
(outputs) do modelo, de um lado, e as correspondentes relações envolvendo
as entradas (inputs) e saídas (outputs) do sistema representado, de outro.
Uma simulação visa, adicionalmente, explorar comportamentos pos-
síveis do sistema, em circunstâncias para as quais não dispomos de evi-
dência empírica.
Um modelo pode ser mais complexo e, além de entradas e saídas,
também especificar parâmetros correspondendo aos estados internos do
sistema. O funcionamento do sistema pode ser, por exemplo, expresso
por uma função matemática cujas variáveis envolvem tais parâmetros in-
ternos, além das entradas e saídas. Bunge refere-se a tais modelos como
“caixas-cinzas”, para distingui-los dos modelos “caixa-preta” (1973:102).
Normalmente, quando fazemos uma simulação do comportamento de
um sistema, usamos modelos do tipo caixa-preta e, menos frequentemente,
do tipo caixa-cinza. Ou seja, em geral não se busca simular toda a dinâmica
do sistema, incluindo sua dinâmica interna. Tampouco se visa explicar13 o
comportamento, o que não é o objetivo de uma simulação, mas de uma
teoria do sistema.

*3.2. Simulação computacional


O que torna os computadores instrumentos especialmente poderosos e
eficientes para a simulação em ciência? Apresento, em seguida, algumas res-
postas (não totalmente excludentes) que podem ser encontradas na literatura.

13. Os filósofos da ciência propuseram diversas concepções do que seja ‘explicar’, como
vimos no capítulo 4. No contexto desta discussão, não estou usando o termo ‘explicar’
no estrito sentido hempeliano (segundo a concepção nomológico-dedutiva de explicação
que, como vimos no capítulo 4, tem forte tonalidade empirista), mas sim no sentido de
que se propõem hipóteses a respeito de mecanismos ou processos não-observáveis que
explicariam o comportamento observável de um sistema (a perspectiva realista é clara
nesse sentido de ‘explicar’).

227
(1) A resposta mais comum vê o computador, fundamentalmente, como
um instrumento de cálculo numérico.
Embora a construção de um modelo matemático para um sistema
envolva diversos graus de idealização, isso não garante que a matemática
seja tratável (e.g., que haja soluções para as equações através de métodos
analíticos). Nesse caso, somos obrigados a usar métodos numéricos na
busca não de soluções exatas, mas aproximadas. Esse é o papel da simulação
computacional segundo Humphreys:
Uma simulação computacional é qualquer método implementado com-
putacionalmente para explorar as propriedades de modelos matemáticos
onde métodos analíticos não estão disponíveis. (Humphreys, 1991:501)

Ele dá o exemplo do problema de se calcular a posição de um corpo


em queda livre com base na lei de Galileu. Em condições idealizadas, esse
problema tem solução. Contudo, se levarmos em consideração a influên-
cia da resistência do ar sobre a velocidade da queda, e a variação da força
gravitacional ao longo da trajetória, o problema não tem solução analítica,
só numérica.
A simulação computacional possibilita diminuir o grau de idealiza-
ção imposto aos modelos pelas limitações das técnicas analíticas e pela
dificuldade em se levar a cabo os longos cálculos numéricos necessários.
O aumento do poder computacional (mais memória, mais velocidade) per-
mite o desenvolvimento de modelos mais realistas dos sistemas em tela. Isso
tem implicações para o teste de teorias que incorporam modelos teóricos,
como mostrarei adiante.
Contudo, essa concepção do papel metodológico dos computadores na
ciência contemporânea é considerada muito restritiva por filósofos, como
Rohrlich (1990), que apontam para a novidade radical introduzida pela si-
mulação computacional. Isso conduz a uma segunda resposta para a questão
acima colocada.
(2) Para que computadores sirvam como instrumentos de cálculo nu-
mérico, é necessário que conheçamos as leis gerais da dinâmica do sistema
a ser simulado, na forma de equações diferenciais. Na maioria dos casos,
contudo, não temos uma teoria fundamental do sistema e não conhecemos

228
suas leis, dado o grau de complexidade do sistema (por exemplo, uma galáxia,
ou uma molécula de DNA). Nesse caso, parte-se de teorias fenomenológicas
ou modelos, numa metodologia que é “parcialmente empírica, parcialmente
teórica, parcialmente heurística” (Humphreys, 1991:502-3).
Para enfatizar o papel de computadores como simuladores nesse sen-
tido, Rohrlich compara o uso de computadores enquanto instrumentos
para resolver numericamente equações diferenciais – a partir de modelos
baseados numa sintaxe matemática –, com simulações computacionais com
base em modelos que utilizam uma nova sintaxe, lógica. Exemplos típicos
desse segundo tipo de simulação são os autômatos celulares (AC).14
Dado um estado inicial e um conjunto de regras simples, a dinâmica
de um AC, embora determinística (já que baseada num algoritmo), pode
gerar estruturas surpreendentes e de grande complexidade. Tais modelos são
muito utilizados na simulação da dinâmica de sistemas complexos, em que
uma situação inicial de ordem pode degenerar em caos, ou, ao contrário,
de uma desordem inicial o sistema mostra-se capaz de se auto-organizar
(Pattee, 1996:388).
O que distingue, portanto, uma simulação baseada numa sintaxe ma-
temática é o fato de ela basear-se nas leis naturais do fenômeno estudado,
expressas geralmente sob a forma de equações diferenciais. No caso de
simulações baseadas numa sintaxe lógica, não se pressupõem as leis natu-
rais dos sistemas simulados (representadas numa teoria desses sistemas).
A dinâmica do sistema é regida pelas regras locais do computador, como é
o caso dos AC. O objetivo, em ambos os casos, é o de obter um comporta-
mento análogo ao do sistema real.15

14. Um AC é uma simulação computacional com as seguintes características: 1. O sistema


é dividido num reticulado (lattice) composto por um conjunto de células, cada uma delas
podendo ser considerada como um pequeno autômato ou computador; 2. Cada célula, em
cada passo/etapa da computação, pode assumir somente um valor, dentre um conjunto finito
de valores; este valor é computado através de uma regra fixa que envolve somente os valores
das células vizinhas da célula em questão. As regras de um AC são, portanto, locais. Nos
modelos baseados em autômatos celulares, o espaço e o tempo são considerados variáveis
discretas; 3. Os valores de todas as células são computados sincronicamente (isto é, para
todas as células numa mesma etapa da computação); 4. A entrada, ou ponto de partida, da
computação consiste num conjunto de valores atribuídos a cada uma das células.
15. Alguns autores comparam as metodologias de programação bottom-up – como a que
adotam os AC – que partem de regras para a interação local de unidades e que simulam a

229
Autômatos celulares foram utilizados, por exemplo, para simular a for-
mação de uma galáxia. Em vez de se partir da lei da gravitação de Newton
e das interações entre bilhões de estrelas – o que é evidentemente intratável
por métodos matemáticos, incluindo os numéricos –, parte-se de um mo-
delo de percolação, que descreve um comportamento que é análogo ao de
diversos fenômenos, como o da água infiltrando-se através do pó de café;
o do fogo espalhando-se numa floresta; o da propagação de uma epidemia,
etc. A galáxia é dividida em setores discretos e o sistema é tratado como um
reticulado de autômatos celulares. Partindo-se de dados observacionais, são
definidos o estado inicial e as regras do AC. A evolução do sistema é, então,
comparada com as estruturas de galáxias conhecidas e, eventualmente, os
parâmetros do modelo têm que ser ajustados.16
(3) Outra resposta a respeito da eficiência de computadores em simu-
lações enfatiza o fato de que estas visam, fundamentalmente, explorar o
comportamento do sistema nas mais variadas condições (reais ou possíveis).
Quando temos uma descrição formal da máquina abstrata que é reali-
zada por uma máquina concreta, o computador pode ser programado para
tornar-se uma outra realização (material, concreta) da mesma máquina abs-
trata, simulando, desse modo, o comportamento daquela máquina concreta:
(...) Computadores devem ser vistos como máquinas de segunda ordem
– dada a especificação formal de uma máquina de primeira ordem, eles
‘tornam-se’ aquela máquina (...) computadores ‘realizam’ máquinas
abstratas” (Langton, 1996:46; ênfase minha).17

emergência e a auto-organização dos sistemas, com metodologias top-down, que partem


do comportamento global do sistema e o subdividem gradualmente em sub-rotinas (ver
Emmeche, 1994:19).
16. Note-se que esse modelo de percolação pode ser considerado um exemplo de modelo tipo
caixa-preta, ou uma teoria fenomenológica desses sistemas (usando a terminologia de Bunge),
já que não se pressupõe um conhecimento dos mecanismos causais subjacentes aos fenômenos
estudados, ou mesmo das leis obedecidas por eles (o que seria objeto de uma teoria fundamental).
A analogia entre diferentes sistemas é estabelecida num nível meramente comportamental.
17. Langton distingue a especificação formal da estrutura lógica de uma máquina, de um
lado, da especificação formal do comportamento da máquina (as transições de estado pelas
quais ela passa), de outro: “Em geral, nós não podemos derivar comportamentos a partir da
estrutura, nem derivar a estrutura a partir dos comportamentos” (1996, p.47).

230
Nessas três caracterizações, mas sobretudo nas duas últimas, a simulação
computacional revela uma tendência “neo-mecanicista” na ciência moderna:
o que passa a ser relevante é a especificação formal, e não mais material,
dos sistemas (ver Langton, 1996:44). Não se trata mais do mecanicismo do
século XVII, em que máquinas constituem um determinado agenciamento
de componentes materiais, mas sim de máquinas enquanto autômatos, ou
seja, uma estrutura abstrata de controle do comportamento dinâmico, um
algoritmo (Langton, 1996:45).
É sugestiva, também, a tese de que a importância que a simulação ad-
quiriu na investigação científica contemporânea evidencia o predomínio de
uma metafísica platônica que pressupõe que a “forma é mais fundamental
que a substância [ou matéria]” (Pattee, 1996:380).

3.3. O caso da pesquisa em vida artificial


Langton, considerado o pai da vida artificial, vê esta área como obje-
tivando responder à questão: “(...) É possível abstrair a forma lógica de um
organismo de seu substrato (wetware) bioquímico?” (Langton, 1996:55).
Um ambiente artificial, simbólico, como o criado por um computador
adotando uma sintaxe lógica (como a dos autômatos celulares), pode reali-
zar a vida, ou o computador simplesmente possibilita meras simulações de
aspectos da vida? O que está em jogo é saber se o que é essencial à vida pode
ser caracterizado em termos puramente formais, simbólicos.
A resposta a uma questão desse tipo só pode ser dada por uma teoria,
nesse caso, uma teoria da vida, do mesmo modo como, na seção anterior,
a resposta a uma questão análoga depende de uma teoria da cognição (ou,
num nível mais abstrato, de uma filosofia da mente).
Von Neumann foi um pioneiro em simular computacionalmente o com-
portamento de autorreprodução, considerado como uma das características
essenciais dos seres vivos.18 Para tanto, ele usou uma modelagem formal
precursora dos autômatos celulares. Langton, na esteira de von Neumann,
defende que a “vida é uma propriedade de forma, não de matéria, um resul-

18. Na verdade, von Neumann colocou em dúvida se tais simulações capturam, de fato, o
que é essencial à vida.

231
tado da organização da matéria, ao invés de algo que seja inerente à matéria
ela própria” (Langton, 1996:53). Nessa hipótese, a vida seria “(...) um tipo de
comportamento, não um tipo de substância (stuff)...” (1996:53).

3.4. Simulação, experimentação e teste de teorias


Em que sentido uma simulação pode ser considerada como um tipo
de experimento virtual e substituir experimentos reais?
Há casos em que a experimentação usual, ordinária, com sistemas reais
não é praticável, aceitável (por razões éticas, por exemplo) ou não é tecnica-
mente possível. Este é (ou era) o caso em astronomia, por exemplo. Desde
a Antiguidade, esferas armilares (réplicas materiais do sistema solar) foram
usadas não só para representar a disposição relativa do sol e dos planetas,
mas também para explorar o seu movimento relativo, o que pressupõe levar
em conta os vários constrangimentos físicos entre os elementos do sistema.
Em muitos processos evolutivos, experimentos in natura são em geral
inviáveis por necessitarem períodos imensos de tempo. A simulação torna-
se, nesses casos, o único método disponível para “explorar” teorias, no que
Pattee qualifica como um “empirismo artificial” (Pattee, 1996:391).
Uma simulação pode ser vista como uma experimentação pois a dinâ-
mica do sistema (representada por um modelo) é explorada com base nas
mais diversas condições iniciais, tanto as efetivamente observadas, quanto
as que determinam condições não-observadas ou mesmo não-observáveis.
Teorias da cognição humana, quando formuladas de modo a poderem ser
implementadas computacionalmente, podem ser testadas quanto à sua con-
sistência interna e limitações. Ou seja, a implementação de tais teorias num
hardware permite testá-las com respeito a algumas das suas características
(o que pode ser visto como uma simulação).19
A experimentação com base em simulações computacionais pode tam-
bém ser estendida à exploração, não de sistemas reais, existentes na natureza,
mas de sistemas possíveis em “universos artificiais” (Langton, 1996:51). Nesse

19. Há quem defenda que teorias epistemológicas e em filosofia da ciência deveriam ser
formuladas de forma a serem implementáveis computacionalmente e, portanto, testáveis
através de simulações computacionais. Ver Thagard (1998).

232
sentido, as simulações seriam sucedâneas das “experiências de pensamen-
to” tão usadas em argumentos filosóficos (e também por cientistas). Tais
Gedankenexperimente exploram os limites do possível (não se limitando ao
real, ou ao conhecido).20
Um último aspecto a ser considerado concerne o papel das simulações
computacionais em possibilitar submeter as teorias fundamentais a um teste
empírico direto. Vimos que as teorias fundamentais, para serem aplicadas
a sistemas particulares, incorporam modelos altamente idealizados de tais
sistemas, bem como fazem diversas aproximações. Quando há um conflito
entre as previsões teóricas e as observações, comumente não se sabe se isso
deve ser imputado aos princípios fundamentais da teoria ou ao modelo.
Os computadores, dada a sua capacidade de processamento, possibilitam
reduzir o grau de idealização dos modelos, expondo mais ao teste o núcleo
central das teorias.
Os computadores ampliaram, sem dúvida, nossa capacidade de simular,
de experimentar com parâmetros e condições de contorno não praticá-
veis numa experimentação real, de implementar Gedankenexperimente, de
testar teorias.

4. Um exemplo: o uso de modelos matemáticos no estudo da


evolução humana
Os trabalhos de Richerson e Boyd em antropologia biológica ilustram
bem o uso de modelos matemáticos e simulações na atividade científica,
numa área que está situada na interface das ciências naturais com as sociais.
Eu analisei detidamente, em outro lugar (Abrantes, 2011b), o uso de tais
métodos na explicação que propõem para como teria evoluído, na linhagem
hominínea, a capacidade de aprender por imitação (um tipo entre vários
de aprendizagem social). Eles são cientistas que me interessam de modo
particular por serem bastante conscientes a respeito do uso que fazem de tais

20. Há quem defenda que os computadores possibilitaram que a própria matemática se


tornasse uma ciência experimental, não somente porque permitem visualizar estruturas
dos mais diversos tipos, mas também ao possibilitarem acompanhar e avaliar os efeitos
de modificações nas regras e condições iniciais na dinâmica de tais estruturas (Emmeche,
1994:71, 81).

233
métodos, tendo inclusive escrito artigos (que considero genuinamente filosó-
ficos) especificamente para apresentar as suas concepções em metodologia.
O tema metodológico central na pesquisa desses antropólogos-biólo-
gos é o uso de modelos matemáticos simples para compreender processos
indiscutivelmente complexos – como os envolvidos na evolução humana.
O que se esperaria, ao contrário, é que buscassem construir modelos rea-
listas que espelhassem essa complexidade, mas não é o que praticam nem
o que defendem:
(...) O estudo de fenômenos diversos e complexos como a evolução
orgânica requer teorias complexas, envolvendo múltiplos níveis, mas
(...) tais teorias são mais bem construídas com base em um ferramental
que inclui uma coleção diversa de modelos simples. Porque os modelos
individuais dessa caixa de ferramentas são projetados para proporcionar
compreensão (insight) em somente aspectos selecionados de um todo
mais complexo, eles são necessariamente incompletos. Entretanto, es-
tudantes de fenômenos complexos objetivam uma teoria razoavelmente
complexa pelo estudo de muitos modelos simples relacionados. (Boyd
& Richerson, 2005:397; minha ênfase)

Para eles, modelos complexos têm as seguintes desvantagens:


a) Eles são difíceis de ser compreendidos;
b) Eles não são adequados para lidar com processos que, além de com-
plexos, apresentam grande diversidade – como é o caso dos processos evo-
lutivos e, de modo geral, aqueles estudados pelas ciências sociais;
c) É difícil, quando não impraticável, explorar as implicações de modelos
complexos, pois eles empregam um grande número de variáveis e pressupõem
um número ainda maior de relações entre eles. As equações envolvidas nesses
modelos não têm soluções exatas e devemos nos contentar com métodos
numéricos. Mesmo se dispusermos de computadores poderosos, isso pode
demandar muito tempo e ter alto custo;
A favor de modelos simples eles evocam:
i) A ajuda que prestam em “disciplinar as nossas intuições” (Richerson
& Boyd, 2005: 98). Dadas as nossas limitações cognitivas, as intuições fre-
quentemente conduzem ao erro quando lidamos, justamente, com sistemas

234
e processos complexos. Modelos simples impedem que o cientista se perca
nos detalhes de uma complexidade pouco tratável, perdendo de vista o que
é relevante no fenômeno que estuda;
ii) Modelos matemáticos permitem avaliar se as nossas descrições são
sólidas do ponto de vista dedutivo, revelando inconsistências que são co-
muns quando usamos linguagem comum. Eles funcionam, portanto, como
próteses para as nossas mentes;
iii) Richerson e Boyd enfatizam, também, o papel que desempenham
conjuntos de modelos simples, articulados em teorias, em apontar-nos as
propriedades genéricas de processos que envolvem dimensões diversas,
como é o caso da seleção natural.
Eles reconhecem, todavia, que modelos simples têm um poder predi-
tor limitado, já que são idealizados e irrealistas. A construção de modelos
complexos se justifica, portanto, em aplicações práticas, quando a predição
é um objetivo inescapável (este é o caso da meteorologia, por exemplo). Mas
nem sempre esse objetivo é alcançável, seja porque não temos computadores
suficientemente poderosos, seja porque nos faltam dados empíricos para
alimentar os modelos complexos em simulações computacionais. Nesses
casos, pouco lucramos desenvolvendo modelos complexos e sacrificamos
demasiadamente a nossa compreensão dos processos envolvidos.
Richerson e Boyd são claros, de toda forma, ao defenderem uma imagem
de ciência em que o poder preditor não pode ser privilegiado em detrimento
do poder explicativo e da compreensão, que constituem, a seu ver, os obje-
tivos centrais da atividade científica.
Eles defendem que o darwinismo é uma “caixa de ferramentas”, podendo
ser usado em diferentes domínios, incluindo as ciências sociais. Em suas
pesquisas, fazem uso de modelos usados em genética de populações, na
teoria de jogos e na teoria da decisão para explicar fenômenos no domínio
das ciências humanas (nesse caso, processos relacionados à evolução cultural
e seu impacto sobre a evolução biológica e psicológica humanas).
Para a metodologia que pregam, a falha de um modelo – por suas previ-
sões não corresponderem às evidências empíricas disponíveis – é considerado
auspicioso, pois aponta,via de regra, para fatores que se mantinham opacos

235
à intuição.21 O fracasso de vários modelos que construíram para capturar as
variáveis relevantes na evolução da capacidade de imitar em nossos ancestrais
hominíneos revelou um fator cuja relevância não haviam percebido antes:
imitar tem um custo cognitivo, e não somente a aprendizagem individual.22
Por essa sua experiência na construção de sequências de modelos ex-
plorando diferentes cenários evolutivos, eles defendem que
(...) uma maneira de ganhar confiança em modelos simples é construir
vários deles, contendo diferentes caracterizações do problema que nos
interessa e diferentes pressupostos simplificadores. Se os resultados
de um modelo são robustos, os mesmos resultados qualitativos de-
vem ser obtidos para toda uma família de modelos relacionados nos
quais diferem os supostos detalhes irrelevantes (extraneous). (Boyd &
Richerson, 2005:410)

21. Em vários artigos que se tornaram clássicos, Wimsatt (2007) argumenta a favor dessa tese.
22. Para detalhes, ver Abrantes & Almeida (2018) e Abrantes (2011b).

236
13

Metodologia e epistemologias evolucionistas

As relações entre metodologia e epistemologia foram investigadas, ge-


nericamente, no capítulo 2. Abordo agora, de modo particular, as chamadas
‘epistemologias evolutionistas’ e discuto as suas implicações metodológicas.
É preciso, inicialmente, relembrar os elementos básicos da teoria da
evolução biológica, bem como o que motivou a sua construção, antes de
investigar a medida na qual tais elementos podem ser aplicados ao campo da
epistemologia, com base em motivações análogas. Darwin estendeu o âmbito
das explicações naturalistas e mecanicistas – que, gradualmente, tornaram-se
hegemônicas a partir do século XVII naquelas ciências que têm por objeto o
mundo inanimado – de modo a incluir sistemas adaptativos, como os seres
vivos. A teoria da evolução por ele proposta logrou explicar, seguindo tais
parâmetros, as adaptações desses seres ao ambiente em que vivem.
Desde que Darwin tornou pública a sua teoria em 1859, ela sofreu
modificações e acréscimos substanciais que culminaram, no século XX,
com a chamada teoria sintética, ou teoria neodarwinista.1 A despeito dessa
dinâmica teórica, há continuidade entre as diversas versões do darwinismo.
Gostaria, inicialmente, de explicitar esses elementos comuns às várias versões
e adotarei, para tanto, uma elegante e esclarecedora apresentação feita por
Gould (2002) em seu último livro. Segundo ele, o “núcleo central” de qualquer
teoria que se pretenda darwinista compõe-se de uma “mecânica” acrescida
de três “princípios”. A mecânica da seleção natural consiste de três “fatos
inegáveis” e de uma “inferência silogística”. Os fatos são: superprodução de
descendência, variação e herança. A inferência silogística é a seleção natural:

1. Conto em detalhes essa história em Abrantes (2016).

237
(...) organismos gozando de sucesso reprodutivo diferencial serão, em
média, aqueles variantes que são fortuitamente melhor adaptados a
mudanças em ambientes locais e que, consequentemente, passarão seus
traços favorecidos à descendência, por hereditariedade. (Gould, 2002:13)2

Gould complementa esse “mecanismo abstrato” com três “princípios


mais amplos” que dão estofo àquele “esqueleto”: 1) agência (seleção no nível
do organismo, que seria o “locus causal”); 2) eficácia (a seleção como força
positiva, criativa); 3) escopo (modos e mecanismos microevolucionários,
atuando cumulativa e continuamente ao longo de vastos períodos de tempo,
produzem a macroevolução, ou seja, toda a diversidade das formas de vida
e sua dinâmica).3

2. Há várias formulações equivalentes da teoria darwinista e, em particular, do processo


de seleção natural. Mayr (1982:479), por exemplo, propõe uma reconstrução da “lógica”
da teoria como um conjunto de três inferências, baseadas em cinco “fatos”. Em outros
momentos, Mayr (1991:36; 1982:505) enfatiza que “a estrutura conceitual de Darwin”, ou
“paradigma”, não é “monolítico”, mas sim composto de cinco teorias, cada uma tendo uma
história particular. A “teoria da seleção natural” seria a mais revolucionária delas, e a que
mais sofreu resistência, por “(...) explicar projetos (design) na natureza como o resultado
de um processo puramente não-teleológico, materialista (...) que eliminou a necessidade
de qualquer teleologia global” (1982:509).
3. Nesse livro que coroa e sintetiza a sua vasta obra, Gould serve-se do desenho de um
coral fóssil, descoberto por Agostino Scilla no século XVII, para representar o darwinis-
mo, distinguindo os “cortes” no coral que abalariam os seus fundamentos, daqueles que
correspondem a questões controversas para a comunidade contemporânea de biólogos,
gerando ramificações, poderíamos dizer periféricas, nesse coral, ou seja, variantes teóricas
que compartilham o mesmo fundamento. O núcleo do darwinismo (Gould [2002:7] chega a
falar, surpreendentemente, de sua “essência”), seria abalado somente se, além de se rejeitar
a mecânica da seleção natural, se rejeitasse qualquer um dos três princípios que acabei de
apresentar. As controvérsias atuais que geram diferentes versões do darwinismo (todas,
contudo, comprometidas com o mesmo núcleo duro) referem-se ao que Gould chama de
“cortes de revisão” na teoria, em número de três: R1 – Um modelo hierárquico de seleção
atuando simultaneamente em múltiplos níveis e não somente no nível do organismo; R2
– A importância, na evolução, de restrições estruturais, históricas e de desenvolvimento,
colocando em cheque um adaptacionismo, ou funcionalismo, puro; R3 – A ênfase em “modos
macroevolutivos” como o equilíbrio pontuado, por exemplo, ou a extinção em massa (os
modos microevolutivos propostos por Darwin não seriam suficientes para explicar a evo-
lução). Os cortes de revisão geram “(...) uma teoria diferente muito mais rica, que mantém
um núcleo enraizado nos princípios da seleção natural” (Gould, 2002:20). Poderíamos,
indo além de Gould, incluir em R2 as tentativas de se articular processos ontogenéticos e
filogenéticos como propõe a teoria de sistemas em desenvolvimento, relacionada estreita-
mente com a abordagem evo-devo, e que critica o dualismo tradicional entre replicadores e
interagentes. A importância cada vez maior atribuída à construção de nichos pode, também,
ser vista como uma ‘expansão’ – termo usado com frequência por Gould – fundamental

238
O princípio (2) merece ser sublinhado, já que a seleção é frequentemente
vista, de modo equivocado, como uma força meramente negativa, que teria
somente o papel de eliminar aquelas variações que não são adaptativas.
Ao não se admitir a “força criativa” da seleção natural, a origem de projetos
(design) complexos mantém-se um enigma. Outro equívoco, relacionado
ao anterior e também bastante comum, é o de ver a seleção natural como
um processo totalmente baseado no acaso. Na verdade, a seleção natural
combina subprocessos aleatórios (melhor seria dizer ‘cegos’) com subpro-
cessos em nada aleatórios.4
Para esclarecer este último ponto, convém recapitular um aspecto que
distingue a evolução darwinista da evolução lamarckista.5 Naquele tipo de
evolução, a causa da variação adaptativa não é o ambiente, que simplesmente
exerce o papel de selecionar as variações geradas, digamos, autonomamente,
cegamente (ou seja, de modo não informado) pelos sistemas biológicos (ver
figura 1). As variações não são, portanto, instruídas (direcionadas) pelo am-
biente: há desacoplamento entre os processos de seleção e de variação. Em
outras palavras, a geração de variações não está correlacionada com infor-
mações a respeito de possíveis soluções para os problemas adaptativos que
o sistema enfrenta. O darwinismo, ao defender que o processo de variação

da teoria da evolução, colocando em questão um adaptacionismo global (para detalhes,


ver Abrantes [2018]). Além dos “cortes” de revisão, Gould discute outros cortes possíveis,
“subsidiários”, que podem resultar em novas variantes teóricas da teoria neodarwinista.
Enfim, o darwinismo mantém-se um coral vivo! E que teoria, genuinamente científica,
não admite esse tipo de dinâmica? Para mais detalhes a respeito das posições de Gould,
ver Abrantes & El-Hani (2009).
4. Dawkins (1996:80), por exemplo, mostra de modo esclarecedor como esse erro encon-
tra-se na base de muitas críticas infundadas ao poder da seleção natural em explicar os
diversos projetos orgânicos. Vale lembrar, entretanto, que o processo de seleção natural
é, na versão atual da teoria, somente um dos envolvidos na evolução biológica, ao lado da
deriva genética, entre outros. Há controvérsias, inclusive, quanto ao peso relativo que cada
uma dessas causas teria sobre os fenômenos evolutivos. Mas é indiscutível que o processo
de seleção natural possui um papel crucial, ao explicar a origem de projetos complexos sem
um apelo providencialista, e o destaco aqui por ilustrar, de modo cabal, as motivações e
implicações revolucionárias do darwinismo.
5. Não estou aqui preocupado em ser fiel, historicamente, ao modo como Darwin e Lamarck
formularam as suas teorias, mas sim com uma tradução mais abstrata de suas contribuições,
enquanto duas modalidades distintas de se explicar fenômenos evolutivos. A comparação
pretende, sobretudo, tornar mais evidentes as imagens de natureza e de ciência associadas
a tais modalidades explicativas.

239
é cego (blind), rejeita, portanto, a tese de que as variações tendam a ser
favoráveis ao ser vivo individual, no sentido de melhorar sistematicamente
a sua adaptação ao ambiente.
Por contraste, na evolução lamarckista as variações se dão em direções
que garantem a adaptação do organismo ao ambiente. Nesse tipo de evolução,
o organismo adapta-se ao ambiente durante o lapso (relativamente curto) da
sua existência. O organismo transmite, então, as características adquiridas
aos seus descendentes. A causa da variação adaptativa é, de forma direta, o
ambiente. Este instrui (informa) o organismo sobre como melhorar a sua
adaptação. Usando-se (anacronicamente) os conceitos da genética, seria
lamarckista a tese de que modificações no fenótipo (como consequência
de suas interações com o ambiente) causam mudanças no genótipo, sendo
dessa forma transmitidas para a descendência. A informação flui, por assim
dizer, do ambiente para o fenótipo, e deste para o genótipo. É nesse sentido
que se deve entender a tese de que, no lamarckismo, o ambiente instrui o
organismo a respeito das modificações (variações) que são adaptativas. Ainda
outra maneira de dizer isso seria: no lamarckismo, há um acoplamento entre
as variações e as condições ambientais relevantes.
O ambiente desempenha um papel central, afetando a distribuição
estatística dos genes na população relevante. Mas, isso se dá, na evolução
darwinista, pela seleção dos fenótipos, que funcionam como veículos para
certos genótipos. São os fenótipos, e não os genótipos, que interagem causal-
mente com o ambiente externo.6 Os fenótipos são selecionados com base na
sua maior ou menor aptidão, conceito que remete ao potencial de reprodução
dos organismos que possuem tais fenótipos. Quanto mais descendentes ele
deixa, em função dos seus traços fenotípicos, maior é a participação dos
seus genes na geração seguinte.

6. Dawkins propôs o termo “veículo” para designar aquilo que desempenha as funções
do organismo na biologia evolutiva, no contexto do chamado ‘ponto de vista do gene’
(ver Dawkins, 1976; Williams, 1996). Enquanto os veículos de Dawkins são passivos, os
“interagentes” de Hull (2001) são ativos. A terminologia de Hull é mais adequada para
contemplar o que estabelece o primeiro princípio de Gould, exposto acima. Há grande
controvérsia em torno de a seleção poder agir em múltiplos níveis e não só no nível do
fenótipo. Ver Abrantes (2018).

240
Quero também colocar em relevo que, para o darwinismo, não há
adaptação ideal, absoluta, de um organismo. A adaptação é sempre local,
relativa a um ambiente particular. Se houver mudanças nas características
do ambiente, o organismo pode não mais revelar-se adaptado. Tampouco
há progresso na evolução, ou seja, uma linha ascendente. Por outro lado, no
darwinismo a evolução tem um caráter estatístico: temos que falar sempre
de populações e da distribuição de características em uma população, o
que dificulta a comparação com uma concepção lamarckista de evolução
(ver notas 5 e 8). A evolução darwinista se expressa na população, e não no
desenvolvimento de um indivíduo particular.
Resumindo, as distinções entre os dois tipos de evolução (ou, melhor,
entre tipos de explicação para adaptações) podem ser feitas com base:
a) na direção em que flui a informação;
b) no processo de variação (se cego ou não; ou seja, se há ou não aco-
plamento entre variação e pressão seletiva);
c) no papel que desempenha o ambiente em cada tipo de evolução
(instruindo, num caso, e selecionando no outro).
Com isso termino esse confronto das duas principais teorias da evolu-
ção relevantes para os meus objetivos neste capítulo. Um exame detalhado
dessas teorias e de seus fundamentos ilustra uma série de tópicos de filosofia
da ciência, e também coloca novos problemas filosóficos que as teorias no
domínio da física, por exemplo, não colocavam. Mas esse não será o meu
foco aqui.7 O que pretendo explorar é em que medida tais teorias, propostas
no âmbito da biologia, podem sugerir modelos para descrever e explicar
fenômenos em outras ciências, ou mesmo para abordar problemas em filo-
sofia (para o tipo de modelagem envolvida, ver o capítulo 12)! As motivações
para esse empreendimento se assentam numa análise de algumas imagens
de natureza e de ciência que são pressupostas por tais teorias.
Os processos lamarckistas foram, em sua época, uma contribuição
importante para explicar as transformações nas espécies.8 Mas, além de

7. Para um aprofundamento desses tópicos de filosofia da biologia, ver Abrantes (2018).


8. Lamarck manteve, contudo, compromissos providencialistas (sobrenaturalistas). Ele
acreditava que há uma tendência, inata a todos os seres vivos, de ascender na escala de
complexidade e de perfeição. Também teria origem divina a tendência progressiva que

241
comprometerem-se com a ortogênese – ou seja, com a ideia de uma direção
na evolução dos seres vivos –, tais processos não explicam porque as modi-
ficações ocorridas durante o seu desenvolvimento (ontogênese) devam ser
adaptativas. Apelar para uma instrução do ambiente – que indicaria, de algum
modo, como o organismo deve modificar-se para se tornar mais adaptado
– é considerado tão insatisfatório quanto as explicações providencialistas,
levando diversos autores a avaliar que, no contexto do instrucionismo, as
adaptações também constituem milagres.9 Além disso, o lamarckismo não
explica como as modificações, supostamente adaptativas, são transmitidas
à descendência.10
O caráter revolucionário da explicação darwinista para a complexidade
adaptativa pode também ser percebido não somente pelas suas característi-
cas naturalista e mecanicista, mas também pelo modo como evita cometer
petição de princípio, ou seja, cometer a falácia de pressupor (de modo, em
geral, implícito) justamente aquilo que se pretende explicar. Seria cometer
petição de princípio, nesse caso, pressupor um sistema com igual ou maior
complexidade adaptativa que o sistema a ser explicado. Ou ainda, invo-
car algum conhecimento prévio (pré-ciência, previdência ou antevisão)
cuja origem não é elucidada, para explicar as adaptações reveladas pelos
seres vivos.11
A partir dessas distinções fundamentais entre o darwinismo e o lamar-
ckismo em biologia, pode-se articular dois tipos de explicação – conhecidas

acreditava haver na evolução dos seres vivos. Por tais conotações, Darwin preferiu não
usar o termo ‘evolução’ na Origem das Espécies, mas sim a expressão ‘descendência com
modificação’. A noção de evolução, como a utilizamos hoje em dia, tem o seu significado
ligado ao processo darwinista de seleção natural. Seu emprego no contexto lamarckista só
pode, atualmente, ser metafórico, daí o uso que faço de aspas quando falo de ‘evolução’
nesse contexto. Para uma contextualização histórica do uso que faço aqui do termo ‘me-
canicismo’, ver Abrantes (2016).
9. Cziko (1995), por exemplo, faz essa avaliação do instrucionismo.
10. É preciso reconhecer que Darwin também nunca chegou a uma explicação aceitável para
a herança e não teve conhecimento dos trabalhos de Mendel, que só foram redescobertos
no século XX. Não é relevante aqui entrar nesses detalhes históricos.
11. Mostrarei a seguir que esse conhecimento prévio, que permanece não explicado, pode
estar rigidamente impresso na circuitaria do sistema (hardwired); ou então ser instilado
de fora, pelo ambiente. No primeiro caso, temos um exemplo de providencialismo e, no
último, de instrucionismo.

242
como ‘selecionismo’ e ‘instrucionismo’, respectivamente – que são abstratos
por não fazerem referência direta a propriedades ou processos propriamente
biológicos. Essas formulações abstratas podem ser utilizadas como modelos
para explicar fenômenos adaptativos em outras áreas, como a epistemologia,
com as implicações metodológicas que apontarei adiante.
A seguir, caracterizo brevemente tais tipos abstratos de explicação e as
comparo com um terceiro tipo, o providencialismo:
1. O providencialismo, como o próprio termo sugere, corresponde a
uma petição de princípio: ele pretende explicar as adaptações de um sistema
pressupondo um outro sistema com igual ou maior complexidade do que o
que constitui o explanandum. O sistema invocado no explanans não é, ele
próprio, explicado e exerce, nesse sentido, uma ação providencial, operando
um milagre adaptativo.
Um exemplo acabado de providencialismo é a tese de que as espécies
foram criadas por sucessivas intervenções divinas (criação especial), e per-
feitamente adaptadas aos diversos ambientes em que vivem.12
2. O instrucionismo corresponde a um tipo de explicação em que a adap-
tação do sistema é vista como resultante de instrução por parte do ambiente.
O modelo clássico de instrucionismo é a evolução lamarckista, que
apresentei acima.
3. O selecionismo propõe um processo em várias etapas – de variação
cega, seleção e retenção (ou transmissão) de características – para explicar
a complexidade adaptativa.
A explicação proposta por Darwin para a evolução das espécies constitui
a instância modelar de selecionismo.

12. Faço, em Abrantes (2016), uma discussão detalhada das imagens de natureza e de ciência
pressupostas por várias explicações setecentistas para a transformação das espécies. Para
um exame dos aspectos epistemológicos e jurídicos envolvidos no embate contemporâneo
entre o darwinismo e o criacionismo, ver Abrantes & Almeida (2006).

243
1. Explicações providencialistas, instrucionistas e selecionistas
em epistemologia
Admitamos que o conhecimento seja um fenômeno natural e com
características adaptativas – ou seja, que o conhecimento e os processos
cognitivos que o geram desempenham funções no sistema cognitivo. Com
base nos tipos de explicação caracterizados anteriormente, pode-se também
distinguir explicações providencialistas, instrucionistas e selecionistas para as
adaptações propriamente epistemológicas ou cognitivas.
1. O providencialismo em epistemologia tipicamente considera o conheci-
mento como inato e (milagrosamente) adequado aos seus objetos. Simplesmente
postula que o agente (ou sistema cognitivo) tem conhecimento, que tem crenças
verdadeiras e justificadas.
Essa modalidade de providencialismo pode ser exemplificada pela teoria
platônica do conhecimento como reminiscência (anamnesis). A alma é o repo-
sitório de um conhecimento que lhe é inerente, constitutivo, não se colocando a
questão da sua origem, ou não se buscando uma explicação de suas propriedades
adaptativas (e.g., a propriedade de o conhecimento ser adequado aos seus objetos).
De modo geral, associa-se ao providencialismo o infalibilismo e o fun-
dacionalismo em teoria do conhecimento (ver o capítulo 2). Veremos que es-
sas posições são recusadas pelo selecionismo, e problematizadas no âmbito
do instrucionismo.
2. O instrucionismo em epistemologia pode ser exemplificado pelo empi-
rismo de tipo lockeano. Numa teoria do conhecimento como a proposta por
Locke, a mente é tida, originalmente, como uma tabula rasa. O mundo externo
transmite (instrui) o conhecimento através dos sentidos, inscrevendo-o, por
assim dizer, na mente.
Um dos problemas que se coloca para o instrucionismo em epistemo-
logia é o de assumir a confiabilidade dos órgãos dos sentidos e das informa-
ções que eles veiculam (de modo a gerar crenças supostamente verdadeiras).
O instrucionismo não tem recursos para explicar essas propriedades adaptativas,
que se mantêm, assim, tão milagrosas quanto no providencialismo. Admite-se,

244
simplesmente, que a instrução através da experiência do sujeito (ou sistema cog-
nitivo) garante a adaptação, ao mundo, das crenças que ele adquiriu por essa via.
O instrucionismo em epistemologia está associado a uma passividade do
sujeito na aquisição do conhecimento: a mente se limita a registrar os supostos
dados dos sentidos ou, no máximo, a associá-los mecanicamente, induzindo
generalizações a partir dessa experiência.
No caso das teorias científicas, particularmente, o empirismo e o in-
dutivismo são claramente insuficientes para explicar os valores epistêmicos
que atribuímos às teorias (como, por exemplo, a de serem verdadeiras,
adequadas empiricamente, etc.). O famigerado problema da indução, apon-
tado por Hume, pode ser reformulado nos seguintes termos: um processo
instrucionista não assegura a confiabilidade das crenças resultantes. Se
porventura essas crenças mostram-se adaptadas aos seus objetos, trata-se
de algo fortuito, milagroso, já que essa propriedade não pode ser explicada
em moldes instrucionistas.
3. O selecionismo em epistemologia assenta-se em uma crítica às abor-
dagens anteriores (providencialista e instrucionista), seja porque estas não
explicam o que deveria ser explicado, ou porque cometem petição de princípio
nas explicações que propõem para as adaptações consideradas pertinentes
à epistemologia.
É o momento de ser mais específico a respeito de quais são essas adap-
tações. No que diz respeito à epistemologia, elas podem incluir: a adaptação,
a aspectos do ambiente físico, da estrutura e funcionamento dos órgãos en-
volvidos na cognição (e.g., os órgãos perceptuais); a adaptação da atividade
cognitiva e de seus produtos aos problemas com que o sistema se defronta;13
a adaptação dos produtos da atividade propriamente científica (e.g., teorias)
aos valores da comunidade científica, etc.14

13. No caso da cognição de alto nível, as soluções para tais problemas – os produtos da
atividade cognitiva – são, tipicamente, representações do mundo observável. Quando
tais representações têm o caráter de teorias científicas, elas supostamente podem também
referir-se a um mundo não-observável. Em ambos os casos, deve-se explicar a adaptação
dessas representações mentais aos mundos respectivos (seus objetos, processos, etc.).
14. Menciono, nesta passagem, diferentes processos e entidades que são, por hipótese,
adaptadas (ou adaptativas). Reconheço que há um problema conceitual intrincado ao to-
mar-se de empréstimo à biologia o conceito de adaptação e sua aplicação à epistemologia

245
O que as epistemologias selecionistas15 têm em comum é o fato de
que rejeitam explicações providencialistas e instrucionistas das adaptações
pertinentes ao fenômeno do conhecimento. Estas últimas são consideradas
pseudo-explicações. A explicação com base na seleção natural (redescrita de
modo abstrato) seria o único tipo de explicação aceitável16 para adaptações
(incluindo as tratadas pela epistemologia) e para o fenômeno resultante: a
evolução (nesse caso, a evolução da cognição e do conhecimento).
Em particular, é característico do programa selecionista, como vi-
mos, que ele rejeite como explicação aceitável que o conhecimento seja
diretamente causado ou informado pelo ambiente físico ou qualquer ou-
tro tipo de ambiente. Em vez de o conhecimento ser, portanto, instruído
ao sistema cognitivo ‘de fora para dentro’, por assim dizer, em um único
processo, o selecionismo propõe, como alternativa, dois subprocessos de-
sacoplados – os de variação e de seleção – para explicar o conhecimento
(e adaptações correlatas).17
No selecionismo temos, portanto, um processo em, pelo menos, duas
etapas: o agente gera ou emite – de forma autônoma, não instruída de fora

em diferentes níveis. Eu poderia ter acrescentado, por exemplo, a essa lista a adaptação do
comportamento de um sistema cognitivo, mas não o fiz para não ampliar demasiadamen-
te o escopo do conceito de adaptação. Além disso, há vários modos de se conceber qual
seria o ambiente seletivo relevante num contexto particular. Cada alternativa, cada tipo
de adaptação pode, em princípio, requerer um tipo particular de explicação selecionista.
Existem, de fato, várias tentativas de formular epistemologias selecionistas (ver a próxima
nota), tendo em vista a explicação de modalidades particulares de adaptações cognitivas.
15. Doravante usarei, preferencialmente, a expressão ‘epistemologias selecionistas’ em lugar
de ‘epistemologias evolucionistas’ (como vinha fazendo até aqui). A primeira expressão é
mais específica a respeito do que distingue a evolução darwinista de outras concepções
de evolução, como a lamarckista, e sublinha que se trata da aplicação de uma formulação
abstrata do processo darwinista. Muitos autores preferem usar a expressão tradicional,
por isso a mantive no título deste capítulo. Ambas as expressões podem ser vistas como
sinônimas, se tais qualificações são levadas em conta.
16. Como explicitei acima, a explicação darwinista é aceitável por ser, ao mesmo tempo,
naturalista e mecanicista, além de não cometer petição de princípio.
17. A dinâmica cognitiva (modificações nos mecanismos e processos cognitivos) e a dinâmica
do conhecimento (produto desses mecanismos e processos) são ambas evolutivas porque
resultam de processos análogos aos que ocorrem na filogênese em biologia. Para distinguir
essas duas dinâmicas pode-se, como faz Bradie (1986; 1995), caracterizar dois programas em
epistemologia evolucionista: uma epistemologia evolucionista de mecanismos, ou melhor,
dos aparelhos cognitivos, de um lado; e uma epistemologia evolucionista de teorias, de outro.

246
– variações cognitivas e o ambiente as seleciona (confirmando ou rejeitando
cada variação cognitiva, como sendo adequada ou inadequada).
As variações pertinentes à epistemologia podem incluir: variações na
estrutura e no funcionamento dos órgãos envolvidos na cognição, percep-
ções, processos cognitivos de alto nível e/ou seus produtos (representações,
dentre outros), métodos, etc. Essas alternativas já haviam sido mencionadas
acima, quando distingui as adaptações pertinentes à epistemologia.18
No caso de representações (e.g., teorias), dizer que são adaptadas pode
significar, usando a linguagem tradicional da epistemologia, que são justi-
ficadas, ou alternativamente, que são verdadeiras. Uma das críticas que se
faz ao selecionismo, nesse contexto, é a de que a adaptação não garante a
verdade.19 Além disso, nenhuma adaptação pode ser considerada absoluta
e, consequentemente, todo conhecimento é falível.20
Em oposição ao fundacionalismo, que caracteriza tanto as epistemo-
logias providencialistas quanto as instrucionistas – cada uma, a seu modo,
garantindo um repertório de crenças básicas indubitáveis –, as epistemologias

18. Convém relembrar que as adaptações resultam de várias etapas do processo seletivo,
incluindo o de variação. Esta é dita ‘cega’ justamente porque, ao ser emitida a crença, nada
garante que venha a favorecer a adaptação do sistema.
19. A justificação do conhecimento pode apoiar-se, por exemplo, nas adaptações dos órgãos
cognitivos que o geram (um tipo de confiabilismo). Justificação é uma noção epistêmica,
enquanto que verdade é uma noção semântica (pelo menos no âmbito de uma teoria corres-
pondentista da verdade), como vimos no capítulo 2. Enquanto que a justificação, segundo o
internalismo, é pertinente ao sujeito do conhecimento (já que ele deve ter acesso às razões
que apoiam as suas crenças), a verdade, segundo a teoria correspondentista, depende de uma
relação entre o sujeito e o mundo. A justificação não garante a verdade, mas pode apontar
para ela. O selecionismo respalda, nesse sentido, um modo alternativo, externalista, de
vincular a justificação à verdade. Não caberia desenvolver essas observações envolvendo
o internalismo e o externalismo em teoria da justificação, o que me afastaria demasiada-
mente das pretensões do presente livro. Desenvolvo essa discussão em Abrantes (1998a) e,
sobretudo, em Abrantes & Bensusan (2003).
20. O caráter necessariamente local de toda adaptação parece implicar uma posição não-
-realista, já que a verdade possui um caráter global. Em outras palavras, se há evolução
das nossas crenças, isso não pode ser visto como uma aproximação da verdade. O realismo
epistemológico não deve, contudo, ser confundido com o realismo metafísico. Os selecio-
nistas são, inequivocamente, realistas no último sentido: eles pressupõem que existe uma
realidade, um mundo extra-mental autônomo; mais do que isso, eles defendem que mentes,
na verdade, são produtos de processos naturais ocorridos nesse mundo físico (Wuketits,
1984; 2001). Os selecionistas, portanto, parecem comprometidos, ao mesmo tempo, com
um não-realismo epistemológico e com um realismo metafísico! Ver Stein (1990), Bechtel
(1990), Hull (2001:162), Downes (2000); cf. Papineau (2003).

247
selecionistas são, tipicamente, falibilistas: elas não consideram o conheci-
mento, em qualquer nível, definitivamente assegurado. Isso vale tanto para
o conhecimento, por assim dizer, impresso na circuitaria (hardwired), inato,
quanto para o conhecimento adquirido ao longo da vida do indivíduo, por
aprendizagem. Darwin também aplicou a sua teoria da evolução à evolu-
ção de mentes e fez, nesse sentido, uma primeira tentativa de esboçar uma
epistemologia evolucionista.21
O conhecimento inato,22 incorporado aos órgãos envolvidos na cog-
nição, também é considerado tentativo, falível. Esse conhecimento reflete
a adaptação do organismo a um ambiente particular, local, que, na melhor
das hipóteses, pode ser visto como confirmando esse conhecimento (mas
não o verificando, de forma global e definitiva). Qualquer mudança no
ambiente relevante pode tornar o conhecimento in-adaptado, falseando-o
(por analogia com a morte dos organismos, ou com a extinção da espécie).
Trata-se, na verdade, de mais que uma analogia, já que o selecionismo pres-
supõe, como vimos, que o conhecimento exerce, efetivamente, uma função
nos sistemas cognitivos.
Além disso, não podemos pressupor que grande parte do conhecimento
que possuímos, em especial o científico, seja adaptado ao mundo a que se
reporta, mesmo que estejamos prontos a admitir que nossos órgãos foram
selecionados ao longo da evolução filogenética da espécie e que desem-
penharam, portanto, funções. Neste último caso, trata-se de uma adapta-
ção ao mundo da experiência humana (o chamado ‘mesocosmo’) e, mais
precisamente, a um ambiente primevo em que viveram nossos ancestrais
homínineos. As teorias da física contemporânea, por exemplo, referem-se a
entidades e processos no microcosmo, um mundo completamente estranho
ao que vivemos ordinariamente. Se, em ambos os casos, podemos usar uma
linguagem adaptacionista, certamente são adaptações a mundos ou ambientes

21. Para detalhes sobre como Darwin construiu a sua teoria da evolução e seus pressupostos
filosóficos, ver Abrantes (2016).
22. O termo ‘inato’ está sendo aqui entendido como o que está rigidamente impresso na
circuitaria (tradução que estou propondo para o termo hardwired), ou seja, inalterável num
tempo ontogenético, ou seja, do desenvolvimento do sistema cognitivo individual. Num
tempo filogenético, muito mais lento, esse conhecimento rigidamente impresso pode ser
modificado.

248
diferentes. Além disso, os processos responsáveis por tais adaptações podem
ser considerados idênticos somente num nível suficientemente elevado de
abstração. Cabe a uma epistemologia selecionista responder por essas di-
ferenças, se pretende ser geral e tratar, de forma unificada, esses diferentes
tipos de adaptações cognitivas e os processos correspondentes.
Não pretendo aqui entrar em detalhes a respeito de diversas episte-
mologias selecionistas que vêm sendo propostas,23 mas explorar as suas
implicações metodológicas. Tomo a seguir, como exemplo, a epistemologia
selecionista que Popper articulou e as relações desta com a sua metodologia
falseacionista. Voltarei, então, a tratar das relações entre epistemologia e
metodologia, abordadas no capítulo 2.

2. A epistemologia selecionista de Popper e suas


implicações metodológicas
No livro A Lógica da pesquisa científica há algumas passagens nas quais
Popper sugere uma analogia entre a maneira como teorias são testadas e a
maneira como seres vivos competem e são selecionados de acordo com a
sua aptidão. Essa analogia é motivada pelas críticas de Popper ao induti-
vismo, alicerçadas no pressuposto de que não há uma lógica da descoberta
(ver capítulos 6 e 8).
Nessas passagens, expressões tomadas de empréstimo à teoria darwinis-
ta, como ‘sobreviver’, ‘selecionar’, ‘luta pela sobrevivência’, ‘o mais adaptado’,
‘seleção natural’, etc. são empregadas metaforicamente. Popper não sugere
qualquer identidade entre a natureza de teorias (ou a natureza do conheci-
mento) e a natureza dos seres vivos; tampouco aponta para uma identidade
no nível dos processos específicos pelos quais teorias e seres vivos evoluem.
Ele não pretende resolver quaisquer problemas em epistemologia buscando
similaridades formais com processos evolutivos em biologia. Seu objetivo
não é explicativo: as metáforas evolucionistas são usadas meramente para
ilustrar a sua metodologia falseacionista.
A epistemologia pressuposta por Popper nessa fase pode ser, portanto,
dita ‘evolucionista’ em um sentido ainda metafórico. Para ele, as hipóteses

23, A esse respeito ver Abrantes (2004a; 2007).

249
e teorias científicas não são instruídas ou direcionadas pela experiência;
em seus termos, elas não são geradas por um método indutivo, mas sim de
forma cega, sendo posteriormente selecionadas por um ambiente empírico-
-simbólico,24 por uma base empírica composta por sentenças observacionais.
A situação muda a partir dos anos de 1960: Popper deixa para trás as
inocentes metáforas evolucionistas do seu primeiro livro e aplica, literal-
mente, o selecionismo a processos que ocorrem internamente a um sistema
cognitivo. Uma transferência crucial de conceitos tem agora lugar da epis-
temologia para a biologia: ele re-representa a evolução biológica à luz de
conceitos epistemológicos; a partir daí, tenta abordar de modo unificado
ambos os processos.
Popper deixa, então, de apontar vagas similaridades entre a dinâmica
do conhecimento científico e a evolução das espécies para defender uma
continuidade entre esses processos, comprometendo-se com a tese de que a
evolução dos seres vivos também pode ser vista como um processo de aqui-
sição de conhecimento. Afirma-se, então, uma continuidade fundamental
entre processos biológicos (envolvendo os níveis genético e fenotípico),
psicológicos (processos de aprendizagem, dentre outros) e propriamente
epistemológicos (relativos à produção do conhecimento científico).
Popper espera, nessa fase, ser entendido literalmente quando afirma,
de modo um tanto desconcertante, que o processo de crescimento do co-
nhecimento é o mesmo na ameba e em Einstein:
Com este modo de apresentar a situação pretendo descrever como o
conhecimento realmente cresce. Isso não deve ser entendido metafo-
ricamente, embora faça uso, obviamente, de metáforas. A teoria do
conhecimento que eu desejo propor é, em grande medida, uma teoria
darwinista do crescimento do conhecimento. Da ameba até Einstein, o
crescimento do conhecimento é sempre o mesmo: nós tentamos resol-
ver os nossos problemas e obter, por um processo de eliminação, algo
tendendo à adequação em nossas soluções tentativas. (Popper, 1972:261)

24, Antes de ser estritamente empírico, esse ambiente é simbólico, na medida em que está
na esfera da linguagem (das sentenças observacionais) e não na esfera dos fatos brutos.

250
Não somente nós temos a mesma entidade, o conhecimento, envolvida
na dinâmica biológica e científica, mas também o mesmo método de tentativa
e eliminação do erro controlando o seu crescimento em ambos os contextos.
Popper afirma que as tais tentativas podem ser “novas reações, novas formas,
novos órgãos, novos modos de comportamento, novas hipóteses” (Popper,
1972:242; Hooker, 1995:132).
Popper opõe, sistematicamente, a indução e a aprendizagem a partir
da experiência – em termos do que estou chamando aqui de um processo
instrucionista – à aprendizagem por tentativa e erro (numa perspectiva
selecionista).25 A aprendizagem por tentativa e erro é associada ao modo
como atua a seleção natural darwinista e à metodologia falseacionista.
O anti-indutivismo de Popper é formulado, nos seus últimos trabalhos,
em termos do processo de variação cega: toda conjectura teórica é dita ‘cega’
porque o seu valor epistêmico não pode apoiar-se em um procedimento de
indução a partir de uma base empírica. Uma conjectura teórica só pode ser
avaliada com base nas suas consequências empíricas (deduzidas daquela
conjectura), podendo-se então aferir em que medida “se adaptam ao am-
biente (simbólico)”. Este ambiente pode incluir outras conjecturas teóricas
bem como sentenças de observação. Trata-se, portanto, de um processo de
variação cega seguido de seleção. As nossas teorias (conjecturas que são),
diz Popper, “morrem em nosso lugar” (1972:242, 329).
Além de conceber a evolução como (um tipo de) crescimento do conhe-
cimento, no seu artigo Of clouds and clocks (1965), Popper articula a hipótese
de que os organismos são sistemas hierárquicos, compostos de diversos
subsistemas que implementam, em cada nível hierárquico, os processos
de variação cega e de seleção (ou, nos seus termos, de “controle plástico”)
(Popper, 1972:245).26

25. Popper não se utiliza dos termos ‘instrucionismo’ e ‘selecionismo’ como faço aqui.
Mas ele tem claramente em vista as distinções entre os diferentes tipos de explicação de
adaptações, nesse caso, epistemológicas.
26. Entretanto, sabemos que, dada a sua metafísica de “três mundos”, Popper não pode
chegar a uma descrição realmente unificada das dinâmicas biológica e epistemológica (ver
capítulo 6). Ele sustenta, somente, a existência de um paralelismo entre o que acontece no
“terceiro mundo” (o epistemológico) e o que acontece nos outros dois “mundos” (o físico
e o psicológico). Não existe qualquer teoria abstrata que possa ser igualmente instanciada
nesses mundos.

251
As considerações de Popper ilustram o que parecem ser duas impli-
cações metodológicas de uma epistemologia selecionista: 1) a forma cega
como é gerado o conhecimento novo; 2) o consequencialismo como a única
maneira de justificar esse novo conhecimento. A seguir, discutirei cada uma
dessas implicações e suas interrelações.
O que Dennett (1986; 1995) chama de “criaturas popperianas” é um caso
especial dos sistemas de controles plásticos de que fala Popper. Essas criatu-
ras são capazes de armazenar informação do ambiente (físico e biológico).27
Essa informação é utilizada para pré-selecionar (controlar) as disposições
comportamentais da criatura. A informação funciona, portanto, como um
ambiente seletivo interno (ver figura 3). Por serem capazes de pré-selecio-
nar disposições para o comportamento que se mostrem potencialmente
danosas, as criaturas popperianas exibem um maior grau de adaptabilidade
(ou plasticidade, para usar o termo adotado por Popper) se comparadas às
criaturas “darwinianas” e “skinnerianas”.
As criaturas skinnerianas (ver figura 2), contrariamente às darwinianas,
são capazes de condicionamento, ou seja, de um tipo de aprendizagem que
permite modificar o seu comportamento, de forma adaptativa, durante a
vida da criatura.28
Seguem ilustrações de como funcionam, em termos de processos sele-
tivos, as criaturas darwinianas, skinnerianas e popperianas:29

27. Essa informação pode, em certos tipos de sistemas, ter o caráter de uma representação
do ambiente externo. Este ambiente, por outro lado, pode incluir não só objetos físicos,
mas também outros sistemas cognitivos e seres vivos. Para uma epistemologia selecionista,
constitui um objeto central de investigação saber como evoluíram sistemas capazes de
armazenar informação a respeito do ambiente externo e diferentes modos de codificar essa
informação e de utilizá-la no processamento cognitivo. Explicações para isso terão que ser
propostas também em termos de processos seletivos.
28. As criaturas darwinianas são aquelas que evoluem em consequência do processo seletivo
darwinista, em um ambiente físico. Podemos também falar de ‘aprendizagem’, metafori-
camente, ao longo da escala filogenética. Nesse caso, as criaturas darwinianas também
aprendem (não enquanto criaturas individuais, mas como espécie). Em seguida, na “torre
de gerar e testar” que propõe Dennett (1995), figuram criaturas com a capacidade de plas-
ticidade fenotípica: nem todo processamento que ocorre nelas é rigidamente impresso na
sua circuitaria (hardwired), havendo margem para aprendizagem e, consequentemente,
para mudanças comportamentais ao longo da existência de cada criatura individual. Essas
mudanças comportamentais podem ter implicações evolutivas na medida em que afetem o
sucesso reprodutivo dos sistemas dotados dessa capacidade. Ver nota 31.
29. Tomado de empréstimo a Dennett (1995:374-78).

252
Figura 1: Criaturas Seleção de um fenótipo, que Multiplicação do
darwinianas –diferentes é favorecido fenótipo favorecido
fenótipos rigidamente
impressos (hardwired) em
sua constituição física

Figura 2: Criatura skinne- ...até que uma resposta é Da próxima vez, a


riana tenta, de modo cego, selecionada por reforço primeira escolha
diferentes respostas da criatura será a
resposta reforçada

Figura 3: Criatura popperiana: possui Já da primeira vez a criatura age de ma-


um ambiente seletivo interno que pré- neira previdente (melhor do que faria
seleciona candidatos a ação se se comportasse de modo aleatório).

253
Popper também antecipou o que Dennett chama de “criaturas gregorianas”,
que incorporam instrumentos (construídos por elas próprias) ao seu ambiente
interno, com destaque para a linguagem (ver figura 4).30 Desse modo, as cria-
turas gregorianas passam a ser capazes de manipular as suas representações do
ambiente externo (e.g., fazendo simulações ou encadeando longos raciocínios).
Assim, elas aumentam a sua adaptabilidade, relativamente aos outros tipos de
criaturas anteriormente caracterizados. Provavelmente nós, seres humanos,
sejamos os únicos exemplos, hoje existentes, de criaturas gregorianas.31

Figura 4: Criatura gregoriana assimila instrumentos mentais do ambiente (cultural);


esses instrumentos melhoram tanto os seus geradores quanto os seus testadores.
As figuras 1-4 foram retiradas de Dennett (1996).

30. Ver Popper (1972:329). Sobre a possibilidade de melhorarmos, desse modo, o nosso
desempenho cognitivo e de sermos mais otimistas quanto a se apostar na verdade como
fim, ver Papineau (2003:60). Ver também, acima, a nota 20. Sobre o papel da cultura na
evolução humana, ver Abrantes & Almeida (2018).
31. Há muita controvérsia a respeito da posse de cultura por outros animais e as diversas
modalidades de aprendizagem social envolvidas, o que não é objeto do presente livro (ver
Abrantes, 2006b; 2018). Com as criaturas gregorianas e o advento da linguagem criam-se,
também, as condições para que ocorra uma evolução propriamente cultural, em que tais
criaturas tornam-se veículos de palavras e ideias (memes) que evoluem de forma autônoma
(uma evolução exosomática, isto é, fora do corpo, tese já explícita em Popper; ver, acima,
a citação que faço de trecho do artigo de Popper [1972: 242]). Este é o objeto da memética
e também se relaciona, no caso de uma evolução do conhecimento científico, com o que
Bradie (1986; 1995) chama de uma epistemologia evolucionista de teorias. Leve-se também
em consideração a hipótese de Dawkins de um fenótipo estendido, em que instrumentos e
construções várias podem ser vistas como extensões do fenótipo biológico. Laland (2004)
propôs estender ainda mais esse fenótipo estendido, de modo a incorporar a cultura, as
instituições, etc. relevantes no caso humano.

254
Dennett ordena essas várias criaturas em uma “torre de gerar e testar”
(1996:83), com base no seu poder cognitivo: as criaturas darwinianas estão
abaixo das skinnerianas, e estas das popperianas. As criaturas gregorianas
seriam as mais eficientes, tanto na geração de variações quanto nos processos
internos de pré-seleção.32

3. O conhecimento científico é gerado de forma cega?


No caso da evolução orgânica, dizer que as variações são cegas é, como
vimos, dizer que não são direcionadas, ou instruídas, pelas condições am-
bientais. Não há, como no lamarckismo, informação que flui do ambiente
para o subsistema responsável pelas variações (processos que supostamente
ocorrem no material genético dos organismos). No darwinismo, a variação
e a seleção encontram-se, portanto, desacopladas.
Em epistemologia, o qualificativo ‘cego’ aplicado à geração de variações
conceituais pode, por analogia, ser entendido de diversas maneiras. Uma
delas aponta para a igual probabilidade epistêmica das diversas alternativas
(variações) geradas (sejam elas hipóteses, teorias ou mesmo tentativas de
experimentos). Na geração de novas variações conceituais, o sistema cog-
nitivo – no caso da atividade científica, esse sistema é o próprio cientista
– não antevê ou possui pré-ciência de que tais variações vão constituir boas
soluções para os problemas que se colocam para ele.33

32. Dennett não se compromete com a tese de que tais criaturas, assim descritas, sucedem-
-se, de forma nítida, na história evolutiva. Tampouco ele afirma, categoricamente, que tais
criaturas – além de exemplificarem a atuação de processos seletivos em seu comportamento,
estrutura e/ou funcionamento cognitivo –, teriam, por sua vez, evoluído com base nesses
mesmos processos. Mas ele não exclui esse entendimento, contudo. Alerta-nos, somente,
para a possibilidade de que, provavelmente, há que se considerar diversos processos evo-
lutivos, e não um único, em diferentes linhagens de organismos; também para diferenças
nos ritmos evolutivos, bem como para eventuais superposições entre eles no aumento do
poder dos sistemas cognitivos (Dennett, 1996: 83). Há, de toda forma, uma unidade no
funcionamento dessas várias criaturas, que são apresentadas como subtipos das criaturas
darwinianas (Dennett, 1995). Para uma defesa mais ousada de uma continuidade entre
processos seletivos ocorrendo na filogenia e na ontogenia, ver Hooker (1995). Trato dessa
hipótese da continuidade no final deste capítulo.
33. O conjunto de problemas pode, portanto, ser visto como compondo um ambiente con-
ceitual, simbólico portanto, que seleciona as soluções propostas (estas últimas fazendo o
papel de variações). A comunidade científica como um todo pode, também, ser entendida
como um ambiente social, cumprindo um papel análogo.

255
A objeção mais comprometedora a uma extensão do programa sele-
cionista de modo a abarcar a epistemologia aponta para o contraste entre o
caráter cego da geração de variações, no caso da evolução biológica, e o caráter
intencional e metódico da geração do conhecimento científico, no caso da
epistemologia. A geração de variações conceituais faz-se através do uso de
métodos e heurísticas (que são cristalizações de conhecimento acumulado),
e é motivada pela necessidade de resolver determinados problemas. Além
disso, os cientistas perseguem conscientemente certos valores ou fins. Se o
conjunto de problemas científicos é o análogo dos problemas que se colocam
para os organismos, então haveria acoplamento (e, portanto, instrucionismo)
no primeiro caso. Trata-se, aparentemente, de uma flagrante des-analogia!
Tais críticas ao selecionismo são, em larga medida, feitas com base
no que chamei na Introdução de uma imagem-de-ciência-como-método: a
ciência é caracterizada como uma atividade regulada por métodos. Essas
críticas também incorporam, por vezes, elementos epistemológicos – eles
próprios podendo ser considerados parte de uma imagem de ciência – como
a infalibilidade e a certeza, bem como o fundacionalismo, no que diz respeito
ao conhecimento científico.
Colocando-a em outros termos, a objeção à pertinência de uma epis-
temologia selecionista em ciência resume-se a afirmar que as teorias não
são geradas cegamente, mas sempre se tendo em vista determinados fins e
adotando-se procedimentos heurísticos que limitam as alternativas concei-
tuais e teóricas consideradas plausíveis. É conhecido o argumento de Peirce
de que seria altamente improvável fazer qualquer avanço em ciência se a
geração de hipóteses/teorias fosse feita ao acaso (ver o capítulo 5). O mé-
todo de tentativa e erro seria altamente ineficiente e envolveria um imenso
desperdício de recursos (tempo, energia, etc.).
As epistemologias selecionistas são, portanto, criticadas porque, à pri-
meira vista, entram em conflito com a nossa imagem de ciência como uma
atividade fundamentalmente racional, intencional e metódica. A metodologia
de Popper, por ser compatível com o selecionismo, está, aparentemente,
em conflito com essa imagem. Esta pode, contudo, ser acomodada pelo
selecionismo, como mostrarei em seguida.

256
Os selecionistas não negam que o cientista, ao gerar variações teóricas
e experimentais, tem em vista a solução de determinados problemas, além
de ser guiado por um conhecimento previamente acumulado (cristalizado
em métodos ou heurísticas adotadas intencionalmente). Os selecionistas
enfatizam, simplesmente, que esse conhecimento prévio precisa, ele próprio,
ser explicado com base em processos de variação cega, seleção e retenção
(ou transmissão) de características ocorridos no passado (seja filogenético
ou ontogenético).
Os selecionistas reconhecem, por outro lado, que é comum existirem
restrições à variação conceitual, teórica, no caso da ciência. Ao mesmo
tempo, sublinham que existem restrições análogas na evolução biológica, na
medida em que esta atua sobre pré-adaptações, ou seja, a partir de estruturas
orgânicas pré-existentes. Ao lado disso, há restrições de vários tipos que
canalizam o desenvolvimento de um organismo. O análogo das caracterís-
ticas genéticas, anatômicas, etc., que restringem a geração de variações nos
seres vivos seria, em ciência, o conhecimento (e o metaconhecimento!) já
disponível. Esse conhecimento restringe, de diversos modos, a geração de
novas variações teóricas e experimentais.
Os selecionistas distinguem, de fato, variações aleatórias (haphazard,
random) de variações cegas. Cziko (1995), por exemplo, esclarece que o
emprego do termo ‘cego’, no contexto do selecionismo, não significa que
não haja restrições às variações. Se esse fosse o caso, o termo adequado seria
‘aleatório’, ou seja, todas as variações seriam igualmente prováveis, o que,
todavia, não é o caso. Em ciência, as variações conceituais são geralmente
restringidas pela experiência e pelo conhecimento teórico previamente
adquiridos, não sendo tampouco aleatórias.
Cziko assinala, contudo, que, se não estamos dispostos a “retornar a
explicações providencialistas e instrucionistas”, as restrições à variação, no
caso da ciência, como de resto em biologia, “devem ser vistas como enigmas
adicionais de adaptação” e, portanto, explicadas em termos de processos
seletivos ocorridos no passado (Cziko, 1995, p. 289-90).
Por outro lado, os selecionistas argumentam que, em última análise,
não se pode dispensar um elemento de variação cega na produção de co-
nhecimento quando este é radicalmente novo, ou seja, quando não pode ser
gerado de forma constringida, metódica.
257
Não é demais repetir que o genuíno processo selecionista envolve um
misto de variação cega – eventualmente com restrições impostas por um
conhecimento adquirido previamente – e de um elemento de seleção.34
Ambos os subprocessos são imprescindíveis para termos evolução, seja no
âmbito biológico, seja no epistemológico (além do subprocesso de trans-
missão de características de uma geração para outra). Vimos, de fato, no
início do capítulo, que biólogos como Gould e Dawkins alertam para o
equívoco, bastante comum, de ver a seleção natural como um processo
completamente ao acaso.
Nesse sentido, Cziko defende que:
(...) do mesmo modo que a evolução biológica depende da existência
de variação cega na estrutura e no comportamento dos organismos, a
ciência depende de uma variação cega similar nas hipóteses que são
propostas. Isso não significa que as hipóteses não são restringidas (cons-
trained) pelo conhecimento já obtido (...) Tanto na evolução biológica
quanto na ciência, tais restrições refletem a acumulação passada do
conhecimento por uma prévia variação cega e seleção, que são essen-
ciais para limitar os tipos futuros de variação que aparecem. Mas as
restrições, por si só, não podem responder pela emergência de novas e
melhores adaptações do organismo ao ambiente, e da teoria científica
ao universo. (Cziko, 1995, p. 171)

Quanto ao argumento de Peirce a respeito do caráter perdulário e


ineficiente do método de tentativa e erro, os selecionistas retrucam que
ele é inevitável, uma vez que temos boas razões para rejeitar tanto o provi-
dencialismo quanto o instrucionismo (razões essas que explicitei no início
do capítulo).
Do ponto de vista de uma epistemologia selecionista, métodos cris-
talizam um conhecimento prévio acumulado e, desse modo, funcionam
como restrições, canalizando as variações conceituais, ou seja, a geração de
conjecturas. Mas o selecionismo, mesmo admitindo a óbvia importância

34. A seleção, evidentemente, não se dá ao acaso, permito-me sublinhar: um ambiente que


apresenta um conjunto determinado de propriedades seleciona aqueles sistemas individuais
melhor adaptados a ele!

258
dos métodos, em particular dos métodos científicos, não espera que um
problema seja resolvido de maneira ótima (dados os valores epistêmicos
que prezamos). Nessa perspectiva, portanto, métodos têm o caráter de
heurísticas e não de algoritmos.35
O selecionismo nada tem a retocar nas intuições assentadas de que
podemos, frequentemente, aplicar um conhecimento acumulado, velho,
por assim dizer, na resolução de problemas rotineiros.36 Um elemento cego,
contudo, é o que permite ir além do conhecido, gerar conhecimento novo,
ou seja, novas adaptações.37 Vimos no capítulo 5 que Whewell já defendia
uma posição desse tipo.
Mesmo esse conhecimento velho precisa ser explicado, contudo, e
o selecionista recusa escapatórias providencialistas e instrucionistas.
O conhecimento metodológico, ou seja metacientífico, não foge a essa regra.

4. A metodologia científica é necessariamente consequencialista?


Recapitulando o que vimos no capítulo 2, o gerativismo e o conse-
quencialismo são diferentes concepções a respeito dos procedimentos que
conferem valor epistêmico a produtos da atividade científica. Em outras
palavras, a oposição entre gerativistas e consequencialistas em metodologia
tem como pano de fundo a questão da validação do conhecimento científico.
Mostrarei, a seguir, de que modo essa discussão articula-se com algumas
das teses defendidas pela epistemologia selecionista.

35. Distingui algoritmos e heurísticas no capítulo 7. Aplicando à presente discussão um


comentário que lá fiz, métodos seriam, do ponto de vista selecionista, “suficientemente
eficientes” – dadas as condições locais nas quais se espera que eles se apliquem – e não óti-
mos, em termos absolutos e independentemente de parâmetros particulares estabelecidos
por um conhecimento prévio.
36. A resolução de problemas no período de ciência normal, como caracterizado por Kuhn,
tem, justamente, esse caráter.
37. Campbell, um dos pais das epistemologias selecionistas, juntamente com Popper, sempre
insistiu nesse ponto. Ver também Cziko (1995, capítulo 15). Há processos instrucionistas
que resultam em conhecimento novo relevante para o sistema, como o condicionamento
pavloviano, mas eles são muito limitados em promover a adaptação ou adaptabilidade.
Cziko insiste, além disso, em que o selecionismo não pretende aplicar-se a modificações
que são neutras (quanto à adaptação) ou mal-adaptadas. O selecionismo só é necessário
para explicar uma complexidade adaptativa crescente.

259
Para um consequencialista puro, a determinação do valor epistêmico de
uma teoria (por exemplo) depende, única e exclusivamente, de extrairmos
as suas consequências (as previsões da teoria) e de as confrontarmos com a
experiência – não importando o modo como foi gerada a teoria. O selecio-
nismo parece conduzir a um consequencialismo puro, como o defendido
por Popper: o contexto de descoberta seria irrelevante para o filósofo da
ciência, já que toda variação conceitual que se dá nesse contexto é cega.
A seleção só ocorre no contexto de justificação, quando é possível atribuir
valor epistêmico às teorias construídas, de modo tentativo, na fase da des-
coberta. A filosofia pode, portanto, aspirar a contribuir para a metodologia
somente no contexto de justificação, conclui o argumento.
O gerativista, ao contrário, defende que o modo como uma teoria
é gerada pode conferir-lhe valor epistêmico, independentemente de um
eventual controle empírico (teste) das suas consequências, e anteriormente
a esse controle.
Pode-se, contudo, conciliar o gerativismo em metodologia e uma epis-
temologia selecionista distinguindo os casos em que a pesquisa é dirigida,
constringida (e, portanto, o espaço de soluções reduzido), daqueles em que
só se pode ir às cegas, por tentativa e erro, ou seja, sem o auxílio de qualquer
método ou heurística mais potente. No primeiro caso, uma medida de si-
milaridade de problemas (e de soluções) pode ser útil.38 Quando o domínio
(nível de realidade, conjunto de problemas, de tarefas, etc.) é radicalmente
novo – quando necessitamos de soluções (representações, hipóteses, teorias)
sem qualquer similaridade com as soluções encontradas em domínios co-
nhecidos – então só nos resta ir às cegas. Se trabalhamos, entretanto, com a
perspectiva de que o novo conhecimento seja similar ao já adquirido, então
métodos e heurísticas podem ser relevantes para guiar-nos na atividade de
resolução de problemas. Vimos, no capítulo 11, que os exemplares em Kuhn
cumprem, justamente, esse papel no que ele chama de ‘ciência normal’.
Inicialmente, tentamos gerar hipóteses, modelos, enfim, soluções similares
a soluções que já conhecemos para problemas que supomos ser análogos aos
já resolvidos. Só quando quebra-cabeças que pareciam normais tornam-se

38. Desenvolvo essa ideia em Abrantes (1999a; 1999b).

260
anomalias – ou seja, problemas sem solução à luz dos exemplares aceitos
– e essas anomalias se acumulam demasiadamente, partimos para palpites
radicalmente novos. Neste último caso, temos que prosseguir às cegas e “vale
tudo”, como no bordão repetido por Feyerabend (1985).
Os epistemólogos evolucionistas admitem que a geração de hipóte-
ses (entre as infinitas logicamente possíveis) não é sempre feita de modo
cego, para só depois serem avaliadas, como no método de tentativa e erro.
Normalmente, há uma dimensão racional na geração de ideias (mesmo que
não haja uma lógica da descoberta em sentido estrito), e muitos filósofos da
ciência estão corretos em apostar nisso. Na fórmula feliz de Kantorovich,
“A ciência não é só uma avaliadora de ideias (...) mas uma geradora de ideias
que têm sucesso” (1993:107).
Portanto, o selecionismo não leva necessariamente a um consequen-
cialismo puro em metodologia. Métodos e heurísticas autenticamente ge-
rativas podem estar atuando como análogos das pré-adaptações biológicas,
restringindo o espaço de busca na resolução de problemas e agregando
valor aos resultados dessa busca. Importa quão novo é o conhecimento a
ser produzido, relativamente a um conhecimento de fundo já incorporado.
O selecionismo implica, isso sim, que um conhecimento radicalmente novo
só pode ser gerado de forma cega, já que quaisquer métodos ou heurísticas
sempre pressupõem, em maior ou menor grau, um conhecimento já adquiri-
do, velho, que pode se mostrar inadequado a um novo espaço de problemas.
Uma epistemologia selecionista aponta, portanto, para um misto im-
puro de consequencialismo e de gerativismo. Sublinhei, em capítulos an-
teriores, que são coerentes metodologias que combinam elementos dessas
duas concepções.

*5. Selecionismo e metodologia numa perspectiva naturalista


Investiguei as relações entre epistemologia e metodologia no capítu-
lo 2, apontando para diferentes teses a respeito das eventuais relações de
dependência existentes entre tais áreas da filosofia. Além disso, sugeri no
capítulo 4 que os empiristas lógicos representam a tendência a se privilegiar a
epistemologia (ou teoria do conhecimento) em detrimento da metodologia,
buscando até uma redução desta última àquela.

261
Alguns partidários do selecionismo mais comprometidos com um
programa naturalista – como Hooker (1995), por exemplo – apresentam
argumentos sugestivos apontando para uma dependência inversa, da teoria
do conhecimento com respeito à metodologia, na qual aquela não poderia
ser constituída independentemente desta última. As questões fundamentais
da epistemologia (Como é possível conhecer?; O que podemos ou não podemos
conhecer?, entre outras) seriam, neste caso, convertidas em questões a respeito
do método (respectivamente: Como explorar ao máximo as possibilidades de
tal método?; Qual o potencial do método em conduzir a descobertas e qual o
seu escopo?, dentre outras).39
O método de tentativa e erro estaria na base da hierarquia de métodos
empregados nas várias atividades voltadas para a produção de conhecimento.
O argumento que Hooker apresenta, nesse sentido, pode ser formulado do
seguinte modo: suponhamos um estágio inicial em que um sistema cognitivo
nada conheça a respeito do mundo. Tampouco sabe, nesse estágio, o que é
conhecimento, qual a sua natureza, suas fontes, seu âmbito, se pode ou não
ser alcançado, etc. Nada é dado a priori ao sistema cognitivo. A sua igno-
rância, nesse estágio, seria total: não somente no plano do conhecimento,
mas também no do metaconhecimento. Ele não sabe, por exemplo, se seus
órgãos perceptuais e de processamento cognitivo incorporam informação
fidedigna a respeito do mundo ou do ambiente no qual se encontra. Nessas
condições, só lhe resta fazer conjecturas aleatoriamente, cegamente... e de-
pois selecioná-las com base no sucesso obtido ou não obtido.40 Nesse estado
epistêmico, o sistema cognitivo só pode chutar – permitam-me a gíria –, ou
seja, emitir variações tentativas cegas (sejam ideias ou comportamentos).
Tentativa e erro (variação cega e seleção; conjectura e refutação) seria o único
método utilizável por quem parte do zero em termos de conhecimento.41

39. A formulação dessas questões é inspirada por Hooker (1977:6).


40. As criaturas skinnerianas (ver figura 2) encontram-se numa situação epistêmica análoga.
41. Não estou aqui supondo que algum sistema cognitivo jamais esteve nessa condição
inicial, ou mesmo se pode ser um ponto de partida viável para se obter conhecimento.
É discutível se pode haver progresso a partir de uma condição inicial de total ignorância, e
se o sistema cognitivo pode, algum dia, sair desse estado usando, simplesmente, o método
de tentativa e erro (ver Kitcher, 1998:76-90; 1993).

262
Se rejeitamos o providencialismo e o instrucionismo – pelas razões
anteriormente apresentadas –, o cenário que acabo de descrever, de uma
condição epistêmica de total ignorância, permite atribuir ao método de
tentativa e erro um papel fundamental no empreendimento epistêmico.
Hooker vai além, e sugere que esse método – que inclui no rol dos “métodos
para aliviar a ignorância” – está em conformidade com o próprio processo
evolutivo. Segundo Hooker, esse método é o único compatível com o que
(atualmente) conhecemos a respeito da nossa própria natureza enquanto
espécie biológica, e do modo como evoluímos:
Se alguém conhece antecipadamente a natureza do conhecimento (e.g.
de que ele está baseado em dados sensoriais ou no acesso místico aos
céus Platônicos) então a epistemologia pode ser erigida nesses termos
(usando esse conhecimento!) e o método deduzido como o meio mais
eficiente para maximizar o conhecimento assim entendido. Mas se não
se conhece nada de antemão, nem mesmo o que é conhecer, então a
única coisa que pode importar é o estudo de meios para amenizar a
ignorância. Entre esses, existe somente um método, o de conjectura e
refutação, em um universo que não é dado aos seus organismos de uma
vez por todas. E esse método é natural ao nosso universo, pois temos
cada vez mais razão em acreditar que é somente uma representação, no
nível do uso simbólico-abstrato, de um processo de desenvolvimento
biológico básico que se estende através da gama de organismos vivos,
da ameba à humanidade; esse é o modo fundamental de resolução de
problemas da vida em evolução. (Hooker, 1977:5-6)

O método de tentativa e erro seria, portanto, justificado pelo conhe-


cimento acumulado em biologia evolutiva.42 À medida que adquire conhe-
cimento através desse método, o sistema cognitivo pode construir uma
verdadeira metodologia a posteriori, mais informada e conhecimento-in-
tensiva, que proponha heurísticas à medida que vai descobrindo coisas.
À medida que vai aumentando o conhecimento de primeira-ordem (a respeito
do mundo, a respeito de si próprio como sistema cognitivo, etc.) aumenta,

42. A respeito da justificação de métodos por teorias, ver a teoria reticular de racionalidade
discutida no capítulo 9.

263
concomitantemente, o seu conhecimento de segunda-ordem (propriamente
metodológico e epistemológico: conhecimento acerca do conhecimento).
Mostrei, na seção anterior, que a abordagem selecionista é, de fato, com-
patível com um empilhamento gradual de regras (que funcionam como
“guindastes” epistêmicos, acelerando e melhorando a eficiência da atividade
de aquisição de conhecimento).43
As colocações de Hooker sugerem que a epistemologia depende, em
última instância, do método. Não dispomos, inicialmente, de métodos mais
fortes do que o de tentativa e erro, antes de obtermos resultados (conhe-
cimento) com o uso deste método fraco. Os métodos mais fortes são jus-
tificados, ou sugeridos, por sua vez, por esses mesmos resultados, ou seja,
pelo conhecimento substantivo – a respeito do mundo e a respeito de nós
próprios. Essa fundamentação da metodologia no conhecimento substan-
tivo não é surpreendente, nem viciosamente circular, para um naturalista
como Hooker:
(...) A epistemologia é definida em termos do método, mas não se
reduz a ele (...) Até que saibamos bastante acerca de nossos sistemas
perceptuais, do funcionamento do cérebro, de linguagens, de interações
sociais e assim por diante, não podemos dizer muita coisa a respeito
da natureza, escopo e das condições do conhecer humano. Todas essas
coisas estão fora do método; elas pertencem, em primeiro lugar, à ci-
ência propriamente dita e, então, a uma epistemologia completamente
desenvolvida, [entendida] como uma teoria do conhecer para criaturas
como nós. (Hooker, 1977:6)

Apresentei, no capítulo 9, outros argumentos a favor de uma interde-


pendência de metodologia e conhecimento substantivo. Posições natura-
listas, como as de Laudan e de Rosenberg, apontam também nessa direção.
Sublinhei, contudo, que Laudan não concede qualquer privilégio a uma
dessas áreas.

43. Apoio-me aqui numa sugestão de Dennett (1995), que distingue cranes (guindas-
tes) de skyhooks (ganchos pendurados no céu), estes últimos derivados de uma postura
providencialista.

264
No que diz respeito à ciência, especificamente, Hooker propõe que ela
seja vista como um sistema regulativo dinâmico, no qual dados, teorias,
métodos, normas, princípios metafísicos, etc. constituem diferentes níveis
de regulação, de controle, interagindo e restringindo-se mutuamente.44
Temos um quadro holístico no qual teorias regulam dados, métodos, práticas
tecnológicas, normas, etc. Mas estes últimos níveis, por sua vez, regulam
teorias, além de regularem-se mutuamente.
Por exemplo, dados regulam teorias, confirmando-as ou falseando-as,
através da aplicação de determinados métodos. Tais dados são, por sua vez,
gerados por outros métodos (utilizados na observação, em experimentos,
etc.) que, portanto, regulam aqueles. Dados frequentemente são coletados
porque teorias anteriormente os previram; e aceitamos ou não determinados
dados, os consideramos relevantes ou não, com base em teorias que, nesse
sentido, também os regulam. Vimos acima que os métodos, sobretudo os
mais fortes, dependem de conhecimento substantivo, de teorias portanto,
que nesse sentido regulam aqueles métodos.
Esse sistema regulativo lembra, em muitos aspectos, a teoria reticular
de racionalidade proposta por Laudan. Entretanto, Hooker inclui níveis
sociais e institucionais de regulação no sistema da ciência, além dos níveis
contemplados por Laudan (Cf. Hull, 1988). As instituições científicas também
controlam a decisão dos cientistas, e não somente os níveis propriamente
cognitivos (ou seja, do método, dos valores, etc.). Assinalei, na Introdução
a este livro, que a atividade científica envolve dimensões que não são cog-
nitivas stricto sensu, mas que desempenham um papel crucial na dinâmica
dessa atividade. Os produtos da atividade científica (dados, teorias, métodos,
etc.) são condicionados, segundo Hooker, por todos esses vários níveis de
controle, que compõem um vasto sistema complexo.

44. Hooker generaliza e amplia a ideia popperiana de sistemas hierárquicos com vários
níveis de controle plástico, a que me referi anteriormente (ideia também defendida por
Campbell). As criaturas popperianas são um exemplo desse tipo de sistema. Ver a ciência
como uma estrutura regulativa é aplicar a ideia sistêmica a níveis de controle, digamos,
exosomáticos, não restringindo a abordagem sistêmica a agentes cognitivos individuais
(como um cientista, por exemplo), mas transcendendo-os. Isso permite ver a ciência, em
todas as suas dimensões, como também evoluindo de modo relativamente autônomo. Note-
se que, na sua abordagem, Hooker espera que haja uma dinâmica no nível metodológico
de controle, o que Popper não admitia, como sublinhei no capítulo 6.

265
Além de incluir outros níveis de controle, de regulação, Hooker adota
uma perspectiva evolutiva que orienta o modo como concebe as interações
entre os níveis e a dinâmica do sistema regulativo como um todo. Podemos
considerar os diversos níveis de controle do sistema como ambientes, que
selecionam as saídas (propostas tentativas) dos níveis inferiores. O cientista,
por exemplo, é um ambiente (que pré-seleciona hipóteses, teorias, etc. an-
tes de torná-las públicas). O grupo em que trabalha o cientista é um outro
ambiente seletivo. Em seguida, temos as diversas instituições científicas e os
ambientes social e físico (incluindo a tecnologia).45 Deveríamos, também,
incluir nesse ambiente seletivo a cultura vigente e os produtos de outras
práticas cognitivas.46
O sistema regulativo como um todo pode apresentar uma dinâmica
horizontal – através da qual as interações entre seus vários níveis são refinadas,
tornando a estrutura mais adaptada –, quanto uma dinâmica vertical, que
torna o sistema cada vez mais complexo, aumentando a sua adaptabilidade
pelo acréscimo de novos níveis de controle e de regulação.47
Processos cognitivos nos seres humanos, por exemplo, são também
considerados processos regulativos, só que situados em níveis mais altos
da hierarquia de controle que os constitui:
Os processos de cognição devem, portanto, ser entendidos como proces-
sos regulativos altamente complexos, camadas superiores de um conjunto
completo de estruturas regulativas que formam o organismo completo e
cuja formação é sua própria ontogênese. (Hahlweg & Hooker, 1989:89)

45. Para uma discussão mais detalhada do programa de uma epistemologia evolucionista,
ver Abrantes (2004a; 2007).
46. As criaturas gregorianas exemplificam, em alguma medida, a importância dos fatores
culturais. Ver a esse respeito Abrantes (2006a).
47. A dinâmica horizontal, num mesmo nível regulativo, reflete-se numa maior adaptação
do sistema. Em ciência isso corresponderia, grosso modo, segundo Hooker, à resolução de
problemas típicos da ciência normal kuhniana. A dinâmica vertical, com a criação de níveis
regulativos mais altos, reflete-se numa maior adaptabilidade. Em ciência, isso correspon-
deria, grosso modo, às revoluções científicas, como descritas por Kuhn (Hooker, 1995:88).
Nessa análise não há, contudo, uma separação nítida, absoluta, entre ciência normal e
revolucionária, ao contrário do que defende Kuhn.

266
Toda essa estrutura regulativa constitui um sistema complexo, adap-
tativo e dinâmico, estando, segundo Hooker, literalmente, em evolução.
A ciência, enquanto sistema complexo, é analisada nesses mesmos termos,
apresentando, portanto, uma dinâmica evolutiva.48
A filosofia da ciência e a metodologia, em particular, teriam esse siste-
ma complexo como objeto de estudo. Entretanto, essas áreas, ou melhor, as
atividades cognitivas que aí são empreendidas, seriam componentes desse
mesmo sistema, não mais se colocando, portanto, frente às ciências, numa
posição exterior e privilegiada.49

48. Hooker (1995) redescreve a evolução biológica e, de modo geral, qualquer instância de
um processo evolutivo, em termos da teoria de sistemas complexos. A evolução dos orga-
nismos e a evolução da ciência, por exemplo, são descritos como instâncias de uma dinâ-
mica intrínseca aos sistemas complexos. Em outros termos, a ciência resultaria da mesma
dinâmica evolutiva que produz sistemas com uma complexidade cada vez maior, estando
em continuidade histórica com sistemas regulativos mais simples. Tais sistemas funcionam
como estruturas regulativas e podem tornar-se cada vez mais complexos. Wimsatt (2007:6 e
seg.), de modo análogo, defende que a teoria do conhecimento e a filosofia da ciência lidam,
como a biologia, com sistemas adaptativos. Está além do escopo do presente livro expor em
detalhes essa perspectiva de continuidade evolutiva. Em Abrantes (2006b), discuto diferentes
cenários para a evolução da mente humana, e alguns paralelos poderiam ser tentados com
teses das epistemologias selecionistas. Para uma crítica dessas epistemologias, ver Abrantes
(2004a; 2007). Para uma proposta, muito distinta mas também instigante, de usar a biologia
evolutiva como fonte de modelos para explicar a atividade científica, ver Hull, 1988. Para
uma análise detida das idéias desse grande filósofo da biologia que foi David Hull, e seus
desenvolvimentos em publicações posteriores, ver Abrantes & El-Hani, 2009.
49. Temos aqui uma circularidade não viciosa em que não há privilégio de qualquer nível
com respeito ao outro, mas sim uma interdependência recíproca dos níveis, a filosofia
fazendo parte do mesmo empreendimento cognitivo que envolve a ciência. Note-se que
uma perspectiva selecionista orienta esse tipo de análise.

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285
286
Índice remissivo e onomástico

Agente 9, 18, 132, 169, 244, 246, 265


minimamente racional 132
Algoritmo 56, 61, 109, 127-135, 229, 230, 259
algoritmo e heurística 127
Analogia 16, 19, 27, 101, 135, 138, 169, 206-217, 225, 229, 230, 248, 249, 255, 256
ver também ‘Inferência analógica’
método de analogia 19
Anarquismo epistemológico 205
Aprendizagem 192, 208, 210, 237, 235, 247, 251, 252, 254
aprendizagem em máquinas 192
aprendizagem individual 235
aprendizagem por tentativa e erro 251
criaturas darwinianas 252-255
criaturas gregorianas 254, 255, 266
criaturas popperianas 252, 253, 254, 265
criaturas skinnerianas 252, 255, 262
por imitação 233
social 254n.31, 233-235
Argumento 47-54, 58-61, 64, 70, 86, 92, 96, 100-101, 104, 106, 111, 117,
118, 135-137, 142, 143, 189, 190, 201, 232, 257, 258, 260, 262, 264 ver também
‘Inferência’; ‘Lógica’
argumento dedutivo 53, 54, 58, 64, 118
argumento indutivo 52-54
Aristóteles 27, 33, 47, 48, 116, 188
Astronomia 45, 64, 80, 110, 116, 117, 122, 204, 221, 224, 232
salvar os fenômenos 221
Autômatos celulares 229-230 ver também ‘Simulação’

287
Axiologia 37, 43, 124, 125, 149, 162, 182, 184, 185-188, 201 ver também
‘Metodologia’
naturalização da axiologia 186

Bacon, F. 23, 44, 92, 190, 271, 282


Base empírica 119, 140-142, 145-147, 150, 166, 168, 172, 249, 251
Bayesianismo 191
Biologia 23, 86, 91, 125, 187, 192, 207, 240-242, 245-246, 249-250, 257, 263,
267, 270, 280
biologia evolutiva 240, 263, 267
filosofia da biologia 241, 270, 280
Bohr, N. 41, 82, 217
Boyd, R. 191, 233-236, 271, 283
Bradie, M. 246, 254, 271
Bunge, M. 223, 226, 227, 230, 271

Cálculo 50, 51, 56, 68, 76, 79, 80, 84, 89, 104, 127, 128, 134, 144, 216, 219, 221,
222, 227, 228 ver também ‘Teorias científicas’
interpretação de um cálculo 216
Campbell, D. T. 83, 259, 265, 271, 272, 285
Carnap, R. 69, 84, 89, 90, 95
Causalidade 175 ver também ‘Leis’; ‘Metafísica’
Ciência 9-13, 15-31, 35, 36, 38, 39, 42-45, 58, 59, 63, 67-71, 78, 81, 84-89, 91-99,
101, 103, 108-110, 113, 114, 120-125, 127, 133, 135, 136, 137, 139-141, 143-149, 151,
152, 154, 156, 157, 159-163, 165-173, 175-181, 184, 186, 187, 189-193, 195, 197-213,
215, 217, 218, 220, 222-224, 226-228, 230, 232-235, 237, 239, 241-243, 255-261,
264-267, 273-277, 279, 280, 282-284
ciência como atividade 123
como um sistema regulativo dinâmico 264
concepção hipotético-dedutivista 99
definição de ciência 160, 163
diversidade das ciências 10, 181

288
Ciência normal 13, 197-213, 217, 259, 260, 266 ver também ‘Paradigma’
percepção de similaridades 101
resolução de quebra-cabeças 288, 212
Ciências da ciência 160, 204
Ciências sociais 25, 223, 224, 234, 235
Cientificismo 181
Círculo de Viena 87, 88, 120, 161
Cognição 231, 232, 245-246, 248, 266, 269
Comportamento 21, 24, 131, 161, 220, 221, 225-227, 229-231, 245, 250, 252,
255, 258, 262
Comte, A. 87, 88
Comunidade científica 20, 38, 103, 144, 145, 146, 147, 166, 168, 185, 198-
200, 207, 208, 245, 255
formação dos cientistas 202, 207, 208, 211
Conceitos 13, 30, 57, 58, 81, 83, 89, 94, 137, 202, 210, 212, 240, 250
construção de conceitos 57
Confirmação 63, 65, 69-77, 95, 97, 100, 105, 115, 117
confirmação por instâncias 71
critério de Nicod 72-74
paradoxos da confirmação 73, 75
problema da confirmação 63, 69, 70, 76, 95, 105, 115
Conhecimento 9, 17, 18, 20, 22, 23, 27-31, 33-37, 39, 41-43, 55, 56, 59-62,
67-70, 75, 78, 79, 85, 88, 90, 91, 93-95, 98, 100, 101, 103, 104, 110, 113, 114, 122,
124, 125, 129-133, 135-138, 146, 149, 150, 162, 170, 171, 173, 175, 177-179, 181-186,
188-195, 198, 203, 209, 211, 212, 230, 242-244, 246-251, 254-265, 267, 270, 279
conceito de conhecimento 33
conhecimento a priori 175, 177, 179, 183
conhecimento científico 9, 17, 18, 20, 22, 29, 30, 36, 39, 68, 69, 78, 85, 88, 113,
133, 137, 171, 173, 177, 178, 184, 188, 189, 198, 203, 211, 212, 250, 254-256, 259
conhecimento substantivo 31, 62, 114, 124, 135, 136, 162, 170, 171, 182-184, 186,
188, 190-192, 194, 195, 211, 264, 265
teoria do conhecimento 33, 34, 36, 41, 42, 244, 250, 262, 267
Conjecturas e refutações 122, 135, 152, 282 ver também ‘Falseacionismo’
Consequencialismo 40, 41, 108, 156, 251, 259, 260, 261 ver também
‘Gerativismo’; ‘Justificação’
Consiliência 20, 181

289
Contexto de descoberta 67, 92, 94-96, 98-103, 106, 107, 114, 133, 135, 136,
154, 197, 205, 212, 260
Contexto de justificação 67, 93, 94, 97, 98, 100-104, 106, 107, 114, 135,
136, 175, 197, 205, 260
Convencionalismo 145, 147-150, 152, 154, 161-163, 165, 167
modificações ad hoc nas teorias 149
Corroboração 141, 147, 148, 150, 153, 154 ver também ‘Confirmação’
Crença 33-36, 38, 39, 43, 47, 79, 100, 103, 109, 142, 143, 154, 170, 182-186,
189-191, 203, 204, 244, 245, 247
Criatividade 91, 127, 277
Cultura 45, 134, 235, 254, 266, 269, 271, 273, 274, 277, 281, 283
Cziko, G. 242, 257-259, 272

Darwin, C. 237-243, 246-253, 255


Dawkins, R. 239, 240, 254, 258, 273
Dedução 22, 54, 57, 59, 65, 97, 109, 110, 116 ver também ‘Inferência’; ‘Lógica’
Dedutivismo 61, 140
Dennett, D. 252, 254, 255, 264, 273
Descartes, R. 19, 35, 44, 189, 272, 273
Duhem, P. 28, 88, 121, 145, 148, 152, 156, 162, 273
Dupré, J. 181, 273

Empirismo 13, 18, 67-69, 71, 73, 75, 78-81, 84, 85, 87, 88, 95, 97, 99, 105, 113, 114, 121,
194, 197, 205, 216, 219, 232, 244, 245
empirismo lógico 13, 67-69, 71, 73, 75, 78-81, 84, 85, 87, 88, 95, 97, 99, 105, 113,
114, 121, 197, 205, 216, 219
Epistemologia 12, 13, 22, 31, 33, 36, 40, 42, 43, 67, 70, 93, 94, 103, 104, 108,
125, 135, 137, 155, 159, 163, 175, 180, 183, 190, 194, 197, 237, 243-252, 254-256,
258-264, 266, 267, 269, 271, 272, 283 ver também ‘Filosofia da Ciência’; ‘Teoria
do conhecimento’
epistemologia evolucionista 103, 104, 125, 135, 246, 248, 254, 266
Equilíbrio reflexivo 166, 167, 169, 170 ver também ‘Justificação’
Espécies naturais (natural kinds) 181

290
Exemplares 166, 168, 200, 206-212, 215, 260, 261 ver também ‘Matriz dis-
ciplinar’; ‘Ciência normal’
Experiência 27, 40, 65, 68, 70, 72, 79-82, 88, 109-111, 116, 119, 121, 130, 131,
147, 148, 150, 171, 175-178, 199, 200, 203, 208, 218, 224, 232, 236, 244, 248, 249,
251, 257, 260
Experimentação 22, 25, 140, 189, 224, 231-233
Experimento crucial 185
Explicação 22, 27, 63, 83-87, 101, 110, 137, 150, 165, 169, 180, 182, 218, 227,
233, 241-246, 251 ver também ‘Lei’
explanandum 86, 137, 243
explanans 86, 137, 138, 243
explicação científica 85-87
explicação e previsão 87
modelo nomológico-dedutivo 85
poder explicativo 22, 36, 37, 187, 235

Falibilismo 108, 156


Falseacionismo 115, 136, 141, 142, 145, 146, 148-150, 152, 154, 155, 160, 162,
163, 185, 193, 197, 204, 205
falseacionismo dogmático 141
falseacionismo metodológico 141, 145, 148-150, 154
Falseamento 121-123, 141, 142, 146-151, 153, 154, 176
Feyerabend, P. 106, 107, 135, 151, 168, 191, 205, 261, 274, 281
Filosofia 10-13, 22, 23, 28, 29, 31, 33, 35, 36, 39, 41, 43, 47, 59, 63, 67-69, 71,
78, 81, 85-90, 95, 97, 103, 108, 110, 111, 113, 114, 121, 124, 133, 135, 139, 140, 156,
157, 159, 160, 166-168, 170, 175, 177-180, 182, 186, 190, 191, 193, 195, 197, 200,
203-206, 211, 231, 232, 241, 260, 261, 267, 269-273, 275-277, 279-281, 283-285
abordagem filosófica em metodologia 23
Filosofia da ciência 11-13, 22, 29, 35, 36, 39, 43, 63, 67, 71, 78, 81, 85-87, 95,
97, 103, 108, 113, 114, 121, 124, 133, 135, 140, 156, 157, 160, 166-168, 175, 177, 193,
195, 197, 200, 203-206, 211, 232, 241, 267, 269, 273, 276, 277, 279, 280, 283 ver
também ‘Epistemologia’; ‘Ciências da ciência’; ‘História da ciência’
Fim 11, 15, 17, 21, 22, 27, 38, 39, 50, 56, 61, 96, 115, 124, 125, 135, 149, 156, 159, 160,
162-166, 171, 173, 182, 186, 187, 222, 254, 275 ver também ‘Valores cognitivos’

291
fim intermediário 21, 22
fim último 21, 22, 124
Física 10, 30, 69, 78, 79, 110, 181, 192, 207, 209, 217, 218, 222, 224, 226, 241,
244, 253
Funcionalismo 238

Galileu 116, 168, 228, 274, 281


Generalização 51, 52, 70 ver também ‘Lei’
Gerativismo 40, 41, 43, 44, 102, 108, 109, 156, 157, 259-261
gerativismo e consequencialismo 40
Giere, R. 221, 274, 275
Goodman, N. 76, 77, 166, 169, 170, 275
Gould, S. J. 237-240, 258, 270, 275

Hanson, N. R. 55, 63, 99, 100, 101, 102, 104, 106, 137, 143, 275
Hempel, C. 63, 71, 72, 74, 75, 76, 85, 89, 95, 96, 97, 98, 105, 276
Herschel, W. 91, 95
Hertz, H. 28, 69, 269
Heurística 13, 44, 56, 61, 62, 103, 104, 108, 127, 128, 129, 136, 138, 139, 153, 192,
193, 212, 216, 228, 260
heurística de gerar e testar 131, 132, 135
heurística negativa 153
heurística positiva 153-155, 156, 157, 215
Hipótese 11, 16, 17, 20-22, 24, 36, 39-41, 43, 45, 56, 57, 63-67, 70-72, 75-77, 86,
88, 92, 95-111, 114-119, 127, 133, 134, 136, 137, 140, 141, 144, 146, 148, 149, 153,
187, 200, 202, 222, 223, 227, 231, 245, 248-251, 254-256, 258, 260, 261, 266, 275
ver também ‘Explicação’; ‘Teorias científicas’; ‘Método hipotético-dedutivo’
teste de uma hipótese 71
História da ciência 12n.2, 63n.32, 96, 125, 144, 145, 147, 148, 152, 160n.3, 165,
170, 172, 176, 193n.27, 198, 203, 205, 269, 275 ver também ‘Filosofia da ciência’
Hooker, C. 250, 255n.32, 262-266, 267n. 48, 275, 276
Hull, D. 240n.6, 247n.20, 267n.48, 270, 271, 276, 277
Hume, D. 70, 88, 245

292
I

Idealização
e modelos 19n.9, 153, 223n.9, 227, 228, 233
Imagem de ciência 10, 15, 18, 97, 114, 149, 235, 256 ver também ‘Imagem
de natureza’
imagem de ciência-como-método 10, 15, 97n.8, 114n.2
e intuições pré-analíticas 166-170
Imagem de natureza 18, 20, 25n.14, 104, 154, 169, 177, 188, 189, 201 ver
também ‘Metafísica’
e imagem materialista de natureza 187n.16
mecanicismo 188, 230, 242
e princípio da uniformidade da natureza 18
e visão de mundo 188, 218
Indução 18, 51,-55, 57, 58, 65, 94-97, 110, 111, 142n.6, 251 ver também ‘Inferência’
enumerativa 52, 53, 57, 59, 99
problema da 70, 114, 140, 160, 245
Incomensurabilidade 209
Indutivismo 100, 110, 140, 141, 152, 156, 186, 245, 249, 251 ver também ‘Indução’
Inferência 29n.20, 47-62, 64, 65, 70, 71, 79, 95, 99, 101, 105, 110, 115, 116, 118-
120, 135, 137, 140, 162, 166, 167, 169, 183, 217, 238, 239 ver também ‘Lógica’
abdutiva 55
ampliativa 53, 58
analógica 55, 59, 60, 217n.2 ver também ‘Analogia’
dedutiva 48, 49n.8, 54, 55n.18, 62, 116n.6
indutiva 52-54, 57, 58, 65, 95, 99, 110n.22, 137, 217n.2, ver também ‘Indução’
pela melhor explicação 101
propriedades 53
regras de 48, 51, 60, 62, 79, 115, 135n.11, 162
Instrucionismo 242, 243, 244, 251n.25, 256, 258, 263 ver também ‘Selecionismo’
Instrumentalismo 194 ver também ‘Empirismo’; ‘Convencionalismo’
Inteligência artificial 13, 19, 61n. 29, 106, 109n.20, 128, 211 ver também
‘Algoritmo’; ‘Heurística’; ‘Vida artificial’
Intuicionismo (em metametodologia) 165-170

Justificação ver também ‘Confirmação’, ‘Consequencialismo’, ‘ Gerativismo’


de crenças 36n.5, 103

293
de fins 121, 185
de métodos 25, 29, 159, 164-165
de metodologias 159-169, 184-188
de produtos da atividade científica 197, 198, 202-206, 209, 211, 212, 215, 233,
235, 255, 259, 265, 267n.48
de regras de inferência 167
de regras metodológicas 20-22, 62, 63, 163, 191
e equilíbrio reflexivo 167-170
e fundacionalismo 35
e naturalismo normativo 171

Kant, I. 68, 69, 177-178n.3


Kantorovich, A. 163, 169, 170, 193, 195, 261, 277
Kekulé, F. A. 40, 96
Kepler, J. 40, 96, 101
Kitcher, P. 179, 262n.41, 277
Kornblith, H. 88n.15, 179-181, 282
Kuhn, T. 106, 107, 143n.7, 166, 170, 176, 193 n.27, 197-213, 215, 217, 259, 260,
266, 269, 278, 281

Lakatos, I. 13, 69, 103, 104n.15, 115, 136, 138, 139, 141-143, 145, 147, 148, 150-157,
160-162, 165-170, 176, 205, 215, 278-282
Laudan, L. 29n.20, 39n.11, 63n.32, 91, 108, 109, 110, 125, 133, 134, 147n.10,
156n.20, 162n.6, 163n.6 e 7, 166-173, 185-187, 189-195, 200, 264, 265, 279, 280, 285
Leis 18n.6, 22n.11, 36, 41, 51n.10, 67-69, 72, 74, 81, 82, 85-88, 91, 92, 133, 168,
183, 186n.15, 207, 212n.15, 222, 223, 225, 226, 228, 229, 230n.16 ver também
‘Explicação’; ‘Generalização’; ‘Teorias científicas’
científicas 61, 116, 119, 139, 206
concepção regularista 51n.10
concepção necessitarista 51n.10
da natureza 85, 229
Linguagem
observacional 80-83, 88, 96n.7, 140n.2, 143n.7
teórica 68, 78, 80, 81, 83, 84, 88, 96n.7, 109, 140n.2, 143n.7, 210n.12
virada linguística 68, 78, 88, 140n.2

294
Locke, J. 244
Lógica 47-67 ver também ‘Argumento’; ‘Inferência’
cálculo proposicional 50, 51
cálculo de predicados 50, 51
conectivos lógicos 49, 82
da descoberta 59, 95, 107-109, 134, 135, 138, 249, 261
da ciência 69, 94, 135
da justificação 108
do prosseguimento 100, 104
formal 48, 58, 60n.28, 62, 182
material 60-62
e racionalidade 62
Logicismo 68, 69, 79n.7, 169, 191
Lyell, C. 18

Mach, E. 69, 88, 279


Matemática 68, 69, 78, 79n.7, 82, 84, 204, 209, 216, 218-20, 228, 232n.20 ver
também ‘Logicismo’; ‘Cálculo’
e teoria científica 68, 69, 78, 82
e simulação 228, 232n.20
Matriz disciplinar 206, 209, 215 ver também ‘Ciência normal’; ‘Paradigma’
Maxwell, J. C. 41, 219, 221, 226n.12
McLaughlin, R. 106, 107, 280
Mecanicismo 110, 186, 188, 230, 242n.8
e imagem materialista de natureza 187n.16
Metaciência 28, 160n.3, 184n.12, 190
e filosofia da ciência 160n.3
Metafísica 31, 40, 68, 78, 82, 85, 87-90, 110, 114, 122, 123, 139, 145, 153, 154,
169, 175-195, 201, 218, 222, 226, 231, 251n.26 ver também ‘Imagem de natureza’
como atividade 123
e ciência 175-195, 218, 269
e empirismo lógico 87-90
e programa de pesquisa científica 153, 154
e falseacionismo 113, 114, 122, 123, 135, 145
e problema da demarcação 87, 88, 90, 114, 120, 175-177

295
Metáfora 176, 213n.16 ver também ‘Analogia’
evolucionista 249, 250
Metametodologia 13, 120, 139n.1, 147n.11, 159-173
convencionalismo em 161-163
intuicionismo em 165-169
e naturalismo normativo 171
Método 9, 10, 15, 23-26 ver também ‘Regras metodológicas’; ‘Heurística’
científico 10, 15, 23, 26, 28, 36, 37, 94, 98, 124, 163, 164, 180, 188, 259
concepção realista 191
concepção apriorista 191
abordagem pragmática 191, 192
de analogia 19
de nível baixo 24-26, 182-184, 194
de nível alto 182-184
de tentativa e erro 104, 131, 135, 256, 258, 260-264
exemplos de 16-20
e técnica 6, 23-27, 97-8, 133, 183n.10, 164
hipotético-dedutivo (H-D ou método de hipótese) 16, 22, 26, 37, 57, 63-66,
94, 95, 99, 140n.3
etimologia 15
experimental 25, 26, 188
hierarquia de métodos 23, 78n.9, 130, 181, 264
Metodologia 26 ver também ‘Metametodologia’
convencionalismo em 145-152, 162, 163
e axiologia 124, 149, 162, 170-172, 184-188
e teoria filosófica do método 28-30, 163
e epistemologia 33, 34, 41-43, 67, 155-157, 237, 249-251, 261
e heurística 44, 45, 127-138, 152-15, 192, 212, 216, 255-261
e lógica 56, 57, 59, 62-66, 120, 121 ver também ‘Lógica da descoberta’
e metafísica 152-155, 169, 181-184, 202, 218, 222
e racionalidade 62, 168, 169, 184, 185
e tecnologia 27
gerativista 40-45, 56, 69, 106, 114, 127, 138, 156, 157
construtiva 44, 45, 58, 60, 61, 114, 133, 134, 155n.19, 156
mudança na 184-188
naturalização da 185-188
paradigma inferencial 59, 60, 95n.5
Metodologia de programas de pesquisa 152-155, 160, 205
Mill, J. S. 92, 99

296
Modelos 92, 176, 200, 216n.1, 217
abstratos 219
analógicos 217-224
complexos 233-5
concretos 220
e teorias 84, 221
e matriz disciplinar 206-209
e simulação 215-235
em antropologia biológica 233-236
matemáticos 219, 226-230, 233-236
semânticos 84n.13, 216
simples 207, 233-235
na ciência normal 207, 208, 213n.16
em programas de pesquisa científica 84, 153
teóricos 223
Mundos popperianos 251n.26

Nagel, E. 82, 83n.11, 97, 98, 272, 280


Naturalismo 29n.19, 88n.15, 170n.12, 179-181, 193-195, 237, 242, 261-267
e falseacionismo 120, 121, 161-165
em filosofia da ciência 193-195
em metametodologia 159n.1, 171-173
Naturalismo normativo 169, 171-173, 195
Neopositivismo ver ‘Positivismo’; ‘Empirismo lógico’
Newton, I. 21, 41, 87, 88, 109-11, 144, 145, 168, 186, 207, 209, 219, 223, 229, 280, 281
Níveis
abordagem dos 191
metodológicos 27, 124, 139n.1, 159, 181-184
da linguagem científica 80-84
de regulação (controle plástico) 264-267
de realidade 180, 181, 234, 250
de seleção 103n.14, 238n.3, 240n.6
e equilíbrio reflexivo 168-170
Nola, R. 14, 281

297
O

Observação 16, 22n.11, 38, 51, 52n.11, 64-65, 72, 80, 83, 87, 95-100, 109, 117n.7,
264 ver também ‘Teorias científicas’
contaminação teórica da 100, 143n.7, 195n.28
e experiência 40, 65n.36, 68-72, 79-82, 109-111, 116, 121
e sentenças singulares 51n.10, 87, 116n.5, 139, 140
sentenças observacionais 51, 63-66, 116n.5, 250
Ontologia ver ‘Metafísica’

Paradigma 176, 198-203, 206-211 ver também ‘Exemplares’


e ciência normal 198-205, 212, 213
Peirce, C. S. 43, 99, 100, 256, 258
Platão 33, 60, 116, 279
Popper, K. 43, 67, 90, 103, 107, 108, 113-125, 133-138, 139-141, 145, 147-149,
153-156, 160-163, 164-167, 172, 175, 176, 184, 185, 193, 197-199, 203-205, 212,
249-256, 260, 265n.44, 272, 278, 281, 282
Positivismo 87
e empirismo 175
lógico 67, 92, 135
Pragmatismo 43
em metodologia 163-165, 191-193
Previsão 22, 54, 70, 83-87, 116-118, 122, 144, 152, 153, 180, 218, 223
e explicação 84, 85, 180
e indução 55, 70
e modelo nomológico-dedutivo 84-87
Problema da demarcação 68, 87-90, 114, 120, 140, 160, 163, 175-177
e critério empirista de significado 87-90, 175
e falseacionismo 120, 121, 141, 160-163
e metafísica 122, 177
e pseudo-ciências 114, 122, 205
Programa de pesquisa científica 139, 152-155
núcleo duro 152-155
heurística negativa/positiva 153
Progresso
científico 135, 160

298
metodológico 166-169
na ciência normal 198-203
tecnológico 98
Providencialismo 239-247, 257-259, 263-264 ver também ‘Instrucionismo’
Psicologia 25, 62n.30, 107, 109, 132, 134, 182n.9
da ciência 103, 160n.3, 204
e aprendizagem 210-211, 232, 248, 250-255, 254n.31
e confiabilismo 103n.13
cognitiva 47n.3, 93, 132, 181, 192, 232, 245, 266
e comportamento 24n.12, 131, 245n.14, 250-252, 258, 262
e descoberta científica 96, 97, 102, 107, 135
e evolução 235, 250
e lógica 62n.30, 74, 93, 95, 211
e psicologismo 36n.5

Quine, W. V. 77, 78, 89, 148, 180

Raciocínio
analógico 101, 138, 211 n.14, 216, 217
baseado em casos 213 n.16
baseado em regras 213 n.16
dedutivo 97
dos cientistas 102, 103
e criaturas gregorianas 254
indutivo 94
Racionalidade ver também ‘Metodologia’; ‘Metametodologia’
casos exemplares de 168, 169
científica 36, 37, 62, 107, 124, 155, 168, 197
no contexto de descoberta 99-101, 136
no contexto de justificação 101, 135
e equilíbrio reflexivo 169
e heurística 127, 133
e lógica 62
e intuições dos cientistas 151, 152, 166
e irracionalidade 107, 135, 165, 166
e relativismo 191n.23

299
paradigma de 167, 170
teoria hierárquica da 124, 125
teoria reticular da 170, 171, 184-188, 190, 193, 265
teorias da 169, 170, 204, 205
Racionalismo 68 ver também ‘Empirismo’
Radnitzky, G. 160n.3, 173, 282
Realismo
em metodologia 191-193
e não-realismo 187, 193, 194
e naturalismo 179n.5
e selecionismo 247n.20
científico 38-39, 84, 89n.17, 221, 222, 227n.13
epistemológico 247n.20
metafísico 89, 247n.20
Regras metodológicas 16-21, 44, 62, 91-98, 102, 108-111, 115, 121-14, 148-155,
160, 163, 164, 171, 172, 190, 204, 207-213 ver também ‘Método’; ‘Metodologia’
de nível baixo/alto 182, 183
justificação das 27, 169, 170, 189-195
procedurais 189, 190
substantivas 189, 190
Reichenbach, H. 92-95, 97, 106, 107, 283
Relativismo 162n.6, 190, 191, 198n.3, 201
Rescher, N. 192, 283, 284
Revoluções científicas 197-202, 209, 266n.47
Richerson, P. 233-236, 271, 283
Rosenberg, A. 193-195, 264, 283
Russell, B. 69

Salmon, W. 30n.22, 47n.3, 54n.15, 283


Sankey, H. 14, 163n.7, 281, 284
Schaffner, K. 91, 92, 94, 106, 284
Schlick, M. 88
Seleção natural 92n.3, 135n.12, 235-240, 242n.8, 246, 249, 251, 258 ver tam-
bém ‘Selecionismo’
Selecionismo 243-267 ver também ‘Instrucionismo’; ‘Seleção natural’

300
e criaturas popperianas 252, 253, 265n.44
e providencialismo 242-244, 258, 263
Senso comum 170n.12, 176, 181, 270
e ciência 176
e filosofia 181
Shapere, D. 191, 284
Significado
de sentenças 48n.5, 78-84, 209
concepção empirista do 87-90, 175
Simon, H. 106, 131
Simulação 19n.8, 215-31 ver também ‘Vida artificial’; ‘Inteligência artificial’
computacional 224, 227-231
e modelos 224-231
e teste de teorias 231-233
Sistema complexo 229, 265-267, 267n.48
e estruturas regulativas 266
Sociologia 93, 99, 109
da ciência 93, 99, 103, 160n.3, 192, 204
e ciências da ciência 103, 160n.3, 204
e epistemologia 108
sociologismo 169
Suppe, F. 84, 210, 211, 278, 281, 285

Tautologia 49n.8, 57, 69, 79n.7 ver também ‘Lógica’


Técnica ver ‘Método de nível baixo’
Teorias científicas ver também ‘Observação’, ‘Modelo’, ‘Hipótese’, ‘Valo-
res cognitivos’
aceitabilidade de 86, 96, 102, 103, 114, 115, 121, 122, 162n.5, 169, 170, 187,
188, 198, 199, 264
axiomatização de 24, 78-80
como objeto linguístico 78
concepção semântica 220n.6
construção de 44, 56n.20, 67, 68, 92-94, 108, 109, 127, 128, 134, 135 ver
também ‘Gerativismo’
dinâmica de 103, 122-124, 187, 188

301
e experiência 21, 22, 39-41, 65n.36, 72, 79-82, 109, 116, 121, 140-155, 171-173,
198, 199, 203, 204, 249, 259, 260
na justificação de métodos 21, 26-28, 62n.31, 162, 185-188, 190-195, 263n.42
e metafísica 114n.1, 153, 179, 180, 218
e modelos 220-224
estrutura das 71, 78-80, 84n.13, 215, 216n.1
e simulação 231-233
justificação de 36-38, 102-104
linguagem observacional/teórica 78-84, 96, 109, 143n.7
regras de correspondência 79, 80
visão ortodoxa das 79
Teoria da evolução 20n.10, 58n.25, 237-243, 248n.21 ver também ‘Selecionismo’
e epistemologias evolucionistas 237-261
Teoria do conhecimento 33-5 ver também ‘Epistemologia’
análise do conceito de conhecimento 33
e filosofia da ciência 36-39
e teorias da verdade 33, 34
e teorias da justificação 35
e teoria do método 36-44, 261, 262
Termo teórico 67-69, 76, 80-84, 96, 108 ver também ‘Linguagem’; ‘Teorias
científicas’
definição implícita 84
definição explícita 83
e termo observacional 82, 83, 95
Tese de Duhem-Quine 148
e convencionalismo 120-122
e falseacionismo metodológico 145-148
Thagard, P. 232 n.19, 285
Thomson, W. 219, 226n.12

Valores cognitivos (ou epistêmicos) 22, 36, 40, 44, 56n.20, 79, 133, 136,
156, 157, 201, 212n.15, 221, 25, 259, 260 ver também ‘Teorias científicas’
Verdade 23, 33-39, 48n.5, 136, 163n.7, 186, 246, 247 ver também ‘Valores
cognitivos’; ‘Realismo científico’
e justificação 35, 247n.19
e significado 89n.19

302
como correspondência 33, 39
como coerência 34
lógica 49n.8, 79n.7
teoria pragmática da 34n.3
Verificação 64, 65, 72, 73, 96, 97, 114, 134, 135, 140 ver também ‘Confirma-
ção’; ‘Falseamento’
e confirmação 65
e critério empirista de significado 87
Verosimilitude 160n.4
Vida artificial 231 ver também ‘Inteligência artificial’
Virada linguística ver ‘Linguagem’
Virtude epistêmica ver ‘Valores cognitivos’
Visão de mundo 188, 218 ver também ‘Imagem de natureza’

Whewell, W. 20n.10, 91, 92, 99, 156, 259, 273, 274, 276
Whitehead, A. N. 69
Wittgenstein, L. 69, 210n.13
Worrall, J. 163 n.6, 189, 190, 193, 194, 285

303
formato: 15,5cm x 22,5cm | 304 p.
tipologias:Minion Pro, Myriad Pro
papel da capa: Supremo 250g/m2
papel do miolo: Offset 90g/m2

produtora editorial: Lilian Lopes


capa: Jamile Faller
diagramação: Peter de Andrade
revisão de textos: Erick Ramalho

304
É bastante comum a intuição de que o mé-
todo é o traço distintivo que diferencia a ci-
ência de outras atividades intelectuais e que
define a sua natureza. Este livro discute essa
imagem de ciência-como-método a partir
de resultados em áreas da filosofia como a
epistemologia, a lógica e a metafísica, com o
objetivo de construir uma teoria filosófica do
método. Além disso, várias escolas contem-
porâneas em filosofia da ciência são apresen-
tadas com um foco no lugar que nelas ocupa
uma temática propriamente metodológica.
Este livro destina-se a um público amplo. As
questões mais técnicas são introduzidas de
modo a permitir que mesmo leitores sem for-
mação filosófica prévia possam acompanhar
as discussões. Estudantes de graduação e
de pós-graduação em filosofia, e mesmo es-
pecialistas, podem também tirar proveito do
livro, sobretudo das seções que discutem tó-
picos mais avançados e que podem ser salta-
das, numa primeira leitura, sem comprometer
o entendimento das demais.

ISBN: 978-65-9915-592-5

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