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Paulo C.

Abrantes 2ª edição

Método & Ciência


Uma abordagem filosófica
2ª edição

Método e ciência:
Uma abordagem filosófica

Paulo C. Abrantes
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Paulo C. Abrantes
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CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

A143m
2. ed.
Abrantes, Paulo C.
Método e ciência: : uma abordagem filosófica / Paulo C. Abrantes. - 2. ed. - Belo
Horizonte, MG : Fino Traço, 2020.
304 p. : il. ; 23 cm. (Scientia ; 20)
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-65-9915-592-5
1. Ciências - Filosofia. 2. Ciências - História. 3. Teoria do conhecimento. I. Título.
II. Série.
14-16124 CDD: 501
CDU: 501

conselho editorial Coleção Scientia


Bernardo Jefferson de Oliveira | UFMG
Gilberto Hochman | Fiocruz
Maria Amélia Dantes | USP
Maria de Fátima Nunes | Universidade de Évora - Portugal
Mauro Lúcio Leitão Condé | UFMG
Olival Freire | UFBA

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br
Sumário

Introdução  9

1. Método e metodologia  15

2. Metodologia e epistemologia  33

3. Metodologia e lógica  47

4. A Metodologia no programa do empirismo lógico  67

5. Metodologia e descoberta científica  91

6. A metodologia falseacionista  113

7. Metodologia e heurística  127

8. A metodologia de programas de pesquisa científica  139

9. Metametodologias  159

10. Metodologia e metafísica  175

11. A metodologia da ciência “normal”  197

12. Modelos e simulação  215

13. Metodologia e epistemologias evolucionistas  237

Referências bibliográficas  269

Índice remissivo e onomástico  287


Aos meus filhos Elisa e Tiago.
8
Introdução

‘Ciência’, do latim scientia, significa conhecimento e pode ser conside-


rada a tradução latina para a palavra grega epistéme. O termo ‘ciência’, como
é hoje utilizado, refere-se tanto ao resultado de uma particular atividade
intelectual (ou seu produto, nesse caso o conhecimento científico), quanto
a essa atividade enquanto tal, envolvendo seus métodos, objetivos e valores.
‘Ciência’, em alguns contextos, pode também referir-se à base material dessa
atividade, incluindo não só as pessoas que dela participam – em particular
os seus principais agentes, os cientistas –, como também as instituições em
que se realiza, suas modalidades de financiamento, as relações que estabelece
com as tecnologias e com outras atividades na sociedade.
Uma reflexão sobre a ciência pode tomar por objeto uma ou várias
dessas dimensões. Talvez não cheguemos a uma genuína compreensão do
que seja a ciência se não as estudarmos em sua interdependência, dada a
complexidade com que se apresenta na atualidade.
A reflexão propriamente filosófica sobre a ciência – fiel à etimologia desse
termo – tradicionalmente enfocou a natureza do conhecimento científico,
o produto da atividade científica, ou seja, os aspectos epistemológicos da
ciência. Quais são as características desse produto que o tornam especial?
O que confere ao conhecimento científico tais características? Os chamados
‘filósofos da ciência’ buscam, fundamentalmente, responder a essas duas
questões na tentativa de distinguir a ciência de outras atividades intelectuais.
Até aqui usei o termo ‘ciência’ no singular. O que justifica esse uso?
A despeito da diversidade de objetos de que tratam as diversas ciências,
haveria algo que todas elas compartilham? Ou devemos render-nos às parti-
cularidades de cada uma delas usando, consequentemente, o termo ‘ciência’
sempre no plural?

9
No caso da atividade científica, é bastante difundida a intuição de que
seu traço distintivo, que a diferencia de outras atividades intelectuais e define
a sua natureza, é o método (ou um conjunto característico de métodos). Essa
é uma resposta possível à questão da unidade versus diversidade das ciências
formulada acima. Proponho que denominemos essa intuição de imagem
de ciência-como-método.1 Em contraste com os aspectos epistemológicos
que mencionei anteriormente, entendidos em seu sentido restrito, aqui o
foco é colocado sobre os aspectos propriamente metodológicos. Segundo
essa imagem, não basta uma referência aos objetos de investigação da(s)
ciência(s). Por exemplo, para que se caracterize a física, não seria suficiente
dizer que ela trata de projéteis, molas, átomos, planetas, gases, movimento,
trocas energéticas etc. É preciso dizer, adicionalmente, como tais objetos e
processos são estudados, quais são os métodos que orientam a investigação.
O fato de as universidades brasileiras, em seus diversos cursos, te-
rem disciplinas com a denominação ‘metodologia científica’ constitui uma
evidência do quão arraigada é essa imagem. Este livro é uma tentativa de
discuti-la, de qualificá-la, de explicitar as bases e implicações dessa imagem.
À primeira vista, parece razoável a tese de que é o método que distingue
a atividade científica de outras atividades intelectuais; de que as credenciais
dos produtos daquela atividade (que condicionam a sua aceitabilidade en-
quanto ciência) dependem do modo como estes produtos foram obtidos e
avaliados, dos métodos utilizados para tais fins. Parece ser, de fato, o método
que permite conferir certas propriedades epistêmicas aos produtos da(s)
ciência(s), distinguindo-os, por sua cientificidade, dos produtos de outros
tipos de atividade intelectual (como a filosofia, a arte, etc.). Mas como isso
se dá? Como, além disso, podemos saber que um método é adequado, que
se trata de um método científico?
É fácil constatar-se, entretanto, que há uma grande diversidade de mé-
todos utilizados nas várias ciências, o que indica mais heterogeneidade do
que pressupõe a imagem acima exposta. Haveria sentido, então, em afirmar
que há uma unidade metodológica das diversas ciências, tornando-as instân-
cias de uma mesma espécie de atividade? Haveria uma essência da ciência,

1. Sobre a noção de imagem de ciência, ver Abrantes (1998; 2006a; 2016).

10
ao menos no plano do método? A questão de uma pressuposta unidade
metodológica da ciência relaciona-se, nessa perspectiva, com a questão da
unidade da própria ciência.
Como o título deste livro indica, a abordagem que adoto é, funda-
mentalmente, filosófica. Não é óbvio, contudo, que a filosofia (em especial
a filosofia da ciência) tenha algo de pertinente a dizer a respeito dessas
questões. Afinal, não são os cientistas os árbitros legítimos para decidir, em
última instância, o que é uma hipótese ou uma teoria aceitável, científica?
Não são os cientistas, nas suas diversas áreas de especialidade, os únicos
em condições de desenvolver e aplicar métodos com esse fim? Em caso
afirmativo, uma metodologia científica (uma teoria do método científico)
não poderia ter outra base além da observação dos métodos efetivamente
empregados pelos cientistas e da reflexão que estes últimos, eventualmente,
façam a respeito de tais métodos.
Os tipos de questões que coloquei nos parágrafos anteriores, entretan-
to, e o modo mesmo como foram formuladas, indicam que essa estratégia
meramente descritiva da ciência praticada não permitiria respondê-las de
modo satisfatório. Aquelas são questões filosóficas e exigem uma aborda-
gem filosófica. Mas pode-se perguntar, de outro modo, o que caracteriza
as questões filosóficas nessa área da metodologia científica. Em que uma
abordagem filosófica se distingue de uma abordagem científica no tocante
a esse aspecto? Tais perguntas colocam-se já em um nível acima daquele
em que foram colocadas as questões anteriores; um nível em que a própria
relação entre a filosofia e a ciência é tematizada. O tópico do(s) método(s)
científico(s) revela-se, na verdade, muito fértil para se discutir, num me-
tanível, essa relação. Em muitos momentos, ficará claro que passarei de uma
discussão a respeito da ciência, para uma discussão a respeito da própria
abordagem filosófica adotada para lidar com questões metodológicas.
Antes de iniciar essa investigação, no entanto, quero fazer algumas
observações gerais sobre como este livro é organizado e qual o seu públi-
co-alvo. Ele é destinado a um público amplo. Houve uma preocupação em
abordar mesmo as questões mais técnicas de modo a permitir que leitores sem
formação filosófica prévia acompanhem as discussões. Exemplos históricos

11
são utilizados para ilustrá-las.2 Informações básicas, ou pré-requisitos para
as discussões, quando não fornecidas no corpo do texto, são apresentadas
em quadros, de forma resumida.
Embora eu pretenda também atingir um público não especializado,
espero que estudantes de graduação e de pós-graduação em filosofia, e até
mesmo especialistas, possam tirar proveito deste livro. Tive em mente, por-
tanto, públicos diversos ao escrevê-lo, que poderão percorrer os capítulos de
modo seletivo. Por exemplo, disse acima que o conteúdo dos quadros que
insiro em diferentes partes do texto é, em geral, bastante introdutório; pois
estes poderão ser saltados pelo leitor mais avançado. Além disso, assinalo
com asterisco seções que tratam de temas mais técnicos e avançados, que
poderão ser deixadas de lado numa primeira leitura, sem comprometer a
compreensão do texto principal.
Para facilitar a leitura e torná-la mais fluida, reduzi ao máximo as ci-
tações e referências bibliográficas no corpo do texto. A extensa bibliografia
apresentada ao final inclui todas as fontes consultadas, mesmo as que não
foram citadas no texto ou referenciadas explicitamente.

Plano do livro
O capítulo “Método e Metodologia” é introdutório e propõe que tais
termos, contrariamente ao uso comum, sejam distinguidos. Defendo aí que
a metodologia científica seja entendida como uma teoria (filosófica) do(s)
método(s) científico(s).
A espinha dorsal deste livro é composta por capítulos em que rela-
ciono, de forma detalhada, a metodologia científica com outras áreas da
filosofia, como a epistemologia, a lógica e a metafísica. Trata-se dos capítu-

2. Quero frisar que este não é um livro de história do método científico, mas de filosofia da
ciência. Os estudos de caso históricos, alguns bastante desenvolvidos, cumprem basica-
mente a função de ilustrar os tópicos filosóficos discutidos. Não há, desse modo, pretensão
de cobrir amplos períodos históricos ou de realizar um trabalho detalhado e exaustivo de
reconstrução histórica. Publiquei um livro de história da ciência (Abrantes, 1998; 2016) ao
qual remeto, em vários momentos, o leitor interessado numa historiografia mais abran-
gente e aprofundada. Aos interessados na metodologia do trabalho historiográfico e, em
particular, no uso filosófico que aqui faço da história da ciência, ver Abrantes (2002; 2016).

12
los: “Metodologia e Epistemologia”, “Metodologia e Lógica”, “Metodologia
e Metafísica”.
Um outro grupo de capítulos aborda, de modo particular, escolas con-
temporâneas da filosofia da ciência, e o lugar que nelas ocupa uma temá-
tica propriamente metodológica. Trata-se dos capítulos: “A Metodologia
no Programa do Empirismo Lógico”, “A Metodologia Falseacionista”,
“A Metodologia de Programas de Pesquisa Científica”, “A Metodologia da
Ciência Normal”.
O capítulo “Metodologia e Heurística”, embora tenha um caráter sis-
temático e geral – nele lanço mão de conceitos e desenvolvimentos na área
de inteligência artificial –, aborda um tópico estreitamente relacionado com
a metodologia proposta por Lakatos, um dos mais eminentes filósofos da
ciência do século passado.
O capítulo sobre “Metametodologias” discute como essas e outras teorias
filosóficas do método científico podem ser justificadas, e aborda diferen-
tes modalidades de justificação de teorias filosóficas em geral. O capítulo
“Metodologia e Descoberta Científica”, embora trate de um tópico sistemático,
retraça alguns marcos significativos da história da filosofia da ciência desde
o século XIX, tendo como pano de fundo a questão da possibilidade de se
distinguir os momentos da descoberta e da justificação no trabalho científico.
Os últimos capítulos do livro – “Modelos e Simulação”, “Metodologia
e Epistemologias Evolutivas” – enfocam temáticas metodológicas mais es-
pecíficas. Eles se articulam, de múltiplas maneiras, com os demais capítulos
do livro.
Faço esse recorte dos capítulos somente a título de apresentação e no
sentido de indicar os principais eixos do livro, que podem não transparecer
pela simples leitura do seu índice. Tive uma preocupação especial com o
entrelaçamento das temáticas abordadas nos diversos capítulos e seus res-
pectivos níveis de análise, que se remetem mutuamente. Os capítulos foram,
além disso, ordenados de modo a prover os pré-requisitos necessários para
as leituras subsequentes.
Quero agradecer, em especial, aos meus alunos de filosofia da ciência
que, ao longo de anos, foram submetidos a versões preliminares dos textos

13
que integram este livro. Suas questões e críticas ao apontarem, de forma
direta ou indireta, falhas e lacunas nesses textos foram fundamentais para
a elaboração deste livro e, sobretudo, motivaram-me a escrevê-lo.
Agradeço os comentários de colegas, amigos e amigas que tiveram
acesso a partes deste livro em diferentes estágios da sua elaboração. Mesmo
correndo o risco de me esquecer de alguma pessoa, pelo que peço desculpas,
quero mencionar de modo especial: Júlio Cabrera, Felipe Amaral, Fernando
Adorno, Maria Luiza Gastal, Charbel Niño El-Hani, Luis de Gusmão, Renan
Springer de Freitas, Sanmya Jesus Salomão, Filipe Lazerri, Antônio Ferreira
Marques Neto, Thaís Cavalcanti de Assis e Wendel Lopes. Agradeço também
aos Professores Howard Sankey, da Universidade de Melbourne, e Robert
Nola, da Universidade de Auckland, pelas muitas conversas esclarecedoras
que mantivemos em torno das temáticas aqui analisadas. Evidentemente,
essas pessoas não têm qualquer responsabilidade pelas falhas que porventura
se mantenham neste livro, a despeito das críticas e observações que fizeram
a versões preliminares dele.
Agradeço o CNPq pelo apoio que tem dado ao meu trabalho de pes-
quisa, e a CAPES por conceder-me uma bolsa de pós-doutorado que me
possibilitou fazer contatos diretos com vários especialistas nesses assuntos.

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1

Método e metodologia

1. Método
A palavra ‘método’ é de origem grega: met(a) (depois) + hodós (caminho).
Essa etimologia confirma o significado usualmente associado a esse termo:
o caminho pelo qual se pretende atingir um fim.1 Portanto, o método científico
seria o caminho trilhado ou, numa linguagem menos metafórica, a rotina
ou procedimento adotado para se atingir o fim (ou os fins) da(s) ciência(s).
A questão da natureza do método científico está, portanto, estreitamente
ligada à questão do fim (ou dos fins) da(s) ciência(s).
Uma imagem de ciência-como-método, que mencionei na Introdução,
nos leva a pensar que as diversas ciências compartilham, fundamentalmente,
um mesmo método. Por mais criteriosos e restritivos que sejamos no uso do
termo ‘ciência’2 não há, contudo, como negar muita diversidade no domínio
científico, inclusive no plano do método. Os cientistas, nas suas respectivas
áreas, usam vários métodos para resolver os mais diversos tipos de problemas.

1.1. Exemplos de métodos e categorização


Se não, vejamos. O que têm em comum os métodos de datação em-
pregados, por exemplo, em arqueologia; o método duplo-cego, usado em

1. Note que um dos significados do prefixo grego meta é justamente o de fim, o que reforça
esse entendimento.
2. Os termos ‘ciência’ e ‘científico’ são usados sem muita parcimônia. Isso é evidência do
prestígio de que desfrutam em nossos dias. Dizer que algo é científico confere, de antemão,
credibilidade a esse algo. Isso não foi sempre assim, e em vários círculos da nossa sociedade
tem crescido, ao contrário, uma resistência a tudo o que provenha da atividade científica,
ou que seja visto como associado a ela (como a tecnologia).

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medicina; os métodos de comparação e de analogia, usados em várias ci-
ências; e o chamado ‘método hipotético-dedutivo’?
Além do fato de vários desses métodos serem empregados em algumas
ciências mas não em outras, eles claramente pertencem a categorias diferentes
e são adotados tendo em vista diferentes objetivos.3 Alguns deles visam coletar
e tratar dados empíricos; outros estão envolvidos na construção de hipóte-
ses; outros pretendem colocar à prova hipóteses ou teorias; ou então testar
tratamentos médicos e produtos tecnológicos. E poderíamos citar muitos
outros métodos e diversos objetivos que pautaram o seu desenvolvimento.
Há, por exemplo, um grande número de métodos usados na obtenção
e tratamento de dados empíricos, que variam de ciência para ciência, em
função dos seus diferentes objetos de estudo. Tais métodos podem envolver
somente os nossos sentidos – por exemplo, uma observação direta – ou exigir
elaborados instrumentos, como o microscópio eletrônico, usualmente num
contexto experimental. O uso e a calibração desses instrumentos pressupõe,
por sua vez, a aplicação de um outro conjunto de métodos (ou técnicas).
Pensemos em um caso bem simples: o da calibração de uma balança, que
precede um processo de pesagem que, por sua vez, também segue um ou
vários métodos...
Para ilustrar essa categoria de métodos – empregados na obtenção
e tratamento de dados empíricos –, destacarei um método de medida de
tempo, na verdade um método de datação (de fósseis, por exemplo), muito
utilizado em ciências como a paleoantropologia e a arqueologia, entre outras.

(1) Método de carbono 14


Esse método ilustra um conjunto de procedimentos baseados na exis-
tência da radioatividade e em teorias a respeito desse fenômeno. Isótopos
de determinados elementos – neste caso, escolhi o carbono 14 – decaem, ou
seja, transformam-se em outros isótopos ou num elemento químico diferen-
te, como consequência da sua radioatividade (basicamente, da emissão de
nêutrons e raios gama pelos núcleos desses átomos). A taxa de decaimento
desses isótopos é constante. A datação faz-se com base na medição da pequena

3. Essa diversidade sugere, inclusive, que o termo ‘método’ pode ter diferentes sentidos
nesses contextos.

16
quantidade de material radioativo contido nos objetos em estudo. Com o
conhecimento da vida média do isótopo, e supondo-se que o decaimento
radioativo deu-se uniformemente, é possível calcular o tempo transcorrido
desde que o processo se iniciou.4
Esse método só pode ser desenvolvido após a descoberta da radioati-
vidade por Becquerel, em 1896, e ilustra a dependência que determinados
métodos têm de conhecimento científico.5 Neste caso, o método pressupõe a
descoberta de um novo fenômeno – a radioatividade –, e o desenvolvimento
de uma teoria a esse respeito (em última análise, a teoria atômica).
Em ciência, a coleta de dados é só uma etapa da investigação, buscando-se
em seguida explicar os fatos com base em hipóteses, ou testar essas últimas
com base nos fatos coletados. Para se construir tais hipóteses, métodos de
um outro tipo são utilizados. Para permanecermos no âmbito das ciências
históricas (como a antropologia biológica ou a geologia), tratarei a seguir de
uma regra metodológica utilizada para gerar hipóteses a respeito das causas
de determinados fenômenos.

(2) Método uniformista


O ‘método uniformista’ (chamemo-lo assim) traduz-se pela seguinte
regra: suponha que as causas que atuaram no passado sejam do mesmo
tipo e tenham a mesma intensidade das causas que se observa atuando no
presente. O fim deste método é formular hipóteses a respeito de processos
que ocorreram desde um passado remoto e cujos efeitos são observados
no presente.

4. A meia-vida de um isótopo radioativo é, como o termo indica, o intervalo de tempo


para que metade dos átomos originalmente presentes na amostra tenha decaído. Embora a
radioatividade seja um fenômeno indeterminístico – não há como saber quando um átomo
particular decairá, mas somente a probabilidade de fazê-lo –, o decaimento da amostra
como um todo (envolvendo um grande número de átomos) dá-se de forma constante e não
é afetado por condições externas. A taxa de decaimento de um isótopo de certo tipo – diga-
mos o C14, que tem uma meia-vida de aproximadamente 5700 anos – depende do número
de átomos-pais (ou seja, dos átomos desse isótopo antes do decaimento) e da constante de
decaimento (que é uma propriedade de cada tipo de isótopo radioativo).
5. Isso não impede que o método de carbono 14, como qualquer outro método, possa ser
usado para gerar (mais) conhecimento (por exemplo, a respeito da evolução de uma deter-
minada espécie). Por outro lado, as teorias científicas que sustentam tais métodos foram
geradas e validadas por outros métodos, possivelmente mais gerais (entre alguns dos que
serão arrolados a seguir).

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Ao comparar-se esta regra metodológica com o método anterior, nota-se
que ela é baseada não em conhecimento científico propriamente dito, mas
numa imagem de natureza (conhecida como ‘uniformismo’) e que pode ser
apresentada nos seguintes termos: a natureza atua de modo uniforme, tanto
no que diz respeito ao tipo de causa (necessária para produzir um determi-
nado efeito) quanto à intensidade com que a causa atua.6 Podemos também
ver o empirismo, uma imagem de ciência, como uma outra motivação para a
aplicação dessa regra (tratarei em detalhes dessa imagem nos capítulos 2 e 4).
Esta regra metodológica suscitou controvérsia entre geólogos do início do
século XIX, já que nem todos aceitavam as imagens de natureza e de ciência
que ela pressupõe. Um grupo de geólogos defendia explicações uniformistas
e outro grupo defendia explicações catastrofistas para a conformação atual
da crosta terrestre. Os catastrofistas supunham, frequentemente apoiando-se
em mitos, que a superfície da Terra fora moldada por processos de grandes
proporções, diferentes em magnitude e natureza de tudo o que observamos
hoje em dia. Hutton, representante da corrente oposta, uniformista, era um
empirista e defendia o princípio da uniformidade da natureza. Em Theory
of the earth: with proofs and illustrations (1795) sustentou, pela primeira
vez, que a Terra sofreu mudanças lentas e graduais (uniformes) num longo
período de tempo. Como consequência de sua imagem empirista de ciência,
os únicos agentes causais que admitia para explicar o desenvolvimento da
Terra são os que observamos atuando hoje em dia. Hutton exerceu grande
influência sobre Lyell, que, por sua vez, foi uma referência central para
Darwin chegar à sua própria teoria.7 Para os uniformistas, os eventos no
passado são supostos semelhantes aos observados presentemente: a indução
baseada nessas observações é o único método que admitiam em Geologia.
No caso do uniformismo, necessariamente há que se pressupor intervalos
de tempo muito maiores do que os exigidos pelas explicações catastrofistas,
já que, tipicamente, o que observamos hoje são causas atuando em pequena

6. Acredito que isso deva ser distinguido da princípio da uniformidade da natureza, que pode
ser assim formulado: as leis da natureza são imutáveis. O uniformismo como apresentado
no texto vai além, fazendo afirmações sobre causas particulares (seu tipo, intensidade, etc.).
7. Ver também a nota 10, abaixo. Aos interessados em ter detalhes sobre o confronto de diferentes
imagens de ciência provocado pela teoria darwinista da evolução no séc. XIX, ver Abrantes, 2016.

18
intensidade e, como consequência, processos lentos, como os de erosão das
rochas e deposição de materiais no leito dos oceanos.
Tanto o método (1) quanto a regra metodológica (2) são usados em
determinadas ciências e, por isso, os qualificarei de ‘particulares’. Passo a
expor alguns métodos que têm um caráter mais geral.

(3) Método de divisão e composição


Vou assim chamar o método que prescreve a divisão de um problema
complexo em problemas mais simples; e que se resolvam estes últimos pri-
meiro e se tente, em seguida, recompor as soluções para resolver o problema
original. Encontramos formulações famosas desse método nos trabalhos
de Descartes.8 No Discurso do Método – num contexto em que claramente
está voltado para a resolução de problemas matemáticos –, ele se impõe o
“preceito” de “(...) dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em
tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor
resolvê-las” (Descartes, 1987:37-8).9 Na literatura de inteligência artificial é
comum se chamar de ‘método de dividir e conquistar’ a uma versão desse
método. Ele se aplica, em princípio, à resolução de qualquer problema cuja
complexidade impeça um enfrentamento, digamos, global.

(4) Método de analogia


Ele pode ser formulado nos seguintes termos: se objetos do tipo A têm
propriedades (r,s,t,u,v) e observa-se que objetos do tipo B compartilham
com A um subconjunto dessas propriedades, digamos, as primeiras quatro
propriedades (r,s,t,u), infira que objetos do tipo B também possuem as
demais propriedades (no caso, a propriedade v).
Do mesmo modo que o método (2), os métodos (3) e (4) são utilizados
para gerar hipóteses, embora esses dois últimos, como disse, podem em

8. Esse método não deve ser confundido com o chamado ‘método de análise e de síntese’,
que foi proposto pelos geômetras na Antiguidade e que também é discutido por Descartes
(ver a nota seguinte).
9. Essa obra foi publicada, originalmente, em 1637. Antes disso, nas Regras para a direção
do espírito (1628), ele apresentara outras versões desse método ou preceito (ver, sobretudo, a
regra V). Essa discussão se insere em outra, mais geral e de grande relevância, a respeito do
papel das simplificações e idealizações em ciência. No capítulo 12, abordo alguns aspectos
dessa discussão quando trato de modelos e simulação. Ver também Darden (1991).

19
princípio ser aplicados em diferentes ciências. O método (3), por outro
lado, é por demais esquemático, já que não indica como resolver problemas
particulares mas sugere somente uma estratégia muito geral para resolver
qualquer tipo de problema que se mostre complexo.
Para finalizar essa ilustração preliminar da enorme diversidade de méto-
dos e de regras metodológicas, chamo a sua atenção para as seguintes regras:
(5) Se duas hipóteses são, ambas, adequadas empiricamente, dê prefe-
rência à que é compatível com teorias já aceitas pela comunidade científica.
(6) Dê preferência a hipóteses que não só expliquem fenômenos obser-
vados, mas que também façam previsões de novos fenômenos.
(7) Acolha uma hipótese que explique muitos tipos diferentes de fenô-
menos, em lugar de várias hipóteses que expliquem, cada uma delas, um
único tipo de fenômeno.10
(8) Não busque confirmar as suas hipóteses; tente desconfirmá-las
(mostrar que são falsas).
Note, primeiramente, que as regras metodológicas de (5) a (8) são uti-
lizadas não para construir hipóteses (que se supõe já terem sido propostas),
mas sim para validá-las. Não é óbvio, além disso, que essas regras dependam,
pelo menos diretamente, de conhecimento científico ou de uma imagem de
natureza, como no caso das regras (1) e (2). Algo de mais geral, de natureza
filosófica, as motivaria ou as justificaria.
Apresentei alguns dos métodos acima sob a forma de regras impera-
tivas, normas metodológicas categóricas. Essa forma sintática não os faz
diferentes dos demais. Eu também poderia ter descrito o método (1), por
exemplo, da mesma forma, através de uma série de regras: faça isso, depois
faça aquilo, etc.
O meu objetivo até aqui foi o de ilustrar a diversidade de métodos pas-
síveis de serem utilizados nas ciências, sugerindo que eles podem ser mais
ou menos gerais, de diferentes tipos e voltados para diferentes fins. Também
sugeri que tais métodos ou regras metodológicas são justificadas de diferentes
modos: ora por teorias científicas, ora por teorias filosóficas.

10. Whewell, grande filósofo da ciência do séc. XIX, propôs com o termo ‘consiliência’ uma
regra semelhante a esta. Darwin foi influenciado por esse filósofo, preocupado que estava
em validar filosoficamente a sua teoria da evolução. Ver Abrantes, 2016, cap. 6.

20
1.2. Fins intermediários e fins últimos da ciência
Na lista de métodos que apresentei acima, é possível explicitar uma
grande variedade de fins associados a eles (em geral, eles estão implícitos
na formulação da regra metodológica que os expressa operacionalmente).
Proponho que dividamos esses fins em dois grandes grupos: fins inter-
mediários e fins últimos promovidos por tais métodos, isoladamente ou
combinados uns com os outros.
Por exemplo, o método de calibração, digamos de uma balança, busca
torná-la um instrumento fidedigno de medida. A calibração de um instru-
mento não é, portanto, um fim último, um fim em si mesmo, mas um fim
intermediário para atingir outro como, no caso da balança, obter informação
sobre a massa de um determinado corpo. Este também pode ser um fim in-
termediário, no contexto de uma pesquisa que busca conhecer como a massa
de um corpo está relacionada com a sua aceleração, dada uma certa força,
na tentativa de descobrir alguma regularidade envolvendo essas variáveis.
Este objetivo pode, ainda, ser intermediário e buscar a avaliação de uma
hipótese ou teoria (como a mecânica de Newton) proposta para explicar,
por exemplo, o comportamento de um corpo num campo gravitacional,
como o da Terra.
Um microscópio eletrônico pode ser utilizado para investigar ranhuras
em instrumentos líticos, que permitam conjecturar a respeito dos processos
utilizados para construí-los ou a respeito dos seus usos na pré-história.
A classificação de modalidades de paleotecnologias (atualmente há consenso
em torno de quatro) e conjecturas a respeito do seu grau de complexidade
(associada à dificuldade em fabricar esses instrumentos, à sua uniformidade,
aos seus usos etc.), juntamente com evidências a respeito dos instrumentos
encontrados em diversos sítios arqueológicos, permite retraçar trajetórias
de migração (por exemplo, confrontar diferentes cenários para a ocupa-
ção de regiões da Ásia e da Europa ocidental pelo Homo ergaster após ter
saído da África).
Outro exemplo: um cientista, ao classificar as plantas de uma dada
região, pode não parar aí, atingindo um fim intermediário, mas ter em
mente conhecer as suas relações ecológicas com os animais que ali vivem.

21
Este fim, por sua vez, pode ser intermediário e intentar um estudo sobre as
pressões seletivas que moldam a evolução daquelas espécies de seres vivos.
Mais um exemplo: métodos matemáticos e lógicos usualmente visam
manipular e transformar formas simbólicas, sentenças, numa linguagem.
Este é, em geral, um fim intermediário. O fim último do uso de tais métodos
pode ser, por exemplo, o de provar um teorema. A manipulação simbó-
lica é também fundamental, em muitos casos, para se poder confrontar
uma teoria empírica com as evidências coletadas pela observação ou pela
experimentação.11 O emprego do chamado ‘método hipotético-dedutivo’
pressupõe, como veremos, esse tipo de manipulação simbólica (a dedução
lógica) e busca, em última análise, saber se uma hipótese é adequada aos
dados empíricos disponíveis. Se for adequada, ela é justificada ou validada.
O fim último do emprego desses métodos matemáticos e lógicos, no caso,
é saber se a hipótese habilita-se a ser incorporada enquanto conhecimento
científico. A aplicação das regras metodológicas de 5 a 8, apresentadas aci-
ma, também busca promover esse fim (a validação de uma hipótese). Este
fim pode, por sua vez, estar subordinado a um outro, como o de encontrar
ordem na desordem aparente de fenômenos naturais.
Todos os métodos arrolados até aqui promovem, portanto, o fim último
da atividade científica: gerar conhecimento. Há, contudo, diversas contro-
vérsias em torno dessa noção de conhecimento, discutidas no âmbito da
epistemologia (o tópico central do capítulo 2). Podemos, além disso, achar
esse fim (o conhecimento) por demais amplo e genérico, e apontar, em vez
disso, para outros fins mais específicos, como: a explicação, a previsão, etc.
Em filosofia da ciência, essa discussão vincula-se aos valores das teorias
científicas, como sua adequação empírica, seu poder preditivo, seu poder
explicativo, sua simplicidade etc. Esses fins últimos da atividade científica,
podemos denominá-los como ‘epistêmicos’. Há muito a ser investigado a
respeito da natureza desses fins, por exemplo: se são alcançáveis; se são inde-
pendentes; se podem ser promovidos simultaneamente ou se, ao contrário,

11. Em ciência, a observação é, raramente, um fim em si mesmo, mas motiva a construção


de leis, teorias, ou permite submetê-las a um teste.

22
ao visar um deles podemos comprometer outros etc. Essas questões são de
grande relevância para a teoria do método científico.
No verbete método do Dicionário Houaiss, naquelas acepções assinaladas
como propriamente filosóficas, podemos não só perceber claramente a relação
entre métodos e fins – sugerida, como mostrei no início, pela etimologia da
palavra – mas também a ênfase nos fins propriamente epistêmicos, últimos.
O método seria:
(10) o “conjunto sistemático de regras e procedimentos que, se respei-
tados em uma investigação cognitiva, conduzem-na à verdade”;
(10.1, “cartesianismo”) “o somatório de operações e disposições prees-
tabelecidas que garantem o conhecimento, tais como a busca de evidência,
o procedimento analítico, a ordenação sistemática que parte do simples
para o complexo, ou a recapitulação exaustiva da totalidade do problema
investigado”;
(10.2, “na filosofia de Bacon”) a “reunião de prescrições de natureza
indutiva e experimental que asseguram o sucesso da investigação científica”;
Nessas acepções indicadas no dicionário, os fins epistêmicos são men-
cionados explicitamente, com maior ou menor precisão: “verdade”, “conhe-
cimento”, “sucesso da investigação”. Note também a “garantia”, a “segurança”
com que se espera que o(s) método(s) “conduza(m)” a tais fins, bem como
o caráter prescritivo do(s) método(s), claramente explicitado em (10.2).
Veremos que uma abordagem filosófica em metodologia volta-se, pri-
mordialmente, para tais fins epistêmicos.

1.3. Uma hierarquia de métodos


Como disse anteriormente, os métodos científicos não possuem o
mesmo grau de generalidade. Alguns deles são usados em certas ciências,
mas não em outras.
Por exemplo, as técnicas para o sequenciamento do material genético
obviamente só são utilizadas em biologia ou em ciências que tenham uma
grande interface com a biologia. Um sociólogo, por exemplo, não se ser-

23
virá dessas técnicas, do mesmo modo como métodos para a elaboração e
tabulação de questionários de nenhuma serventia serão para o biólogo.12
Os métodos usados para se explicitar as implicações de uma hipótese
ou teoria também variam de área para área. Em ciências matematizadas,
formalizadas, tais implicações são resultado de procedimentos matemá-
ticos (por exemplo, algébricos) e têm um caráter dedutivo (quando há
propriamente uma axiomatização das teorias, por exemplo) ou quase-de-
dutivo. Em ciências não-matematizadas, não podemos aspirar a esse mesmo
grau de rigor e de automatismo proporcionado pelas técnicas de manipu-
lação simbólica.
Alguns métodos são particulares porque só se aplicam a objetos com
certas propriedades, ou então a certos tipos particulares de problema. Este é
o caso do método de carbono 14, que mencionei anteriormente. Esse método
não permite fazer datações além de 50 mil anos atrás. Um outro método, de
potássio/argônio, não permite recuar além de 200 mil anos (Klein & Edgar,
2005:230). Vários métodos, além desses dois, são combinados para se fazer
datações com respeito a ocorrências mais recuadas no tempo.13
Outro exemplo de método particular é o método duplo-cego: descobriu-
se que é necessário usá-lo para se testar a real eficácia de medicamentos em
seres humanos, já que estes podem ser facilmente sugestionados (o chamado
‘efeito placebo’). Para tais métodos particulares, de nível baixo, por vezes
usa-se o termo ‘técnica’ (termo que usei acima para me referir a alguns
métodos). Uma comparação de métodos com ferramentas pode ajudar a
entender em que sentido são ‘particulares’.

12. Eventualmente, algum problema poderia reunir biólogos e sociólogos, na solução do qual
possam compartilhar os mesmos métodos, como o problema de explicar o comportamento
de animais sociais. A esse respeito, ver Abrantes (2018, especialmente os capítulos 10 a 13).
13. Os métodos de carbono 14 e de potássio/argônio exemplificam a categoria de métodos
absolutos de datação. O paleoantropólogo e o arqueólogo servem-se também de métodos
relativos de datação, que permitem estabelecer séries temporais de fósseis, objetos e restos
animais em sítios arqueológicos. Um deles é baseado no princípio de superposição estrati-
gráfica: “... quanto mais profunda a camada de rocha onde um objeto aparece, mais antigo
é esse objeto” (Klein & Edgar, 2004:229). Outro método, conhecido como o ‘método de
datação fauniana’, possibilita datar um sítio que contém uma única camada, comparando-o
com um sítio que contém várias camadas, de alguma outra região, com base nos fósseis,
objetos e restos animais encontrados em ambos.

24
Uma ferramenta, como um martelo, para que possa cumprir sua função
(por exemplo, a de enfiar pregos numa madeira) deve ser feita de determi-
nados materiais (no caso, de ferro) e possuir certas propriedades, como a
de ter certa massa, dentre outras. Essas propriedades do martelo, por sua
vez, dependem de características do nosso mundo particular. Martelos,
para cumprirem sua função na lua, por exemplo – que possui uma força
gravitacional mais fraca – teriam que ter características diferentes, como
uma maior massa.
Num mundo (possível) em que não existissem materiais duros (por
exemplo, num mundo em que tudo fosse gasoso) martelos não teriam qual-
quer utilidade (na verdade, não poderiam sequer ser construídos!).
De modo análogo a instrumentos, métodos de nível baixo promovem
determinados fins no contexto de um mundo particular, ou de um domínio
particular de fenômenos. O que justifica o emprego de métodos particulares
de nível baixo são, normalmente, teorias científicas que tratam dos objetos
ou processos particulares aos quais tais métodos se aplicam. Nesses casos,
percebe-se claramente a dependência dos métodos com respeito a teorias
científicas, ou com respeito a imagens de natureza.
A denominação genérica de ‘método experimental’14 ilustra como a
aplicação de muitos métodos depende das propriedades atribuídas aos objetos
e processos que estão sendo investigados. A experimentação com objetos
físicos – como esferas, gases, correntes elétricas, etc. – exige procedimentos
certamente diferentes, em aspectos cruciais, da experimentação com animais
(por exemplo, em psicologia). Durante séculos questionou-se, além disso,
que a experimentação fosse um método adequado para se estudar os sistemas
vivos, supostamente por terem propriedades diferentes da matéria inerte.
Acreditava-se que a experimentação eliminaria, justamente, o que os seres
vivos teriam de específico, de essencial. Há, também, restrições ao uso do
método experimental em várias áreas, como nas ciências sociais, em função
dos seus objetos específicos ou por razões éticas. Pode-se argumentar que

14. Trata-se, na verdade, de uma atitude geral, secundada por uma imagem de natureza, que
se reflete no emprego de um conjunto de métodos. Sobre a noção de imagem de natureza,
ver Abrantes (1998; 2006a; 2016).

25
o método experimental pressupõe, além disso, uma imagem mecanicista
de natureza, tese que discutirei no capítulo 10.
Ao lado de métodos que são particulares a determinadas ciências – para
os quais usei termos como ‘métodos de nível baixo’ ou ‘técnicas’ –, outros
tantos métodos são utilizados em diversas ciências ou em todas elas, por
terem um caráter mais geral. Um exemplo é o que chamei acima de ‘mé-
todo hipotético-dedutivo’ (e que, por vezes, é identificado como o método
científico, ou parte central deste). É também o caso dos métodos, ou regras,
numerados de 3 a 8 acima. Muitos desses métodos parecem, à primeira vista,
neutros com respeito à natureza dos objetos a que se aplicam (à sua matéria,
por assim dizer); eles seriam, nesse sentido, formais, decorrendo daí a sua
aplicabilidade mais geral. Os métodos numerados de 5 a 8 enquadram-se
nessa categoria. Vários métodos matemáticos e estatísticos também poderiam
ser aí incluídos (a despeito dos fins específicos que são perseguidos, como,
por exemplo, o tratamento de dados empíricos).

2. Metodologia
Em diversos contextos ordinários, ‘método’ e ‘metodologia’ são pala-
vras usadas como sinônimos e são, portanto, intercambiáveis. As questões
colocadas nas seções anteriores e na Introdução deste livro bem como as
categorias aí propostas mostram, contudo, que pode ser útil distinguir essas
noções e reservar os termos ‘metodologia’ e ‘metodológico’ para se referir
a um discurso sobre o método. Neste caso, a metodologia estaria situada
num nível diferente do método. Note que isso é o que sugere a etimologia
do termo ‘metodologia’: o logos do método. O termo grego logos pode ser
entendido, justamente, como razão. A metodo-logia teria por objeto a razão
do emprego de determinado método.
A metodologia seria, nessa acepção, uma teoria do método, através
da qual os métodos – em geral, adotados rotineiramente – seriam sistema-
tizados, explicados, prescritos (tendo-se em mente os fins pretendidos) e,
eventualmente, criticados. Por exemplo, a tentativa preliminar de explicitar
uma relação estreita entre métodos e fins, indicada anteriormente, constitui
uma reflexão sobre o método e coloca-se num outro nível, que não é o do

26
uso ou da aplicação do método no trabalho científico rotineiro, de resolução
de problemas. Proponho, portanto, a seguinte distinção de níveis:
2. Metodologia
1. Método
A relação do nível (2) com o nível (1) pode ser, como disse acima, a de
prescrição, de explicação, de crítica, de sistematização, etc.
A comparação entre método e técnica pode, uma vez mais, ser es-
clarecedora. Uma técnica, como um método, é um procedimento para se
atingir um determinado fim. Um artesão é alguém que domina uma técni-
ca, uma arte, ou seja, os meios mais eficientes para atingir os fins a que se
propõe. Mas o artesão pode ter aprendido a usar uma técnica por imitação,
por exemplo, o que é muito comum, e, portanto, pode ter adquirido esse
know-how sem saber explicar como funciona a técnica, ou porque ela tem
sucesso em atingir os objetivos fixados. Um bom pedreiro, ou mestre de
obras, sabe como fazer uma certa viga de concreto para a sustentação de
uma casa misturando, numa certa proporção, cimento e areia, além de
outros materiais. Mas ele talvez não saiba a razão disso.15 Um engenheiro,
por ter estudado resistência dos materiais, conhece, em princípio, o porquê
da regra que prescreve uma determinada proporção, tendo em vista o peso
que a viga vai suportar.
Um tecnólogo, diferentemente de um técnico, possui uma reflexão
explícita e consciente a respeito de porque determinadas técnicas funcionam
tendo em vista certos fins. Ele possui um conhecimento que permite explicar
a eficácia de certas técnicas, em determinadas circunstâncias.16
Por analogia, o metodólogo seria aquele capaz de sugerir qual o melhor
meio para se alcançar as metas a que se propõe o cientista e de avaliar a efi-
cácia (probabilidade de êxito) de um determinado método.17 A metodologia

15. O pedreiro tem experiência, diria Aristóteles, sem ter ciência.


16. Essa diferença pode ser somente de grau, ao vermos um contínuo entre o tipo de conhe-
cimento que possui o técnico e o tipo de conhecimento que possui o tecnólogo.
17. O metodólogo (que reflete sobre o método) e o cientista (que emprega o método) podem
ser a mesma pessoa, evidentemente. No caso de métodos de nível baixo são, usualmente,
a mesma pessoa, já que para fazer metodologia é preciso dominar a teoria científica que
fundamenta o método utilizado. Mesmo no caso de métodos de alto nível isso pode ocorrer
– mas não necessariamente. Os maiores metodólogos do século XIX, por exemplo, foram
cientistas, como Claude Bernard, Pierre Duhem, H. Hertz, entre outros.

27
pode, nessa perspectiva, ser entendida como uma espécie de tecnologia,
isto é, como um conjunto de recomendações sobre os melhores meios para
se atingir uma determinada meta. Nessa acepção, a metodologia científica
consistiria no estudo da adequação entre os métodos e a(s) meta(s) últi-
ma(s) da ciência.

*2.1. Uma teoria filosófica do método?


Sugeri, na seção anterior, que um método científico é, em geral, ado-
tado rotineiramente numa prática, enquanto que a metodologia científica
seria uma tentativa de explicar esse método, torná-lo objeto de reflexão,
de teorização. A reflexão metodológica usualmente não se dá no nível da
ciência, mas no da metaciência.18 O caráter dessa reflexão metacientífica
sobre o método será objeto de muita discussão ao longo deste livro. Vou
antecipá-la, aqui, explorando, rapidamente, o entendimento de que essa
reflexão pode ter um caráter estritamente filosófico.
A filosofia compromete-se, tradicionalmente, com o que é geral, assim
como com a essência ou a natureza daquilo que investiga. Este livro apre-
senta-se como uma abordagem filosófica da questão do método e, portanto,
a questão da diversidade versus unidade metodológica da ciência é crucial
para justificar esse projeto. Podemos almejar a generalidade no domínio
da metodologia científica? Faz sentido, diante do que vimos até aqui, tentar
reduzir os vários métodos empregados pelos cientistas a um ou, pelo menos,
a alguns poucos métodos? Dada a relação íntima entre métodos e fins, uma
pergunta análoga pode ser feita com respeito aos fins da ciência.
Uma teoria filosófica do método científico pretende ter independência
com respeito ao conhecimento – relativo a um mundo ou domínio particu-
lar de objetos, processos, etc. – produzido no âmbito das diversas ciências.
Além disso, ela não poderia servir-se dos próprios métodos utilizados nas
ciências, sob pena de cair numa circularidade viciosa. A metodologia cien-

18. Vimos anteriormente que o prefixo grego met(a) tem o sentido de depois. Metacientífico,
segundo essa etimologia, significa o que vem depois da ciência, ou em seguida a esta. No
verbete meta do Dicionário Aurélio encontramos o significado “reflexão crítica sobre”, bem
adequado ao sentido contemporâneo de metaciência: reflexão crítica sobre a ciência (no
caso aqui discutido, uma reflexão crítica sobre o(s) método(s) científico(s) ).

28
tífica, na condição de uma filosofia do método científico, teria, neste caso,
que ser elaborada a partir de princípios (e métodos!) filosóficos: lógicos,
epistemológicos, metafísicos, etc.19
Essa autonomia com respeito às ciências é vista, usualmente, como uma
condição para que a metodologia tenha um caráter normativo, prescritivo
(de direito), crítico, não se limitando a descrever os métodos (de fato) em-
pregados pelos cientistas e os fins que eles (de fato) perseguem. Mas como
garantir essa autonomia?
A metodologia teria que investigar a priori – quer dizer, antes e indepen-
dentemente de evidência empírica – quais são os métodos mais adequados,
ou mais eficientes, para se atingir com sucesso determinados fins (em certas
circunstâncias). E, do mesmo modo, a legitimidade, relevância, etc. desses
fins. Só assim uma metodologia filosófica poderia prescrever métodos a
serem adotados pelos cientistas. A metodologia científica habilitar-se-ia,
desse modo, a ser uma genuína sub-área da filosofia da ciência.20
Além desse caráter normativo, uma teoria filosófica do método aspira,
de um lado, à generalidade. Vimos que muitos métodos (suprimirei, por
comodidade, o qualificativo ‘científico’) são particulares a determinadas
tarefas ou áreas de atividade, e adequados a objetos específicos. Para que uma
metodologia seja geral, ela tem que ser neutra com respeito a aspectos parti-
culares do domínio de aplicação de determinados métodos. A esse respeito,
é instrutivo comparar o método de carbono 14 com as regras metodológicas
numeradas de 5 a 8. O primeiro, como indiquei, pressupõe um conhecimento
científico a respeito dos fenômenos radioativos. Esse conhecimento científico
não somente valida o método, mas também estabelece como ele deve ser
utilizado e em que situações. Pelo fato de que pressupõem conhecimento

19. Estou pressupondo, para efeito dessa discussão, que os princípios lógicos, epistemológicos,
metafísicos, etc. têm uma natureza fundamentalmente distinta dos princípios das ciências.
Isso pode ser contestado, contudo, como farei nas várias discussões sobre o naturalismo
ao longo deste livro.
20. Do mesmo modo como Laudan (1980a) refere-se a uma lógica da inferência científica a ser
explicitada por uma teoria do método, o verbete metodologia no dicionário Houaiss também
concede à lógica um papel privilegiado. A metodologia seria um “ramo da lógica que se ocupa
dos métodos das diferentes ciências”. É curioso que, no mesmo dicionário, a acepção seguinte
desse mesmo verbete conceda, agora, à ciência um lugar privilegiado que era, antes, reservado
à lógica (!): “(1.1) Parte de uma ciência que estuda os métodos a que ela própria recorre”.

29
científico, métodos de nível baixo não interessam aos filósofos (que, afinal,
não têm competência para se pronunciarem a respeito da razão pela qual
tais métodos são empregados).
Por outro lado, os filósofos estão envolvidos com os fins últimos da
ciência e com uma justificação propriamente filosófica daqueles métodos
que têm um caráter geral. A generalidade está, neste contexto, associada à
universalidade de uma metodologia – que pretende ser uma reflexão sobre
aqueles métodos empregados em todas as ciências.21 Esse uso que faço do
termo ‘metodologia’, em contraposição ao termo ‘método’, no que diz respeito
à dimensão generalidade não é, contudo, consensual.22
Os ideais de normatividade, generalidade e universalidade para uma
teoria filosófica do método podem ser, contudo, quiméricos. Essa teoria,
em vez de ser normativa no sentido forte do termo, talvez tenha que ser
concebida, de forma mais modesta, como resultado de um trabalho de
esclarecimento, de análise das intuições metodológicas (pré-analíticas) dos
cientistas (de suas imagens de ciência).23
Talvez tenhamos, também, que admitir que tanto o método quanto a
metodologia são particulares a determinadas áreas ou objetos de investiga-
ção e abandonar, consequentemente, o ideal de uma unidade metodológica
para o conjunto das ciências. Nesse caso, a distinção mesma entre método
e metodologia (filosófica) pode ficar comprometida.
Nesta discussão preliminar surgiram questões complexas, que suscitam
muita controvérsia entre filósofos. Haveria uma unidade metodológica das
ciências? Em que medida uma metodologia científica pode ser a priori e

21. Em outros termos, poderíamos tentar defender a existência de uma única teoria (filo-
sófica) do método científico reconhecendo, ao mesmo tempo, a diversidade dos métodos
empregados pelos cientistas.
22. Por vezes, faz-se uso desses termos num sentido exatamente inverso ao que estou pro-
pondo aqui, no tocante a essa dimensão de generalidade: as metodologias seriam particulares
a determinadas áreas das ciências, e o método seria geral. Exemplos desse emprego são:
‘metodologia’ da física, ‘metodologia’ da economia, etc. (as chamadas metodologias especiais
das ciências). Ver Nadeau, 1999, p.413; Salmon, In: Dancy et al. 1993, p.279.
23. O discernimento propriamente metacientífico promovido pela metodologia (entendida
como teoria do método) revelar-se-ia por exemplo: a) no uso de uma terminologia ou de
conceitos específicos, metacientíficos (distintos dos conceitos empregados no discurso
metódico, no nível da linguagem científica); b) na sistematização desses conceitos num
corpo teórico (numa genuína teoria do método).

30
neutra com respeito ao conhecimento substantivo (sobretudo aquele produ-
zido no âmbito das ciências)? Como a metodologia se articula com outras
áreas da filosofia, como a lógica, a epistemologia e a metafísica? Veremos
nos próximos capítulos que as respostas a essas questões variam bastante
de acordo com a orientação filosófica que se adote.

31
32
2

Metodologia e epistemologia

Epistéme é o termo grego para conhecimento. Em Platão, por exemplo,


epistéme opõe-se a doxa (opinião). Em Aristóteles, epistéme designa um
corpo sistematizado de conhecimento: teórico, verdadeiro e demonstrado
a partir de princípios indubitáveis. Epistemologia pode, portanto, ser enten-
dido como teoria do conhecimento: área da filosofia que investiga a natureza
do conhecimento (o que é isso?), as suas origens (ou fontes), modalidades
e limites. Usualmente, a teoria do conhecimento parte de uma análise (ou
definição) da noção de conhecimento, estabelecendo as condições necessá-
rias (e conjuntamente suficientes) para se ter conhecimento. Numa tradição
que remonta a Platão, analisa-se o conceito de conhecimento como crença
verdadeira justificada.1
Partindo-se dessa análise da noção de conhecimento, destacam-se duas
frentes importantes da investigação epistemológica: o desenvolvimento de
teorias da verdade e de teorias da justificação.
As teorias da verdade como correspondência e da verdade como coerência
são exemplos de desenvolvimentos na primeira frente. Aristóteles defendeu
uma versão da primeira teoria: uma proposição é verdadeira se ela representa
um fato ou corresponde a um fato. Uso o exemplo clássico: a proposição ‘a
neve é branca’ é verdadeira se (de fato) a neve é branca. Nessa concepção
correspondentista, a verdade enquanto propriedade de uma proposição é
determinada por um estado de coisas no mundo (a que a proposição, se

1. Recentemente, essa análise foi contestada por Gettier (1963), dando origem aos chamados
‘problemas Gettier’, cuja resolução vem consumindo os esforços de gerações de teóricos
do conhecimento. No contexto das questões investigadas neste livro, podemos adotar a
definição tradicional de conhecimento e ignorar esses problemas.

33
verdadeira, refere-se), e independe de nossa condição epistêmica (daquilo
em que acreditamos, do que consideramos racional ou justificado, etc.).2
Isso já revela um problema com a concepção correspondentista: ela
tenta correlacionar dois polos que são heterogêneos, que têm diferentes
naturezas: uma proposição de um lado (algo com a natureza linguística ou
com a natureza de uma crença) e um estado de coisas no mundo (algo que,
em princípio, possui uma natureza extra-linguística ou extra-mental, algo
exterior a nós e ao que temos acesso direto). Como saber, então, se uma
proposição (ou uma crença com este conteúdo) é verdadeira? Esse problema
é considerado insolúvel pelos que rejeitam a concepção correspondentista e
tentam substituí-la por uma concepção que envolva polos homogêneos, ou
seja, que tenham natureza similar e que, portanto, possam ser comparados.
Uma tentativa nessa direção é, justamente, a concepção coerentista da
verdade, segundo a qual uma proposição (ou a crença correspondente a ela)
é verdadeira se ela for coerente com outras proposições (ou crenças). Para
usarmos o mesmo exemplo, a proposição ‘a neve é branca’ é verdadeira se
for coerente com outras proposições, como a de que ‘a neve reflete luz de
todos os comprimentos de onda’, a de que ‘a neve é composta de cristais de
água’, etc. Note que no coerentismo, para atribuirmos a propriedade verdade a
uma proposição (ou crença), basta compararmos coisas de mesma natureza:
crenças ou proposições. O mundo como algo externo a nós não entra em cena
nesse caso. O correspondentista objetará que, por mais que asseguremos que
um conjunto de proposições é coerente, uma delas (ou a totalidade delas)
pode, ainda assim, ser falsa. Outra maneira de colocarmos a objeção seria:
a crença de que a neve é branca pode ser falsa mesmo que tenhamos todo
um conjunto de crenças correlatas e coerentes em relação a ela.3

2. Segundo essa concepção, portanto, a verdade teria um caráter não epistêmico. A concep-
ção de verdade como coerência, que apresentarei a seguir, aponta, por sua vez, para uma
concepção epistêmica de verdade.
3. Há outras concepções da verdade, como a pragmática, segundo a qual uma crença é
verdadeira (ou a proposição que constitui o seu conteúdo é verdadeira) se ela for eficaz
em guiar uma ação. Este não é um livro de teoria do conhecimento, portanto, não caberia
entrar numa discussão aprofundada a respeito da noção de verdade.

34
Agora vou traçar um panorama de questões centrais e relevantes – para
a investigação que empreendo neste livro –, na outra frente da investigação
epistemológica: a de teorias da justificação. O fundacionalismo é uma teoria
da justificação que remonta, pelo menos, a Descartes e constitui uma proposta
muito influente. O fundacionalista defende que uma crença é justificada
se, e somente se, ela puder ser inferida de crenças básicas cuja verdade (e
justificação) não podem ser questionadas; ou seja, se ela puder apoiar-se
em algum fundamento indubitável. Por exemplo, um fundacionalismo de
tipo empirista poderia defender que crenças que têm origem na percepção
formam uma base de crenças indubitáveis – como a crença que tenho, nes-
te momento, de que estou diante de uma tela de computador. Esta minha
crença estaria justificada, simplesmente, porque eu estou vendo a tela do
meu computador, porque estou tendo esta percepção. Não seria necessário
apelar para outras crenças para justificá-la. Esse tipo de fundacionalismo
tenta justificar o restante de nossas crenças, mesmo aquelas muito distantes
da percepção, a partir de crenças básicas, consideradas autojustificadas.4
Outras teorias da justificação questionam que tenhamos quaisquer
crenças inabaláveis, como espera o fundacionalista e, portanto, estabelecem
relações de justificação mais simétricas entre crenças. Todas as nossas crenças
seriam, nesse caso, passíveis de revisão, por mais básicas que pareçam ser.
O que justificaria, então, uma crença?
Por outro lado, de que modo a justificação e a verdade – duas condições
necessárias para se ter conhecimento, segundo a concepção tradicional – estão
relacionadas? O fato de estarmos justificados em nossas crenças garante que
elas sejam verdadeiras ou, pelo menos, nos indica que nos aproximamos da
verdade? Podemos almejar a verdade ou devemos nos contentar com fins
menos ambiciosos (dadas as nossas capacidades cognitivas e dado o modo
como o mundo é)? Essas são questões tipicamente epistemológicas e vere-
mos que elas se colocam de forma análoga no âmbito da filosofia da ciência.

4. Esse tipo de fundacionalismo pode ser criticado. Mesmo no caso de crenças perceptuais,
sabemos que frequentemente nos enganamos, por exemplo quando acreditamos ter visto
um amigo passando na rua, mas, na verdade, o confundimos com outra pessoa, muito
parecida com ele.

35
1. Teoria do conhecimento e filosofia da ciência
A partir do século XX, o termo ‘epistemologia’ passou a ser considerado,
por determinados autores e correntes filosóficas, sinônimo de ‘filosofia da
ciência’. Muitos defendem, contudo, que esta última área tem âmbito mais
restrito do que aquela: a epistemologia envolveria uma investigação mais
geral, incluindo o conhecimento científico como uma forma particular de
conhecimento. Outros filósofos não veem a filosofia da ciência como uma
mera instância de uma teoria do conhecimento: o conhecimento científico
colocaria problemas lógicos, epistemológicos e metafísicos específicos que
diferem dos problemas colocados pelos produtos das nossas práticas cog-
nitivas ordinárias.
Outros ainda poderão ir além e defender que, ao contrário, o conheci-
mento científico é o melhor modelo que temos do que seja conhecimento e,
assim, veem a filosofia da ciência como a base para qualquer teoria (geral)
do conhecimento.
Interessa-me, no momento, somente frisar – com base nessa afinidade
histórica entre a epistemologia e a filosofia da ciência – que a questão da
justificação dos produtos da atividade científica (tipicamente leis e teorias)
é tão central para esta última área quanto a justificação das crenças é uma
questão central para a epistemologia.5 Podemos também esperar, com base
nessa afinidade, que a legitimidade dos fins e valores epistêmicos persegui-
dos pela atividade científica seja outro tópico central da filosofia da ciência.
Já mencionei vários desses valores (ou fins): verdade, adequação empírica,
poder preditivo, poder explicativo, consistência, simplicidade, etc.6

5. O meu foco aqui é a filosofia da ciência, portanto evitarei o uso sistemático do termo
‘crença’ – como é comum em epistemologia –, dado o seu caráter psicológico. Ao invés de
falar na justificação de crenças nas entidades e processos de que tratam hipóteses ou teorias
científicas (e.g. a crença de que életrons têm uma carga negativa), ou do valor epistêmico
dessas crenças, escreverei, como de praxe, ‘justificação de teorias científicas’ ou ainda ‘valor
epistêmico de teorias científicas’. Por trás dessa mudança de terminologia há questões con-
troversas ligadas ao chamado ‘psicologismo’, que fogem ao escopo deste livro.
6. Usarei preferencialmente a expressão ‘valores epistêmicos’. Outros autores utilizam as
expressões ‘valores cognitivos’, ‘virtudes epistêmicas’ e ‘fins epistêmicos’, que podem ser
consideradas como sinônimos para efeito das discussões que faço neste livro. Dependendo
da concepção de verdade que se adote, ela pode ser considerada não epistêmica (ver a nota 2).

36
Veremos que essas duas questões são de grande relevância para a metodo-
logia científica. Com respeito à primeira questão, métodos estão diretamente
envolvidos na justificação de teorias científicas e, portanto, na racionalidade
das decisões tomadas pelos cientistas (de aceitar ou não determinadas teo-
rias). Métodos como o hipotético-dedutivo,7 por exemplo, indicam quando
uma teoria é adequada empiricamente ou quando devemos descartá-la como
não-adequada às evidências empíricas de que dispomos. Outros métodos
estão envolvidos em aferir a consistência, o poder preditor e outros valores
listados acima. Com respeito a esses valores coloca-se a segunda questão, a
respeito da sua legitimidade.
A questão da legitimidade dos valores e fins é objeto da axiologia (o
estudo dos valores). Como a abordagem deste livro é filosófica, os valores que
nos dizem respeito são, sobretudo, os epistêmicos, que listei anteriormente.
É de grande relevância discutir a legitimidade desses valores epistêmicos
como, por exemplo, se podem ser atingidos ou não.
No caso da verdade – que para muitos é o valor máximo – a situação
é bastante complicada. Dependendo de como entendemos verdade (por
exemplo, se adotamos a teoria correspondentista da verdade), veremos que é
questionável que haja métodos que permitam aferi-la, sobretudo no caso de
teorias científicas. Mesmo que nossos métodos possibilitem atribuir outros
valores epistêmicos às nossas teorias – como a sua adequação empírica ou
poder explicativo – e, portanto, assegurar que somos racionais em aceitá-las
(ou rejeitá-las), isso pode não garantir que elas sejam verdadeiras (ou mesmo
aproximadamente verdadeiras; ver a nota 10).
É chamada de ‘falibilista’ (ou ‘falseacionista’) a posição de que, dados os
métodos de que dispomos, as nossas teorias científicas são sempre falíveis e
passíveis de revisão. A verdade do conhecimento teórico seria inalcançável.
Um problema central da metodologia científica é o de saber se os métodos
adotados pelos cientistas são (ou não) adequados para se atingir determina-
dos fins epistêmicos. Em que medida, por exemplo, os métodos científicos
podem almejar a verdade?

7. O método hipotético-dedutivo será discutido no capítulo 3.

37
Este problema é análogo ao que coloquei na seção anterior: o fato de
termos uma crença justificadamente não assegura que ela seja verdadeira.
No caso da ciência, o problema é ainda mais grave, dada a natureza das
teorias científicas, questão que discuto no capítulo 4.
O problema de se a verdade é um fim legítimo ou alcançável pela ci-
ência é particularmente sensível no caso das teorias que fazem referência
a entidades e processos não-observáveis.8 Por exemplo, a teoria atômica
descreve processos que ocorrem no nível microscópico, envolvendo partí-
culas como prótons e elétrons. Em outro nível, a genética molecular é uma
teoria que descreve processos, também inacessíveis à observação direta,
envolvendo a duplicação de macromoléculas como o DNA, que regulam
o desenvolvimento dos organismos. Essas teorias são altamente valoriza-
das pela comunidade científica por serem adequadas empiricamente, por
explicarem um grande número de fatos e por preverem tantos outros, por
serem consistentes, etc. Mas seriam essas teorias também verdadeiras? Se
o forem, então as entidades que mencionam (prótons, nucleotídeos, etc.)
realmente existem e os processos descritos realmente ocorrem, mesmo que
as evidências que temos a seu respeito sejam indiretas.9
Há muita discussão entre filósofos da ciência a esse respeito, mas pouco
consenso. Os realistas, por exemplo, acreditam que os métodos científi-
cos permitem guiar-nos em direção à verdade mesmo no caso de teorias
como essas.10
Já os não-realistas são céticos a esse respeito (ou agnósticos): o que
importa, dizem eles, é que tais teorias estejam de acordo com as evidências

8. Estou supondo aqui que a observação é feita de forma direta, pelos sentidos, sem uso
de instrumentos. É claro que algo pode ser não-observável ao olho nu, embora observável
com o auxílio de instrumentos.
9. Aqui estou pressupondo a teoria correspondentista da verdade.
10. Realistas que admitem uma concepção correspondentista da verdade enfrentam um
problema complexo: como assegurar que uma teoria que satisfaz às regras do método e
que, portanto, atinge fins epistêmicos como adequação empírica, poder preditivo, etc. seja
verdadeira ou aproximadamente verdadeira? O problema é consequência da heterogeneidade
que apontei anteriormente nos polos que são colocados em correspondência: crenças de
um lado e o mundo de outro. O realista terá que mostrar que os critérios (metodológicos)
adotados para admitir crenças (teorias) científicas garantem que cheguemos à verdade ou
que nos aproximemos dela. A concepção correspondentista da verdade segrega, portanto,
esse valor (ou fim) dos demais valores, que podemos saber quando são alcançados.

38
empíricas disponíveis (observações feitas a olho nu, preferencialmente, ou
aquelas com o auxílio de instrumentos, que são indiretas) e consigam fazer
previsões que possam ser confirmadas. Assim, a genética consegue prever a
frequência com que determinados traços fenotípicos dos pais aparecem na
sua descendência (nas diversas gerações). Não importa se, de fato, existem
moléculas como o DNA, ou se os complexos processos químicos envolvidos
na sua duplicação e na síntese de proteínas de fato ocorrem. Na melhor das
hipóteses devemos, segundo eles, suspender o juízo a esse respeito. Para os
não-realistas, a verdade (entendida em um sentido correspondentista) não
é um fim alcançável da atividade científica.11 Podemos, no máximo, visar
a teorias que sejam adequadas empiricamente, que expliquem um grande
número de fatos e que tenham um grande poder preditivo (para citar so-
mente alguns valores epistêmicos). Em outros termos, para os não-realistas
os métodos utilizados para se avaliar teorias científicas não são capazes de
assegurar quais delas são verdadeiras, e nem mesmo de indicar que avan-
çamos nessa direção. Se esta for mesmo a nossa condição, então a verdade
não seria um fim legítimo da atividade científica.12
Um fundacionalista-empirista em filosofia da ciência enfrentará dificul-
dades em mostrar que crenças a respeito de entidades não-observáveis são
justificadas somente com base em crenças a respeito de entidades observáveis.
Este é o problema da justificação do conhecimento propriamente teórico. 13

11. E mesmo que seja alcançável, não poderemos sabê-lo, dizem filósofos não-realistas
como Laudan.
12. Um não-realista poderia, no entanto, admitir que busquemos a verdade a respeito do
mundo observável de objetos macroscópicos (a despeito dos céticos mais radicais). Ou seja,
pode ser verdadeiro que estou, de fato, diante da minha tela de computador neste momento
(para ficarmos com o mesmo exemplo) ou que o meu telefone está tocando. Ele suspenderia o
juízo, contudo, a respeito dos supostos processos envolvidos na formação da imagem na tela
do meu computador: um bombardeio de elétrons nas moléculas da substância que reveste
a tela, fazendo com que tais moléculas emitam fótons que vão impressionar as retinas dos
meus olhos. Tais processos são descritos por várias teorias científicas, que o não-realista
julgará, simplesmente, como sendo (ou não) compatíveis com o que eu observo e capazes
de prever o que observarei no futuro, dadas certas condições.
13. Um racionalista poderia tentar desenvolver um fundacionalismo que tome outros tipos
de crenças, não-perceptuais, como compondo o nosso estoque de crenças básicas e enfren-
tar, talvez com mais facilidade, problemas como esse. Uma concepção anti-empirista fere,
contudo, as nossas intuições a respeito das bases do conhecimento científico, a respeito do
que, em última instância, justifica uma crença científica.

39
2. Gerativismo e consequencialismo14
Nas discussões anteriores, a respeito dos métodos utilizados pelos cien-
tistas e que agregam valor aos produtos da atividade científica,15 há uma
ambiguidade que gostaria de dirimir nesta seção.
O gerativismo e o consequencialismo são diferentes concepções a res-
peito dos procedimentos que conferem valor epistêmico a produtos da
atividade científica.
Para o consequencialista, a determinação do valor epistêmico de uma
teoria depende de extrairmos as suas implicações ou consequências (as pre-
visões da teoria) e de as confrontarmos com a experiência, o que pressupõe
o uso de determinados métodos. Não importa o modo como foi gerada a
teoria, através do uso de outros métodos (pelo menos em princípio). Por
exemplo, é consequencialista a tese metodológica de que uma teoria que faça
predições corroboradas tem maior valor epistêmico do que uma teoria que
faça uma predição não-corroborada, independentemente do modo como
cada uma delas foi gerada.
Digamos que um cientista tenha proposto uma hipótese porque sonhou
com ela, ou porque ela se conforma às suas concepções místicas. Conta-se,
por exemplo, que Kekulé sonhou que a estrutura da molécula de benzeno
tivesse a forma de um anel. O grande Kepler, por sua vez, acreditava que as
órbitas dos planetas do sistema solar estavam inscritas em sólidos regulares,
porque isso garantiria, a seu ver, de que se trata de um sistema ordenado e
belo. Concepções de ordem metafísica e estética tiveram importância no
modo como geraram as teorias em questão. Suponhamos que não con-
siderássemos aceitáveis tais métodos, ou seja, os caminhos efetivamente
trilhados por tais cientistas para chegar às suas hipóteses ou teorias (ou
seja, que não os considerássemos métodos científicos). Pouco importa, diz
o consequencialista – desde que tais hipóteses ou teorias sejam adequadas
aos fatos e, com base nelas, possamos fazer predições corretas (no caso de

14. O consequencialismo em epistemologia, de que trato aqui, não deve ser confundido
com uma posição, assim nomeada, em metaética.
15. Que valores são esses, que pesos damos a cada um deles e se são alcançáveis é, como
vimos, objeto de disputa.

40
Kekulé, predições a respeito de reações químicas envolvendo o benzeno ou
predições, no caso da teoria de Kepler, a respeito das posições planetárias).
Para o gerativista, em contraste, o modo como uma teoria é gerada, o
método efetivamente empregado para tanto, é crucial para a avaliação que
fazemos dela. O gerativista defende que esses procedimentos empregados
pelo cientista podem conferir valor epistêmico a uma teoria ou hipótese,
independentemente de um eventual controle empírico (teste) das suas con-
sequências, e anteriormente a esse controle.
Por exemplo, uma teoria que foi gerada a partir de um conhecimento
de fundo previamente aceito (seja ele factual, seja teórico) já possui um
valor epistêmico inicial, segundo o gerativista, antes mesmo de derivarmos
qualquer consequência dela, de modo a nos certificarmos de sua adequação
empírica.16 Por exemplo, para alguns cientistas do século XIX, o fato de que
o modelo inicialmente proposto por Bohr para a estrutura do átomo era
análogo à estrutura do sistema solar dava a esse modelo uma credibilidade
inicial. Nos séculos XVIII e XIX, profundamente marcados pelos sucessos
de Newton, o fato de que leis (como a de Coulomb, da atração de cargas
elétricas) tivessem a mesma forma da lei da gravitação era visto como algo
extremamente positivo. Grandes cientistas do século XIX estabeleciam
como condição para que se aceitasse uma nova teoria (como, por exemplo,
a teoria eletromagnética proposta por Maxwell) que ela pudesse ser deri-
vada da mecânica clássica (amplamente aceita à época) ou, pelo menos,
compatível com ela.
O gerativismo e o consequencialismo são, portanto, diferentes concep-
ções a respeito de como métodos e fins estão relacionados nas várias etapas
da atividade científica. Voltarei a tratar dessas concepções nos próximos
capítulos e a mencionar filósofos que adotaram cada uma delas. Quero
enfatizar, na próxima seção, como questões e polêmicas desse tipo revelam
o interesse genuinamente filosófico da metodologia científica.

16. Não há, necessariamente, conflito entre o consequencialismo e o gerativismo. É possível


defender-se, de forma coerente, que o valor epistêmico de uma hipótese ou teoria depende,
em parte, do modo como ela é gerada e, em parte, dos testes a que for, posteriormente,
submetida com base nas suas consequências.

41
*3. Teoria do método e teoria do conhecimento
Com base na forte orientação epistemológica que a filosofia tomou a
partir da modernidade, e que ainda repercute, como vimos, na filosofia con-
temporânea da ciência, é de se esperar que a metodologia (entendida como
teoria do método) só seja vista como tendo importância filosófica na medida
em que ela estiver, de alguma forma, implicada na questão da justificação
dos produtos da atividade científica e na questão da legitimidade dos fins
cognitivos (como vimos, problemas centrais da teoria do conhecimento).
Por outro lado, o modo como se concebe a articulação da metodologia
e da epistemologia pode dar precedência a uma dessas áreas da investigação
filosófica em relação à outra, no que tange à natureza da atividade científica e
de seus produtos. Uma primeira concepção dá à epistemologia uma posição
privilegiada e percebe a metodologia como tendo uma posição subordinada.
Caberia à epistemologia estabelecer a priori a natureza do conhecimento, bem
como os fins a serem idealmente alcançados; à metodologia caberia, então, a
tarefa de indicar os melhores meios para atingi-los, de fazer recomendações
que guiem práticas que pretendam atingir tais fins e gerar conhecimento,
dadas certas condições. No século XX, os empiristas lógicos representam
essa concepção, em suas tentativas de reduzir a metodologia à epistemologia
(e, em última análise, à lógica, como veremos no capítulo 3).
Uma concepção alternativa àquela consideraria, ao contrário, a epis-
temologia como dependente da metodologia, esta última tendo, portanto,
precedência.17 Questões epistemológicas (a respeito da natureza do conhe-
cimento, dos fins a serem perseguidos, etc.) só poderiam ser respondidas
a posteriori, no seio das próprias práticas cognitivas e metódicas. As respostas
a tais questões podem, inclusive, modificar-se à medida que se adquira mais
conhecimento a respeito dos objetos da investigação, das suas condições
e dos sistemas cognitivos (e.g. os cientistas) que a levam a cabo. A pró-
pria investigação define os fins a serem alcançados ou que são alcançáveis.
As questões de método adquirem, nesse caso, precedência, pois pouco ou
nada podemos saber a priori, antes que a investigação se inicie e gere re-

17. Essas possibilidades não esgotam todo o espectro. Podemos imaginar uma posição que não
conceda privilégio a nenhuma dessas áreas, todas estando, por assim dizer, no mesmo plano.

42
sultados. Conhecimento e metaconhecimento (incluindo o de caráter me-
todológico) são, neste caso, produzidos de forma interdependente, no seio
de uma mesma investigação.18
Essa última concepção leva a ver a ciência, antes de tudo, como uma
atividade que se pratica em determinadas condições, envolvendo atores
(sistemas cognitivos) de certo tipo. O caráter essencialmente dinâmico
dessa atividade só pode ser compreendido se o foco estiver na produção do
conhecimento e não somente nos seus produtos. Essa concepção conduz,
também, a se ver as características epistêmicas dos produtos da atividade
científica como dependentes da maneira como são produzidos, ou seja,
dos métodos empregados. Os pragmatistas americanos, Dewey e Peirce,
e mais recentemente Popper, são exemplos dessa postura, já que deram à
metodologia uma posição privilegiada na constituição de uma filosofia da
ciência.19 Veremos, nos próximos capítulos, que Popper considera que a
filosofia da ciência deve compreender como aumentamos o conhecimento,
uma questão propriamente metodológica.
Os metodólogos do século XVII também abraçaram algo próximo
dessa concepção, interessados que estavam numa ars inveniendi, ou seja,
nas estratégias para gerar conhecimento (em oposição a meras crenças não-
-justificadas). Segundo essa perspectiva, os métodos devem contribuir para
justificar as construções (hipóteses, teorias, etc.) por eles geradas. Portanto,
a metodologia teria, nessa concepção, relevância epistemológica, já que a
adoção de métodos adequados forneceria um pedigree epistemológico, uma
justificação aos produtos da atividade cognitiva que emprega tais métodos,
agregando valor a tais produtos. Esta concepção inclui-se no que estou cha-
mando aqui de ‘gerativismo’. Uma das funções de um método de descoberta
seria, nessa perspectiva, a de fornecer credenciais (epistemológicas) a uma
teoria ou a qualquer outro produto gerado com o seu auxílio.

18. No capítulo 13 sugiro, adotando uma perspectiva evolucionista (ou selecionista), que
talvez as próprias questões fundamentais da epistemologia, a respeito da natureza do co-
nhecimento, bem como da axiologia, a respeito dos fins da atividade cognoscente, possam
depender, em última instância, dos métodos empregados para respondê-las, assim conce-
dendo à metodologia uma posição mais destacada.
19. Discutirei em detalhe, nos próximos capítulos, os casos dos empiristas lógicos e de Popper.

43
É possível, contudo, desvincular totalmente a metodologia da episte-
mologia? Pode-se articular uma metodologia que não seja gerativista nem
tampouco consequencialista? Que impacto uma metodologia desse tipo
pode ter sobre a prática científica e sobre a prática filosófica? Essas questões
serão abordadas à medida que formos avançando.

*4. Metodologias construtivas e gerativistas


Quero introduzir aqui uma outra distinção que é, digamos, ortogonal
à que fiz na seção anterior. As metodologias podem ou não ser construtivas,
isto é, podem ou não ter interesse pelo modo como teorias e outros produtos
da atividade científica são (ou podem ser) construídos.
Esse interesse construtivo é, em princípio, independente da preocupação
com o impacto epistêmico do emprego de determinados métodos (isto é,
com a questão de se o uso de determinada estratégia produtiva confere valor
epistêmico ao que é produzido seguindo as suas regras). Portanto, o gerati-
vismo, como o defini, é construtivo, mas metodologias construtivas podem
não ser gerativistas, ou seja, podem não ter qualquer pretensão de conferir
valor epistêmico às teorias construídas com os métodos que recomendam.20
As metodologias do século XVII a que me referi acima eram, ao mesmo
tempo, construtivas – ou seja, respondiam por uma preocupação com a heu-
rística – e gerativistas – ou seja, eram consideradas relevantes do ponto de
vista epistemológico. Por mais diferentes que tenham sido as suas concepções
filosóficas, Francis Bacon e Descartes eram gerativistas pois acreditavam que
o uso dos métodos que propunham conferia valor aos produtos de atividades
cognitivas como a ciência. Por isso dedicaram tantos esforços no sentido de
desenvolverem uma metodologia que não fosse somente consequencialista.
Bacon chegou a acreditar que a aplicação do seu método (das regras que
propôs) deixava pouco ou nenhum espaço para a inventividade ou a prática
dos pesquisadores:

20. No capítulo 6 discutirei uma outra distinção: entre metodologias construtivas (pros-
pectivas) e as reconstrutivas (retrospectivas).

44
O nosso método de descoberta das ciências é de tal sorte que deixa
muito pouco para a agudeza e a robustez do engenho [dos homens],
nivelando toda agudez e inteligência. Do mesmo modo como para
traçar uma linha reta ou um círculo perfeito, desenhando-os com a mão
[não assistida], muito importam a firmeza e a prática, [estas] pouco ou
nada importam usando-se a régua e o compasso; o mesmo se dá com
o nosso método. (Bacon, Novum Organum, Livro 1, LXI, 1952:113)21

Pode-se argumentar que metodologias construtivas são importantes


para a prática científica. Afinal, talvez a parte mais importante dessa prática
esteja envolvida na construção de hipóteses e de teorias. Hoje muito se tra-
balha, por exemplo, no desenvolvimento de programas de computador que
auxiliam o cientista nessa etapa da sua atividade. Um consequencialista pode,
perfeitamente, admitir que cientistas façam uso de métodos construtivos,
heurísticos. Entretanto, ele nega que isso, por si só, tenha relevância filosófica
(e não somente tecnológica, produtiva). Em que medida um interesse por
métodos em função meramente do seu papel construtivo, enquanto techné,
pode associar-se também a um interesse genuinamente filosófico? Discutirei,
em vários capítulos, essa questão polêmica.22

21. Há pequenas diferenças entre esta edição e a citação que Cohen & Nagel fazem dessa
mesma passagem (1972:245). Apoiei-me, para essa tradução livre, em ambas as versões.
Também servi-me da tradução em português da coleção Os Pensadores (Nova Cultural,
1988), mas esta não captura adequadamente o sentido do original. Salvo indicação em
contrário, todas as traduções feitas neste livro são livres.
22. A história da astronomia é uma excelente fonte de exemplos de como cientistas, no caso
astrônomos, variaram os seus compromissos epistemológicos, com implicações para os
métodos utilizados. Ver Abrantes, 2016, cap.1.

45
46
3

Metodologia e lógica

A lógica é tradicionalmente considerada, sobretudo por filósofos, como


fundamental para se articular uma teoria do método científico. Neste capítulo
investigarei em que medida, e em que contextos, a lógica pode contribuir
para a metodologia.1
A lógica é a área da filosofia que investiga, fundamentalmente, a validade
das inferências efetuadas em argumentos. Um argumento é uma sequência
finita de sentenças na qual a última sentença é chamada de conclusão do
argumento, e as sentenças que a antecedem na sequência são chamadas de
premissas do argumento.2 Uma lógica estipula regras que autorizam passa-
gens (inferências) válidas das premissas para a conclusão em vários tipos
de argumento. A validade de uma inferência,3 ou seja, uma determinada

1. Introduzirei somente as noções de lógica que são indispensáveis para a compreensão das
discussões feitas ao longo deste livro. Aqueles interessados numa apresentação mais rigorosa
e completa deverão consultar algum livro especializado em lógica.
2. Utilizarei sistematicamente o termo ‘sentença’ ao longo do texto, em vez dos termos
‘enunciado’ e ‘proposição’. Há muitas variações na terminologia empregada pelos lógicos,
muitas vezes traduzindo diferenças importantes em suas posturas filosóficas. Não caberia,
neste livro, entrar em tais discussões em filosofia da lógica. Para os presentes fins, é im-
portante ressaltar, simplesmente, que as sentenças são objetos linguísticos e, devidamente
interpretadas, podem ser verdadeiras ou falsas.
3. A noção de inferência para alguns autores, como Salmon (1987), possui uma conotação
psicológica, ausente no caso de argumentos, que são objetos linguísticos. Seria, então,
mais correto falar em validade de argumentos, já que a noção de validade pressupõe uma
relação lógica entre sentenças (e não psicológica, entre estados mentais, como crenças). Se
supusermos que as inferências podem sempre ser representadas linguisticamente, não há
problema em aplicar-se a noção de validade a inferências. Não há consenso, tampouco, com
respeito a essa terminologia. Há autores que conferem ao termo ‘argumento’ uma conotação
psicológica, que estaria ausente no termo ‘inferência’. Acompanharei, neste texto, o uso
que faz Salmon desses termos.

47
relação lógica entre as premissas e a conclusão de um argumento, é definida
de modo rigoroso por tais regras.
Um tipo de inferência muito conhecida é a dedutiva, cuja peculiaridade
é a de preservar a verdade das suas sentenças (veremos outras de suas pro-
priedades adiante). Uma inferência dedutiva é válida, portanto, se, em todas
as vezes em que as premissas do argumento forem verdadeiras, a conclusão
do argumento também o for.4
Aristóteles pode ser considerado o pai da lógica por ter sido o primeiro
a estudar, de maneira sistemática, as inferências, em especial, inferências
dedutivas chamadas de silogismos. Um exemplo tradicional de silogismo,
que você certamente conhece, é o seguinte:
Todos os homens são mortais
Sócrates é homem
===========
Sócrates é mortal

A linha dupla, que separa as premissas do argumento da sua conclusão,


representa uma passagem dedutiva. Um silogismo, quando válido, tem a
propriedade das inferências dedutivas que explicitei acima: se as suas pre-
missas forem verdadeiras, a conclusão necessariamente o será.
Um pressuposto da lógica chamada ‘formal’ é que a validade das infe-
rências dedutivas depende exclusivamente da forma do argumento (da sua
sintaxe), e não do conteúdo expresso pelas sentenças envolvidas.5 A lógica
formal investiga a validade das inferências, utilizando-se de uma linguagem
artificial para melhor fazer abstração do conteúdo das sentenças e explicitar
somente as formas de vários tipos de argumentos.6

4. Nesse caso, trata-se de um caso particular de demonstração.


5. As sentenças são sequências bem formadas de símbolos numa linguagem, símbolos esses
que não têm referência, ou uma semântica. Quando importa o significado, ou o conteúdo,
usa-se o termo ‘proposição’, em vez de ‘sentença’. A verdade e a falsidade são propriedades
de proposições e não de sentenças, já que estas possuem somente propriedades formais,
sintáticas.
6. Quando somente a forma das sentenças importa, é comum utilizar-se o termo ‘fórmula’,
em lugar de ‘sentença’. Uma fórmula é uma sequência bem formada de símbolos numa
linguagem particular. Em outras palavras, a fórmula obedece a sintaxe dessa linguagem,

48
Duas regras de inferência muito conhecidas da lógica dedutiva, que serão
particularmente úteis em discussões que farei nos próximos capítulos, são
o Modus Ponens e o Modus Tollens. Elas garantem a verdade da conclusão,
dada a verdade das premissas do argumento. Sejam ‘p’ e ‘q’ duas sentenças
quaisquer. Podemos representar o Modus Ponens da seguinte maneira:
p -> q
p
========
q

Onde o símbolo ‘->‘ representa o conectivo lógico de implicação material.7


O Modus Tollens, por sua vez, pode ser representado da seguinte ma-
neira, usando os mesmos símbolos anteriores e também o símbolo ‘ ~ ‘,
representando a negação:
p -> q
~q
========
~p

Como no caso do silogismo aristotélico acima, nesses dois argumentos


formais a conclusão segue-se necessariamente das premissas, ou seja, se as
premissas forem verdadeiras, a conclusão será necessariamente verdadeira.
Trata-se de uma necessidade lógica. Não importa que sentenças coloque-
mos no lugar de ‘p’ e de ‘q’: sempre teremos essa propriedade (a validade),
que se segue exclusivamente da forma do argumento, das conexões lógicas
entre as sentenças, de acordo com os conectivos lógicos utilizados, e não
do conteúdo das sentenças.8

tendo somente propriedades formais. É importante distinguir as propriedades formais das


sentenças e aquelas dos argumentos.
7. Outros símbolos utilizados para conectivos lógicos são os seguintes: ‘~’ (negação), ‘ . ’ (‘e’,
conjunção), ‘v’ (‘ou’, disjunção). Um modo de definir tais conectivos é através de tabelas
veritativas, que podem ser consultadas em qualquer texto introdutório de lógica.
8. Recorrendo-se à tabela veritativa para a implicação material, pode-se constatar que se
trata de regras de uma lógica dedutiva. A tabela mostra que, quando as premissas de cada
um desses argumentos são verdadeiras, a conclusão também é verdadeira. Outro modo de
traduzir a noção de validade de uma inferência dedutiva é através da noção de verdade lógica
(ou tautologia): é logicamente verdadeiro, nas inferências que acabei de exemplificar, que a
conclusão siga-se das premissas. Trata-se de uma verdade lógica porque isso depende exclu-

49
Essa propriedade puramente formal, lógica, pode ser traduzida em
termos epistemológicos: em inferências dedutivas, se temos certeza das
suas premissas (se não temos dúvida de que são verdadeiras) podemos ter
certeza da conclusão.
Na apresentação inicial do famoso silogismo aristotélico, servi-me de
uma linguagem natural (no caso, o Português). Para deixar mais explícita a
forma lógica daquele argumento, posso também servir-me de uma lingua-
gem artificial. Com este fim tenho, contudo, que sair dos quadros simples
do cálculo proposicional, como nos exemplos do Modus Ponens e do Modus
Tollens, e introduzir as representações simbólicas mais complexas do cálculo
de predicados.
Naquele silogismo, temos os predicados ‘ser homem’ (simbolizemo-lo
por ‘H’) e ‘ser mortal’ (simbolizemo-lo por ‘M’). Se ‘x’ for uma variável –
que pode assumir valores num universo composto de indivíduos – pode-se
formular as sentenças ‘x é homem’ e ‘x é mortal’, de maneira muito mais
compacta, por ‘Hx’ e ‘Mx’, respectivamente. Se o símbolo ‘s’ referir-se ao
indivíduo Sócrates, as sentenças ‘Sócrates é homem’ e ‘Sócrates é mortal’
podem ser formuladas, nessa linguagem artificial, como ‘Hs’ e ‘Ms’, respec-
tivamente. Temos, assim, as duas últimas sentenças do argumento.

sivamente da forma dos argumentos (das relações sintáticas entre premissas e conclusão),
independentemente da interpretação que se dê para as sentenças nele envolvidas e do valor
veritativo associado a cada uma delas, tomadas isoladamente. Dependendo da interpretação
de cada uma das sentenças envolvidas no argumento, elas podem ser verdadeiras ou falsas (e
essa questão não é meramente formal; o seu valor veritativo, no contexto dessa interpretação,
depende de como é o mundo que elas supostamente descrevem). O valor veritativo de cada
uma das sentenças é contingente, portanto, e não logicamente necessário. Em outros termos,
cada uma das sentenças, tomadas isoladamente, pode ser verdadeira ou falsa, dependendo
de como é o mundo a que se referem. Em contraste, a verdade lógica é uma propriedade
global do argumento (ou da inferência) e depende das relações meramente formais, entre
as sentenças do argumento, e não de como o mundo é. Por exemplo, se representarmos a
regra do Modus Ponens através de uma sentença, usando o conectivo lógico de implicação
material para traduzir a relação de consequência (ou de implicação), e o conectivo lógico
de conjunção (‘.’), teremos:
[(p -> q) . p] -> q
Essa sentença composta é logicamente verdadeira – é uma tautologia. O uso da implicação ma-
terial para traduzir a relação de consequência lógica no nível da metalinguagem é respaldado
pelo metateorema da dedução em lógica clássica. Agradeço a Samir Gorsky por essa indicação.

50
A primeira premissa é uma sentença mais complexa, envolvendo o
quantificador universal ‘para todos’, representado pelo parênteses em torno
da variável, como em (x), que se lê: ‘para todo x’. Ela pode, portanto, ser
formulada, na linguagem artificial, do seguinte modo:
(x) (Hx -> Mx),

que se lê: ‘Para todo x, se x é homem, então x é mortal’.9 Como antes,


o símbolo ‘->‘ representa a implicação material.
O silogismo aristotélico acima pode, então, ser representado, usando a
moderna simbologia do cálculo de predicados, pela sequência de sentenças:

(x) (Hx -> Mx)


Hs
==========
Ms

O que esse argumento possui em comum com o Modus Ponens e o


Modus Tollens, a despeito da sua forma mais complexa? Todos eles aplicam
regras de inferência válidas da lógica dedutiva (que engloba tanto o cálculo
proposicional quanto o cálculo de predicados).

1. Inferências dedutivas e indutivas: um quadro comparativo


Ao lado das inferências dedutivas, existem outros tipos de inferência
como a indutiva, a analógica, a abdutiva (ou retrodutiva), etc.
Uma inferência de tipo indutiva, particularmente relevante para a me-
todologia científica, é a que toma como premissas sentenças singulares e
obtém como conclusão sentenças universais. Um exemplo de indução desse
tipo é um argumento que tem sentenças de observação como premissas, e
uma generalização ou lei como conclusão.10

9. Além do quantificador universal, o quantificador existencial é representado, usualmente,


pelo símbolo (∃). Assim, no cálculo de predicados, se quisermos representar simbolicamente
que existe um indivíduo chamado Sócrates, escrevemos: ‘(∃x) x=s’, que se lê: “Existe pelo
menos um x tal que x é s”, onde ‘s’ refere-se a Sócrates.
10. As chamadas sentenças empíricas ou observacionais são, do ponto de vista formal,
sentenças singulares que descrevem fatos ou ocorrências em determinadas regiões do espa-
ço-tempo. Generalizações ou leis têm a forma lógica de sentenças universais, caracterizadas
pela presença do quantificador universal, como na sentença ‘para todo x, se x é homem,
então x é mortal’. Neste livro não pretendo me envolver com a questão da natureza das

51
Por exemplo: estou indo pela primeira vez a um zoológico com a minha
filha e começamos por visitar o setor das aves. Infelizmente, uma chuva
repentina interrompeu o nosso passeio e não pudemos observar aves como
a ema, existentes nesse zoológico, e que não voam. Um exemplo de inferên-
cia indutiva seria a que a minha filha fizesse partindo de várias sentenças
observacionais do tipo ‘esta ave voa’, ‘aquela ali também voa’, ‘aquela acolá
também voa’ e que, com base nelas, concluísse: ‘Todas as aves desse zoológico
voam’. Ou mesmo inferisse uma sentença com maior escopo (ainda mais
geral), sem qualquer restrição espacial: ‘Todas as aves voam’.
Se V representar o predicado ‘voa’, a inferência indutiva acima pode ser
expressa pelo seguinte esquema formal (ou argumento):

Va1
Va2
Va3
(...)
Van
--------------
(x) Vx
onde ‘a1’, ‘a2’, ‘a3’ (...), ‘an’ representam ‘n’ indivíduos do universo de aves.
‘Va1’, ‘Va2’, ‘Va3’, (...), ‘Van’ traduzem as observações de que esses indivíduos
voam, e constituem as premissas do argumento.11 A conclusão do argumento
expressa, simbolicamente, que qualquer que seja ‘x’ nesse universo, ‘x’ voa.

leis. Indico aqui, simplesmente, que o modo como a noção de lei foi introduzida no texto
está conforme uma concepção chamada de ‘regularista’, segundo a qual leis são verdades
universais (fatos gerais) acerca de regularidades observadas na Natureza. Essa concepção é
tributária de uma ontologia empirista e nominalista (ver o capítulo 4). Ela é criticada, por
sua vez, pelos que defendem uma concepção ‘necessitarista’ de lei, segundo a qual leis são
relações entre propriedades, o que pressupõe uma ontologia mais rica que a dos regularistas.
11. Uma alternativa seria formular a conclusão do argumento como uma generalização
empírica (ou lei): ‘Se x é uma ave, então x voa’. Para simplificar a exposição, estou ignorando
a coordenada temporal e as diferenças nas posições das várias aves observadas. Uma ob-
servação sempre se dá num particular instante de tempo e numa localização específica do
espaço. Numa apresentação mais rigorosa, eu teria que especificar, para cada observação,
as três coordenadas espaciais e a coordenada temporal, ou seja, uma quádrupla (x,y,z,t)
para cada ave observada.

52
Trata-se, nesse caso, de uma generalização com base num número
finito de observações feitas no zoológico. Por isso, ela é denominada de
‘indução enumerativa’, pois se enumeram vários casos observados e, a partir
dessa base, generaliza-se, ou melhor, afirma-se que a propriedade observa-
da em alguns casos também é uma propriedade de casos (ou instâncias)
não-observados do mesmo tipo. Ou seja, estende-se ao conjunto de indi-
víduos do universo o que, com certeza, vale para um subconjunto de indi-
víduos, pois assim foi observado. A indução enumerativa é uma inferência
ampliativa, pois nela parte-se do que é observado em determinadas regiões
do espaço-tempo e infere-se que o mesmo vale para todas as regiões.12
Inferências indutivas, como a exemplificada anteriormente, seriam vá-
lidas? Se adotarmos a definição de validade da lógica dedutiva, a resposta é
negativa: a conclusão de uma inferência indutiva pode ser falsa mesmo que as
premissas sejam verdadeiras.13 No exemplo acima, a conclusão a que chegou
a minha filha é falsa – há aves que não voam, inclusive naquele zoológico –,
mesmo que todas as premissas que descrevem as suas observações tenham
sido verdadeiras. A menos que se tenham examinado todos os indivíduos
de um universo restrito (no exemplo, todas as aves do zoológico), esse tipo
de inferência não garante a verdade da conclusão, mesmo que todas as
premissas sejam verdadeiras. Outra maneira de dizer isso, traduzindo em
termos epistemológicos, é: não se pode ter certeza da conclusão de um ar-
gumento indutivo mesmo que se tenha certeza das suas premissas. Por isso
usei uma linha simples para separar as premissas da conclusão, e não uma
linha dupla, como fiz no caso das inferências dedutivas. Note, além disso,

12. Note que, num movimento lógico contrário, de uma sentença universal (e.g., de uma ‘lei’)
pode-se inferir dedutivamente cada uma das premissas adotadas no argumento indutivo
que a tem como conclusão, contanto que se especifiquem as coordenadas espaço-temporais
adequadas, em premissas usualmente denominadas ‘condições iniciais’.
13. Há quem defenda uma aplicação mais ampla da noção de validade, de modo a abarcar
tanto inferências dedutivas quanto indutivas. Não será o caso aqui: adotarei a posição tra-
dicional de restringir a inferências dedutivas a sua aplicação, e empregar a noção de ‘força’
(que admite graus) para caracterizar a relação lógica entre as premissas de um argumento
indutivo e a sua conclusão. Ver, adiante, o quadro Propriedades de dois tipos de inferências.

53
que, se uma das premissas for falsa no argumento indutivo considerado, a
sua conclusão será falsa ou ficará comprometida.14
Veremos que esta é uma das principais diferenças entre inferências de-
dutivas e indutivas, explicitada no quadro a seguir: as inferências dedutivas
preservam a verdade, mas não as inferências indutivas.

Quadro 1
Propriedades de dois tipos de inferência15
Dedutiva Indutiva
1. Uma inferência dedutiva válida explicita, 1. Uma inferência indutiva apresenta uma con-
na conclusão, algo implícito nas premissas. clusão que extrapola o que está contido nas
A dedução não é, portanto, ampliativa. premissas. Em outras palavras, o conteúdo das
premissas é mais restrito do que o conteúdo da
conclusão. Por isso, a indução é dita ampliativa.
2. Se as premissas forem verdadeiras, a con- 2. Uma inferência indutiva cogente pode ter
clusão deve ser verdadeira para que a in- premissas verdadeiras e uma conclusão falsa.
ferência seja considerada válida. As dedu- A indução não preserva, necessariamente,
ções válidas necessariamente preservam a verdade.
a verdade.
3. Se novas premissas são acrescidas a um argu- 3. Novas premissas podem minar completamen-
mento dedutivo válido, e as premissas iniciais te a inferência indutiva; a indução é suscetível
forem mantidas, a inferência continua sendo de erosão ou de enfraquecimento
válida. A dedução não é suscetível de erosão
ou de enfraquecimento.
4. A validade dedutiva é uma propriedade que 4. Inferências indutivas aceitáveis apresen-
não admite graus. Uma dedução é válida ou tam-se com diferentes graus de força. Há
não é; não há meio termo*. induções mais fortes do que outras; em al-
gumas induções as premissas apoiam a con-
clusão de uma maneira mais forte do que em
outras induções.
*Ver a nota 13.

Quero enfocar, no momento, uma das diferenças indicadas no quadro:


o caráter ampliativo da inferência indutiva em contraposição ao caráter
não-ampliativo da inferência dedutiva. Numa inferência indutiva, a con-
clusão vai muito além do que está contido ou representado nas premissas.
No exemplo, a minha filha não examinou todas as aves do zoológico, mas

14. Comparar com argumentos dedutivos válidos, nos quais se pode ter uma premissa falsa
e, ainda assim, ter-se uma conclusão verdadeira.
15. Baseado em Salmon et al. (1999:11).

54
inferiu, mesmo assim, que todas elas possuem uma propriedade (ou conjunto
de propriedades) que observou somente em algumas delas.
Um outro tipo de inferência indutiva, que será objeto de discussão
aprofundada em outros capítulos deste livro, é aquela envolvida quando
fazemos previsões. Um exemplo de previsão seria a que parte de sentenças
traduzindo um certo número de observações, e se infere que observações
da mesma natureza serão feitas no futuro16. Aproveitando o exemplo dado
anteriormente: após ter observado um certo número de aves no zoológico,
a minha filha pode prever que também voa a próxima ave que verá. Note
que, no caso das previsões, a conclusão não tem maior escopo do que as
premissas (como é o caso nas generalizações ou induções enumerativas)
e pode ser expressa por uma sentença singular. Contudo, isso não retira o
caráter ampliativo das previsões, já que se estende, no tempo, o conheci-
mento consubstanciado em um conjunto de observações realizadas (e que
pode ser nomológico, em certos casos).
Existem outros tipos de inferências ampliativas além da indutiva?
Estamos em território controverso, mas podemos citar como candidatas a
inferência analógica e a inferência abdutiva (ou retrodutiva).17
De todo modo, posso generalizar o que disse acima a respeito da in-
dução para todos os tipos de inferência que sejam ampliativas: elas não são
válidas, ou seja, não preservam a verdade. Quando uma inferência amplia
o conteúdo das premissas – que representam, digamos, o conhecimento
certo de que dispomos – a sua conclusão deixa de ser segura. A inferência
totalmente segura, a dedutiva, em nada amplia o nosso conhecimento –
a conclusão do argumento só expõe o que está contido nas premissas.18

16. Pode-se fazer também previsões a respeito de fatos ocorridos no passado, com base em
observações feitas no presente.
17. A controvérsia é se, de fato, essas inferências constituem-se como um tipo distinto
das inferências indutiva e dedutiva, ou se se reduzem a uma combinação destas últimas.
Tratarei da abdução no capítulo 5, quando apresentar as posições de Hanson sobre a des-
coberta científica.
18. Michalsky (1989) propôs a sugestiva imagem de um trompete – isso mesmo, o instru-
mento de sopro – para ilustrar essa relação inversa. Na base do trompete temos o conheci-
mento disponível; próximo da base, na embocadura do trompete, que é cilíndrica, temos
a inferência dedutiva; na ponta do trompete, em que está a maior abertura (representando
o escopo do conhecimento) temos a indução. Em trechos intermediários, temos a analogia
e outros tipos de inferências ampliativas.

55
As inferências ampliativas não garantem a verdade da conclusão, somente
a sua plausibilidade. Em outras palavras, o preço a se pagar pela garantia
da verdade da conclusão, dada a verdade das premissas, é o caráter não-
-ampliativo da inferência.
Isso não quer dizer, entretanto, que nas inferências ampliativas – como
é o caso das indutivas – as premissas não apoiem a conclusão com mais ou
menos força, de maneira mais ou menos decisiva, plausível. O problema é
tornar precisa essa noção de apoio e, se possível, quantificar a força com
que as premissas apoiam uma conclusão em inferências ampliativas, como
a indutiva.19

*2. Inferências ampliativas e metodologias gerativistas


A propriedade de uma inferência ser ampliativa é relevante para a
metodologia, em especial para a que enfoca métodos envolvidos na pro-
dução de conhecimento,20 porque se espera que as regras que norteiam tais
inferências possibilitem ampliar, com alguma margem de segurança, a base
de conhecimento disponível. Em outros termos, se existirem regras lógicas
que normatizem inferências ampliativas, elas poderão configurar métodos
usados na produção de conhecimento, de conhecimento novo.
Em um sentido restrito, o termo ‘lógica’ é entendido como ‘lógica de-
dutiva clássica’21 e, em outros contextos, eventualmente refere-se também às
inferências indutivas. Em um sentido amplo, o termo ‘lógica’ pode entender-se
como razão, método, procedimento, algoritmo, estratégia, heurística, etc.
Neste livro empregarei, em geral, o termo ‘lógica’ em seu sentido restrito,
a menos que haja indicação explícita em contrário. Um dos objetivos deste

19. Pode-se usar o cálculo de probabilidades com esse fim, como fazem os chamados ‘baye-
sianos’, que exploram as implicações epistemológicas do teorema de Bayes. Para uma
discussão mais alentada a respeito de uma lógica indutiva e do teorema de Bayes de modo
particular, ver Zilhão (2010).
20. Desde o último capítulo, eu venho denominando de metodologia ‘gerativista’ aquela
preocupada com a etapa de produção (ou de construção) de hipóteses, teorias, etc. e, simul-
taneamente, com a validação desses produtos (ou seja, com o valor epistêmico agregado a
esses produtos, pelo fato de determinados métodos terem sido empregados para produzi-los).
21. As lógicas ditas ‘não-clássicas’ não serão tematizadas neste livro.

56
capítulo é, justamente, o de investigar em que medida a lógica, entendida
neste sentido, pode embasar a reflexão metodo-lógica.
As regras que normatizam inferências não-ampliativas – como as re-
gras da lógica dedutiva – não teriam relevância, em princípio, para uma
metodologia voltada para a geração de conhecimento novo. Vimos que o
caráter das regras da lógica dedutiva é a de serem estritamente formais, no
sentido de não incorporarem qualquer conteúdo (empírico).22 Portanto, elas
não podem autorizar inferências ampliativas, pois essas, por definição, vão
além do conteúdo das premissas (se quiserem, ampliam o que afirmamos
a respeito do mundo, consubstanciado nessas premissas). De onde poderia
ter surgido esse novo conteúdo, se as passagens lógicas-dedutivas são meras
transformações formais, meras tautologias?23
Isso não quer dizer, entretanto, que a lógica clássica, formal, dedutiva
não possa ter relevância metodológica, no que tange à validação de pro-
dutos (hipóteses, teorias, etc.) já disponíveis, já construídos. Um exemplo
dessa relevância é a análise que farei, mais a frente, do chamado ‘método
hipotético-dedutivo’.

3. Inferências ampliativas e construção de conceitos


Antes de prosseguir, quero chamar atenção para uma ambiguidade
presente na expressão ‘caráter ampliativo’, quando aplicada a inferências.
Voltemos, para tanto, ao exemplo do zoológico. Notem que os mesmos
predicados que estão presentes nas premissas – nesse caso, um único pre-
dicado, o de voar –, também estão presentes na conclusão. Se entendermos
que um predicado representa um conceito (nesse caso, o conceito de voar),
podemos afirmar, portanto, que a indução enumerativa não permite intro-
duzir na conclusão nenhum conceito (ou predicado) novo, que já não esteja
presente nas premissas.

22. Somente no caso das inferências dedutivas, sua validade pode ser atestada pelo exame da
forma dos argumentos que as representam. A aceitabilidade das inferências não-dedutivas
não pode se apoiar, exclusivamente, em considerações formais. Nesse sentido, a sua lógica
subjacente teria um caráter informal.
23. Sobre a noção de ‘tautologia’, ver a nota 8.

57
A indução enumerativa, em particular, não nos indica como formar
conceitos com maior escopo do que os usados na formulação das premissas.
O conceito de ‘locomover-se’, por exemplo, tem maior ordem de generalidade,
nesse sentido, do que o o conceito de ‘voar’, mas não pode ser introduzido
com base em tal tipo de inferência indutiva, para ficarmos no exemplo
do zoológico.
Embora seja bastante comum, é portanto impreciso dizer, mesmo no
caso de uma indução enumerativa, que se ‘passa do particular para o geral’
e que, ao contrário, numa dedução ‘passa-se do geral para o particular’. Se a
palavra ‘ampliação’ for entendida em termos de um aumento da generalidade
(escopo) dos conceitos, deixa-se o quadro estritamente lógico, formal – por
referência ao qual venho, até aqui, entendendo o caráter ampliativo de
uma inferência. Não é demais repetir em que consiste esse quadro formal:
a indução é uma inferência em que se parte de sentenças com certa forma
ou sintaxe (por exemplo, a forma de sentenças singulares, em que se atribui
um predicado a um indivíduo de um certo tipo), para sentenças com outra
forma (a de sentenças universais, em que se atribui um predicado a todos
os indivíduos de um certo tipo). O mesmo predicado, nesse caso, figura
nos dois tipos de sentenças: a singular e a universal. Em outros termos, o
que a inferência indutiva faz é aplicar a um conjunto maior de indivíduos
o predicado (ou o conceito) que fora aplicado somente a alguns deles.24
A diferença entre sentenças singulares e sentenças universais diz respei-
to, exclusivamente, à forma dessas sentenças e não ao grau de generalidade
dos conceitos (predicados) que ocorrem nelas. Quando afirmo, portanto,
que a passagem de um conjunto de sentenças singulares para uma sentença
universal constitui uma inferência ampliativa, não estou extrapolando o
âmbito de uma lógica, entendida no sentido de uma lógica formal.
Note que, no exemplo do silogismo aristotélico – que, como disse, cons-
titui um argumento dedutivo e, portanto, não-ampliativo –, na conclusão

24. Somos, por exemplo, tentados a supor que quanto maior o número de observações
feitas (no exemplo, de aves que voam) com maior probabilidade segue-se a conclusão do
argumento (de que todas as aves voam). É, contudo, extremamente complexa a tarefa de
fundar de modo preciso essa intuição. Este é um dos problemas centrais de uma lógica que
se pretenda indutiva.

58
tem-se um conceito (representado pelo predicado ‘M’, ‘ser mortal’) que é
tão ‘geral’, por assim dizer, quanto os conceitos que aparecem nas premissas
(nesse caso, os conceitos de ‘homem’ e de ‘mortal’).25
Não é necessário dizer que a produção de conceitos é um tópico central
para uma metodologia que se pretenda construtiva. É duvidoso, contudo,
que a lógica – seja ela dedutiva, seja indutiva – possa contribuir para avan-
çarmos nesse campo.
Pode-se tentar articular lógicas que permitam normatizar tipos de
inferências que não se limitem a ampliar a aplicação de um conceito (ou
predicado) já disponível, a novos casos de um mesmo tipo, como numa
indução enumerativa. As inferências analógicas, por exemplo, merecem um
esforço sistemático e normativo que, se tiver sucesso, poderá contribuir para
uma metodologia genuinamente construtiva e, consequentemente, para se
adentrar no espinhoso terreno da descoberta científica.26

4. Haveria uma lógica da descoberta?


Há uma grande controvérsia, na filosofia contemporânea da ciência, a
respeito da possibilidade de se elaborar uma lógica da descoberta. Trata-se,
além disso, de uma expressão ambígua, que não especifica o tipo de
lógica envolvida.
Pelo que foi visto anteriormente, se existir uma tal lógica, ela teria por
objeto a formalização e regulamentação (ou regramento) de inferências de
tipo ampliativo. A noção de descoberta pressupõe, minimamente, que haja
uma ampliação do conhecimento disponível, codificado ou representado nas
premissas de argumentos. Não devemos, portanto, esperar que uma lógica
da descoberta seja uma lógica dedutiva, em que regras independentes de

25. A distinção entre mudanças na forma das sentenças e mudanças na generalidade de


conceitos (o que envolve a produção de novos conceitos) ainda era objeto de discussão entre
os filósofos da ciência do século XIX. Refiro-me a ela na segunda edição do livro Imagens
de Natureza, Imagens de Ciência (2016), no contexto da crítica metodológica de que foi alvo
Darwin quando propôs a sua teoria da evolução.
26. No capítulo 12 dou algumas indicações nesse sentido, ao discutir o papel que modelos
analógicos desempenham na prática científica.

59
qualquer conteúdo empírico (puramente formais) permitam a descoberta
de algo que não conhecemos.27
Aqueles que defendem a existência de algum tipo de lógica da des-
coberta não estão, simplesmente, afirmando que se pode reconstruir lo-
gicamente a descoberta, após ter sido ela feita, ou seja, após já dispormos
do conhecimento novo. Afirmam, isso sim, que o objeto de uma lógica da
descoberta seria o de regulamentar a produção original, vale dizer histórica,
de conhecimento – este seria o resultado de algum tipo de inferência a par-
tir de um conhecimento prévio, codificado em um conjunto de premissas.
Apresentado nesses termos, esse projeto atende a um paradigma inferencial,
numa metodologia construtiva.
Como indiquei anteriormente, a ideia básica por trás da inferência ana-
lógica é, justamente, a de que se pode partir de um conhecimento de fundo já
disponível (seja ele observacional ou teórico) para, modificando-o com base
em procedimentos estipulados em regras, gerar conhecimento novo.
A possibilidade de existirem inferências ampliativas, ou seja, de se poder
ampliar racionalmente, e com segurança, o conhecimento de que se dispõe,
de modo a obter-se conhecimento genuinamente novo, é tradicionalmente
objeto de ceticismo. É famoso o paradoxo que Meno – personagem de um
diálogo de Platão – explicitou e que parafraseio nos seguintes termos: se já se
sabe o que se busca, não faz sentido buscá-lo; se não se sabe o que se busca,
não há nenhum procedimento ou método que indique como fazer a busca...
O paradoxo enfatiza que não se pode procurar de maneira racional, metódica,
inferencial, algo que não se conhece.
Os céticos a respeito da possibilidade de se produzir conhecimento novo
de modo inferencial defendem que, se há inferência, esse conhecimento supos-
tamente novo já estaria implicitamente contido nas premissas do argumento
ou nas regras de inferência. Ele não seria, portanto, genuinamente novo.

27. Pode-se defender que mesmo uma dedução permite expor (e, em certo sentido, descobrir)
um conteúdo que não era conhecido, embora estivesse implícito nas premissas. Quando
se consegue provar um teorema, descobre-se algo que estava implícito nos postulados que
se assume na prova, de que não tínhamos conhecimento. Entretanto, quando falo aqui de
conhecimento novo, é no sentido de um conhecimento que não está contido nas premissas,
nem mesmo de modo implícito.

60
*5. O que seria uma lógica material?
O qualificativo ‘material’ contrapõe-se a ‘formal’ e refere-se, usualmente,
numa tradição aristotélica, a algo que é particular a um indivíduo, diferen-
ciando-o de outros indivíduos. É comum estender o sentido de ‘material’
para denotar o que é particular a um domínio da realidade ou a uma área
do conhecimento.28
As lógicas materiais aplicar-se-iam, então, a domínios particulares de
conhecimento e/ou pressuporiam conhecimento a respeito de tais domí-
nios, contrariamente às lógicas formais que, como frisei anteriormente, são
independentes de qualquer conhecimento (ou neutras com respeito a ele) e,
portanto, teriam uma aplicação geral. As chamadas ‘lógicas materiais’ (em
oposição às lógicas formais) pretendem ser ampliativas e, nessa medida,
poderiam contribuir para a fundamentação de uma metodologia voltada
para a produção do conhecimento.
A questão que se coloca é se tais lógicas materiais e, portanto, as infe-
rências ampliativas que elas autorizam, podem ser reduzidas a inferências
dedutivas, a lógicas de caráter exclusivamente formal. Há tentativas nesse
sentido, por parte de filósofos comprometidos com o dedutivismo, e que se
inserem no que chamei acima de ‘paradigma inferencial’ em metodologia.
Caso se tenha sucesso nessa redução, as inferências ampliativas passariam a
ter o mesmo grau de segurança e de confiabilidade das inferências dedutivas!
Para efetivar tal redução, os dedutivistas exploram estratégias como
as seguintes:
a) Incluir, entre as premissas do argumento, sentenças com maior conte-
údo – sentenças essas que estariam implícitas nas inferências ampliativas – e
que permitissem deduzir a conclusão seguindo regras puramente formais
de inferência;
b) Adotar regras materiais de inferência. Tais regras materiais incorpora-
riam conhecimento específico a determinadas áreas – como o conhecimento

28. O sentido de ‘material’ aqui buscado – que se contrapõe a ‘formal’ – não deve ser con-
fundido com o do mesmo termo quando utilizado para referir-se ao conectivo lógico de
implicação material: um conectivo da lógica formal a que me referi em seções anteriores.

61
tácito que possuem os especialistas – que permitisse efetuar a ampliação do
conteúdo das premissas assumidas.29
Mas como se obtém e se valida o conteúdo incorporado, seja nas pre-
missas implícitas (no caso da primeira estratégia), seja nas regras materiais
de inferência (no caso da segunda estratégia)? A questão das credenciais
desse conteúdo (ou seja, se ele corresponde a um conhecimento confiável)
se recoloca. Por outro lado, inferências não-ampliativas, como a dedutiva,
não podem vir em auxílio, no que tange à geração desse conteúdo. Logo, as
estratégias dedutivistas não têm sucesso. Não resolvem, ao fim e ao cabo, o
problema de como formalizar a descoberta científica; ou seja, não garantem
o sucesso do empreendimento de ampliar, com segurança, a nossa base
de conhecimento.
No caso das regras de inferência dedutivas, vimos que elas são formais
e, portanto, não pressupõem nada a respeito dos conteúdos das sentenças a
que são aplicadas.30 No caso das regras materiais – pelo fato de incorporarem
conhecimentos específicos e serem sensíveis aos conteúdos das sentenças
a que se aplicam –, elas perdem essa neutralidade quanto ao domínio de
aplicação e, consequentemente, a sua generalidade. No capítulo 7, veremos
que a noção de heurística relaciona-se, intimamente, com a noção de lógica
material que tentei articular nesta seção.

6. Lógica e racionalidade
As considerações deste capítulo indicam que se deve ter cuidado em
equacionar lógico e racional, como se faz com muita frequência, sobretudo
entendendo-se ‘lógico’ em termos restritos, como numa lógica formal. Para
tanto, é necessário distinguir uma regra metodológica de uma regra lógica.

29. Os chamados ‘sistemas especialistas’ em inteligência artificial incorporam regras desse


tipo. A esse respeito, remeto o leitor ao capítulo 7, no qual discuto a noção de heurística e
a comparo com a noção de algoritmo.
30. É objeto de discussão em que medida as regras dedutivas de inferência pressupõem
algum conhecimento substantivo – por exemplo, a respeito da nossa psicologia ou dos
nossos padrões habituais de raciocínio. Se esse for o caso, a distinção entre lógica formal e
lógica material tende a tornar-se menos nítida. Ver, também, a nota 3.

62
Uma regra metodológica indica o que é racional se fazer em determinadas
circunstâncias, com base no conhecimento que se possui e tendo-se em vista
determinados fins. Isso, no entanto, não significa que a base ou justificativa
dessa regra tenha um caráter lógico. Assim, uma decisão pode ser tomada
racionalmente (por exemplo, a decisão de se adotar ou de se rejeitar uma
teoria científica), com base em regras metodológicas, mesmo se tais regras
não forem, elas próprias, lógicas ou fundadas em alguma lógica, seja ela de
tipo formal ou mesmo material.31
Veremos, nos próximos capítulos, que as metodologias propostas por
diversos filósofos contemporâneos – que podem ser consideradas tentativas
de se articular uma teoria da racionalidade científica – não resultam da mera
aplicação de alguma lógica.

7. O método hipotético-dedutivo
O chamado ‘método de hipótese’ é considerado por muitos a essência
mesma do método científico, pois visaria explicar um fato através da proposta
de uma hipótese; e hoje consideramos a explicação como um dos objetivos
mais importantes da atividade científica.32
As noções básicas introduzidas neste capítulo permitirão oferecer uma
reconstrução lógica desse método, em termos do que passou a ser conheci-
do como o ‘método hipotético-dedutivo’ (para abreviar, método H-D). No
próximo capítulo mostrarei que reconstruções desse tipo caracterizaram
muito do que se fez em filosofia da ciência no século XX, com o objetivo de
tornar mais claras certas noções usadas na linguagem cotidiana e também
na científica, bem como dar-lhes fundamentação filosófica. Essa discussão
permitirá exemplificar, no contexto do presente capítulo, de que modo a

31. O fundamento de regras metodológicas, ou da racionalidade científica, pode estar em


outro tipo de teoria, como numa teoria da decisão, na teoria da probabilidade ou em uma
ou várias teorias científicas.
32. Ao longo da história da ciência o uso de hipóteses foi, entretanto, objeto de muitas críticas.
Tampouco a explicação foi sempre vista como um objetivo legítimo da prática científica.
Ver, a esse respeito, Abrantes (2016). No capítulo 5 do presente livro menciono, também, a
leitura que Laudan faz da história da ciência no tocante a isso.

63
lógica pode ter aplicações genuinamente metodológicas e, desse modo,
evitar certos equívocos.
Embora o método de hipótese possa ser visto, como sugeri acima, como
objetivando a explicação, ao reconstruí-lo em termos do método H-D fica
claro que não especifica como se constrói (ou se gera) a hipótese, o que levou
muitos filósofos a vê-lo, de modo mais restrito, como voltado unicamente
para a confirmação de hipóteses. Não seria, portanto, um método de des-
coberta, mas sim de justificação.33
Uma hipótese pode, efetivamente, ser considerada confirmada (e, portanto,
o seu emprego justificado) na medida em que uma consequência observacional,
obtida dedutivamente a partir da hipótese, for comprovadamente verdadeira.34
Entretanto, ocorre que, de uma hipótese isolada que tem, por exemplo, a forma
de uma sentença universal (do tipo lei), não se segue nenhuma consequência
observacional. São necessárias condições adicionais (e, frequentemente, hipó-
teses auxiliares) para que se possa derivar uma consequência observacional.
O método H-D conforma-se ao seguinte esquema lógico:

H (hipótese a ser testada)


Ci (condições iniciais)
Ha (hipóteses auxiliares)
===================
O (consequência observacional)
A dupla linha separa, como antes neste capítulo, a conclusão do argu-
mento dedutivo, das suas premissas.
Exemplifico, para facilitar a compreensão desse esquema. Em astro-
nomia, pode-se partir de uma hipótese ‘H’ – a de que a órbita de Marte é
elíptica –, de dados observacionais a respeito da posição desse planeta em

33. Veremos, nos capítulos 4 e 5, que a distinção entre os chamados ‘contextos’ de desco-
berta e de justificação, – uma distinção cara a algumas correntes da filosofia da ciência
– vem justamente delimitar o contexto em que a lógica, entendida em seu sentido restrito,
aplicar-se-ia propriamente ao empreendimento metodológico. Apresento evidências, no
capítulo 5, de que Hempel interpretou o método de hipótese como a última etapa de uma
“investigação científica ideal”, voltada para a validação. Ver, contudo, também no capítulo
5, o modo alternativo como Hanson encarou o método H-D e como ele o relacionou com
outros métodos.
34. A reconstrução que aqui ofereço está afinada com o modo como os empiristas lógicos
lidaram com o problema da confirmação, que será discutido no capítulo 4.

64
certo momento – as condições iniciais ‘Ci’ –, e inferir dedutivamente a sua
posição em outro momento: a consequência observacional ‘O’. Uma hipó-
tese auxiliar ‘Ha’ nesse contexto pode ser, por exemplo, a de que nenhum
outro corpo celeste, além do Sol, exerce um efeito gravitacional significativo
sobre Marte.
Caso a consequência observacional ‘O’ seja uma sentença verdadeira –
como quando permite descrever uma observação feita cuidadosamente –, o
que se pode afirmar a respeito da hipótese ‘H’ em conjunção com as outras
premissas? É muito comum pensar-se que, nesse caso, pode-se afirmar que
‘H’ é verdadeira; ou melhor, que a conjunção das premissas é verdadeira.
No entanto, afirmar isso seria incorrer num erro lógico, numa falácia, pois
não há uma regra de inferência que lhe dê respaldo.35 Se ‘O’ for verdadeira,
o que, no máximo, podemos dizer é que ‘H’ foi confirmada, juntamente
com as outras premissas. Isso, contudo, não impede que ‘H’ seja falsa; outra
observação pode vir a revelar isso. Por esta razão evitarei, sistematicamente,
o uso do termo ‘verificar’ neste caso, preferindo o termo ‘confirmar’, que
não significa provar que é verdadeiro.
Por outro lado, se ‘O’ for falsa, pode-se inferir com segurança, por meio
da regra Modus Tollens (uma regra, como vimos, da lógica dedutiva) que a
conjunção de ‘H’ com as outras premissas é falsa. Diz-se, então, que ‘H’ foi
infirmada ou falseada.
A confirmação que se dá no caso de ‘O’ ser verdadeira não é, contudo,
de uma sentença isolada, mas de um conjunto de sentenças. Além disso, já
sabemos que uma confirmação não constitui uma verificação. Ademais, se ‘O’
é falsa, isso não implica que ‘H’ seja necessariamente falsa, pois as condições
iniciais ‘Ci’ podem estar incorretas; ou então as hipóteses auxiliares podem

35. Esse erro é conhecido como ‘falácia da afirmação do consequente’, pois a derivação
na metalinguagem pode ser representada por uma implicação material em que a con-
junção das premissas implica (materialmente) a conclusão. Simbolicamente, teríamos:
(H . Ci . Ha) -> O . O ponto ‘.’ representa a conjunção lógica e, como antes, ‘->‘ representa a
implicação material. Sob essa forma, é fácil ver que ‘O’ é o consequente, e a conjunção das
premissas é o antecedente da implicação material. A falácia, portanto, consiste em afirmar
que, se ‘O’ (o consequente) é verdadeiro, a premissa (o antecedente) necessariamente tam-
bém o é. Basta inspecionar a tabela veritativa da implicação material para se perceber que
o antecedente pode ser falso, o consequente verdadeiro e, ainda assim, a sentença composta
‘(H . Ci . Ha) -> O ‘ ser verdadeira. Ver a nota 8, acima.

65
ser falsas. Desse modo, ‘H’ poderia ser verdadeira pois basta que uma única
premissa seja falsa para que a conjunção delas seja falsa.
Gostaria de chamar atenção para o fato de que o método hipotético-de-
dutivo, a despeito do termo ‘dedutivo’ comparecer em seu nome, estabelece,
na verdade, uma inferência indutiva: a partir da observação ou instância
corroboradora conclui-se que a hipótese é confirmada.36 A confirmação de
uma hipótese configura uma indução. Em outros termos, a relação entre
uma hipótese e sua instância corroboradora não é uma relação dedutiva,
mas sim indutiva. Terei mais a dizer sobre isso no próximo capítulo.
Por último, volto a enfatizar que o método H-D nada diz a respeito de
como a hipótese ‘H’ foi inicialmente construída ou gerada. Ele pressupõe
que já dispomos, inicialmente, dessa hipótese. Com esse método pode-se,
somente, testá-la com base na evidência disponível. Desse modo, é um
equívoco pensar que se trata de um método de descoberta de hipóteses.
Há, além disso, dois problemas básicos com o método H-D. O primeiro
é que sempre existem várias hipóteses compatíveis com uma dada observação
(ou seja, que implicam a sentença observacional que a descreve). Logo, pelo
método H-D tal evidência empírica confirmaria todas aquelas hipóteses
simultaneamente. Como selecionar então uma delas? Isso não seria possível
com base em critérios exclusivamente empíricos. Ter-se-ia que apelar para
outros valores epistêmicos, de caráter não-empírico, como o critério de
simplicidade, por exemplo. O segundo problema é que nem sempre uma
hipótese tem consequências observacionais obtidas dedutivamente. É o caso,
por exemplo, das hipóteses com um caráter estatístico. O método H-D não
pode ser aplicado a esses casos.
No capítulo 6 reinterpretarei o método H-D de forma mais ampla e
de modo a que se aplique ao teste de teorias científicas, e não somente de
hipóteses isoladas, o que permitirá recapitular, em larga medida, a análise
feita nesta seção.

36. A dedução, como foi visto acima, é usada para extrair a consequência observacional da
hipótese. A confirmação, contudo, ocorre somente na etapa seguinte, ao confrontarmos a
consequência da hipótese com a observação ou a experiência. Ao afirmar que a hipótese
é confirmada – no caso de haver acordo com a experiência – estamos, por assim dizer,
movendo-nos logicamente no sentido oposto ao da dedução, isto é, no sentido que vai da
observação para a hipótese, o que constitui um movimento indutivo.

66
4

A metodologia na filosofia da ciência


do empirismo lógico

Qual o lugar que a metodologia ocupa na filosofia contemporânea da


ciência? Para encetar uma resposta a essa pergunta, considero relevante
remeter à discussão do capítulo 2 sobre a relação entre metodologia e epis-
temologia. Lá distingui duas tendências: uma que subordina a metodolo-
gia à epistemologia e outra que dá à metodologia um lugar privilegiado e
tenta enfrentar os problemas epistemológicos, em particular os colocados
pelas ciências, através de uma abordagem propriamente metodológica.
O empirismo lógico (também conhecido como ‘neopositivismo’) representa
a primeira tendência e o popperianismo representa a segunda.
Os empiristas lógicos estavam interessados, sobremaneira, no pro-
blema epistemológico da justificação dos produtos da atividade científica,
adotando um viés verificacionista.1 Para eles, consequencialistas que eram,
a investigação dos processos que conduzem à construção das hipóteses, leis
e teorias científicas não teria nenhuma relevância para o problema, pro-
priamente filosófico, da sua justificação (ou validação). A distinção entre os
chamados ‘contexto de descoberta’ e ‘contexto de justificação’ constitui um
compromisso central do empirismo lógico. O primeiro refere-se à descoberta
de hipóteses, leis, modelos, teorias, etc., e o segundo contexto seria aquele

1. Veremos no capítulo 6 que Popper também está preocupado com o problema episte-
mológico, mas o seu viés é, entretanto, falseacionista, e não verificacionista. Ele critica os
empiristas lógicos por não se preocuparem com o problema, que considera propriamente
metodológico, do “crescimento do conhecimento”. A preocupação central dos empiristas
lógicos era, de fato, com a reconstrução lógica das teorias, tomadas como objetos linguísticos
estáticos, e não com os métodos envolvidos na dinâmica teórica.

67
em que se justifica tais produtos da atividade científica criadora, construtiva,
que se dá no primeiro contexto.2
O fundacionalismo3 e o logicismo contribuíram para que discussões
propriamente metodológicas não figurassem de forma proeminente no
programa dos empiristas lógicos (ver Quadro 1).
A demarcação entre a ciência e a metafísica é uma questão central
para os empiristas lógicos e isso se revela não só no tratamento que deram
ao papel da matemática nas teorias científicas, mas também no chamado
‘problema dos termos teóricos’, que será abordado mais adiante. Esses dois
problemas recolocam a distinção kantiana entre proposições sintéticas e
analíticas. Para o empirismo lógico, tratava-se de contestar a possibilidade
do sintético a priori, seja na forma de uma linguagem teórica sem base
observacional, seja na de um cálculo.
Na última seção do capítulo, mostrarei as tentativas dos empiristas
lógicos de darem uma solução semântica para o problema da demarcação,
no espírito da chamada ‘virada linguística’ em filosofia.

Quadro 1 - Logicismo
A possibilidade de termos um “núcleo sintético a priori” em nosso conhecimento, par-
ticularmente no conhecimento científico, foi um dos pontos de discussão para as filosofias da
ciência do século XIX, marcadas pela imensa influência de Kant.
As dificuldades tanto do empirismo quanto do racionalismo para responderem ao pro-
blema de como a matemática se aplica à experiência foram enfrentadas por Kant ao supor
que existem formas para a nossa intuição sensível: o espaço e o tempo. A estrutura da nossa
experiência sensível seria, então, condicionada pela nossa estrutura psíquica. Como consequ-
ência do modo como nossa experiência é estruturada pelas formas da intuição, os enunciados
da geometria (euclidiana) e da aritmética expressariam, nessa perspectiva, simultaneamen-
te verdades necessárias e sintéticas (seriam relativos ao espaço e ao tempo como “formas
puras” da intuição). Os enunciados matemáticos se distinguem, desse modo, das “leis” da lógica
pois estas, embora necessárias, nada afirmam a respeito da experiência sensível (são analíti-
cas, portanto).
O desenvolvimento das geometrias não-euclidianas no século XIX abalou profundamente
essa concepção kantiana da natureza das matemáticas.

2. No próximo capítulo entro em detalhes históricos a respeito dessa distinção entre contextos.
3. O fundacionalismo como teoria da justificação foi apresentado, em sua formulação mais
geral, no capítulo 2.

68
Contra esse pano de fundo do kantismo, o papel cada vez mais importante desempenhado
pela linguagem matemática nas teorias da física fez da matemática o que pareceu aos empiristas
lógicos uma porta de entrada para o sintético a priori no conhecimento científico. Mas para
estes, a matemática é vista como puramente formal, e não intuitiva, como em Kant. Mesmo
que não se admita o sintético a priori kantiano existiria, assim mesmo, um elemento a priori
no conhecimento científico, pelo menos de caráter formal? A matemática não corresponderia
a esse elemento a priori?
Mach, em 1868, admitiu a existência de princípios fundamentais a priori, de caráter formal.
Mais tarde, ele rejeitaria qualquer a priori no conhecimento científico. Clifford, Pearson e Hertz
admitiram um elemento a priori puramente formal, ou seja, sem conteúdo empírico.
Com os desenvolvimentos da lógica no final do século XIX, esta questão teve uma resposta
sistemática. Os Principia Mathematica de Whitehead e Russell abriram as portas, já no século
XX, para uma redução da matemática à lógica. Por sua vez, Wittgenstein passou a defender
que as leis da lógica são tautologias, isto é, sentenças vazias de qualquer conteúdo empírico.
As leis da lógica, dito de outra forma, seriam válidas em todos os mundos possíveis.
Os princípios lógicos (e também as proposições matemáticas, no caso de serem mesmo redu-
tíveis àqueles princípios) seriam, por isso mesmo, aplicáveis a um conteúdo qualquer, desde
que este fosse devidamente formalizado. As proposições matemáticas deixam, portanto, de
possuir qualquer caráter sintético a priori. O empirismo lógico adota o logicismo como filosofia
da matemática, que é sintetizada por Carnap nos seguintes termos:
(...) a adjunção da ciência formal à ciência do real não introduz nenhum elemento
objetivo novo, como crêem muitos filósofos, os quais opõem aos objetos ‘reais’ da
ciência do real os objetos ‘formais’, ‘espirituais’ ou ‘ideais’ da ciência formal. A ciência
formal não tem absolutamente nenhum objeto; é um sistema proposicional auxiliar,
desligado de todo objeto e vazio de todo o conteúdo. (Carnap apud Blanché, 1983:114)
Na seção deste capítulo dedicada à estrutura das teorias científicas veremos como os
empiristas lógicos enfrentaram essa questão.

1. O problema da confirmação
Lakatos é enfático em dizer que Carnap, uma figura central do programa
do empirismo lógico, “expropriou” o termo ‘metodologia’, redefinindo-o
como “método de justificação” (Lakatos, 1978b:135). Nas mãos dos empiristas
lógicos, a metodologia tornou-se, segundo ele, uma “lógica da ciência” ou,
mais precisamente, uma lógica (indutiva) aplicada.
Um outro modo de expressar essa apreciação é a seguinte: a metodo-
logia e a teoria da confirmação confundem-se para os empiristas lógicos.
Para ilustrar esse ponto, vejamos como a confirmação tornou-se um pro-
blema central para essa escola, e o tipo de abordagem que foi adotada para
tentar solucioná-lo.
O problema da confirmação é o da fundamentação das inferências não-
dedutivas (vale dizer, indutivas). Neste sentido, o problema da confirmação

69
está intimamente relacionado com o problema da indução que, desde Hume
pelo menos, tem resistido às sucessivas investidas dos filósofos.

Quadro 2 - Hume e o problema da indução


O problema da indução deriva da epistemologia atomística defendida por Hume: os objetos
últimos do conhecimento são impressões (ou eventos), e tais impressões são independentes.
O nosso conhecimento empírico é um conhecimento de regularidades nos eventos. Brown vê
nesta tese a expressão de uma ontologia:

(...) as impressões são para Hume os existentes últimos, os blocos fundamentais da


realidade. O único mundo passível de ser conhecido é o mundo das impressões, e toda
impressão é ontologicamente distinta de cada uma das demais, isto é, a existência ou
inexistência de qualquer impressão é completamente independente da existência ou
inexistência de qualquer outra. (Brown, 1988:19)

Nessa discussão, Brown dá um passo que talvez não deva ser imputado a Hume: de “eventos
na consciência” – que são as impressões e as idéias –, a “eventos no mundo” (ver Harré, 1970:5).

De qualquer dessas formulações do problema da indução segue-se, de todo modo, a


impossibilidade de demonstrarmos qualquer generalização e, consequentemente, a incerteza
incontornável associada a qualquer projeção ou previsão que vá além do que experienciamos.
Como não temos impressões ou experiência de uma conexão necessária entre eventos que
observamos estar regularmente associados no passado, não é possível inferir que eventos do
mesmo tipo estarão regularmente associados no futuro. Particularmente, não temos qualquer
impressão de um poder causal de um evento sobre outro que o sucede; logo, não há garantia
de que no futuro uma causa similar será seguida de um efeito similar.

Por outro lado, não há um raciocínio que nos permita passar, por exemplo, de “tais e
tais X são Y” para “todos os X são Y”. Na impossibilidade de conhecermos a veracidade desta
generalização, não podemos inferir com segurança que, no futuro, ao termos a experiência de
“X”, teremos necessariamente associada a experiência de “Y”. Para Hume, tais associações estão
baseadas unicamente no hábito, e não em qualquer argumento demonstrativo.

Podemos dividir o problema em dois: 1) O problema da confirmação


de hipóteses em que só aparecem predicados observacionais; 2) O problema
da confirmação de hipóteses envolvendo predicados (ou termos) teóricos.
Considerarei, inicialmente, o primeiro deles. A despeito de ser o mais simples,
ele ilustra a abordagem que os empiristas lógicos adotaram com respeito
a temáticas metodológicas de modo geral. Em seguida, indicarei que um
tratamento do segundo problema passa pela questão da estrutura das teorias
científicas, outro tópico central investigado pelos empiristas lógicos.4

4. Uma discussão aprofundada a respeito da estrutura das teorias científicas, bastante


técnica, foge ao escopo deste livro. Ao final do presente capítulo forneço, contudo, os ele-

70
Uma tentativa de tratar o primeiro problema é a teoria da confirmação
por instâncias, desenvolvida por Hempel, outro expoente do programa do
empirismo lógico.

2. Confirmação por instâncias


A proposta é a de elaborar uma teoria exclusivamente sintática da con-
firmação (ou seja, que não leve em consideração aspectos semânticos ou
pragmáticos): a relação entre hipótese e evidência (empírica) deve ser in-
vestigada como uma relação lógica. Esta teoria deve oferecer, nos termos
de Hempel, “critérios objetivos” para determinar quando uma hipótese H
é confirmada por um conjunto de evidências E.
A tarefa da filosofia da ciência é, para esse filósofo, a de propor uma
reconstrução racional dos padrões de confirmação (e infirmação) empre-
gados (intuitivamente) na prática científica. Por ‘reconstrução racional’
entenda-se, nesse contexto, o desenvolvimento de uma teoria da confirmação
que estabeleça um conjunto de critérios de adequação para a confirmação
científica, e defina um conceito de confirmação que satisfaça a tais critérios.
Hempel acredita, em conformidade com os pressupostos do empi-
rismo lógico, que existem critérios puramente formais (sintáticos) para se
estabelecer quando uma hipótese é confirmada, à semelhança dos critérios
de validação das inferências dedutivas (estabelecidos explicitamente por
uma lógica dedutiva). Caso tal empreendimento tenha sucesso, questões
psicológicas, semânticas e pragmáticas não precisariam ser contempladas
por uma teoria da confirmação, que teria por objeto somente uma das fases
do teste de uma hipótese:
Falando de modo geral, nós podemos distinguir três fases no teste
científico de uma dada hipótese (que não necessariamente ocorrem
na ordem em que são listadas aqui). A primeira fase consiste na rea-
lização de experimentos ou observações adequadas e a consequente
aceitação dos protocolos observacionais estabelecendo os resultados

mentos básicos para compreender o que está em jogo, já que esse tópico será mencionado
em vários capítulos.

71
obtidos; a fase seguinte consiste em confrontar a dada hipótese com
os relatórios observacionais aceitos, e.g., averiguando se os últimos
constituem evidência confirmando, desconfirmando (infirmando) ou
irrelevante com respeito à hipótese; a fase final consiste em aceitar ou
rejeitar a hipótese com base na evidência confirmativa ou infirmativa
constituída pelos relatórios de observação aceitos, ou em suspender o
juízo, esperando o estabelecimento de evidência relevante adicional.
O presente estudo investiga quase que exclusivamente a segunda fase.
(Hempel, 1965:40-1)

Hempel enfatiza que a segunda fase é a única das três que possui um
“caráter puramente lógico”. A primeira e a terceira fases têm um caráter
pragmático, pois envolvem decisões dos cientistas. Além disso, enquanto
a segunda e a terceira fases podem ser reconstruídas como envolvendo
relações entre sentenças, a primeira fase – a da aceitação de protocolos de
observação – envolve uma dimensão extralinguística (como a relação causal
entre a experiência do indivíduo, suas observações portanto, e as sentenças
com que as expressa).5

*3. O critério de Nicod


O critério de Nicod aplica-se à confirmação e infirmação de sentenças
do tipo:
(x) (Px -> Qx),

que se lê: ‘ Para todo ‘x’, ‘Px’ implica ‘Qx’ ’


Pressupõe-se que a forma lógica das leis científicas seja a de sentenças
universais deste tipo.

Exemplos:

5. Como nos capítulos anteriores, uso sistematicamente a palavra ‘sentença’, em vez


de palavras como ‘enunciado’, ‘frase’, etc., para designar uma sequência bem formada de
caracteres em uma linguagem (ou seja, um objeto puramente sintático).

72
Px = ‘x é um corvo’; Qx = ‘x é negro’. A sentença universal, neste caso,
seria: ‘Todos os corvos são negros’, ou ‘Se x é um corvo, então x é negro’.
Px = ‘x é um sal de sódio’; Qx = ‘x queima com uma chama amarela’.
A lei seria: ‘Se x é um sal de sódio, então queima com uma chama amarela’.
Px = ‘x é um ácido’; Qx = ‘x torna vermelho o papel de tornassol’.
A sentença universal expressando uma lei seria: ‘Se x é um ácido, então ele
torna vermelho o papel de tornassol’.
Pelo critério de Nicod, sentenças do tipo (x)(Px -> Qx) seriam confir-
madas por instâncias – evidências empíricas expressas por sentenças do tipo
Pa.Qa –, e infirmadas (ou desconfirmadas) por instâncias da forma Pa.~Qa.
Tal critério mostra-se bastante adequado às nossas concepções intuitivas
do que seja a confirmação.
Sentenças envolvendo ~Pa seriam neutras com respeito à sentença uni-
versal (não expressariam evidências confirmando-a ou desconfirmando-a).
Neste ponto convém, uma vez mais, enfatizar que a confirmação de
sentenças é um resultado bem mais fraco que sua verificação. Embora o
empirismo lógico inicialmente pretendesse estabelecer a verificabilidade
como condição de empiricidade, as sentenças universais, sem restrição
espaço-temporal, da forma (x) (Px -> Qx), não são passíveis de verifica-
ção com base em qualquer conjunto finito de evidências. Elas podem, no
máximo, ser confirmadas ou falseadas, de acordo com um critério como o
proposto por Nicod.
Por sua vez, sentenças existenciais, como ‘Existem corvos negros’, podem
ser verificadas, mas não falseadas. No tocante à questão da sua aceitabili-
dade empírica (se verificáveis ou falseáveis) há, portanto, uma interessante
assimetria na relação das sentenças universais, de um lado, e existenciais, de
outro lado, com respeito a sentenças que expressam a evidência empírica.

*4. A condição de equivalência e os paradoxos da confirmação


Espera-se que numa teoria lógica da confirmação, sentenças que pos-
suem formas lógicas equivalentes tenham a mesma relação (lógica) com as
sentenças que as confirmam (ou com as sentenças que as desconfirmam).

73
Veremos, contudo, que surgem curiosos paradoxos se aceitarmos tal critério
de equivalência juntamente com o critério de Nicod.
Consideremos as seguintes sentenças equivalentes a (Px -> Qx):
1. ~Qx -> ~Px; 2. (Px . ~Qx) -> (Rx . ~Rx); 3. (Px v ~Px) -> (~Px v Qx).

Teremos então:
1. (x) (~Qx -> ~Px) é confirmada por ~Qa . ~Pa . Esta última sentença,
porém, não confirma a sentença (x) (Px -> Qx) !
2. (x) [(Px. ~Qx) -> (Rx . ~Rx)] não é confirmada por nenhuma sentença.
3. (x) [(Px v ~Px) -> (~Px v Qx)] : como o antecedente é analítico, esta
sentença é confirmada por ~Px ou por Qx (independentemente). Ou
seja, no caso do nosso exemplo com corvos, qualquer objeto que não
for corvo (como esta folha de papel) ou qualquer objeto negro (como
qualquer letra impressa nesta folha) confirmariam uma sentença com
esta forma. Um resultado no mínimo surpreendente e que temos di-
ficuldade em aceitar.
Aparentemente, portanto, sentenças logicamente equivalentes não
possuem o mesmo tipo de relação lógica com sentenças que expressam a
evidência, o que constitui um complicador para uma teoria, que se pretende
exclusivamente sintática (formal), da confirmação.
Foram feitas diversas tentativas para resolver tal paradoxo e outros
que surgem numa teoria da confirmação desse tipo. Tentou-se, por exem-
plo, contestar que as leis científicas possuem a forma lógica de sentenças
universais. Alguns se inclinaram a abandonar o próprio critério de Nicod.
Hempel (1965) propõe uma maneira alternativa de resolver alguns dos
paradoxos: eles seriam pseudo-paradoxos que surgiriam de uma confusão
entre os planos lógico e psicológico! Ele argumenta do seguinte modo.
Consideremos a lei ‘Todos os sais de sódio queimam com uma chama
amarela’. Pelo critério de equivalência, tal sentença deveria ser confirmada
por qualquer corpo que não seja um sal de sódio (por exemplo, um cubo
de gelo) e que não torne amarela a chama (ver o caso da sentença 1 acima).
Por que deveríamos escandalizar-nos ao notar que o experimento de colocar
um bloco de gelo sobre uma chama, e observar que ele não queima com
uma chama amarela, confirma a lei acima? Porque sabemos, diz Hempel,
por um conhecimento anterior independente, que se trata de um bloco de

74
gelo, e que este se derrete com o contato da chama. Mas esse conhecimento
anterior não deve ser levado em consideração quando se trata de discutir a
relação lógica entre a lei sob análise e esta evidência. Devemos, em vez disso,
considerar que o conjunto de evidências de que dispomos esgota todo o nosso
conhecimento. Se não soubéssemos que o objeto em questão é um bloco de
gelo, observar que ele não queima com uma chama amarela constitui, sem
dúvida, evidência a favor da lei ‘Todos os sais de sódio queimam com uma
chama amarela’. A situação só parece paradoxal se confundimos os planos
lógico e psicológico, e levarmos em consideração elementos estranhos às
sentenças, tomadas isoladamente, e sua relação lógica. Só isto importa para
uma teoria formal da confirmação, como a que busca Hempel.
Além de uma análise dos paradoxos da confirmação, Hempel discute
uma série de condições de adequação para qualquer definição de confirma-
ção, como as condições de consequência especial e de consequência inversa:
Condição de consequência especial: se a evidência observacional confirma
uma hipótese H, ela também confirma toda consequência de H.
Condição de consequência inversa: se a evidência observacional con-
firma uma hipótese H, ela também confirma qualquer outra hipótese que
implique H.
Tais condições também parecem bastante intuitivas. Ocorre, contudo,
que, se as aceitarmos conjuntamente, teremos como resultado que uma
evidência confirma qualquer hipótese! De fato, pela segunda condição, se
H é confirmada, então também o é (H.G). Pela primeira condição, se (H.G)
é confirmada, então G é confirmada. Como G é uma hipótese qualquer,
temos um resultado inaceitável. Isso levou Hempel a rejeitar a condição de
consequência inversa. Mas há propostas alternativas de solução para esse
problema, que mantêm a condição de consequência inversa e rejeitam a
condição de consequência especial.
Hempel propôs uma nova teoria da confirmação que é imune a tais pro-
blemas, mas não a exporei aqui. O meu objetivo é indicar alguns problemas
que surgem do projeto de uma teoria exclusivamente sintática da confirmação
(projeto esse típico do programa do empirismo lógico); e sugerir que uma
teoria da confirmação deva levar também em consideração as dimensões
semântica e pragmática envolvidas na confirmação de uma hipótese.

75
Veremos, na próxima seção, que o filósofo Goodman argumenta, jus-
tamente, que uma teoria da confirmação deve levar em consideração essas
outras dimensões. Entre elas, está a história prévia de testes a que foi sub-
metida a hipótese.
Resta, por último, a questão de se tais teorias da confirmação refletem,
de modo adequado, as situações reais com que lidam os cientistas em sua
prática. Com base nisso, muitos críticos contestaram o interesse de uma
teoria como a de Hempel, mesmo que ela não apresente, internamente,
inconsistências. Essa discussão remete à relevância do próprio trabalho
filosófico, pelo menos como era entendido pelos empiristas lógicos.
Volto a enfatizar que o problema da confirmação, como tratado acima,
restringe-se à confirmação de hipóteses expressas na mesma linguagem da
evidência observacional. No caso de hipóteses expressas numa linguagem
mais rica, envolvendo termos teóricos, o problema torna-se bem mais com-
plexo, como veremos adiante neste capítulo.
Por outro lado, a despeito do seu tratamento em termos lógicos, as
análises da confirmação apresentadas acima têm um caráter qualitativo: elas
não nos permitem determinar o grau de confirmação de uma hipótese. Há
propostas de teorias quantitativas da confirmação, sendo que a mais conhecida
delas é a teoria bayesiana, que está assentada no cálculo de probabilidades.

*5. Verzul
Sim, o título é esse mesmo; não se trata de erro de digitação! ‘Verzul’
(em inglês, grue) é um dos neologismos mais famosos do vocabulário fi-
losófico contemporâneo. Inventado por Goodman, trata-se de um termo
definido de tal forma que possa vir a predicar esmeraldas a mesmo título que
o termo ‘verde’, utilizado habitualmente por falantes da língua portuguesa,
para predicar tais pedras. Vamos à definição de ‘verzul’:
verzul=def ‘examinado até hoje e constatado ser verde, ou que só venha
a ser examinado a partir de amanhã e seja azul’
‘Verde’ predica, para nós, de modo não problemático, as esmeraldas.
Note, contudo, que ‘verzul’, como definido acima, também predica as esme-
raldas que examinamos até hoje! Ou seja, todas elas são verdes e também
são verzuis.

76
O paradoxo que surge é o seguinte: por que estamos dispostos a projetar
o predicado ‘verde’ para uma esmeralda que examinaremos no futuro, mas
não estamos dispostos a projetar o predicado ‘verzul’ (embora todas as es-
meraldas examinadas até hoje sejam também verzuis e, portanto, confirmem
a sentença ‘todas as esmeraldas são verzuis’)? Ou seja, por que não estamos
dispostos a prever que a esmeralda a ser examinada no futuro será azul?
Uma outra maneira de apresentar o paradoxo seria: por que consideramos
que as esmeraldas verdes confirmam a sentença “Todas as esmeraldas são
verdes”, mas não consideramos que as esmeraldas verzuis confirmem a
sentença “Todas as esmeraldas são verzuis” ?
Há várias tentativas de se resolver o paradoxo (ver Stalker, 1994).
A solução proposta por Goodman envolve a ideia de fortificação ou entrin-
cheiramento (entrenchment). Informação histórica a respeito dos usos dos
predicados permite distinguir os predicados que são projetáveis dos que não
o são. Neste caso, pelo fato de o predicado ‘verde’ ter sido mais usado até
aqui em hipóteses (e ter sido mais ‘projetado’) está, portanto, mais fortificado
do que o predicado ‘verzul’. A solução de Goodman apela, portanto, para
a dimensão pragmática da presença de determinados termos em hipóteses
efetivamente empregadas no passado (para descrever, explicar, prever, etc.).
A solução de Quine para o paradoxo é diferente: “(...) predicados pro-
jetáveis são predicados ζ e η cujas instâncias compartilhadas por ambos
contam, todas elas, por qualquer razão que seja, para a confirmação de
‘Todos os ζ são η’ ’’ (Quine, 1987:119).
Combinando o paradoxo dos corvos (que examinei na seção anterior)
com o paradoxo das esmeraldas verzuis, Quine propôs que os complementos
de predicados não sejam projetáveis (‘corvo’ e ‘verde’ são projetáveis, mas
seus complementos ‘não-corvo’ e ‘não-verde’ não o seriam). O raciocínio
de Quine, ao aproximar os dois paradoxos, é o seguinte: a sentença ‘não
corvos e não negros’ não confirma a sentença universal “Todos os corvos
são negros” porque os predicados que lá figuram não são projetáveis. E não
são projetáveis porque são complementos, respectivamente, dos termos
‘corvos’ e ‘negros’. Os complementos não são projetáveis porque as coisas
que os instanciam são menos similares entre si do que as instâncias dos
predicados ‘corvo’ e ‘negro’.

77
Um outro modo de apresentar a solução de Quine seria: predicados
projetáveis são aqueles que predicam coisas que constituem uma espécie ou
tipo natural (natural kind). Nos exemplos anteriores, corvos constituiriam
um tipo natural. O conjunto de coisas que não são corvos (às quais se aplica,
portanto, o predicado ‘não corvo’) não constituiriam um tipo natural. Do
mesmo modo, ‘verzul’ não se referiria a algum tipo natural.

6. A estrutura das teorias científicas: um sobrevoo6


Para o empirismo lógico, a metafísica pode imiscuir-se na ciência por
duas vias: através da presença de termos teóricos na linguagem das teorias
científicas, e através da forma matemática como as teorias, em especial as
da física, se apresentam. Foi fundamental, portanto, da perspectiva dessa
escola, esclarecer esses dois problemas: o do status da linguagem teórica e
o do papel da matemática nas teorias científicas.
Muitas das discussões que fiz neste capítulo e nos capítulos anteriores
pressupõem que o conhecimento científico seja representável sentencial ou
linguisticamente. Isso foi amplamente aceito, sobretudo nos meios filosóficos
anglo-saxônicos da primeira metade do século passado, em decorrência da
chamada virada linguística, mas foi questionado nas décadas que se segui-
ram. A despeito disso, o trabalho feito no âmbito do empirismo lógico em
torno da desse tópico é uma das grandes contribuições desse programa para
esclarecer questões centrais em filosofia da ciência.
Presumirei, na discussão que se segue, que uma teoria científica é um
objeto linguístico. Pode-se, então, levantar as seguintes questões a seu respeito:
i. Qual é a estrutura (sintática) de uma teoria científica?
ii. Qual é a referência de uma teoria científica (de que trata; sobre o
que ela é)?
iii. Qual é a função e o valor cognitivo de uma teoria científica?
As respostas que o empirismo lógico deu a tais questões apoiaram-se
numa concepção da estrutura das teorias científicas conhecida na literatura
especializada como a received view (que traduzirei por ‘visão ortodoxa’).

6. Até aqui, neste livro, a noção de ‘teoria’ foi usada de modo informal. Para uma comple-
mentação histórica, ver Abrantes, 2016, cap. 1, especialmente as pp. 77-79.

78
Segundo essa concepção, as teorias científicas podem ser reconstruídas
como cálculos interpretados.
O cálculo (a exemplo dos cálculos utilizados nas estruturas formais
estudadas em Lógica) constitui a parte puramente formal de uma linguagem.
O cálculo especifica: a) os símbolos primitivos; b) as regras de formação de
fórmulas (palavras e sentenças) da linguagem; c) as fórmulas primitivas ou
axiomas; d) as regras de inferência (que permitem inferir teoremas a partir
dos axiomas).
Como as teorias científicas têm conteúdo empírico, o cálculo de uma
teoria reconstruída deve receber uma interpretação (uma semântica) em
termos empíricos. Um cálculo, por si só, não possui qualquer conteúdo,
não se refere a nenhum objeto, sendo simplesmente uma forma lógica.7
Uma interpretação para o cálculo de uma teoria deve especificar os sig-
nificados empíricos (de pelo menos alguns) dos símbolos e sentenças do
cálculo, ‘conectando-os’, por assim dizer, com a experiência através de regras
de correspondência.
Esta reconstrução da estrutura das teorias permitiu encaminhar, nos
seguintes termos, respostas para as três questões acima:
1. As teorias científicas são representáveis em termos da lógica de pri-
meira ordem, ou seja, como sistemas axiomáticos (cálculos interpretados).
2. Podemos distinguir, numa teoria, proposições expressas numa lin-
guagem observacional e proposições expressas numa linguagem teórica.8
3. O significado e o valor veritativo das proposições observacionais, con-
tendo predicados (termos) observacionais, podem ser aferidos diretamente,
apelando-se para a experiência.

7. Esta reconstrução resolve, dessa forma, um dos problemas, com relação às teorias cien-
tíficas, que se colocavam para os empiristas, qual seja o do papel da matemática nas teorias
físicas. Como defender que todo o nosso conhecimento da natureza é a posteriori, diante
da crença, comum em diversas correntes filosóficas do século XIX, de que a matemática
estaria ligada a uma componente a priori do conhecimento? A solução empirista é a de que
o cálculo simplesmente articula um esquema formal sem qualquer conteúdo empírico já
que, segundo o logicismo, as verdades lógicas são meras tautologias e, assim, não se referem
a nada no mundo.
8. Verdade e falsidade são propriedades de proposições e não de sentenças, já que estas possuem
somente propriedades formais, sintáticas. Quando menciono as proposições observacionais
e as teóricas estou supondo, portanto, que o cálculo já foi interpretado de algum modo.

79
4. As proposições teóricas, contendo predicados (termos) teóricos, não
se referem diretamente à observação ou à experiência imediata. Seu signi-
ficado (conteúdo) e valor veritativo só podem ser aferidos indiretamente,
com base no significado e no valor verdade das proposições observacionais.
O empirismo lógico pressupôs, portanto, uma distinção estrita entre
linguagem observacional e linguagem teórica. Assumindo-se esse esquema,
as proposições teóricas podem ser encaradas de duas maneiras:
4.a. como sintetizando um conjunto de proposições observacionais.
Neste caso, o significado das proposições teóricas reduzir-se-ia ao signi-
ficado das proposições observacionais, e o valor veritativo daquelas seria
diretamente determinado pelo valor veritativo destas;
4.b. como tendo um significado irredutível ao significado das propo-
sições observacionais. Neste caso, o valor veritativo das proposições teóri-
cas só poderia ser indiretamente determinado através das relações lógicas
que o cálculo da teoria estabelece entre tais proposições e as proposições
observacionais.
O tipo de relação que existe entre a linguagem teórica e a linguagem
observacional constitui o chamado ‘problema dos termos teóricos’, que
apresento em seguida.9

7. O problema dos termos teóricos


Pode-se distinguir diferentes níveis na linguagem científica, partindo
da linguagem utilizada para descrever um experimento de laboratório, até
a linguagem utilizada nas proposições mais abstratas das teorias científicas.
Em princípio, a linguagem ordinária permite descrever o que ocorre num
laboratório. Suponhamos que um leigo, sem qualquer formação científica,
entre num laboratório e comece a relatar o que observa (estamos supondo
que ele não dispõe para isso de conceitos científicos). O leigo pode, nessas
condições, afirmar que a agulha de um determinado aparelho que lhe é
desconhecido (por exemplo, um manômetro) está marcando um certo valor.
Ou afirmar que dois líquidos que se misturam mudam de cor e exalam um

9. Essa discussão foi antecipada no capítulo 2 e ilustrada com o estudo de caso sobre a
história da astronomia.

80
cheiro desagradável. Este é o nível mais básico de linguagem. É evidente que
tal linguagem não permite uma descrição científica de um experimento. Para
tal é preciso que se dominem termos ou conceitos técnicos, especializados,
como os de pressão, substância química, calor específico, reação química,
entropia, etc. que estão ausentes da linguagem ordinária.
Numa linguagem propriamente científica, encontramos em primeiro
lugar aqueles termos que são observacionais, ou seja, que se referem dire-
tamente ao que é observável. Esses termos estão normalmente presentes no
que chamamos generalizações empíricas (espera-se que algumas delas sejam
leis científicas genuínas). Para tornar mais presente a que nível de linguagem
estou me referindo, ilustro com a linguagem que é utilizada para apresentar
as leis da termodinâmica. Nessas leis só aparecem conceitos como ‘pressão’,
‘temperatura’, etc., que se referem a grandezas diretamente mensuráveis.10
Se subirmos um degrau na hierarquia de linguagens, encontraremos
os chamados ‘termos teóricos’, que não se referem a nenhum objeto, pro-
priedade ou evento diretamente observável. Para continuarmos no mesmo
domínio do exemplo acima, a teoria cinética dos gases inclui termos como
‘molécula de um gás’, ‘velocidade média das moléculas’, ‘choques das molé-
culas com as paredes do recipiente’, etc. Tais termos não se referem a nada
de diretamente observável.
Proposições que incluem termos teóricos – ou seja, proposições da lin-
guagem teórica – devem ser conectadas, de algum modo, a proposições que
contêm termos observacionais, caso contrário nenhuma ponte se estabelece
entre a teoria e a experiência. A filosofia da ciência do empirismo lógico, em
sua análise da estrutura das teorias científicas, pressupôs essa distinção entre
níveis de linguagem. Numa teoria científica reconstruída como um sistema
axiomático, teríamos três tipos de termos: (a) termos lógicos e matemáticos;
(b) termos teóricos; (c) termos observacionais.
Os termos lógicos e matemáticos, como os conectivos lógicos e termos
relativos a operações como a derivação, integração, etc., apesar de sua rele-
vância, não estarão no foco da presente discussão.

10. Isso, a rigor, não é inteiramente correto. Predicados como pressão, temperatura, etc.
são termos teóricos que precisam ser definidos, através de regras de correspondência, com
base em operações de medida.

81
Os termos observacionais, como vimos, têm por referência experiências
particulares e propriedades fenomênicas. Mas qual seria a referência de ter-
mos teóricos como: célula, gene, átomo, quark, etc., que estão presentes nas
proposições mais abstratas, nos axiomas fundamentais das teorias científicas?
Os empiristas mais radicais gostariam de banir os termos teóricos da
linguagem científica (que eram vistos como uma porta aberta para a meta-
física, juntamente com a matemática utilizada para apresentar as teorias) e
encontrar uma maneira de defini-los explicitamente, relacionando-os aos
termos observacionais através de regras de correspondência (por vezes também
chamadas de ‘leis-ponte’). Caso esse empreendimento tivesse tido sucesso,
as proposições teóricas poderiam ser encaradas como simples abreviações
de descrições fenomênicas (possibilidade exposta em 4a, acima).
Consideremos um exemplo de regra de correspondência para a teoria
atômica de Bohr. Uma proposição teórica do corpo dessa teoria é a seguin-
te: “há emissão, pelo elemento X, de radiação eletromagnética com um
comprimento de onda w, quando ocorrem saltos de elétrons de um nível
de energia (orbital) e2 para outro nível inferior de energia e1, nos átomos
deste elemento”. Os termos teóricos presentes nessa proposição adquirem
significado fazendo-os corresponder, como num dicionário, aos termos da
seguinte proposição: “o espectro do elemento X tem uma raia espectral na
posição y” (Nagel, 1961:98). Note-se que, nesta última proposição, só ocorrem
termos observacionais.
Outro exemplo muito utilizado na literatura é conhecido como o das
duas ‘mesas de Eddington’. A primeira mesa é a que descrevemos em lin-
guagem observacional como um objeto plano, duro e que possui quatro
pernas, etc. Podemos descrever a mesma mesa usando a linguagem da teoria
atômico-molecular, como uma estrutura de moléculas em que atuam forças
eletromagnéticas de atração e de repulsão. Uma maneira de entender como
essas duas descrições se conectam invoca regras de correspondência. Uma
regra de correspondência vinculando os conceitos de ‘dureza’ (predicado ou
termo observacional presente na primeira descrição) e de ‘força eletromag-
nética repulsiva’ (predicado ou termo teórico presente na segunda descrição)
seria: “ ‘o corpo x exerce forças eletromagnéticas repulsivas fortes’ implica ‘o
corpo x é duro’ ” (Cf. Hesse, 1974:38). As aspas simples indicam proposições

82
que estão ligadas pelo conectivo lógico implica, formando uma proposição
complexa (um condicional).11
Para os meus fins aqui, basta entender que as regras de correspondência
nos fornecem uma espécie de “dicionário” (Campbell, 1920; Abrantes, 2004b)
que traduz proposições. Aquelas que, supostamente, descrevem objetos e
fenômenos hipotéticos (em geral, não-observados/observáveis), são tradu-
zidas em proposições que descrevem objetos e fenômenos familiares (em
geral observados/observáveis), conhecidos independentemente da teoria em
questão e descritos numa linguagem observacional.12 Em outras palavras,
o dicionário traduz, via regras de correspondência, a linguagem teórica na
linguagem observacional.
Rapidamente percebeu-se não só que havia obstáculos formais ins-
transponíveis para essa redução da linguagem teórica, mas que, se ela fosse
efetivada, impediria que as teorias científicas desempenhassem suas funções
cognitivas de explicação e de previsão! Reconheceu-se, desse modo, que a
existência de termos teóricos não diretamente conectados com a observação
é condição para que a teoria possa desempenhar suas funções precípuas.
Tal constatação abriu caminho para concepções mais liberais (menos
enquadradas no figurino empirista estrito) da estrutura das teorias científicas.
Passou-se a admitir, por exemplo, que alguns dos termos teóricos fossem só
implicitamente definidos pelas suas relações (fixadas pelo cálculo) com outros
termos definidos explicitamente. Como descreve Suppe:

11. Não entrarei aqui na discussão sobre se o condicional é a forma lógica mais adequada
para as regras de correspondência. As seguintes possibilidades foram discutidas na lite-
ratura especializada: a) as regras de correspondência estabelecem condições necessárias
e suficientes para o uso de um termo teórico. Neste caso, a sua forma lógica seria a de um
bicondicional; b) as regras de correspondência só estabelecem condições suficientes para
o uso de um termo teórico. Neste caso, a sua forma lógica seria a de um condicional; c) as
regras de correspondência só estabelecem condições necessárias para o uso de um termo
teórico (ver Nagel, 1961:100-1).
12. De forma mais geral, a tradução se faz em termos de uma linguagem que já possui um
significado previamente estabelecido e compartilhado. Eventualmente, essa linguagem
pode não ser uma linguagem puramente observacional, mas sim a linguagem de uma teoria
bem estabelecida, confirmada e amplamente aceita, e que se tornou, desse modo, familiar
(ver Abrantes, 2004b).

83
Inicialmente a visão ortodoxa era uma concepção de teorias que atribuía
pouca importância ao aparato teórico (..), sua função sendo pouco mais
do que um meio para introduzir a matemática na ciência. Em sua versão
final, as teorias são consideradas, segundo um ponto de vista realista,
como descrevendo sistemas de não-observáveis que se relacionam às suas
manifestações observáveis de maneira não completamente especificada;
como tal, o aparato teórico é central para sua análise e a ênfase é em
como o aparato teórico se conecta com os fenômenos. (Suppe, 1977a:52)

Esse comentário de Suppe remete ao debate em torno do realismo, que


introduzi no capítulo 2.
A partir dos anos 1950, vários filósofos, ainda comprometidos com o
ideário do empirismo lógico, passaram a dar mais atenção ao papel eviden-
te que desempenham modelos nas ciências (ver capítulo 12) e propuseram
reconstruções da estrutura das teorias científicas compatíveis com a ‘visão
ortodoxa’, mas que, ao mesmo tempo, incorporassem esse aspecto da prática
científica. Seguindo uma sugestão de Carnap, eles adotaram a noção de modelo
semântico empregado em lógica e na metamatemática como uma outra maneira
de interpretar a linguagem teórica, ao lado das regras de correspondência.13

8. Explicação no empirismo lógico


É um lugar comum afirmar que a explicação e a previsão são os objetivos
cognitivos centrais da atividade científica. A simples descoberta e descrição
de um conjunto de fatos, do que ocorre, não constituiria propriamente uma
atividade científica, embora seja razoável supor que constitua uma parcela
importante desta atividade. O conhecimento científico responde, nessa
concepção, a perguntas do tipo: “Por que as coisas são como são; por que
os eventos ocorrem de um modo particular e não de outro?”. Efetivamente,
muitos cientistas não se contentam em constatar e descrever, mas bus-

13. Um modelo semântico é uma estrutura de objetos, propriedades e relações que satisfazem
as sentenças do cálculo. No capítulo 12 distingo essa noção de modelo de outras mais pró-
ximas do uso que fazem cientistas de modelos em sua atividade. Para um aprofundamento
a respeito das várias reconstruções propostas pelos empiristas lógicos da estrutura das
teorias cientistas, no contexto de uma discussão mais ampla sobre a dinâmica de teorias,
ver Abrantes (2004c).

84
cam explicações para a existência das coisas e para os eventos nos quais
estão envolvidas.
Como ponto de partida, podemos definir ‘explicar um evento’ como
a busca de razões e causas para ele, ou ainda a busca das leis que o regem.
O conhecimento científico correlaciona fatos, descobre relações de depen-
dência entre eles, como a de causa e efeito. Tentamos desvendar a natureza
das coisas que observamos e o modo de produção (um mecanismo, por
exemplo) responsável pelos fenômenos. Tentamos estabelecer que os fe-
nômenos ocorrem por necessidade e, não, contingentemente; ou seja, que
ocorrem de um modo determinado e não de qualquer modo.
A filosofia da ciência do empirismo lógico tentou desvincular a análise
da explicação científica de qualquer discussão metafísica (sobre, por exemplo,
a existência de uma ordem na natureza, de causas, de leis da natureza, de
espécies naturais, etc.). Para tanto, os empiristas adotaram uma abordagem
lógico-linguística dessa questão. Desse modo, atendiam à tarefa considerada
por eles central da filosofia da ciência, que é a de esclarecer, reconstruir os
usos e significados da explicação nas diversas práticas cognitivas, e a de
investigar se têm algo em comum.
O chamado ‘modelo nomológico-dedutivo’ de explicação (doravante, mode-
lo N-D) é uma tentativa nesse sentido. Ele foi proposto por Hempel e Oppenheim
e constitui o ponto de partida de toda a discussão contemporânea sobre o
assunto. Segundo tal modelo, toda explicação teria a seguinte estrutura lógica:
(x) (Fx -> Gx)
Fa
===========
Ga

Note-se que a primeira sentença tem a forma de uma sentença universal


e, segundo esse modelo, deve ser uma lei científica. A segunda sentença tem
a forma de uma sentença singular e descreve eventos ou condições de con-
torno (onde as variáveis são especificadas). No caso mais geral, podemos ter
numa explicação várias sentenças de tipo lei e outras sentenças descrevendo
condições iniciais. O conjunto de premissas desse argumento é chamado de
explanans. A sentença que descreve o evento ou fato a ser explicado é chamado
de explanandum e é inferido a partir do explanans.

85
O leitor deve ter notado que essa mesma estrutura lógica já se apresentou
algumas vezes em outros capítulos, e é importante fazer algumas considera-
ções a esse respeito. A primeira ocorrência dessa estrutura foi no tratamento
lógico que dei ao método de hipótese, no final do capítulo 3. Claro está que
ao se empregar o método H-D para se confirmar uma hipótese não se sabe,
num primeiro momento, se ela é uma lei científica. Pode-se argumentar que se
uma hipótese é repetidamente confirmada, em variadas situações, ela torna-se
uma forte candidata a lei. Um requisito mais forte do que este é de que uma
hipótese só adquire o status de lei se ela estiver incorporada em uma teoria
científica bem aceita – ou seja, se ela fizer parte de uma rede de relações com
outras hipóteses ou leis. Mas passamos, nesse caso, a um contexto distinto
daquele em que usualmente o método de hipótese é discutido (e já sugerindo
as limitações de se buscar confirmações de hipóteses isoladas).
A vasta literatura em filosofia da ciência que trata das explicações e, de
modo particular, do modelo N-D de explicação trata de uma série de condições
lógicas e epistemológicas para a aceitabilidade das explicações científicas. Não
caberia aqui entrar nessas considerações, pois este livro não se propõe a cobrir
todo o espectro de temas de filosofia da ciência, já que os meus propósitos
voltam-se, de modo mais restrito, para a metodologia.14 Contudo, creio ser
relevante mencionar, mesmo que brevemente, uma importante consequência
do modelo N-D, e que foi muito enfatizada pelos seus proponentes: a expli-
cação de um evento e a sua previsão admitem a mesma reconstrução lógica.
Segundo o modelo N-D, há uma simetria lógica entre explicar e prever.
Por exemplo, quando um astrônomo prevê que um determinado planeta,
digamos Marte, estará em determinada posição na abóbada celeste, o que
ele faz, segundo essa reconstrução, é deduzir a sentença que descreve tal fato
de um conjunto de sentenças, alguns delas com a forma lógica de leis (e.g.,
a lei da gravitação universal de Newton). Outras sentenças envolvidas nessa
previsão têm a forma lógica de sentenças singulares expressando condições
iniciais, por exemplo, a respeito das posições de Marte e de outros planetas,
efetivamente observadas em determinados instantes de tempo.

14. Para uma introdução à temática da explicação científica, e para uma discussão mais
geral a respeito da existência de leis em ciências como a biologia, ver Lorenzano (2018).

86
O que distinguiria uma explicação de uma previsão, se podem ser re-
construídas logicamente do mesmo modo? Seguindo com o mesmo exemplo,
quando explicamos um fato, este é objeto de uma observação (ou o foi no
passado), enquanto que, na previsão, o suposto evento é localizado no futuro
(caso, evidentemente, a previsão tenha sucesso). A distinção entre explicação
e previsão seria, portanto, meramente pragmática e não lógica.
Muitas objeções foram feitas a essa consequência do modelo N-D.
Argumentou-se que as premissas de muitos tipos de explicação não podem
servir de base para previsões, por exemplo. De toda forma, explicações que são
pedestremente oferecidas em diversas ciências não se conformam ao modelo
N-D, o que compromete a intenção inicial dos seus proponentes de aplicar de
modo amplo essa reconstrução lógica.
Não cabe entrarmos nos detalhes da torrencial literatura sobre explica-
ção científica. Para os meus fins neste capítulo, o modelo N-D ilustra o tipo
de filosofia da ciência que foi desenvolvida no âmbito do empirismo lógico
e reforça o que foi dito, inicialmente, a respeito do lugar que ocupa a meto-
dologia nesse programa.

9. O problema da demarcação e o critério empirista de significado


O Manifesto do Círculo de Viena, publicado em 1929 com o título
A concepção científica do mundo... radicalizou uma postura anti-metafísica
sobretudo entre filósofos da ciência anglo-saxônicos, em especial os que se
engajaram no programa do empirismo lógico.
Esse programa herdou do positivismo do século XIX um de seus
pontos programáticos: a eliminação da metafísica do campo científico.
Para o positivismo na versão de Comte, a metafísica se caracteriza pelo ideal
quimérico de se conhecer as causas dos fenômenos. Nas ciências em sua fase
“positiva”, esse ideal metafísico deveria ser substituído pela descoberta das
relações funcionais entre as variáveis que descrevem os fenômenos, visando
estritamente ao conhecimento das leis que os regem. O positivismo propôs,
portanto, um critério de demarcação entre ciência e metafísica.
Já em d’Alembert vislumbra-se um proto-positivismo, evidenciado pela
sua desconfiança com respeito à noção newtoniana de força. As diversas mo-

87
dalidades de positivismo propostas ao longo do século XIX – representadas
por Comte, Mach, Poincaré, Duhem, entre outros – têm em comum a tese de
que não há possibilidade de conhecimento científico do que é inobservável
(as causas dos fenômenos seriam tipicamente inobserváveis, como o que
Hume chamava de “poderes”). A hipótese atômica foi, consequentemente,
um alvo privilegiado dos ataques positivistas.
No espírito da dita ‘virada linguística’, os empiristas lógicos escolhe-
ram a linguagem como a arena na qual o problema da demarcação seria
abordável.15 Daí a importância que ganhou, nesse programa, o chamado
critério empirista de significado e todas as tentativas de reduzir a linguagem
teórica à linguagem observacional, que se mostraram frustradas, como
vimos anteriormente.
A primeira formulação do critério empirista de significado encontra-se
num livro de Schlick publicado em 1918: o significado de uma proposição
é o método de sua verificação.16 A atribuição de significado está, portanto,
vinculada à possibilidade de se atribuir um valor veritativo às sentenças
através de uma experiência (possível). Stegmüller resume a versão original
do critério empirista de significado nos seguintes termos: “(...) a verificabi-
lidade de um enunciado é condição necessária e suficiente para que ele seja
considerado como dotado de significado empírico” (1977:298, v.1).
Carnap enfatiza que esse critério não se aplica a palavras isoladas, mas
sim a sentenças. Stegmüller (1977:300) exemplifica-o, aplicando esse critério
empirista às teses solipsista e realista (metafísica).17 Os defensores de tais
teses concordam quanto aos métodos para se verificar a sentença ‘existe um

15. A nova tarefa proposta para a filosofia foi a de esclarecer os seus problemas tradicionais
através da análise da linguagem em que são formulados. Isso levaria à pretensa dissolução
de muitos desses problemas, que se mostrariam, na verdade, pseudo-problemas. A filosofia
passaria a ser uma teoria da sintaxe lógica da linguagem científica, e funcionaria como uma
metalinguagem. Desse modo, os integrantes do Círculo de Viena acreditavam estar trazendo
para o domínio da filosofia o mesmo rigor, a intersubjetividade e a progressividade que são
considerados traços característicos do trabalho científico. A despeito disso, o empirismo
lógico não adotou uma postura naturalista em filosofia (que discuto nos capítulos 9 e 10),
apesar das aparências, justamente porque seus partidários continuaram distinguindo a tarefa
filosófica da científica, inclusive no plano metodológico. Ver, a esse respeito, Kornblith (1998).
16. Trata-se do livro Allgemeine Erkenntnislehre.
17. O realismo metafísico não deve ser confundido com o realismo científico, como apon-
tei anteriormente.

88
grande lago na região central do Brasil’. Quando vão além desse ponto (em
que atuam como cientistas empíricos) e afirmam que o lago existe indepen-
dentemente da consciência (realismo), ou a negação desta tese (solipsismo),
penetram no território não significativo da metafísica.
Aquelas sentenças que não pudessem ser verificadas diretamente – e
grande parte das sentenças científicas enquadram-se nessa categoria – só
adquirem significado quando estão logicamente vinculadas, através do
cálculo, a sentenças que têm significado independente do aparato formal
(conforme esmiucei na seção sobre a estrutura das teorias científicas). Mas
já temos aqui uma flexibilização do critério de verificabilidade: inicialmente
aplicável a sentenças isoladas, passa a ser aplicável a sentenças que estão
relacionadas logicamente a outras sentenças num sistema formal.18 Exibe-se
uma tendência em direção a uma concepção holística do significado que é
defendida, por exemplo, por Quine: a unidade de significado não é o termo,
tampouco a sentença, mas um conjunto de sentenças.
Muitos dos problemas tradicionais da filosofia e, particularmente, da
metafísica seriam oriundos do mau uso da linguagem ou do emprego de
uma linguagem inadequada (imprecisa, por exemplo).19
Carnap foi um dos que levou mais longe esse programa, a ponto de
desnudar as suas limitações. Seu ponto de partida no tratamento do problema
da demarcação foi a aparência de correção linguística dos enunciados me-
tafísicos, ou seja, a aparência de serem enunciados significativos veiculando
conhecimento a respeito do mundo. Para Carnap, essa aparência indicava a

18. Hempel (1965) expõe detalhadamente as dificuldades que enfrentou a primeira versão e que
conduziu a um enfraquecimento do critério.
19. Pap ilustra exemplarmente esta concepção da tarefa precípua da filosofia, distinguindo-a
da atividade científica: “Nós propomos a seguinte sugestão: o filósofo não se pergunta
somente por evidências ou razão; ele tem mais consciência do que o cientista mediano,
para não falar do ‘homem comum’, de que a questão do significado é anterior à questão da
verdade (...) Se definirmos, então, a filosofia como uma busca infatigável e sem preconcei-
tos pela verdade nós não conseguimos diferenciá-la da ciência. Se nós a definirmos como
uma busca obstinada pela clareza de significado, chegamos muito mais próximo de uma
definição diferenciadora. O fato de que boa parte da filosofia profissional, nesta época de
especialização científica, está de fato dominada pela análise de significados de termos
fundamentais como ‘causa’, ‘probabilidade’, ‘realidade’, ‘verdade’, ‘bem’, ‘coisa’, ‘certeza’,
‘medida’, ‘mental’, indica que tal definição, embora vaga (como é vaga a palavra definida),
não é inteiramente arbitrária” (1962:4).

89
necessidade de se distinguir correção lógica de correção gramatical (sintática)
nas linguagens naturais. Essa constatação levou-o a construir linguagens
artificiais nas quais a correção lógica acompanhasse a correção gramatical.
Desse modo poder-se-ia desmascarar pseudo-problemas em Filosofia.
Veremos, no capítulo 6, que Popper criticou a versão inicial do crité-
rio verificacionista de significado e a via escolhida pelos empiristas para
resolver o problema da demarcação. Segundo ele, a aplicação desse critério
implicaria não só em recusarem-se como não significativas as sentenças
metafísicas, mas também grande parte das sentenças que encontramos nas
teorias usualmente aceitas como científicas!

90
5

Metodologia e descoberta científica

A metodologia tem algo a dizer a respeito da descoberta científica?


A depender dos filósofos contemporâneos da ciência, a resposta é negativa:
há um evidente desinteresse pelo tema, acompanhado de um ceticismo de
que se possa articular uma metodologia filosófica de cunho gerativista.
Schaffner, num livro publicado em 1993 e dedicado ao tema da descoberta,
especificamente nas áreas de biologia e de medicina, revela essa atitude:
A tese de que o processo de descoberta científica envolve procedimentos
logicamente analisáveis em oposição a saltos intuitivos do gênio não
tem sido, em geral, popular neste século. (Schaffner, 1993:8)

Desde o século XIX, filósofos da ciência da estatura de Herschel e de


Whewell expressavam claramente sua dúvida de que a descoberta científica
pudesse ser objeto de investigação filosófica. Essa dúvida pode ser traduzida
nos seguintes termos: não pode existir uma metodologia gerativista na qual
regras metodológicas possam ser analisadas em termos de regras lógicas.
A descoberta seria o contexto em que a intuição, a criatividade e os saltos
do gênio seriam imunes a uma investigação ou reconstrução filosófica. Uma
metodologia filosófica teria por objeto somente a justificação com um cará-
ter exclusivamente consequencialista. Herschel afirma, nesse sentido, que:
No estudo da natureza, não devemos, portanto, ser escrupulosos a res-
peito de como se alcança um conhecimento de tais fatos gerais, ou seja,
leis e teorias, desde que possamos verificá-los cuidadosamente, uma
vez que tenham sido encontrados... (Herschel apud Laudan, 1980:181)1

1. A citação foi retirada de Herschel, A preliminary discourse on the study of natural phi-
losophy (1830).

91
Whewell foi, por sua vez, um crítico de John S. Mill, que ousou, podemos
dizer, propor métodos no estilo gerativista do velho F. Bacon2:

As concepções pelas quais fatos são ligados uns aos outros são sugeri-
das pela sagacidade dos descobridores. Essa sagacidade não pode ser
ensinada. Ela comumente ocorre por palpite (guessing); e esse sucesso
parece consistir em se propor várias hipóteses tentativas e selecionar a
que é correta.3 Mas o provimento de hipóteses apropriadas não pode
ser construída com base em regras, sem o talento inventivo” (Whewell
apud Schaffner, 1993:9)

Esta postura a respeito da descoberta científica consolidou-se, no século


XX, entre os empiristas lógicos.

1. A distinção entre os contextos de descoberta (CD) e de justificação (CJ)


Nesta parte do capítulo pretendo retraçar os principais marcos histó-
ricos da distinção entre os dois contextos e os argumentos oferecidos a seu
favor. Na segunda e terceira partes analisarei a tendência filosófica oposta,
que contesta a pertinência da distinção e argumenta a favor da relevância
do contexto de descoberta para uma metodologia filosófica.

1.1. Reichenbach
Reichenbach é considerado a principal fonte de referência para a dis-
tinção – cara particularmente aos filósofos da ciência de orientação neo-
positivista – entre os chamados ‘contextos’ de descoberta e de justificação.4
O primeiro corresponde à descoberta (uma terminologia a meu ver mais
adequada seria a de ‘geração’, ‘construção’ ou ‘invenção’) de hipóteses, leis,
modelos, teorias, etc. O segundo contexto seria aquele em que se justifica
ou se valida os produtos gerados no primeiro contexto.

2. A controvérsia entre Whewell e Mill é objeto do capítulo 6, de Abrantes, 2016. Ver,


também, Abrantes (2008).
3. Veremos no capítulo 13 que essa linguagem, tomada de empréstimo ao processo darwinista
de seleção natural, não é fortuita.
4. Reichenbach teria introduzido pela primeira vez essas expressões, que se consolidaram
posteriormente na literatura (1938:7).

92
Reichenbach defende que a epistemologia deve ocupar-se somente do
contexto de justificação. Ele diferencia, na verdade, três tarefas da “episte-
mologia”: a descritiva, a crítica e a de “aconselhamento” (advisory).
Na primeira tarefa, descritiva, a epistemologia pode ser considerada
parte da sociologia: “O conhecimento (...) é uma coisa muito concreta; e
o exame de suas propriedades significa estudar as características de um
fenômeno sociológico” (Reichenbach, 1938:3).
Entre os vários aspectos descritivos desse “fenômeno”, ele menciona o
“sistema do conhecimento”, os “métodos de aquisição de conhecimento”, os
“objetivos” do conhecimento e a “linguagem” na qual ele é expresso.
Note-se que os “métodos”, nessa concepção, estão incluídos entre os
aspectos sociológicos (portanto, descritivos) do “fenômeno” do conheci-
mento. Entre as questões que interessam particularmente à epistemologia
no âmbito da sua tarefa descritiva, Reichenbach inclui as “pressuposições”
do “método da ciência” (1938:3).
Ele ressalva, contudo, que somente as “relações internas”, relativas ao
conteúdo do conhecimento, interessam à epistemologia. As “relações ex-
ternas” – que poderiam ser estudadas, por exemplo, por uma sociologia
da ciência que ignore o conteúdo do conhecimento – não interessam aos
epistemólogos.
Tais relações internas não são, como se poderia esperar, relativas aos
processos psicológicos reais, mas sim interconexões lógicas reconstruídas:
O que a epistemologia pretende é construir processos de pensamento
de modo a que eles teriam que ocorrer se tiverem que ser organizados
num sistema consistente; ou construir conjuntos justificáveis de ope-
rações que podem ser intercaladas entre o ponto de partida e a saída
de processos de pensamento, substituindo os elos intermediários reais.
A epistemologia considera, portanto, um substituto lógico em vez de
processos reais. (Reichenbach, 1938:5)

A tarefa epistemológica é, portanto, a de propor uma reconstrução


racional dos processos psicológicos. Reichenbach inclui, paradoxalmente,
tais reconstruções na tarefa descritiva da epistemologia pois exige que esse
substituto fictício esteja conectado com os processos psicológicos reais
através de um “postulado de correspondência”.

93
Na segunda tarefa, a crítica, a epistemologia é considerada uma “lógica
da ciência” ou uma “análise da ciência”. Reichenbach insiste em distingui-la
da tarefa descritiva, já que a crítica está envolvida, fundamentalmente, com a
validade e a justificação do “sistema de conhecimento” (embora se possa dizer
que uma reconstrução racional, justamente por ser racional, já pressuponha
validação e normatividade). Como vimos, a tarefa descritiva pressupõe a
“lei de correspondência” com os processos reais de pensamento, enquanto
que a tarefa crítica não tem sequer esse compromisso com a descrição de
quaisquer fatos psicológicos.
O termo ‘lógica’, na expressão ‘lógica da ciência’, é entendido por
Reichenbach num sentido amplo, incluindo até o raciocínio indutivo.
Contudo, o “método científico” não é guiado somente pelo “princípio
de validade”, mas também por decisões (volição): por “convenções” (que
não afetam, segundo Reichenbach, o conteúdo do conhecimento) e por
“bifurcações”. Ele dá como exemplos de bifurcações, decisões a respeito
dos objetivos da ciência e do significado de conceitos. Nessa dimensão se
inscreve a terceira tarefa da epistemologia: a de aconselhamento para a
tomada de decisões.
Num livro escrito vinte anos depois, Reichenbach volta a desvincular,
com ênfase, a descoberta da justificação de um produto da atividade científica:
A interpretação mística do método hipotético-dedutivo como um palpite
irracional se origina de uma confusão entre o contexto de descoberta
e o contexto de justificação. O ato de descoberta escapa a uma análise
lógica; não há regras lógicas em termos das quais uma ‘máquina de
descoberta’ poderia ser construída de modo a substituir (take over) a
função criativa do gênio. Mas não é tarefa do lógico responder pelas
descobertas científicas; tudo o que ele pode fazer é analisar a relação
entre fatos dados e uma teoria apresentada a ele como pretendendo
explicar esses fatos. Em outras palavras, a lógica se preocupa somente
com o contexto de justificação. E a justificação de uma teoria em termos
dos dados observacionais é o objeto da teoria da indução. (Reichenbach
apud Schaffner, 1993:10)

94
Quero sublinhar que o método hipotético-dedutivo não é visto por
Reichenbach como um método de descoberta (como é bastante comum),
mas sim de justificação, o que coincide com a análise desse método que fiz
no capítulo 3. De toda forma, Reichenbach é explícito em negar a existência
de uma lógica da descoberta.

1.2. Hempel
Como vimos no capítulo 4, Hempel, ao lado de Carnap, é um dos maio-
res representantes do programa do empirismo lógico em filosofia da ciência
e, tipicamente, faz eco às opiniões defendidas por Reichenbach a respeito
da opacidade filosófica (lógico-metodológica) do contexto de descoberta:
Enquanto o processo de invenção pelo qual as descobertas científicas são
feitas é uma regra guiada psicologicamente e estimulada pelo conheci-
mento prévio de fatos específicos, seus resultados não são logicamente
determinados por eles; o modo pelo qual hipóteses científicas ou teorias
são descobertas não pode ser espelhado num conjunto de regras gerais
de inferência indutiva. (Hempel, 1965:5)5

No que tange à justificação, sua postura é claramente consequencialista,


como a que fora defendida por Herschel mais de um século antes:
O que determina a robustez (soundness) de uma hipótese não é o modo
como se chega a ela (que pode ter sido sugerida por um sonho ou aluci-
nação), mas pelo modo como se sustenta quando é testada, i.e. quando
confrontada com os dados observacionais relevantes. (Hempel, 1965:6)

Defender o contrário, diz Hempel, seria confundir “questões lógicas


com psicológicas”. Num artigo com o significativo título “Investigação cien-
tífica: invenção e verificação” (1974), Hempel analisa as “quatro etapas de
uma investigação científica ideal”: a observação, a classificação, a indução e
a validação, e monta uma crítica ao que julga ser uma “concepção indutiva
estreita da investigação científica”.6

5. Compare-se com a discussão feita no capítulo 3 em torno do que Losee chama um ‘para-
digma inferencial’.
6. Compare-se essa discussão com a apresentada no capítulo 4, no contexto do problema
da confirmação, na qual Hempel concentra-se na fase de teste (validação) de hipóteses e

95
Na etapa da observação, ele lembra que os fatos são avaliados como re-
levantes sempre relativamente a uma hipótese. O mesmo pode ser dito para
a segunda etapa, de classificação. Sendo ainda mais enfático do que Hempel,
não seria incorreto dizer que uma particular classificação é uma hipótese.
Quanto à terceira etapa, Hempel descarta a tese de que a indução re-
sume-se a um conjunto de regras mecânicas, algorítmicas. Seu principal
argumento baseia-se no fato de que as teorias científicas são repletas de
termos teóricos.7 As sentenças que incluem tais termos não podem ser
logicamente inferidas de sentenças que só incluem termos observacionais:
A transição dos dados à teoria requer uma imaginação criadora.
As hipóteses e as teorias científicas não são derivadas dos fatos obser-
vados, mas inventadas com o fim de explicá-los... [constituem] palpites
felizes. (Hempel, 1974:27-8)

Os novos recursos conceituais e linguísticos consubstanciados nas


hipóteses e teorias científicas (comparados aos disponíveis nos relatos de
observação) só podem, portanto, resultar de “palpites felizes”. Ele fornece
exemplos, tirados da história da ciência, dessa “imaginação criadora” na
geração das teorias. Kepler foi influenciado por doutrinas místicas em suas
concepções cosmológicas. O sempre citado Kekulé descobriu a estrutura da
molécula de benzeno a partir de ideias que lhe teriam surgido em sonho:
No seu esforço para achar uma solução do seu problema, o cientista
pode soltar as rédeas de sua imaginação e o rumo do seu pensamento
criador pode ser influenciado até por noções cientificamente discutíveis.
(Hempel, 1974:28-9)

Essa liberdade em fazer uso das mais diversas fontes inspiradoras no


contexto de descoberta não afeta, diz Hempel, a “objetividade científica”:

propõe que ela possa ser reconstruída em termos puramente lógico-formais. Ver, também,
a seção ‘O método hipotético-dedutivo’ do capítulo 3.
7. Sobre a distinção entre linguagem observacional e linguagem teórica, consulte-se a
discussão sobre a estrutura das teorias científicas do capítulo 4. Faço considerações sobre
a etimologia da palavra ‘teoria’ em Abrantes, 2016, cap. 1.

96
(...) pois as hipóteses e as teorias que podem ser livremente inventadas
e livremente propostas não podem ser aceitas se não passarem pelo
escrutínio crítico, especialmente pela verificação das implicações capazes
de serem observadas ou experimentadas. (Hempel, 1974:29)

Esta passagem expressa, uma vez mais, uma postura consequencialista


em metodologia.
Mesmo em matemática, arremata Hempel, área na qual se usa fun-
damentalmente o raciocínio dedutivo, a descoberta (e.g., de teoremas não
triviais) requer “(...) engenho inventivo; demanda capacidade adivinhatória,
imaginativa, retrospectiva”.
Ele enfatiza que as regras da lógica dedutiva não devem ser, portanto,
entendidas como regras de descoberta, mas sim de validação (Hempel,
1974:30).

No que se refere à quarta etapa, de validação de uma hipótese, Hempel


propõe que ela se dê conforme o “método de hipótese”. Neste método, os
dados fornecem “suporte indutivo” ou confirmação para a hipótese. O método
de hipótese não pode ser visto como um método de descoberta – como já
bem assinalara Reichenbach –, e Hempel propõe que se vejam as regras de
indução do mesmo modo que as regras de dedução: como propriamente
atuantes no contexto de justificação, em que as hipóteses são validadas.

1.3. E. Nagel
O trabalho de Nagel, embora possa ser mais apropriadamente locali-
zado já no período de crise do empirismo lógico, reflete ainda as grandes
orientações desse programa em filosofia da ciência.
Ele aponta o “método de investigação” como um dos três aspectos
distintivos da ciência atual.8 Ele não acredita que haja um método no sen-
tido de “um conjunto de regras fixas, aceitas de maneira geral e orientadas
a proporcionar a descoberta de soluções para qualquer problema” (Nagel,
1967:18). Nesse contexto, Nagel distingue “método” de “técnica”:

8. Isso corresponde ao que chamei, na Introdução a este livro, de uma “imagem de


ciência-como-método”.

97
As técnicas, via de regra, variam de acordo com o assunto de que se
trata e podem alterar-se rapidamente com o progresso tecnológico. De
outro lado, todas as ciências empregam um método comum em suas
investigações, na medida em que utilizam os mesmos princípios de
avaliação da evidência; os mesmos cânones para julgar a adequação
das explicações propostas; e os mesmos critérios para selecionar uma
dentre várias hipóteses. Em suma, o método científico é a lógica geral,
tácita ou explicitamente empregada para apreciar os méritos de uma
pesquisa. (Nagel, 1967:18)

Note-se que para Nagel o método, contrariamente a uma técnica, deve


ter um caráter geral e ser comum às várias ciências.9 Não é, portanto, surpre-
endente a aproximação, que já encontramos anteriormente, entre método e
lógica, já que esta é, presumivelmente, formal, abstrata e, portanto, indepen-
dente de conteúdo substantivo (conhecimento específico em determinada
área). Por outro lado, o método, como entendido por Nagel, está envolvido
na justificação e, de acordo com a mesma orientação consequencialista que
encontramos em outros filósofos, o método é utilizado, particularmente, para
“selecionar uma dentre várias hipóteses”. Não há regras para se gerar tais
hipóteses. Elas devem, após a sua formulação, ser submetidas ao controle
empírico, ao estilo consequencialista.
Do mesmo modo que Hempel, Nagel sublinha, além disso, que a coleta
de fatos pressupõe hipóteses prévias que guiam a observação e indicam
quais fatos são relevantes.
Podemos encapsular essas teses de Nagel na seguinte fórmula: se há um
método científico geral, abstrato e único, ele está implicado no contexto de
justificação e não no contexto de descoberta. Neste último contexto, teríamos
“técnicas” aplicáveis a problemas particulares em áreas circunscritas. Tais
técnicas seriam dependentes de conhecimentos (sobre objetos, processos,
etc.) também particulares, como discuti no capítulo 1.

9. No primeiro capítulo fiz algumas considerações sobre os usos dos termos ‘técnica’ e
‘método’ no contexto da discussão de uma hierarquia de métodos, indo dos mais particu-
lares aos mais gerais.

98
2. Hanson e a racionalidade da descoberta científica
A partir dos anos 1950, no bojo de uma reação ao programa do empi-
rismo lógico que já vinha enfrentando dificuldades, um dos tópicos focados
foi, justamente, a possibilidade de se separar, de forma nítida e absoluta, os
momentos da descoberta e da justificação. As seções anteriores não devem
ter deixado dúvida de que os filósofos envolvidos naquele programa defen-
deram, de forma particularmente enfática, essa distinção.
Hanson foi um dos primeiros a fazer uma crítica ao que chamou de
“concepção hipotético-dedutivista”, “formalista” e “reconstrutivista” da ciência,
concepção esta que teria excluído, a seu ver, o contexto de descoberta do
âmbito filosófico. Para Hanson, o contexto de descoberta deve interessar aos
filósofos da ciência porque também possui uma dimensão lógica e racional,
e não exclusivamente empírica (psicológica, sociológica, histórica, etc.).
Hanson critica tanto a posição indutivista à la Mill (indução por enu-
meração) como a concepção hipotético-dedutivista que atribui a Whewell
e aos empiristas lógicos. Em lugar disso, apoia-se na proposta de Peirce de
que um tipo de inferência retrodutiva (ou abdutiva), irredutível tanto à in-
ferência indutiva como à dedutiva, estaria na base da descoberta científica.
Na leitura de Hanson, Peirce concebia a abdução como uma “inferência
lógica”, ou seja, limitada por “regras lógicas” mesmo que de modo “fraco”.
Hanson expõe do seguinte modo a forma dessa inferência:
1. Observa-se certo fenômeno surpreendente, P;
2. P seria explicável se uma hipótese H fosse correta;
---------------------
Portanto, há razões para se acreditar que H é correta.10

Hanson distingue o “enfoque” abdutivo, de um lado, dos enfoques


indutivo e hipotético-dedutivo, de outro.
Em uma abdução, a hipótese H não é sugerida pela observação repetida
do fenômeno P, como no caso de uma indução enumerativa. Além disso,
numa abdução o fenômeno P é “surpreendente”, ou seja, constitui uma
anomalia. Em outras palavras, P contraria as nossas expectativas, tendo em

10. Esquema adaptado de Hanson (1977:184).

99
vista o conhecimento de fundo que possuímos (por exemplo, constituído por
teorias bem estabelecidas). Uma abdução sempre pressupõe, portanto, um
conhecimento de fundo, contrariamente ao que se espera de uma indução
simples, de tipo enumerativo.
Em um argumento retrodutivo, a hipótese ou teoria sugerida estru-
tura os fatos, como faz um modelo, promovendo uma Gestalt conceitual,
não sendo simplesmente derivada destes, como numa indução. Hanson
vincula a abdução às suas concepções a respeito da contaminação teórica
da observação: as hipóteses e teorias científicas não seriam derivadas de
observações puras, ou simples resumos de observações, como pretende um
certo indutivismo ingênuo. Toda observação é, em maior ou menor grau,
contaminada por nossas crenças. Uma hipótese ou teoria, ao “estruturar” os
fatos num sistema, explica-os, mostrando que são de um determinado tipo
e explicitando as relações que possuem com outros tipos de fatos.
Por outro lado, contrariamente ao que pretende o enfoque H-D, numa
abdução a relação das hipóteses com as observações não seria a de mera
confirmação. Deduzir consequências de uma hipótese é, para Hanson, algo
“pedestre”, bastante trivial, se já se dispõe da hipótese. Como sublinhei no
capítulo 3, o método H-D nada diz, efetivamente, a respeito de como H é,
em primeiro lugar, gerada.
Hanson acredita que a abdução fornece bases racionais para se propor
um certo tipo de hipótese que explique o fato surpreendente, mas isso é
discutível. Ele retoma, de fato, a distinção de Peirce entre: 1) razões para se
aceitar uma hipótese H e; 2) razões para se sugerir, a princípio, a hipótese
H. No contexto de descoberta haveria razões, segundo ele, para se suge-
rir um tipo de hipótese como plausível. Não se trata de mera intuição ou
palpite. Afirmar a plausibilidade de um tipo de hipótese, entretanto, não
equivale a afirmar que uma hipótese particular seja verdadeira, o que ca-
beria propriamente ao contexto de justificação. Hanson acredita, portanto,
na possibilidade de uma “lógica do prosseguimento”, ou seja, na existência
de razões para que se prossiga na investigação de um certo tipo de hipótese
(por exclusão de outros tipos).11

11. Estou traduzindo logic of pursuit, no original, por lógica do prosseguimento.

100
Não há, para Hanson, uma diferença essencial entre as espécies de “razões”
que atuam no contexto de justificação e as que atuam no contexto de descoberta.
Ele dá grande ênfase ao papel das “razões analógicas”, que alicerçam a
plausibilidade inicial de muitas hipóteses nas ciências (entre outros tipos de
razões, como as baseadas em considerações de simetria). Por exemplo, o que
teria fornecido plausibilidade à hipótese proposta por Kepler de que a órbita
de Júpiter é elíptica foi o seu conhecimento prévio de que a órbita de Marte é
elíptica, juntamente com a percepção de similaridades entre Júpiter e outros
planetas do sistema solar, como Marte. Mas a analogia, seguramente, não pode
assegurar, em definitivo, a verdade de uma hipótese particular, ou mesmo que
seja uma instância de um tipo de hipótese à exclusão de outros tipos. Para
tanto, é preciso confirmar a hipótese no contexto de justificação, recorrendo,
como de praxe, a observações.
Várias críticas foram feitas, entretanto, à relevância dos “argumentos re-
trodutivos” como fornecendo alguma racionalidade ao contexto de descoberta,
como pretende Hanson.
Não é claro, do modo como Hanson apresenta tais argumentos, como
a hipótese do tipo H é efetivamente gerada. Ele não explicita, por exemplo,
o papel desempenhado pelo conhecimento de fundo nessa geração, se é que
existe algum (além de responder pela nossa surpresa diante de uma observação
anômala). Nesse sentido, a geração de uma hipótese continua sendo tão mis-
teriosa na abdução, como apresentada por Hanson, quanto no método H-D.
Uma outra crítica sublinha que o argumento retrodutivo de Hanson não
permite selecionar uma hipótese dentre as várias, logicamente possíveis, que
explicam os mesmos fatos.12 O que precisaríamos, para isso, é de bases para
fazermos uma inferência pela melhor explicação.
Acredito, contudo, que algumas sugestões de Hanson são aproveitáveis
para se articular uma teoria da descoberta científica, como a distinção entre
razões para se sugerir um tipo de hipótese versus razões para se sugerir uma
hipótese particular. As referências ao raciocínio analógico como base para a
descoberta também foram incorporadas por metodólogos que se inspiraram
em seus trabalhos.

12. Apontei esse problema da subdeterminação das teorias pelas evidências empíricas
disponíveis quando discuti, no capítulo 3, o método H-D.

101
3. A descoberta e a justificação podem ser desvinculadas?

3.1. A interação entre os contextos


Além de Hanson, vários outros filósofos questionaram a separabilidade
entre o CD e o CJ, mostrando que, na verdade, os dois contextos intera-
gem e apresentam características comuns do ponto de vista de uma análise
filosófica. Como recurso de exposição, simbolizo com o símbolo ‘’, nos
comentários que se seguem, as direções em que se evidenciam as influências
de um contexto sobre o outro.
(D  J)
Ter informação a respeito do modo como se deu uma descoberta é,
frequentemente, relevante e, mesmo, indispensável para aferirmos sua jus-
tificação (pelo menos parcial), para avaliarmos a sua plausibilidade, etc. Ou
seja, a avaliação de um produto da atividade científica não pode ignorar o
contexto de (sua) descoberta.Vimos que o gerativismo em metodologia
supõe, justamente, que o modo como uma hipótese ou teoria foi construída
é relevante para a sua avaliação preliminar.
Um caso muito citado é o da regra metodológica da pré-designação, que
pode ser formulada nos seguintes termos: uma teoria que prediz ou explica
fatos novos – ou seja, fatos não-conhecidos, ou então fatos conhecidos, mas
que não tenham sido levados em conta na construção da teoria – tem mais
valor do que uma teoria que só explica fatos conhecidos ou que tenham
sido levados em conta na sua construção. Esta regra, que parece bastante
intuitiva, não pode ser assimilada por uma abordagem da justificação que
não leve em conta os fatores temporais, históricos, tipicamente envolvidos
no contexto da descoberta.
Outra regra metodológica relacionada com a anterior, e também bastante
intuitiva, é a que exige que os fatos que validam uma teoria não sejam os
mesmos envolvidos na sua construção. Novamente, ter informações a respeito
do contexto de descoberta é essencial para o contexto de justificação. Seria
mesmo estranho se assim não fosse: que cientista (ou filósofo) se disporia
a avaliar uma hipótese ou teoria sem ter qualquer informação a respeito da
sua procedência, das suas origens?

102
De forma mais ampla, devemos nos perguntar se a psicologia (da ciência),
a história (da ciência), a sociologia (da ciência), etc. – que frequentemente
descrevem e explicam os processos que ocorrem no contexto de descober-
ta – são mesmo irrelevantes para a metodologia filosófica (voltada para o
contexto de justificação). Em outros termos, o conhecimento empírico seria
mesmo dispensável para se tomar decisões a respeito da aceitabilidade de uma
hipótese ou teoria, para se fazer juízos normativos? O exemplo da regra da
pré-designação sugere que não é bem assim, que pelo menos a história (da
ciência) é relevante para a filosofia da ciência. Pode-se defender, também,
que os processos psicológicos de raciocínio, em cientistas envolvidos na
criação e formulação de uma hipótese, fornecem prima facie credibilidade
a ela.13 Nesse caso, a psicologia da ciência teria algo a dizer de relevante para
a filosofia da ciência. Ao mesmo tempo, todos concordam que a justificação
nas ciências envolve, em última análise, a comunidade científica, não se
restringindo aos juízos de um único indivíduo. Logo, é de se esperar que a
sociologia da ciência, que trata justamente das relações entre os cientistas,
seja também relevante, ao lado da psicologia, para o tópico da relação entre
CD e CJ.14 Se considerarmos a justificação de crenças um problema filosófico
central, então a filosofia da ciência deve levar em consideração o CD.
Uma teoria científica, por outro lado, não é estática, mas constantemente
modificada. E o modo como ela é modificada, os métodos envolvidos na
sua transformação, são certamente relevantes para a sua avaliação num
dado momento desse processo. Temos aí mais um caso de embricamento
entre os dois contextos. São, na verdade, raros os casos em que uma teoria
submete-se à avaliação como se estivesse acabada, pronta: usualmente ela é
considerada uma proposta provisória e sofre ajustes sucessivos seguindo uma
heurística, e avaliações parciais a cada ajuste. Veremos que a metodologia
proposta por Popper e, sobretudo, a proposta por Lakatos tentam capturar
essa dinâmica e seu impacto epistemológico.

13. O confiabilismo em teoria da justificação – que propõe que uma crença é justificada
se os processos psicológicos que a geraram são confiáveis – desenvolve essa intuição no
contexto de uma teoria geral do conhecimento. A. Goldman é um dos seus articuladores.
14. No capítulo 13 desenvolvo esse ponto no contexto de uma epistemologia evolucionista,
segundo a qual a comunidade científica pode ser vista como um dos níveis em que ocorre
a seleção de uma hipótese, além do nível do cientista individual.

103
(J  D)
E o caso do contágio inverso, da descoberta pela justificação? O modo
como se gera uma hipótese não é indiferente a uma avaliação da sua plau-
sibilidade, pelo menos inicial. Além disso, julgamos (ou não) que se trata
de uma descoberta e de uma contribuição para a pesquisa!
A avaliação dá-se, na verdade, a cada passo da investigação científica.
Não se pode distinguir uma etapa que seria, digamos, indiferente a questões
de validade e outra que, por sua vez, seria indiferente ao modo como um
produto da atividade científica foi obtido originalmente. Um cientista só
acata um resultado da sua pesquisa como sendo uma descoberta se possui
indicações de que é válido, plausível, original, de que oferece solução para
um problema, etc.
O objeto de uma “lógica do prosseguimento” (Hanson) é, justamente,
o de calcular a probabilidade prévia de uma hipótese. Normalmente, esse
cálculo não é meramente formal, mas se baseia em conhecimento de fundo
– por exemplo, se a hipótese está em conformidade com uma imagem de
natureza. A heurística que possibilitou gerar a hipótese em geral também
pressupõe um conhecimento de fundo.15 As “razões analógicas” de Hanson
têm esse caráter heurístico, como vimos. Há, portanto, maneiras racionais
de direcionarmos a geração de hipóteses, de restringirmos o espaço de bus-
ca, sem nos perdermos na seleção de um número infindável de hipóteses
propostas aleatoriamente, como no método de tentativa e erro.16
Podemos, portanto, concluir que D  J, ou seja, que os dois contextos
usualmente se superpõem e se constrangem mutuamente de várias modos,
mesmo que eles possam (ou mesmo devam) ser analiticamente distinguidos.

*3.2. O contexto de justificação é passível de uma análise lógica?


Uma crítica ao privilégio que determinadas escolas filosóficas dão ao
contexto de justificação aponta para a dificuldade de se elaborar uma ló-

15. Veremos que a metodologia de programas de pesquisa científica, de Lakatos, contempla


esse ponto.
16. Contudo, no capítulo 13 apresento argumentos, com base numa epistemologia evolu-
cionista, que apontam para uma necessidade, em última instância, de um tateamento ‘às
cegas’ na geração de conhecimento novo.

104
gica da justificação ou, caso se prefira, de se fazer uma análise lógica do
CJ. Vimos que a motivação (filosófica) para uma distinção CD/CJ foi a de
que somente o último contexto seria passível de uma análise lógica e não o
primeiro – a lógica17 sendo o instrumento filosófico por excelência, dentro
de uma tradição filosófica como a do empirismo lógico.
Um dos problemas centrais para essa tradição foi, justamente, o cha-
mado problema da confirmação, discutido no capítulo 4. Empiristas lógicos,
como Hempel, tentaram elaborar uma teoria exclusivamente sintática da
confirmação (ou seja, uma teoria que não envolvesse elementos semânticos
ou pragmáticos), que investigasse a relação entre hipóteses e evidência (em-
pírica) como uma relação estritamente formal. Essa teoria pretendia oferecer
critérios objetivos para se determinar quando uma hipótese é confirmada
pela evidência. Hempel acreditou, em conformidade com os pressupostos
do EL, que existiriam critérios puramente formais (sintáticos) para se esta-
belecer quando uma hipótese é confirmada, à semelhança dos critérios de
validação das inferências dedutivas, estabelecidos explicitamente por uma
lógica dedutiva. Contudo, vimos no capítulo 4 que esse projeto enfrentou
inúmeras dificuldades, levando a paradoxos que se mostraram insuperáveis
de uma perspectiva estritamente formal.
Há filósofos que concluem, a partir de fracassos como esse, que tam-
pouco o CJ é passível de uma análise exclusivamente lógico-formal e que,
portanto, ambos os contextos mostram-se igualmente impermeáveis a esse
tipo de análise. Desse ponto de vista, eles se apresentam em igualdade de
condições frente à investigação filosófica. Ambos os contextos podem, em
princípio, ser reconstruídos racionalmente, o que não significa, contudo,
que essa reconstrução tenha um caráter formal.
As críticas a uma suposta separabilidade entre os contextos de descoberta
e de justificação dão a dimensão da tarefa a ser realizada: a de desenvolver
uma metodologia filosófica que seja não somente consequencialista, mas
também gerativista; não somente reconstrutivista (limitando-se a análi-
ses retrospectivas da atividade científica), mas também prospectiva; e que

17. Devemos especificar o tipo de lógica (ver o capítulo 3). Nesta seção, refiro-me a uma
lógica dedutiva.

105
aborde a geração e a avaliação de uma hipótese ou teoria em seu efetivo
embricamento. Só nessa medida as reflexões metodológicas dos filósofos
podem capturar a complexidade da investigação científica e, desse modo,
colaborar para o seu aperfeiçoamento.

*3.3. Enfrentando o desafio


Este livro pode ser visto como uma tentativa de levar a sério o desafio
colocado ao final da última seção. Para indicar como se pode avançar na
direção de uma teoria do método que atenda aos requisitos aí colocados,
gostaria de mencionar as posições de dois filósofos contemporâneos que
adotam uma nova postura diante das questões abordadas.
Schaffner (1993), apoiando-se em grande medida na literatura de inte-
ligência artificial sobre descoberta mecanizada (em particular nos trabalhos
de H. Simon), divide a prática científica em três fases: da geração, avaliação
preliminar e justificação de novas hipóteses e teorias.
Schaffner critica Hanson por não ter feito a distinção entre uma “lógica
da geração” e uma “lógica da avaliação preliminar”.18 Ambas as fases estariam
incluídas no que Schaffner chama de “domínio da descoberta científica”
(o correspondente ao contexto de descoberta de Reichenbach) e que não
deve ser confundido, defende ele, com o “domínio da justificação científica”
(o correspondente ao contexto de justificação de Reichenbach). Schaffner
argumenta que as duas fases incluídas no “domínio de descoberta” são,
ambas, passíveis de uma “análise lógica e filosófica”.
McLaughlin (1982), por sua vez, chama atenção para a tendência em se
confundir questões empíricas e questões lógicas, em filósofos como Kuhn
e Feyerabend, críticos da distinção entre os contextos de descoberta e de
justificação como feita tradicionalmente.19 Contrariamente a esses críticos,
McLaughlin mantém a distinção entre esses dois tipos de questões, mas, ao
mesmo tempo, em oposição aos empiristas lógicos, considera que ambas

18. Creio que essa crítica a Hanson é injusta, mas não vem ao caso aqui entrar nessas que-
relas, mas focar nos argumentos apresentados por Schaffner.
19. No capítulo 11 trato das implicações metodológicas do quadro que Kuhn nos oferece
da atividade científica.

106
podem ser colocadas tanto com respeito ao contexto de descoberta (ou,
como ele prefere, contexto de “invenção”) quanto com respeito ao contexto
de justificação (ou de “avaliação”).
Assim, é uma questão empírica (no caso, psicológica) saber quais são as
causas das decisões que toma um cientista, seja quando inventa uma hipótese
ou prossegue investigando-a (contexto de descoberta), seja quando a aceita
ou rejeita (contexto de justificação). Por outro lado, é uma questão lógica
saber quais são as relações inferenciais entre essa hipótese e as proposições
observacionais que a sugerem (contexto de descoberta) ou que a testam
(contexto de justificação).
McLaughlin denuncia, portanto, dois tipos de “irracionalismo”. O primei-
ro deles estaria associado a posições defendidas por Popper e Reichenbach,
entre outros, chamando-o, não sem alguma ironia, de um “irracionalismo
vienense”. Para este tipo de irracionalismo, a invenção é irracional, e não
há possibilidade nem mesmo de uma reconstrução racional do contexto de
invenção. Esse irracionalismo tampouco admite a existência de elementos
empíricos no contexto de avaliação, equacionando, de forma simplista,
invenção = psicologia, de um lado, e avaliação = lógica, de outro.
O segundo tipo de irracionalismo estaria representado por Kuhn e
Feyerabend, que negam a possibilidade de se distinguir os contextos de
descoberta e de justificação, bem como as questões lógicas das ques-
tões empíricas.
McLaughlin defende, portanto, que elementos empíricos – que even-
tualmente influenciam a aceitação ou rejeição de uma hipótese – podem
não ter nenhuma relação com a racionalidade. Por outro lado, uma reflexão
racional (por exemplo, a respeito de problemas empíricos e conceituais)
é, frequentemente, decisiva quando um cientista inventa, aceita ou rejeita
uma hipótese.

4. Infalibilismo e lógica da descoberta


Hoje parece haver consenso entre filósofos de que, se há racionalidade na
descoberta científica, ela não pode ser reduzida a considerações lógico-formais.
A situação não foi sempre assim, contudo, e durante muito tempo atribuiu-

107
se relevância filosófica ao projeto de desenvolver uma lógica da descoberta.
Um otimismo a esse respeito, ou um franco pessimismo, reflete diferentes
posições epistemológicas ou imagens de ciência.
Laudan apresenta evidências históricas de que o interesse dos filósofos
dos séculos XVII e XVIII por uma lógica da descoberta era motivada, em
última instância, pela preocupação (filosófica, ele sublinha) com a questão
da justificação. Pensava-se que uma lógica da descoberta deveria fornecer
uma garantia (warrant) epistêmica às teorias geradas por sua aplicação:
“(...) uma lógica da descoberta funcionaria epistemologicamente como uma
lógica da justificação” (Laudan, 1980b:176).
Na reconstrução que faz Laudan da história da metodologia (1980b),
a partir do século XIX foram propostas lógicas da justificação consequen-
cialistas, ou seja, que concedem apoio epistêmico a teorias ou hipóteses
exclusivamente em função das suas consequências, ignorando o modo como
foram geradas (ver o capítulo 2). Desde então, os filósofos desinteressaram-
se por buscar uma lógica da descoberta. Isso porque, em última análise, seu
interesse sempre tinha sido com a justificação mesmo, sobretudo quando
buscavam lógicas da descoberta.
Outra associação interessante sugerida por Laudan é entre o consequen-
cialismo em metodologia e o falibilismo em epistemologia. O infalibilismo,
segundo Laudan, era o que motivava a busca por lógicas da descoberta,
pois se sabia que uma metodologia consequencialista não pode assegurar
que uma teoria é verdadeira (dada a falácia da afirmação do consequente).
Nickles também sublinha que um otimismo epistemológico não pode es-
tar associado ao consequencialismo, mas sim ao gerativismo, já que este
último não incorre, supostamente, nessa falácia. Logo, somente uma lógica
da descoberta pode satisfazer o infalibilista (epistêmico). Nessa leitura de
Laudan, com a consagração do falibilismo a partir do século XIX, a busca por
lógicas da descoberta perdeu a sua motivação epistemológica original. No
século XX, o falibilismo está no cerne da filosofia da ciência de K. Popper,
como veremos no capítulo 6.
Outro ponto interessante ressaltado por Laudan é que a procura por
lógicas da descoberta coincide, em geral, com períodos em que os produtos

108
típicos da atividade científica não envolvem termos teóricos, ou então com
períodos de grande desconfiança no valor das hipóteses em ciência. Nesses
períodos, é mais fácil acreditar que se pode passar com segurança da ob-
servação, ou de relatos de experiência, para a teoria. Historicamente, uma
das razões para o descrédito em que caiu o gerativismo teria sido o fracasso
da metodologia newtoniana de “dedução a partir dos fenômenos” (ver o
Apêndice neste capítulo).
Nos períodos em que predominam teorias genuínas (ou seja, aquelas
que envolvem uma linguagem teórica) há uma tendência a desprezar-se a
busca por lógicas da descoberta, pois não se considera plausível que possa
haver alguma lógica, algoritmo ou conjunto de regras que garanta a passagem
da observação a tais teorias.
O interesse recente por uma lógica da descoberta, na análise de Laudan,
não parece ter nenhuma motivação epistemológica (isto é, interesse pela jus-
tificação das crenças), mas unicamente com a construção de teorias enquanto
“artefatos”. Esse interesse distingue-se, portanto, da preocupação judicativa
tradicional dos filósofos. Laudan pergunta-se, então: que interesse filosófico
pode ter a construção de artefatos? Não é de se estranhar, diz Laudan, que
a preocupação com a construção de artefatos venha a nutrir-se das ciên-
cias empíricas – como a psicologia, a antropologia e a sociologia (Laudan,
1980b:182).20 Laudan está aqui comprometido com o caráter normativo da
epistemologia (ver capítulo 2).
No capítulo 7, sobre metodologia e heurística, voltarei a discutir essa
posição de Laudan. Nos próximos capítulos, o pensamento de alguns dos
filósofos acima mencionados merecerão uma análise mais detida.

5. Uma ilustração histórica: método e metodologia em Newton


Laudan mencionou, acima, uma “metodologia newtoniana”, e acho ins-
trutivo neste capítulo, que tem um caráter mais histórico, situar as suas con-

20. Laudan está, provavelmente, referindo-se aqui ao interesse pela descoberta mecanizada
em inteligência artificial. Nesse contexto, é relevante a distinção que fiz (no cap. 2) entre
metodologias construtivas e metodologias gerativistas, que tomei emprestado de Nickles
(1987b, 1987c).

109
siderações no século XVII e dar a palavra ao próprio Newton. Este apêndice
serve também para ilustrar as discussões que fiz no capítulo 1.
Embora hoje aceitemos a importância de se formular hipóteses para que
a ciência atinja os seus objetivos (explicativos e preditivos), isso não foi sempre
assim. Em grande parte da história das ciências predominou um ceticismo a
respeito do que era chamado o ‘método de hipótese’ (ver capítulo 3).
Na história da astronomia, por exemplo, o uso de hipóteses foi, por vezes,
visto como um desvio provocado pelos excessos especulativos de uma imagi-
nação científica não restringida pela experiência. Newton é muito conhecido
por ter rejeitado o uso de hipóteses em física. Não há, contudo, uma discussão
elaborada em sua obra sobre questões de método. Em alguns raros trechos ele
tenta, entretanto, explicitar algumas regras metodológicas.
Newton entendia como sendo hipóteses as especulações dos mecanicistas
cartesianos em torno da causa da gravidade, no contexto do século XVII.21
O famoso “Escolio Geral” dos Principia é um desses lugares em que ele é
enfático em rejeitar hipóteses e defender um indutivismo estrito (Laudan
provavelmente se referia a esse trecho)22:
Até aqui explicamos os fenômenos dos céus e de nosso mar pelo poder
da gravidade, mas ainda não designamos a causa desse poder (...). Mas
não fui ainda capaz de descobrir a causa dessas propriedades da gravi-
dade a partir dos fenômenos, e não construo nenhuma hipótese (I frame
no hypotheses; hypotheses non fingo); pois tudo que não é deduzido dos
fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e as hipóteses, quer me-
tafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm
lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia as proposições particulares
são inferidas dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução...
(Newton, Col. Os Pensadores, 1987:170)23

21. Por trás do hypotheses non fingo newtoniano há um misto de sabedoria metodológica e
de adesão a uma metafísica neoplatônica. Retrospectivamente e, portanto, anacronicamente,
podemos avaliar que Newton – independentemente das suas razões metafísicas – teve uma
acurada sensibilidade metodológica: de que era prematuro buscar-se, com os conhecimentos e
recursos disponíveis à época, uma explicação da gravitação. Para mais detalhes a respeito das
controvérsias no século XVII em torno de uma teoria da gravitação e questões metodológicas
correlatas, ver Abrantes, 2016.
22. Neste, e em outros trechos, Newton usa tanto o termo ‘dedução’ quanto ‘indução’ para
se referir ao mesmo tipo de inferência.
23. Tradução revista com base no original em inglês. In: Britannica, Great Books, 1954, vol. 34.

110
Em uma seção anterior dos Principia, Newton explicita algumas regras
que devem nortear a pesquisa científica.

5.1. Regulae Philosophandi (Regras de argumentacão em filosofia)24


Regra I
Não se hão de admitir mais causas das coisas naturais do que as que sejam
verdadeiras e, ao mesmo tempo, bastem para explicar suas aparências.
Regra II
Logo, nós devemos aos mesmos efeitos naturais, na medida do possível
atribuir as mesmas causas.
Regra III
As qualidades dos corpos que não admitem nem intensificação nem re-
missão de graus, e que se encontram associadas a todos os corpos dentro dos
limites de nossa experiência, devem ser estimadas como qualidades universais
de todos e quaisquer corpos.
Regra IV
Em filosofia experimental nós devemos estimar como acuradamente, ou
muito aproximadamente, verdadeiras aquelas proposições inferidas por indução
geral a partir dos fenômenos, a despeito de quaisquer hipóteses contrárias que
possam ser imaginadas, até que outros fenômenos ocorram, pelos quais elas
possam se tornar mais acuradas, ou passíveis de exceção.
Nós devemos seguir a regra de que o argumento de indução não pode ser
evadido (evaded by) por hipóteses (Newton, 1954: 270-1).

Note-se que, na Regra IV, Newton retoma, em outros termos, o hypothe-


ses non fingo prescrito na passagem anteriormente citada do Escólio Geral.

24. As regras foram traduzidas por mim com base na 3ª ed., de 1726, dos Mathematical
principles of natural philosophy (Newton, 1952). Com exceção da Regra IV, não incluo aqui
os comentários que Newton faz às demais regras. Nas várias edições dos Principia, Newton
alterou não somente os títulos (inicialmente as chamava de ‘hipóteses’; depois veio a cha-
má-las de ‘regras’), mas também o seu conteúdo. Note-se que, na Coleção Os Pensadores,
as regras são tiradas da 1a edição dos Principia, onde Newton ainda as chama de ‘hipóteses’.

111
112
6

A metodologia falseacionista

Pode-se defender que uma posição falseacionista em metodologia


antecede os desenvolvimentos em filosofia da ciência do século XX, mas
não pretendo aqui retraçar os eventuais precursores de Popper. Não há
dúvida, de todo modo, de que foi o maior representante contemporâneo
dessa metodologia.
Popper foi um crítico do empirismo lógico, embora tenha compartilhado
com essa escola muitas posições. Ao concentrar sua atenção somente nos
produtos da pesquisa, isolados do processo de produção (da prática que os
gerou), o empirismo lógico certamente contribuiu para a análise das carac-
terísticas lógico-semânticas de tais produtos, devidamente reconstruídos (a
tarefa básica da filosofia da ciência para esta escola). Porém, em contrapartida,
essa escola perdeu de vista a dinâmica científica, tornando-se incapaz de
compreender o processo de crescimento do conhecimento científico que,
para Popper, constitui o problema central da filosofia da ciência. Pode-se
ver a contribuição deste filósofo como, justamente, a de reintroduzir essa
dinâmica na reflexão filosófica sobre a ciência. Isso permitiu que ele promo-
vesse uma inflexão na filosofia da ciência do século XX em direção a uma
consciência propriamente metodológica.
Popper mantém, contudo, a distinção entre os contextos de descoberta
e de justificação, considerando somente este último como passível de análise
filosófica. Portanto, desde já é preciso deixar claro que a metodologia, para
Popper, tem por objeto não os métodos de descoberta, mas os métodos de
justificação. Em outras palavras, as normas metodológicas que este filósofo
propõe aplicam-se aos produtos da atividade científica e não à sua geração.

113
Só aparentemente, contudo, a perspectiva popperiana mantém-se estática
como a do empirismo lógico já que, como mostrarei, ele admite uma dinâ-
mica no próprio contexto de justificação.

1. Popper crítico do empirismo lógico


Popper, como os empiristas lógicos, estava preocupado com o problema
de como demarcar a ciência em relação à metafísica (ou às pseudo-ciências).
Entretanto, essa demarcação, segundo ele, não deve pressupor uma solução
para o problema da indução nem se basear num critério de significado, como
o critério verificacionista adotado pelos empiristas lógicos. A metafísica não
se distingue da ciência pelo fato de as sentenças metafísicas não terem signi-
ficado (pelo fato de não serem verificáveis, em consonância com o critério de
significado adotado pelos empiristas lógicos).1 Para Popper, o problema da
demarcação deve ser resolvido através da articulação de uma metodologia e
não por contorcionismos semânticos. A ciência caracterizar-se-ia pelos seus
métodos e não pelo conhecimento substantivo incorporado, por exemplo,
em teorias com determinadas características lógico-semânticas.2
Popper propôs uma separação dos problemas da demarcação e da in-
dução. A refutabilidade das teorias científicas é, para ele, uma solução para
o primeiro problema. A metodologia, entendida como uma ars inveniendi
(arte da invenção), deve ser distinguida da metodologia como fornecendo
critérios para a aceitabilidade ou validação dos produtos da atividade científi-
ca, isto é, tipicamente teorias. Popper defende que a filosofia da ciência nada
tem a dizer acerca da fase construtiva do trabalho científico. O filósofo tem
por objeto o contexto de justificação e não o de descoberta. A metodologia
popperiana é, nesse sentido, retrospectiva e não prospectiva.
Além disso, Popper é, declaradamente, um consequencialista. A sua
metodologia apresenta, contudo, traços gerativistas, como revela uma das

1. Ver o capítulo 4 para uma análise dessa solução semântica para o problema da demarcação,
proposta pelos empiristas lógicos. Popper chegou a admitir que as proposições metafísicas
podem ter um papel positivo no contexto de descoberta, ao sugerirem hipóteses a serem
posteriormente testadas. Para exercerem essa influência, contudo, as proposições metafísicas
certamente não podem ser vácuas, isto é, desprovidas de conteúdo empírico ou de significado.
2. Isso corresponde ao que chamei na Introdução de uma ‘imagem de ciência-como-método’.

114
principais regras metodológicas que propõe: a de que não se admitem mo-
dificações ad hoc numa teoria (mais sobre essa regra será exposto adiante).
Para aplicarmos essa regra é preciso saber como uma teoria foi gerada, ou a
que modificações ela foi submetida no passado. Só assim podemos avaliar a
cientificidade da dinâmica de que participa. Este problema, de uma tensão
entre uma postura consequencialista e algumas exigências metodológicas
com ressonâncias gerativistas, vai tornar-se mais agudo em Lakatos, um
discípulo de Popper.3

2. A metodologia popperiana e a lógica


Feitas essas considerações preliminares, passo a expor o uso que a
metodologia refutacionista (ou falseacionista) que propõe Popper faz de
determinadas regras de inferência da lógica dedutiva.4 Quero, no entanto,
desde já alertar o leitor para uma leitura incorreta, embora bastante comum,
de Popper: a metodologia que ele propõe não é uma simples decorrência da
aplicação da lógica dedutiva, como pode parecer à primeira vista. Mostrarei
isso na próxima seção.
Basicamente, Popper caracteriza a atividade científica como uma tenta-
tiva constante de refutar nossas conjecturas (hipóteses, teorias, etc.). Numa
perspectiva indutivista, o cientista visa a verificar ou a provar suas construções
teóricas, com base na evidência empírica. Popper defende, ao contrário, que
a refutação, e não a verificação, é o fim da atividade científica, esta sendo
retratada como essencialmente crítica.
O falseacionismo explora ao máximo o Modus Tollens que, sabemos,
traduz uma inferência válida; ao mesmo tempo, Popper chama atenção para
a falácia da afirmação do consequente.
Popper supõe, como muitos outros filósofos, que a forma lógica dos
produtos típicos da atividade científica é a de sentenças universais irrestritas.

3. Ver também as críticas feitas à separação entre os contextos de descoberta e de justifica-


ção, que abordei no capítulo 5. A despeito disso, Popper mantém-se um partidário dessa
separação, como disse acima.
4. Comparar a apresentação que se segue com a discussão que fiz no capítulo 3 sobre o mé-
todo H-D, que antecipou alguns dos pontos aqui discutidos. O problema da confirmação,
discutido no capítulo 4, também se relaciona com esse tópico.

115
Tais sentenças, como é notoriamente o caso das leis científicas, não podem
ser verificadas, mas só falseadas. Se um astrônomo admite a hipótese de que
‘todos os corpos celestes têm formas esféricas perfeitas’ – como acreditavam
os aristotélicos –, mas observa posteriormente (como fez Galileu através da
luneta) que a lua possui inúmeras irregularidades na sua superfície, então ele
deve abandonar sua hipótese. A hipótese foi refutada pela experiência. Não
importa quantas confirmações anteriores tenha havido desta hipótese (todas
as vezes que olhamos para o céu a olho nu temos várias oportunidades de
confirmar essa hipótese). Uma única instância em contrário deve levar ao
seu abandono (ou à sua modificação, que deve ser feita com base em regras
bastante estritas, como veremos na próxima seção).
Digamos que uma hipótese ou conjunto de hipóteses – compondo
uma teoria ‘T’ – implica uma sentença observacional ‘O’ descrevendo uma
previsão da teoria.5 Podemos escrever, simbolicamente:
T -> O
Esta sentença composta possui, portanto, a forma lógica de uma implica-
ção material em que ‘T’ é o antecedente e ‘O’ é o consequente da implicação,
descrevendo uma previsão da teoria.
No exemplo que acabei de dar, a hipótese da forma esférica perfeita dos
corpos celestes pode vir acompanhada de outras hipóteses a respeito dos
movimentos dos corpos celestes. Platão e Aristóteles acreditavam que todos
os corpos celestes movem-se com movimentos circulares e uniformes (ou
resultam de uma composição de vários desses movimentos), hipótese que
foi central na constituição de um programa em astronomia que durou mais
de vinte séculos.6 Esses movimentos circulares teriam, além disso, a Terra

5. Um sentença observacional é aquela que só possui termos referindo-se a entidades, pro-


priedades, processos, etc. observáveis. Ou seja, uma sentença observacional descreve seja
uma observação efetivamente realizada ou uma observação passível de ser realizada (por
exemplo, no futuro, como é o caso numa previsão).
6. Caso a relação entre ‘T’ e ‘O’ seja entendida como uma inferência dedutiva, teríamos que
usar algum outro símbolo representando a consequência lógica no nível da metalingua-
gem. Não é relevante para as discussões deste livro a diferença entre o nível da linguagem
e o da metalinguagem. Sobre a possibilidade de se usar a implicação material, como faço
aqui, ver a nota 8 do capítulo 3. Estou também ignorando que o antecedente da implicação
usualmente inclui condições iniciais e hipóteses auxiliares, formando uma outra sentença,
mais complexa, ‘T*’, no antecedente da implicação (T* -> O).

116
como centro (mais uma hipótese, portanto). Suponhamos que com base
nessa teoria geocêntrica (que, para efeito dessa ilustração, considero como
composta por essas três hipóteses) possamos prever a posição, num certo
instante de tempo, de um corpo celeste, digamos Marte. Estou admitindo
que esta previsão possa ser reconstruída como uma implicação: a teoria
implica que Marte estará nessa posição num certo instante de tempo. Como
saber se isso acontece na realidade? Através da observação. A olho nu ou
com o uso de instrumentos observa-se, no instante determinado, se Marte
encontra-se na posição prevista no céu. Caso a observação coincida com a
previsão da teoria, pode-se afirmar que ‘O’ é uma proposição verdadeira.7
Ou seja, podemos agora admitir duas premissas num possível argumento
(numero-as para facilitar a análise):
1) T -> O
2) O

Que conclusão se pode tirar, com base nessas premissas, a respeito


do status epistêmico da teoria T? Ela foi confirmada (ou corroborada)
pela observação.
Uma confirmação não é, contudo, uma verificação. Não se pode con-
cluir, com base nessa observação e em formas lógicas válidas, que a teoria é
verdadeira. Isso seria cometer a falácia da afirmação do consequente, como
assinalei no capítulo 3. Se o consequente de uma implicação material for
verdadeiro, do ponto de vista lógico o antecedente pode ser falso e, mesmo
assim, a implicação como um todo ser verdadeira.
Esse ponto tem uma importante consequência metodológica: uma teoria
falsa pode fazer previsões verdadeiras! Em particular, a teoria geocêntrica
do nosso exemplo, embora saibamos hoje que é falsa, fez várias previsões
corretas e foi, durante séculos, a base teórica para um trabalho científico em
astronomia e para aplicações, como a elaboração de calendários, por exemplo.

7. Estou aqui simplificando tremendamente. Por exemplo, estou abstraindo o fato de que
toda observação possui um grau de incerteza, entre outras coisas devido à precisão, sempre
limitada, dos aparelhos de medida utilizados. Em casos reais nunca temos uma previsão
teórica que coincide exatamente com o resultado de uma observação. Temos que tolerar
um certo grau de discrepância para podermos confirmar a teoria.

117
Consideremos, agora, o caso em que a observação não coincide com a
previsão da teoria. No exemplo dado, procurou-se Marte no lugar previsto,
no instante determinado e Marte não estava lá, mas em outro lugar. Pode-se,
portanto, dizer que ‘O’ é falsa (ou, equivalentemente, pode-se afirmar ~ O).
Nesse caso, afirmamos as seguintes sentenças como premissas:
1) T -> O
2) ~ O

O que concluir, nesse outro caso, a respeito do status epistêmico da


teoria T? Ela foi infirmada, falseada ou refutada (use o termo que lhe soar
melhor, pois são sinônimos) pela observação. Se tivermos certeza a respeito
do valor verdade de ‘~ O’, podemos ter certeza que a teoria ‘T’ é falsa, usando
o Modus Tollens, uma regra de inferência da lógica dedutiva.8 Ou seja, temos
agora o seguinte argumento válido:
1) T -> O
2) ~ O
===========
3) ~ T

A linha dupla tracejada separa a conclusão (3) de um argumento dedu-


tivo, das suas premissas (1) e (2). Se podemos nos assegurar que as premissas
são verdadeiras, então a conclusão (~ T) será necessariamente verdadeira.
Isso equivale a dizer, neste caso, que a teoria revelou-se falsa no confronto
com as evidências.
Simplificando muito, como veremos na discussão que se segue, a me-
todologia falseacionista afirma que observações podem – por esse tipo de
aplicação de regras da lógica dedutiva – falsear uma teoria (mostrar que ela
é falsa), mas nunca podem nos assegurar que uma teoria é verdadeira. Por
mais que uma teoria seja confirmada por uma série de N observações, sempre
haverá a possibilidade de ela ser falseada pela observação N+1. Trata-se de
uma aplicação da lógica dedutiva ao caso da relação entre uma hipótese (ou
uma teoria, por exemplo) e a evidência empírica.

8. Sobre essa regra de inferência, ver o capítulo 3.

118
Repetindo o que disse acima, sentenças universais irrestritas não podem
ser verificadas, somente falseadas. Popper admite que o núcleo das teorias
científicas é formado por tais sentenças (ou seja, por leis científicas, com a
forma lógica dos assim chamados ‘enunciados nomológicos’). Portanto, uma
teoria pode ser reconstruída como uma conjunção (lógica) de enunciados
nomológicos (digamos, h1, h2, h3... hn). Podemos escrever, portanto, que
T <-> h1 . h2 . h3... hn (o ponto aqui representando o conetivo lógico ‘e’ numa
conjunção de hipóteses). O Modus Tollens, no exemplo acima, pode ser,
portanto, reformulado da seguinte maneira:
1) (h1 . h2 . h3 ... hn) -> O
2) ~ O
===============
3) ~ (h1 . h2 . h3 ... hn)

Mas sabemos que a negação de uma conjunção é equivalente logica-


mente a uma disjunção:
~ (h1 . h2 . h3 ... hn) <-> ~h1 v ~h2 v ~h3 ... v ~hn

Aqui estou usando o símbolo ‘v’ para representar o conetivo lógico ‘ou’,
e o símbolo ‘<->’ para representar a equivalência lógica.
A interpretação desse resultado é a seguinte: se uma teoria é falseada,
então é falseada uma, várias ou todas as sentenças que compõem essa teo-
ria. O que coloca uma questão difícil: como saber que parte da teoria (que
sentença ou grupo de sentenças) é falsa e deve, portanto, ser descartada
ou modificada (supondo-se que há outras partes que são verdadeiras)? As
inferências acima não nos permitem essa determinação fina do que é falso
na teoria. O que sabemos, pela inconsistência entre a evidência empírica e
a teoria, é que esta última, como um todo, tem algum problema.9
Voltando ao exemplo acima, se a teoria astronômica geocêntrica é
falseada, talvez somente a hipótese geocêntrica seja falsa (e tenha que ser
abandonada), e possamos manter a hipótese de que os movimentos dos

9. Podemos colocar em dúvida as observações, pois cometemos erros ao observar, utilizando


instrumentos ou não. Aqui estou supondo que a observação seja fidedigna. Mais à frente
apontarei as complicações decorrentes de colocarmos em dúvida as supostas evidências
empíricas, aquilo que Popper chama de “base empírica”.

119
astros são circulares e uniformes.10 Mas não podemos ter certeza, com base
somente no Modus Tollens, de que a refutação deve ser dirigida somente
para esse elemento da teoria. Essa indeterminação será aproveitada, como
veremos, pela crítica convencionalista ao critério popperiano de demarcação.
Quero agora, antes de concluir, voltar ao que disse no início desta seção:
o problema da demarcação não pode ser resolvido, numa perspectiva po-
pperiana, em bases estritamente lógicas (por uma análise das formas lógicas
de sentenças e das relações lógicas entre sentenças), contrariamente ao que
os resultados acima parecem sugerir. Se fosse esse o caso, a metodologia de
Popper seria bastante simplista e pouco original! As coisas são bem mais
complicadas, mas também mais interessantes. As regras metodológicas
popperianas pressupõem, na verdade, muito mais do que certas regras sim-
ples de inferência da lógica dedutiva.11 Elas pressupõem um compromisso
com uma particular concepção da finalidade do “jogo da ciência” (Popper,
1993:56). E, nesse campo, a lógica não pode vir em nosso auxílio.

3. A concepção popperiana de metodologia


O título mesmo desta seção indica que as considerações que se seguem
têm um caráter metametodológico, ou seja, abordam não uma metodologia
em particular, mas a natureza mesma da metodologia científica. No capí-
tulo 9 vou expandir essa discussão e considerar uma variedade de posturas
em metametodologia.
Popper recusa-se a considerar as questões metodológicas como meras
questões de lógica aplicada (como almejavam os empiristas lógicos). Em uma
nota bastante esclarecedora em seu clássico A Lógica da Pesquisa Científica,12
Popper aponta o dilema colocado pelos empiristas lógicos:
(...) Nos dois anos que precederam a publicação desta obra, minhas
idéias eram criticadas pelos adeptos do Círculo de Viena, afirmando-se
impossível uma teoria do método que não fosse nem ciência empírica

10. Copérnico fez algo nessa linha: manteve o dogma platônico da circularidade, mas tirou
a Terra do centro imóvel do cosmo (colocando o Sol em seu lugar).
11. Não se confunda, portanto, o que estou denominando aqui de ‘regras metodológicas’,
com as regras lógicas que introduzi no capítulo 3.
12. A primeira edição deste livro, em alemão, data de 1934. A primeira edição inglesa é de 1959.

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nem pura Lógica – pois o que saísse desses dois campos era totalmente
sem sentido (Popper, 1993:53, nota *1).

Popper rejeita tanto a primeira alternativa, que ele chama de “naturalista”,


quanto a segunda, mais no espírito do empirismo lógico.
Sua terceira via é a de apelar para uma “convenção”, que se justifica em
termos de uma finalidade atribuída ao jogo da ciência e, em última instância,
em “juízos de valor” (Popper, 1993:38- 40).
É incorreto dizer, portanto, que a metodologia popperiana se fundamen-
ta exclusivamente na lógica dedutiva (particularmente no Modus Tollens).
O critério falseacionista de demarcação, por si só, é na verdade alvo fácil de
críticas convencionalistas (inspiradas no filósofo francês de fins do século
XIX, Pierre Duhem).13 Tais críticas alegam que é sempre possível salvar
uma teoria da refutação fazendo modificações periféricas nela (e manten-
do seu núcleo de sentenças fundamentais). Em última análise, uma teoria
científica seria sempre aceita por convenção e não podemos ter esperanças
nem mesmo de falseá-la (já havíamos perdido as esperanças de verificá-la!).
Popper reconhece que não é possível responder a essa crítica de um ponto
de vista estritamente lógico.
A crítica convencionalista ao critério falseacionista de demarcação
obriga Popper a admitir, então, que um ideal de ciência (um compromisso
com certos valores ou fins) não pode justificar-se em termos lógicos (seja
em termos de uma lógica indutiva ou dedutiva). Veremos, na próxima
seção, que esta posição de Popper está associada a uma teoria hierárquica
de racionalidade.
A crítica convencionalista leva Popper a admitir que os cientistas estão
continuamente modificando suas teorias para adequá-las à experiência,
salvando-as do falseamento. Cabe à filosofia da ciência estabelecer regras a
respeito de como essas modificações devem ser feitas.
A metodologia de Popper pode ser vista como composta basicamente
de um critério de demarcação (a refutabilidade) e de um conjunto de regras
metodológicas subsidiárias. Mencionei, anteriormente, a regra que proíbe
modificações ad hoc em uma teoria científica, para salvá-la do falseamento.

13. Popper distorce, na verdade, as posições de P. Duhem, que são muito mais sofisticadas
do que transparece aqui. Ver, a esse respeito, Abrantes (1989; 2016, p. 361-68).

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Esta regra é equivalente a esta outra: ‘somente são aceitáveis modificações
que não reduzam o grau de falseabilidade ou de testabilidade da teoria’.
Um exemplo clássico de modificações ad hoc numa teoria, visando evi-
tar a refutação, é fornecido, justamente, pelo programa em astronomia que
serviu de exemplo na seção anterior. Agora estamos admitindo que não se
trata de uma teoria, mas de um programa, ou seja, que várias modificações
foram feitas na versão inicial da teoria mantendo-se, contudo, o seu núcleo.
Para Ptolomeu, um dos mais importantes astrônomos que participaram
desse programa, os astros movem-se em torno da Terra em órbitas circulares
simples ou passíveis de descrição em termos da composição de movimen-
tos circulares (chamados de ‘epiciclos’). Quando um astrônomo fazia uma
previsão, com base numa versão dessa teoria – por exemplo, a respeito da
posição de Marte em determinado momento, como no exemplo anterior – e
que não era confirmada pela observação, ele usualmente adotava a estratégia
de acrescentar mais desses epiciclos. Assim, a teoria escapa do falseamento:
a instância falseadora torna-se uma instância confirmadora do programa!
Para Popper, esse programa (ou essa prática, mais precisamente) não
seria científico, pois os cientistas que nele trabalham valem-se de métodos
inaceitáveis. O mínimo que se deve exigir, a cada modificação numa teoria,
é que o seu conteúdo empírico aumente (ou seja, que ela faça a previsão
de novas observações que a versão anterior da teoria não possibilitava).14
A prática científica caracteriza-se não somente por “conjecturas e refuta-
ções” – o título de uma das obras de Popper (1982) –, mas pelo crescimento
do conhecimento. As pseudo-ciências e a metafísica imunizam-se contra
a refutação com estratagemas (métodos não-científicos) semelhantes aos
utilizados pelos astrônomos ptolomaicos.
Os diagramas a seguir ilustram a distinção entre ciência e metafísica
como sendo uma distinção a respeito dos métodos aceitos para se modificar
sistemas conceituais:

14. No jargão popperiano, cada versão teórica deve ter mais “falseadores potenciais” do que
a versão que a precedeu no programa. Uma previsão é um falseador potencial no sentido de
que, se não se confirmar, leva ao falseamento da versão teórica em que se baseou.

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1. A ciência como atividade

2. A metafísica como atividade

Onde: To, T1, T2 ... constitui uma série de teorias propostas sequencialmente ao longo
do tempo - o eixo horizontal (t); ϕ é o número de falseadores potenciais de cada teoria
(o eixo vertical); M é uma teoria metafísica (sem falseadores potenci