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Rio de Janeiro, 2021

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(EDOC BRASIL, BELO HORIZONTE/MG)

C755 Conservadorismos, fundamentalismo religioso e movimentos de resistência [livro


eletrônico] : experiências no Brasil, Uruguai, Chile e Colômbia / Organizadora
Luci Faria Pinheiro. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2021.
Formato: ePUB
ISBN 978-65-5943-946-1
1. Ciências políticas. 2. América latina – História. I. Pinheiro, Luci Faria.
CDD 300
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

Conservadorismos, fundamentalismo religioso e movimentos de resistência. experiências no Brasil,


Uruguai, Chile e Colombia
pinheiro, Lucí Faria (org.)

isbn: 978-65-5943-946-1
1ª edição, julho de 2021.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

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prévia autorização do autor e da Editora Autografia.
Sumário

Apresentação  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 7

Prefácio� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 13

CONSERVADORISMOS E FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

Incidencia Religiosa en Clave multilateral: la presencia de redes


políticas evangélicas en las asambleas de la OEA� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 17
Nicolás Panotto

Opus Dei, el Fundamentalismo También Puede Ser Católico  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 49


Pilar Cifuentes
Rocío Cordones
Ezequiel Oria

O Sexismo Institucional Eclesial e sua Violência Simbólica. Uma


leitura crítica a partir de Pierre Bourdieu.� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 84
Railson da Silva Barboza

Os Princípios Ideológicos dos Evangélicos na Política Brasileira� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 97


Luana Reis Andrade
Luci Faria Pinheiro

Valores e Princípios Religiosos enquanto Expressão do


Conservadorismo na Execução das Políticas de Educação e
Assistência social no Município de Londrina  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 120
Claudia Neves da Silva

Evangélicos na Arena Política do Uruguai Contemporâneo � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 137


Victoria Sotelo
NEOLIBERALISMO CONSERVADOR E RESISTÊNCIA POLÍTICA NOS
MOVIMENTOS SOCIAIS E POLITICO-RELIGIOSOS

Neoliberalismo e Teologia da Libertação. A resistência a partir das


experiências da Comissão Pastoral da Terra e do Movimento de Fé e Política.  � � � � � � � � � 161
Lucí Faria Pinheiro
Camila Faria Pançardes

Confinamiento y Modernidad o Autonomía y Dignidad. Movimientos,


territorios, estados, para-Estados y decolonización.� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 185
Fabio Lozano
Oscar Melo

Mobilização Social no Brasil. Considerações acerca das “Jornadas” de


junho de 2013  � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 211
Emilie Faedo Della Giustina
Danuta Estrufika Cantóia Luiz

Atualização do Debate sobre Raça e Classe sob a ótica do Ativismo do


Movimento Negro Universitário� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 238
Marcelo Barbosa Santos

Movimento Lésbico Brasileiro. A luta pelo reconhecimento da identidade� � � � � � � � � � � 258


Nathaliê Cristo Ribeiro dos Santos

A atuação e a Mobilização de Movimentos Sociais para a


Implementação das Políticas Públicas de Comunicação no Brasil � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 275
Anderson Antonio Andreata
Apresentação

O Laboratório de Serviço Social, Movimentos Sociais e Novos Pro-


jetos Societários na América Latina-LASSAL, da Universidade Fede-
ral Fluminense, apresenta aos leitores um conjunto de contribuições
resultantes de pesquisas recentes, dentro do escopo de intercâmbios
acadêmicos realizados com pesquisadores de várias instituições do
continente latino-americano.
Os textos apresentam três fontes de produção diferenciadas. Alguns
autores comunicaram suas pesquisas no Grupo de Trabalho 1 - “Reli-
gião e Política. Fontes e manifestações político-religiosas do movimen-
to ultraconservador na América Latina”, constituído a partir da pro-
gramação das IX Jornadas Internacionales Ciencias Sociales y Religión,
evento realizado em Buenos Aires, nos dias 20, 21 e 22 de novembro
de 2019, na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos
Aires-UBA. O GT-1 foi coordenado pelas pesquisadoras Luci Faria Pi-
nheiro, a jovem doutora Camila Faria Pançardes, em exercício no qua-
dro de professores da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO) e a Professora Doutora Claudia Neves da Silva, da Faculdade
de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina-UEL, colabo-
radoras do LASSAL. Alguns autores estão vinculados ao Grupo de Tra-
balho do CLACSO (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais)
- “Religión, neoliberalismo y pos/decolonialidad na América Latina”
(2019-2022), no qual colaboro com a coordenação, composta pelos pes-
quisadores Joanildo Burity, Fabio Lozano e Ileana Hogde.

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Os artigos apresentados no livro abordam as realidades do Brasil,
Chile, Uruguai e Colômbia. Por meios conceituais próprios, eles produ-
zem uma elaboração que tentamos resumir de forma articulada à ideia
e o contexto sócio-politico e religioso atual. Iniciando com os pressu-
postos de uma pesquisa de pós-doutorado na Organização das Nações
Unidas no Chile, pode-se dizer que a sociedade civil aparece mediante a
participação evangélica nos fóruns da OEA, como também em pesqui-
sa sobre o campo das esquerdas. Aqui as lutas pela ética na política e pe-
los direitos humanos de trabalhadores em luta pela terra, constituem a
práxis histórica das lutas democráticas desde os anos 60 no Brasil, onde
a teologia da libertação nasceu, contestando o modelo periférico de um
capitalismo dependente que gera pobreza e injustiças sociais. Esse qua-
dro evidencia a importância de resgatar através de pesquisas o significa-
do para a democracia de um retorno da autocracia burguesa, liderada
por militares durante a ditadura, hoje em defesa do projeto neoliberal,
mediante uma composição entre novos grupos evangélicos e neopente-
costais na representação política. Uma afinidade entre a realidade brasi-
leira e a uruguaia é nesse sentido visível, a exemplo do avanço na polí-
tica de bancadas evangélicas parlamentares. Por outro lado, no campo
das políticas sociais, as equipes técnicas qualificadas são invadidas por
valores religiosos conservadores, como mostra um dos estudos, que
tem como base uma cidade do sudeste brasileiro, região do Brasil que
tem maior renda per-capita e acesso amplo aos equipamentos públicos
e à educação superior, como Londrina, no Paraná.
Caracteriza de modo acentuado este e-book, a dialética entre conser-
vadorismo e resistência ao neoliberalismo, projeto que alarga as contra-
dições sociais em alternativa à crise do capital. A radicalização de uma
pauta ideológica vem sendo recuperada, mostrando que a democracia
não é um valor universal em si mesmo, garantidor da liberdade de todos,
mas resultado do domínio de frações de classe, que ideologicamente se
identificam com o ideário liberal-conservador. Outra pesquisa detecta
na diversidade dos protestos de 2013, no Brasil, marco das divisões que

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abrem espaço para a tomada de poder por vertentes da extrema-direita.
Tais manifestações abrirão canais de legitimação do golpe constitucio-
nal de 2016, que resultou no impeachment da presidente Dilma Roussef.
Esse processo progride para a denominada “revolução cultural” antico-
munista, propalada a partir de 2018, para eleger Jair Bolsonaro. Ganhan-
do adesão da grande mídia, que será logo atacada pelo governo dando
preferência aos veículos evangélicos, que ideologicamente o apoiam,
orientados em parte pela teologia da prosperidade. Enfim, a bancada
parlamentar evangélica abarca os cristãos protestantes que investem na
política em nome de valores conservadores, da família e dos bons cos-
tumes. Isto é apenas o sinal da complexidade da vasta base social e cor-
porativa que formam os grupos neo-conservadores de extrema-direita
no poder. O conjunto dos textos contribui para melhor compreensão da
sociedade brasileira e alguns países do continente latino-americano, reve-
lando particularidades dos temas propostos, no contexto de neolibera-
lismo. Quanto mais avança tal período da sociabilidade burguesa, maio-
res são as ameaças e tensões contra os valores progressistas, os direitos
sociais e os direitos humanos. Essas tensões criam novas expressões dos
conflitos de classe, dos quais fazem parte novas configurações das rela-
ções entre cultura, política e religião, articuladas à esfera da economia.
Uma particularidade do Brasil se esboça lentamente a partir do sé-
culo XX, articulando as religiões neopentecostais e evangélicas, para
sustentar um ideário carregado de preconceitos e agressividade con-
tra a democracia. Embora presente em grande parte da América Lati-
na, esse tripé apresenta um papel geo-politico estratégico, o de liderar
tal movimento através da Igreja Universal do Reino de Deus-IURD,
cujo projeto de influência tem um grau de competitividade que se
ajusta à globalização da economia, em diferentes continentes. Uma
das pesquisas enfoca a Frente Parlamentar Evangélica, sua Carta de
Princípios e a Carta ao Povo Brasileiro, lançada para aderir à campa-
nha de Jair Bolsonaro. A vulgarização da política tem seu ponto cul-
minante na eleição de 2018 e se desenvolve no mandato presidencial.

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Essas seriam as bases históricas de deterioração da política? A amplia-
ção das correntes religiosas conservadoras não é suficiente para expli-
car as fontes de tamanha crise dos valores progressistas, mas se torna
muito importante quando seus representantes assumem um protago-
nismo politico, ameaçando o Estado laico. Em um ano de pandemia,
as igrejas conservadoras foram um instrumento fundamental do ne-
gacionismo, em celebrações virtuais e presenciais, contra os protoco-
los médicos no combate à pandemia.
Esse projeto de ampliação religiosa é histórico. Em compasso com
correntes conservadoras que dominaram a igreja católica desde o
fim do papado de João XXIII, adotando como alvo de seus combates
os avanços do Concilio Vaticano II. A Opus Dei é uma das correntes
mais conservadoras do catolicismo, aqui presente através de uma pes-
quisa. Soma-se a ela outro texto que resgata uma abordagem cultural
da mulher submissa, nos ambientes da hierarquia católica, formando
um conjunto no trato especifico do conservadorismo da cultura cristã
na América Latina.
A hegemonia cultural conservadora volta ao seu projeto antico-
munista, de negação das conquistas modernas obtidas pela ciência. A
agressividade deste projeto é a forma mais recente de manipulação
das contradições sociais, visando perpetuar as desigualdades sociais. O
apassivamento e a cooptação das massas populares, hoje é insuficiente
para enfrentar as lutas feministas, antirracistas e LGBTQIA+. Os movi-
mentos de resistência das minorias sociais subvertem o método clássico
de criminalização de seus valores pelas elites conservadoras, ganhando
como inimigos as igrejas evangélicas de forma geral, que usam o gover-
no para imprimir nas políticas sociais seus princípios e valores.
Os Movimentos Sociais ganham um teor aqui de resistência demo-
crática, a partir de trabalhos que evocam os processos de lutas por di-
reitos sociais, reconhecimento das comunidades que assumem o pro-
tagonismo de sua história em meio ao crescente e avassalador papel
assumido pelo Estado democrático: na criminalização dos pobres e

10
lideranças sociais. O autoritarismo, o terror e a violência no campo, é
objeto do artigo de dois autores colombianos, inspirados no confina-
mento imposto pela pandemia Covid-19, relacionando às formas histó-
ricas de isolamento social impostas na Colombia e na América Latina,
para garantir a autoridade do capital. Se as comunidades camponesas
se mobilizam contra a violência que ameaça a vida, exigindo direito ao
seu território com toda a carga de ancestralidade que carregam ao lon-
go da história, a liberdade de viver e se reproduzir recai igualmente no
combate ao racismo estrutural e oligárquico, reprodutor de conteúdos
colonialistas escravocratas, para segregar e alijar direitos que os indiví-
duos necessitam para afirmar sua existência social. O apassivamento
das lideranças sociais contribui para que os movimentos de defesa do
indivíduo e da subjetividade, permaneçam desvinculados das pautas
de reivindicações dos trabalhadores. Entretanto, sua força moral e éti-
ca se desnuda, na medida em que atraem contra si, na atualidade, a
mais reacionária mobilização contra os direitos sociais.
Portanto, falamos de características sociais que seguem um modelo
de cristianização ocidental colonizadora, do qual as classes dominantes
não abrem mão. Contudo, se há no avanço agressivo da extrema-direita
o amparo do conservadorismo religioso, entendemos que os processos
atuais requerem aprofundamentos da complexidade, heterogeneidade
e singularidade de cada país. A derrota da laicidade e da democracia são
interfaces de um mesmo projeto, que luta pela estreita relação entre Es-
tado e religião, o que é possível nesse momento histórico, graças às mu-
danças culturais amalgamadas com o poder econômico. Mas isso não
significa que elas prosperem por longo tempo. A modernidade requer o
radicalismo daqueles a quem interessa uma verdadeira democracia.
Nosso especial agradecimento à Taiza da Silva Gama, membro do
LASSAL, pela sua colaboração na revisão técnica de capítulos em lín-
gua portuguesa.

Luci Faria Pinheiro - Niterói-RJ, dezembro de 2020

11
Prefácio

Para investigar e analisar a conjuntura latino-americana, e a brasileira


em particular, é necessário compreender que a herança cristã imposta
pela colonização espanhola e portuguesa nos levou à constituição de
uma sociabilidade e sociedade com características da religião católica,
onde a crença de que a pobreza faz parte da humanidade será atenua-
da por meio da caridade, da obediência às autoridades, porque são
imbuídas do poder divino para governar e orientar os cidadãos nos
caminhos tortuosos da vida em comunidade.
A internalização de valores e princípios religiosos nos leva a cons-
truir e estabelecer normas de comportamento, aptidões e opções pro-
fissionais, concepção de homem e mundo, além de naturalizar fatos
e situações estabelecidas pelas condições materiais de homens e mu-
lheres e pelas relações sociais que estabelecem. Neste sentido, estudar
a presença da religião – enquanto sistema de crenças e práticas – nas
esferas social, cultural, econômica e política exige-nos ir além da pe-
culiaridade de cada igreja, ou seja, de sua estrutura física, de suas nor-
mas e de sua doutrina.
É preciso investigar o resultado das intenções e ações de caráter
religioso nestas esferas, considerando que a relação estabelecida en-
tre Estado e religião, igrejas e governos envolve ambiquidades e in-
teresses que estão muito distantes do plano sagrado, mas fincados no
mundo profano.

13
A complexidade desta relação exige que diferentes áreas do co-
nhecimento, com especificidades próprias de metodologia e de arca-
bouço teórico, sejam consultadas para refletir e analisar a conjuntura
atual, em que a retomada do conservadorismo apresenta sua “face
religiosa”, legitimando movimentos, atos, condutas que rechaçam a
ciência, rejeitam o direito de negros, mulheres, indígenas, população
LGBTQIA+ e defendem a intolerância àqueles que não comungam
com a profissão de fé dominante.
A reatualização do conservadorismo religioso nas primeiras déca-
das do século XXI repercute em toda a sociedade, e os artigos desta
coletânea têm por finalidade analisar e promover reflexões acerca da
religião e sua presença e ingerência em diferentes contextos – políti-
co, social, econômico – alimentando e sendo alimentada por ações
e decisões que ferem a laicidade do Estado, o respeito à tolerância,
minam direitos sociais e políticos de diversos segmentos sociais, e
produz de forma sub-reptícia, fissuras na democracia dos países lati-
no- americanos.
Esse livro possibilitará a leitura, reflexão e compreensão do fe-
nômeno religioso e sua vertente fundamentalista na sociedade con-
temporânea, assim como, esperamos, à defesa das pautas democrá-
ticas dos movimentos sociais, também registradas na segunda parte
do livro.

Claudia Neves da Silva - UEL, Londrina-PR, abril de 2021

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PARTE I

Conservadorismos e
Fundamentalismo Religioso
Incidencia Religiosa en Clave
multilateral: la presencia de
redes políticas evangélicas en
las asambleas de la OEA1
Nicolás Panotto2

El campo evangélico ha alcanzado un creciente nivel de influencia so-


ciopolítica desde mediados del siglo XX en diversos niveles y desde dis-
tintas matrices. Podemos identificar, a modo de distinción analítica,
tres instancias principales: incidencia microsocial o comunitaria (enfo-
cada en los procesos de influencia de iglesias evangélicas en espacios
sociales concentrados, como pequeños grupos o comunidades, barrios
o proyectos de asistencia, y también en el rol de individuos creyentes
en la participación de espacios públicos), incidencia a nivel nacional
desde un encuadre institucional (focalizada en el intento de conforma-
ción de partidos políticos a partir de la década de 1980, la complejiza-
ción de procesos de lobby a través de partidos en municipios y Estados,

1.  Los datos utilizados en el presente artículo surgen del trabajo del Grupo de Estudios Mul-
tidisciplinarios sobre Religión e Incidencia Pública (GEMRIP) en el proyecto Participación
de la Sociedad Civil en la Cumbre de las Américas (PASCA), con el grupo de actores religio-
sos y espiritualidades del Foro Ciudadano de las Américas. Artículo publicado originalmen-
te como Panotto, N. (2020). Incidencia religiosa en clave multilateral: la presencia de redes
políticas evangélicas en las asambleas de la OEA. Revista Cultura & Religión, 14(1), 100-120.
2.  Doctor en Ciencias Sociales (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales – FLACSO
Argentina). Investigador asociado, Instituto de Estudios Internacionales (INTE) de la Univer-
sidad Arturo Prat (Chile) https://orcid.org/0000-0002-0513-7175 Universidad Arturo Prat /
GEMRIP, Chile. nicolaspanotto@gmail.com

17
y la participación en debates públicos sobre proyectos de ley) y la inci-
piente incidencia en instancias transnacionales (como en organismos
internacionales y proyectos de alcance regional).
El análisis de estas reconfiguraciones se ha vuelto uno de los
campos de investigación más fecundos dentro de las ciencias socia-
les orientadas al estudio del campo religioso en las últimas décadas
(Parker, 1996; Deiros, 1997; Fediakova, 2013; Panotto, 2014). Los es-
tudios de la relación entre evangélicos y espacio público varían según
las orientaciones en lo referido a la definición de la particularidad del
sector como a su relación con lo estrictamente sociopolítico: encon-
tramos enfoques sobre grupos específicos que componen el campo
(como los extensos trabajos sobre el pentecostalismo: Frigerio, 1994;
Álvarez, 1995; Semán, 2000; Anderson, 2007), definiciones sobre los
tipos de campo de incidencia (Carozzi, 1993; Carbonelli, 2008; Man-
silla, Orellana y Panotto, 2019) o según maneras de definir el enmar-
que general a partir del cual se entiende la relación evangélicos-políti-
ca (Panotto 2015a, 2015b).
Sin caer en reduccionismos analíticos, se podría decir que el estu-
dio de la incidencia evangélica en el espacio público dentro del Cono
Sur ha ido a la par de las transformaciones de la presencia política de
dichos grupos en América Latina. Encontramos corrientes con énfa-
sis en los siguientes campos: (i) el impacto del crecimiento demográfi-
co a partir de la década de 1950 (Deiros, 1997); (ii) las primeras incur-
siones e intentos de conformación de partidos confesionales (Deiros,
1987); (iii) el lugar de las comunidades evangélicas en las transforma-
ciones dentro de los sectores populares a partir de la década de 1990
en la coyuntura neoliberal de la región (Míguez, 2000; Semán y Mí-
guez, 2006; Algranti, 2006); (iv) y los nuevos procesos de articulación
regional de movimientos evangélicos a partir de principios del 2000
(Carbonelli, 2011).
Las investigaciones mencionadas se han concentrado más específi-
camente en el análisis de los dos primeros ejes señalados en el inicio; a

18
saber, las dimensiones microsociales y comunitarias del impacto que
generan el trabajo de iglesias locales y experiencias individuales de
creyentes, así como la incidencia dentro de una matriz nacional-esta-
tal, encauzada en la visibilización y movilización de algunos sectores
de iglesias evangélicas. Sin embargo, hay muy pocos estudios desde
una mirada más bien regional y desde una dimensión política multila-
teral-internacional del campo (Haynes, 2001; Haddad, Smith, Espósi-
to, 2003; Anderson, 2007; Contins, 2008; Synan, Yong, Álvarez, 2014).
Dado que la gran cantidad de investigaciones sobre el campo evan-
gélico latinoamericano son realizadas a nivel nacional –tanto desde
la historia como la sociología y antropología–, hoy por hoy, teniendo
en cuenta la influencia del contexto global, donde los fenómenos re-
ligiosos y políticos se hacen más intricados, existe, en consecuencia,
una gran urgencia de investigaciones con una mayor complejización
y profundización en: (i) un análisis de las nuevas dinámicas de inci-
dencia dentro del espacio público global; (ii) los tipos de articulación
de estos sectores con agentes sociopolíticos emergentes en la socie-
dad civil y la política institucional (especialmente transnacional); y
(iii) una comprensión sobre la actuación de grupos políticos formales
dentro del sistema interamericano.
El análisis de las dinámicas transfronterizas del campo evangélico
está en sintonía con los últimos debates en torno a la teoría crítica
del espacio público. Uno de los más conocidos es el de Nancy Fraser,
quien desarrolla la idea de espacios públicos transnacionales (Fraser,
2008). Esta autora parte desde una crítica a Jürgen Habermas y lo que
define como el marco westfaliano de su noción de lo público, es decir,
coextensiva al Estado-nación, enmarcada en un territorio soberano
y delimitada a una comunidad política específica, definida desde un
conjunto de normas esencializadas de pertenencia. Fraser plantea que
lo público requiere ser completamente redefinido desde la “constela-
ción posnacional”, donde las soberanías son dispersas, el sentido de
pertenencia ya no es ni territorial ni nacional, donde las economías

19
son fluidas y sin fronteras, y los medios de comunicación ya no crean
una opinión pública territorial sino transfronteriza. De esta manera,
lo público ya no representa simplemente un territorio habitado por
normas institucionalizadas y sujetos nominados desde fronteras de
identidad homogéneas (como la nacionalidad), sino un espacio de
conflicto y disputa a partir de lo que en un ensayo anterior Fraser de-
nomina como contrapúblicos subalternos (Fraser, 1992), es decir, grupos
que hacen circular contradiscursos e interpretaciones oposicionales
frente a las concepciones hegemónicas (o lo que Habermas entiende
como el “espacio público burgués”). Estos contrapúblicos no poseen
un enmarque ideológico único, sino que pueden oscilar entre posicio-
namientos anarquistas y sectores religiosos fundamentalistas.
Estos mismos replanteos se hacen patentes en la relación entre lo
religioso y lo público. Los fenómenos exógenos de los procesos de
globalización y los endógenos vinculados al constante proceso de plu-
ralización de los cuerpos religiosos conlleva a ubicar las dinámicas
transfronterizas de la movilidad religiosa no solo como una instancia
de transpaso territorial (misional, si se quiere), sino como una nue-
va matriz de construcción identitaria, en la que los procesos de mi-
noritización de las dinámicas religiosas se ubican como expresiones
que compiten con otros agentes hegemónicos por la definición de lo
común (Burity, 2015). Como mencionamos anteriormente, lo reli-
gioso se transforma en un contrapúblico subalterno que compite y
tensiona los significantes circulantes en el espacio público, no necesa-
riamente desprendiéndose de las demarcaciones institucionales, sino
reapropiándose de ellas desde mecanismos de singularización, con el
propósito de ofrecer sentidos de posición contrahegemónica (Burity,
2018) desde diversos frentes ideológicos posibles.
El presente artículo pretende aportar al área de estudio de la inci-
dencia del campo evangélico desde una clave regional y transfronteri-
za. Se analiza concretamente dos tipos de configuración de esta inci-
dencia. La primera es denominada como Redes Políticas Evangélicas

20
(RPE), que en varios aspectos se acerca a una reactualización de la
conocida categoría de religiones públicas de José Casanova.

Las religiones públicas de la sociedad política pudieran ser conceptuali-


zadas como la auto-organización colectiva y la movilización de los gru-
pos religiosos y sus recursos institucionales como grupos de interés que
compiten con otros grupos de interés para situar sus ideales e intereses
materiales en la arena política. (Casanova, 2012, p. 131)

Dichos grupos, según Casanova, adoptan tres formas principales:


movilización de grupos religiosos como movimientos sociales; lobby
institucional a nivel local, estatal y federal; y movilización electoral de
sectores religiosos y la posible organización en torno a partidos políticos.
En este trabajo entendemos las RPE como grupos que compleji-
zan aún más el análisis de Casanova, principalmente por la proyec-
ción transnacional que realizan de los dos primeros puntos recién
mencionados. Más concretamente, nos referimos a organizaciones y
movimientos vinculados al campo evangélico con las siguientes ca-
racterísticas: (i) tienen por objetivo trabajar en agendas focalizadas en
temáticas políticas (relación con gobiernos y partidos, tratamiento de
leyes y políticas públicas, articulación con organizaciones de sociedad
civil, entre otros); (ii) poseen un alcance regional, no solo local o na-
cional; (iii) están compuestas por personas vinculadas al campo evan-
gélico, pero sin una relación orgánica con un tipo de iglesia, deno-
minación o federación particulares; son más bien espacios integrados
por pastores, líderes y profesionales de iglesias evangélicas, de diver-
sas denominaciones e inclusive latitudes, que conforman un espacio
de incidencia con una agenda específica en tanto organización políti-
ca, punto a partir del cual se vinculan con creyentes individuales, igle-
sias y otras organizaciones basadas en la fe (OBF) que se identifiquen
con su propuesta, pero que no necesariamente representan a todo el
espectro evangélico.

21
La segunda configuración son las articulaciones entre RPE. Es de-
cir, el trabajo conjunto que realizan entre diversas redes existentes en
América Latina dentro de instancias regionales y organismos multila-
terales. En este segundo caso nos referimos concretamente a la presen-
cia de estos grupos en las acciones de la sociedad civil (SC) en espacios
como la Organización de Estados Americanos (OEA) y la Comisión
Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) Por ejemplo, la OEA
tiene anualmente su asamblea con miembros de Estado, y en cada oca-
sión mantiene un diálogo con organizaciones de sociedad civil (OSC) y
actores sociales, previo al encuentro. Inicialmente, no existían tales ins-
tancias. Con el tiempo, se crearon mesas temáticas compuestas por or-
ganizaciones que se inscribían previamente al encuentro, en las cuales
se confeccionaban las vocerías de la SC frente a los representantes de
Estado para cada una de las temáticas. A partir de 2017, debido a las di-
ficultades y limitaciones de la práctica de diálogo por mesas temáticas,
se cambió el sistema por uno asambleario, con una configuración muy
similar al encuentro formal anual del organismo, donde participan re-
presentantes de Estado y de las OSC a través de coaliciones, compues-
tas por un mínimo de diez organizaciones miembros que se aglutinan
alrededor de una temática particular.
Para el Diálogo con la Sociedad Civil, son alrededor de 25 coalicio-
nes las que finalmente se escogen para participar en las actividades el
día previo a las sesiones formales de la asamblea anual de la OEA. En
dichos diálogos asiste la mayoría de los representantes del Estado fren-
te al organismo, los cuales escuchan las peticiones de cada una de las
coaliciones en torno a diversas temáticas, que van desde reclamos ter-
ritoriales hasta la construcción de políticas públicas para la comunidad
LGBTIQ o el bloqueo de cualquier proyecto de ley sobre despenaliza-
ción y legalización del aborto en nombre de la “familia natural”.3

3.  Para más información sobre el sistema de coaliciones, ver el documento “El modelo de
coaliciones y su impacto en la incidencia de las organizaciones de la sociedad civil en las cum-
bres y asambleas de la OEA” (Red Latinoamericana por la Democracia, 2018).

22
Desde el comienzo de este sistema de participación, grupos evan-
gélicos han intervenido activamente a través de coaliciones especí-
ficas. Por ejemplo, en la asamblea en Washington de 2018 se inscri-
bieron tres: la Coalición Congreso Evangélico Iberoamericano, la
Coalición Brasileira y la Coalición Educación y Cultura por la De-
mocracia. En 2019, de las diez coaliciones identificadas como “pro-
familia” (de un total de 33), cinco pertenecían al mundo evangélico:
Coalición para el Progreso de la Sociedad, Coalición Construyendo
Nuevos Horizontes, Coalición Congreso Evangélico Iberoamericano,
Coalición Educación y Cultura para la Democracia, y la Coalición
Oportunidades para el Ordenamiento Social. En total, estas últimas
cinco coaliciones aglutinan un conjunto de 94 organizaciones de so-
ciedad civil e iglesias. Detrás de esta configuración, existe un movi-
miento regional llamado Congreso Iberoamericano por la Vida y la
Familia –fundado en México en el año 2017, que nuclea a iglesias y
organizaciones de 17 países, en su mayoría latinoamericanos–, y que
actúa como paraguas de todas estas coaliciones.
En este trabajo nos proponemos analizar estos nuevos cuadrantes
de participación pública de grupos evangélicos neoconservadores,4
especialmente desde los dos formatos descritos anteriormente. Para
ello, estudiaremos una de las principales redes latinoamericanas exis-
tentes, el Congreso Iberoamericano por la Vida y la Familia, instan-
cia en la que veremos cómo una organización nacional adquiere la

4.  Con neoconservadurismo nos referimos a sectores evangélicos que poseen una movili-
zación pública explícita y focalizada en temáticas relacionadas con la denominada “agenda
valórica”, es decir, relacionados con la militancia por temáticas dentro del campo de la edu-
cación sexual, políticas públicas con enfoque de género y salud sexual y reproductiva, y que
poseen un trabajo político intencional a través del lobby, vínculo con partidos y otras orga-
nizaciones sociales, desarrollo de campañas públicas y en medios de comunicación. Como
categoría analítica, se diferencia de grupos conservadores (que responden a la misma agenda
valórica, pero que responden a una dinámica más bien intracomunitaria, sin mucha visibili-
zación pública o política) y de grupos fundamentalistas (que poseen un posicionamiento más
reactivo y desde una dinámica más radicalizada, lo cual dificulta un trabajo político articula-
do con otros sectores y grupos de la sociedad).

23
capacidad de transformarse en una red regional, a partir de la cual
coordina distintas acciones dentro del sistema interamericano. De
aquí nos adentraremos en el estudio de las distintas coaliciones evan-
gélicas dentro del Diálogo con la Sociedad Civil de la OEA, enfocán-
donos en un análisis más bien discursivo de sus intervenciones en las
asambleas de la OEA 2018 y 2019.5 Previamente, nos introduciremos
en dos temáticas que creemos fundamentales como marco general
para esta discusión: los debates sobre el estudio del fenómeno religio-
so desde las relaciones internacionales (RRII) y la necesidad de nuevas
categorizaciones sobre los tipos de relación entre campo religioso/
evangélico y espacio público, con el propósito de delimitar cómo las
vinculaciones cobran distintos matices según el tipo de institucionali-
dad que se analice.

Lo religioso, lo político, lo secular: contextualizar tensiones


en el sistema internacional
La actuación de sectores evangélicos en el sistema interamericano
debe mirarse desde un contexto más amplio de estudio en torno a
la creciente participación de grupos religiosos en el sistema inter-
nacional (SI). Las discusiones entre especialistas dentro de las RRII
no se han enfocado tanto en el lugar o no de lo religioso dentro del
campo de la deliberación multilateral (ya que eso se da por sentado),
sino en cómo se entiende su presencia o abordaje (Toft, Philpott y
Shah, 2011). En este sentido, hay quienes sostienen que en el campo
de las RRII –así como en muchos otros– predomina una tensión entre

5.  Valga indicar que la información sobre el funcionamiento de las coaliciones en el Diálogo
con la Sociedad Civil de la OEA proviene del trabajo de campo realizado por el autor en las
asambleas de 2018, 2019 y 2020, a través de su participación en una de las coaliciones: la Coa-
lición Religiones, Creencias y Espiritualidades en Diálogo con la Sociedad Civil, además de
su rol dentro de la mesa coordinadora de poblaciones de sociedad civil dentro del proyecto
PASCA (Participación de la Sociedad Civil en las Cumbres de las Américas), dirigido por la
Red Latinoamericana por la Democracia (REDLAD).

24
abordajes esencialistas o institucionalistas, en la que lo religioso se defi-
ne más desde la creencia individual o a partir de los entramados ins-
titucionales en los procesos de identificación con fronteras –rituales,
doctrinales, simbólicas– homogéneas (Hurd, 2008), y abordajes ético-
-positivos (Mahmood, 2006) o relacional-dialogales (Wilson, 2012), que
entienden lo religioso más bien como procesos complejos y fluidos de
identificación, con diversos niveles de acción –vida cotidiana, moral,
prácticas políticas, relaciones sociales, entre otras–, que se construyen
a partir de un entramado de diversos tipos de institucionalización (in-
dividual, grupal, político, eclesial, o desde configuraciones más am-
plias, como federaciones religiosas, organizaciones basadas en la fe o
redes políticas de incidencia transnacional), que no necesariamente
se representan o relacionan con los discursos y formas hegemónicas
establecidas por las instituciones oficiales; más bien, emergen como
prácticas alternativas y heterodoxas. Dependiendo del punto de par-
tida de la comprensión y definición de lo religioso serán los tipos de
abordajes con campos como las políticas públicas y los diálogos mul-
tilaterales (Asad, 2003).
Elizabeth S. Hurd sostiene que en el SI –especialmente en las
RRII– predomina un concepto institucional, político y jurídico en tor-
no a lo religioso, en el que las creencias se transforman en objetos
reificados, con fronteras clausuradas y sin relación con otros campos
de lo social. Por ello, el análisis religioso dentro del SI se focaliza más
bien en perspectivas cristiano-céntricas (es decir, no solo sobre grupos
cristianos concretos, sino desde una metodología de análisis que se
construye desde las matrices judeocristianas y su lugar en la narrativa
política moderna, matrices que son aplicadas a todas las expresiones
religiosas por igual), monoteístas (vale decir, desde la mirada institu-
cional de las religiones mayoritarias y no desde las minorías o expre-
siones heterodoxas dentro de dichas religiones) y desde una impronta
político-jurídica (orientada a marcos institucionales y no tanto en la
pluralidad de procesos socioculturales).

25
Esto marca la preeminencia de concepciones que dejan fuera otro
tipo de definiciones de lo religioso (menos institucionales y más so-
cioculturales) y expresiones religiosas específicas en los márgenes de
las estructuras oficiales, y con ello otros modos de comprensión sobre
la vinculación “oficial” entre Estado, religiones y espacio público. De
aquí, afirma Hurd, que esta carencia de visiones más complejizadas
y plurales en los discursos de los organismos oficiales dentro del SI
sobre libertad religiosa, sobre el reconocimiento de las “minorías”, y
el reconocimiento de las tensiones y reapropiaciones que se producen
desde la religiosidad en la vida cotidiana, paradójicamente, produce
una legitimación de miradas y prácticas acotadas que fomentan la
exotización de grupos disidentes o no oficiales, derivando finalmente
en miradas discriminatorias y hasta violentas (Hurd, 2011).
Según Hurd (2004), este tipo de distinciones en el campo de las cien-
cias sociales ha traído tres consecuencias: la necesidad de identificar
métodos y teorías sobre la relación creencia-secularización siempre se
ha inclinado hacia el lado “secular” del binomio, por representar la fa-
ceta “racional”; una tendencia a estudiar lo secular no en relación a lo
religioso, sino tomando este último como un objeto independiente que
suele “infiltrarse” en el campo de la política; que definiciones monoteís-
tas de lo religioso sean tomadas como normativas.
Es por ello que los espacios multilaterales se transforman en ins-
tancias donde emergen tensiones entre las visiones jurídicas e institu-
cionales de lo religioso y la política, y las dinámicas marginales de las
“religiones vividas” (Hurd, 2011; Rabia, Morello, Da Costa y Romero,
2019). En este contexto, nacen distintas narrativas sobre cómo lidiar
con dichas tensiones. Según Hurd, predominan dos: las lógicas separa-
tistas (mediante las cuales se promueve una división tajante entre lo
religioso y lo político, la creencia y la secularización) y las visiones res-
taurativas (que apelan a un “regreso” de lo religioso, pero demarcando
estrictas fronteras entre un campo y otro). Ambas perspectivas, al final,
enfatizan una sobredemarcación de jurisdicciones entre campos.

26
Por todo esto, Hurd advierte sobre los peligros que puede llegar
a tener, en términos políticos, una definición acotada de lo religioso.
Para ella:

La estabilización de la ‘religión’ como objeto de gobernanza legal y


política global no es una salida desde la presunción secularista, como
muchos defensores de la narrativa restaurativa afirman. Más bien, esto
re-instala y energiza divisiones particulares entre religión-religión y reli-
gión-secular dadas por sentado en la organización de principios públicos
de la vida internacional. En lugar de re-acomodar lo religioso, la narra-
tiva restaurativa reforma y cercena binarismos oposicionales específicos
entre religión-secular, haciendo ilegibles un conjunto de formas políticas
y religiosas disidentes. (Hurd, 2017, p. 98)

De aquí que Hurd propone una lógica de la de-secularización, que


permita salirnos de los binomios dominantes, para avanzar hacia una
visión complejizada y situada de la relación entre estos complejos
cambios. Es lo que Hurd denomina como secularización agonística,

donde la ‘libertad’ emerja como un sitio transitorio de resistencia o


modo de insurrección, en lugar de una forma religiosa o política de dis-
ciplina impuesta por las autoridades. En lugar de reforzar algo desde ar-
riba, esto está ligado precisamente a lo que las autoridades definen como
lo otro, lo no ortodoxo, la disidencia.” (Hurd, 2013, p. 235)

En términos operativos, esto significa que la relación religión-po-


lítica-secularización debe ser contextualizada, historizada y politizada
a partir de los diversos modos de comprensión de la relación entre la
política, los distintos modos de vivencia religiosa y su relación con
otros campos de la vida social, así como los innumerables tipos de
articulación entre agentes sociopolíticos y religiosos (Hurd, 2017),
dentro de los cambiantes escenarios históricos en los cuales dichos

27
procesos se adscriben, y comprendiendo que tanto “lo religioso”
como “lo secular” son significantes que circulan y adquieren una
configuración específica a partir de los dispositivos discursivos, con-
textuales, institucionales y culturales que entren en juego. Lo mismo
con la relación entre lo religioso y lo secular (Hurd, 2011), lo cual
permite tensionar formas particulares de la relación religión-religión
y religión-secular. De aquí que el elemento “internacionalista”, in-
tercultural o global del análisis religioso sirve al entrecruzamiento
de múltiples variables, contextos y situaciones, donde la relación re-
ligión-política puede mostrar tendencias, objetivos y consecuencias
muy versátiles, y cuya complejidad y labilidad pueden proyectarse
más allá de un análisis de encuadre exclusivamente nacional o desde
una perspectiva únicamente jurídica o institucional.
El abordaje de Hurd apunta más bien a cómo situar la idea de plu-
ralismo religioso en el ámbito de las RRII, a cuestionar los concep-
tos coloniales y legales de lo religioso que predominan en el SI desde
una mirada occidental y moderna, y a criticar el lugar de los agentes,
dinámicas y discursos hegemónicos dentro de estos escenarios. Aun-
que no es la intención de la autora, en este trabajo creemos que su
propuesta puede servirnos para el análisis de las dinámicas neocon-
servadoras en las RPE por dos motivos. Primero, porque el aumento
y empoderamiento de ciertos discursos neoconservadores dentro del
SI son precisamente resultado de las carencias, reduccionismos y falta
de precisión sobre la comprensión del mundo religioso por parte de
los diversos agentes que componen estos espacios, desde los Estados
hasta las OSC. La hegemonía de narrativas y dinámicas religiosas ins-
titucionales dentro del campo de las RRII ha llevado a no advertir la
creciente incidencia de sectores religiosos disidentes dentro del espec-
tro neoconservador en la región.
En segundo lugar, porque la especificidad identitaria que imprime
la presencia de estas redes se presenta muchas veces como “disiden-
te”, es decir, como instancias marginales y por fuera de las lógicas

28
institucionales religiosas y políticas más relevantes dentro del juego
político internacional. Esto responde en buena medida a lo que Joa-
nildo Burity denomina como procesos de minoritización (Burity, 2016,
2017) o lo que Juan Marco Vaggione (2005) denomina como política
reactiva, en la que una expresión generalmente en los márgenes se
levanta desde una particularidad (minoritaria) para ejercer presión en
términos tanto sociopolíticos como religiosos frente a los discursos,
prácticas y modos de institucionalización hegemónicas, en este caso,
en oposición a los discursos de organizaciones de derechos humanos
dentro del SI. Es decir que la emergencia de estas redes responde, en
alguna medida, a un contexto de cuestionamientos y crisis tanto polí-
ticas como religiosas, como por ejemplo del lugar social de la Iglesia
católica, los movimientos sociales, las OSC y las políticas de derechos
humanos (DDHH) promovidas por algunos Estados de la región.
Por eso es importante la propuesta de Hurd en torno a la relevan-
cia de definir e identificar los tipos de inscripción religión-política des-
de una ubicación precisa, contextualizada e historizada. En este sen-
tido, ¿qué tipo de especificidad promueven las RPE? ¿A qué sentidos
de lo político reaccionan y qué cosmovisiones proponen? ¿Cuáles son
las narrativas y cosmovisiones hegemónicas que disputan? ¿Frente a
quiénes reaccionan y con quiénes se articulan? Estos tipos de vincu-
lación demarcarán fronteras con impacto tanto hacia dentro de las
redes como en el campo donde se mueven.

Sobre la necesidad de nuevas categorizaciones en torno a la


incidencia evangélica
La delimitación, contextualización y ubicación con mayor rigurosi-
dad del lugar de los grupos evangélicos que queremos analizar, nos
lleva a un interrogante fundamental: ¿cuán representativas son estas
redes de “la iglesia evangélica latinoamericana”? En otros términos:
más allá de la identificación con el mundo evangélico como marco

29
identitario, ¿hasta qué punto dichos grupos tienen una conexión con
sectores eclesiales “oficiales”? ¿Pueden ser tomados como instancias
representativas de todo el bloque evangélico regional?, ¿desde dón-
de?, ¿cuál es su objetivo? ¿Presentan dinámicas distintivas si los ubi-
camos en un encuadre más amplio en relación con el trabajo de las
iglesias y las denominaciones, en espacios comunitarios o nacionales?
Los sectores evangélicos que operan dentro del sistema interame-
ricano merecen ser inscritos con mayor especificidad en términos de
su definición política y demarcación institucional, evitando hacer una
comparación superficial o directa con el campo evangélico como un
todo. Tanto las iglesias evangélicas como el propio mundo de la SC
son sumamente complejos y diversos, por lo que sería analíticamente
incorrecto establecer un vínculo estrecho entre estas redes y las igle-
sias evangélicas como conjunto. Aquí creemos fundamental aplicar la
propuesta de Hurd sobre la contextualización e historización de estas
redes, desde su especificidad identitaria y modus operandi, con lo reli-
gioso, lo evangélico y lo político, como grandes significantes que son
reapropiados de formas específicas, creando con ello distintos modos
de diputa de sentido entre religión-política y religión-religión.
Si analizamos los tipos de visibilización y los espacios en que di-
chas redes y movimientos trabajan, podemos ver que las agendas, los
discursos y los proyectos comienzan a acotarse más taxativamente,
inscribiéndose en una polarización más estrecha y representativa de
las tensiones del mundo propiamente político-institucional y de la
misma sociedad civil, según cada caso y configuración institucional.
Por ello, es importante identificar cómo las polarizaciones específi-
cas que se conforman en el mundo de las OSC impulsan polarizacio-
nes específicas (pero muy diversas) en el mundo evangélico como un
todo, pero de manera más particularizada y polarizada cuando habla-
mos de las RPE como institucionalizaciones específicas.
En otros términos, los grupos evangélicos que trabajan en el sis-
tema interamericano deben ser contextualizados, historizados y

30
politizados en un escenario específico, que dé cuenta de las dinámicas
del campo donde operan; a saber, las OSC y el modo en que el SI
aborda lo religioso en sus distintos campos institucionales y de diálo-
go multilateral. Podemos decir, sin caer en reduccionismos, que en el
campo del Diálogo con la Sociedad Civil en la OEA predominan dos
grandes “bandos” (reconocidos extraoficialmente dentro del conjun-
to de coaliciones, en diversas instancias de encuentro que el organis-
mo ha establecido para los espacios en el proceso previo al Diálogo):
uno que se autodenomina conservador (donde se articulan grupos
provida, críticos con las agendas feministas y que apuntan a un discur-
so de defensa de la soberanía nacional, en contra de toda intervención
“externa” que promueva cambios en las políticas públicas nacionales)
y otro vinculado al mundo de los derechos humanos (donde las mino-
rías sociales están representadas). Las RPE y las coaliciones evangéli-
cas se relacionan principalmente con el primero.
Es desde esta especificidad que denominamos a estos grupos re-
des políticas evangélicas (RPE) para tratar de destacar su especifici-
dad en términos discursivos y estratégicos, la cual se asume a partir
de las prácticas y discursos distintivos del mundo de la sociedad civil
en el sistema interamericano, y que a su vez presentan divergencias
y diferencias con otro tipo de identificaciones evangélicas, como
las que pueden ubicarse en el amplio campo de las iglesias locales,
los cuerpos denominacionales o las organizaciones basadas en la fe
(también reconocidas como OBF). Con RPE nos referimos, enton-
ces, a grupos compuestos mayoritariamente por líderes eclesiales,
pastores/as vinculados/as a movimientos evangélicos regionales,
y profesionales del mundo político y el campo de la intervención
social (académicos/as, técnicos/as en el área de políticas públicas,
politólogos/as, abogados/as, economistas, entre otros/as), que
poseen una filiación con la Iglesia evangélica, pero que no necesa-
riamente representan una expresión eclesial y denominacional úni-
ca. Son más bien movimientos y redes paraeclesiales que poseen

31
agendas y recursos propios, y que trabajan con distintos sectores
del mundo evangélico, así como el político y la sociedad civil. Estas
redes tienen objetivos concretamente políticos, tanto a nivel nacio-
nal como regional, transfronterizo e internacional: participar de la
construcción de proyectos de políticas públicas, hacer presencia en
instancias de consulta y deliberación social (a nivel nacional y regio-
nal), realizar lobby político, entre otros.
A continuación, ofrecemos un cuadro que nos permite delimitar
con mayor precisión los distintos tipos de inscripción política que po-
dríamos identificar entre diversos sectores evangélicos, según su pro-
ceso de institucionalización en términos de incidencia política:

Cuadro N° 1. Tipologías de identificación política según


configuración religioso-institucional

Tipos de institucionali- Agentes Tipos de identificación


zación religiosa política
Comunidades religiosas Creyentes en general Fluido, heterogéneo, antagóni-
co, diverso, multipolarizado
Instancias de liderazgo Líderes hacia dentro del Defensa frente al privilegio de
intrarreligioso/eclesial/ cuerpo religioso particular/ otras religiones y manejo de la
denominacional cuerpos pastorales/líderes homogeneidad identitaria
eclesiales
Instancias de articula- Articulación entre líderes Participación en espacios de
ción de liderazgo inter- de diversas expresiones diálogo público, incidencia
religioso/eclesial religiosas dentro de la sociedad civil e
intervención en instancias
protocolares
Organizaciones Basadas Instituciones y organizacio- Instancias de intervención
en la Fe (OBF) nes paraeclesiales focalizada y articulación con la
sociedad civil
Redes Políticas Reli- Grupos de lobby político y Polarización a partir de las
giosas (Redes Política actores dentro del sistema tensiones dentro de sociedad
Evangélicas – RPE) internacional civil, discusiones sobre políticas
públicas e instancias de diálogo
multilateral

Fuente: elaboración propia.

32
Esta delimitación de categorías –que requiere de un desarrollo con
mayor profundidad, el cual no podemos realizar en este momento–
nos sirve para ubicar, tal como propone Hurd, el contexto y la especi-
ficidad en términos de la relación religión-religión y religión-política,
en este caso vinculado a las dinámicas particulares del sistema intera-
mericano y las RPE. Esto nos permite enfatizar en el factor de que di-
chas redes no responden necesariamente al imaginario completo del
mundo evangélico, ya que este es sumamente diverso y, aunque en
algunos temas predomina un mayor consenso (sobre todo en lo refe-
rente a la agenda valórica), es imposible hacer una correlación entre
las agendas políticas de estas redes y los grupos evangélicos como un
todo. Es otros términos, analizar las características de las RPE impli-
ca identificar y desarrollar elementos distintivos de dichas redes, mu-
chos de los cuales tienen relación con el espectro evangélico regional,
pero que son reapropiados y utilizados de forma específica, dentro
del campo del SI.
Finalmente, este esquema permite identificar y delimitar con
mayor precisión las agendas, los actores, los objetivos y las articula-
ciones de estas redes, ubicándolas en un contexto y proceso institu-
cional delimitados. De esta manera, podemos encontrar que dichas
redes no solo tienen un lugar fundamental en la negociación y ten-
sión de las fronteras de las OSC en el campo del sistema interame-
ricano, sino también provocan instancias de litigio hermenéutico y
político en relación con el campo religioso que representan, el cual
no es homogéneo y demarca resistencias respecto de muchas de sus
agendas. Por ello, más allá del innegable vínculo entre estas redes y
la cosmovisión evangélica regional, es también prudente establecer
ciertas distancias entre los objetivos de cada campo, para no caer en
generalizaciones.

33
Redes Políticas Evangélicas (RPE) en el sistema interameri-
cano: el caso del Congreso Iberoamericano por la Vida y la
Familia
Una de las características que se destacan de la especificidad de estas
RPE es la relación entre las configuraciones más domésticas, locales
y propiamente identitarias de expresiones evangélicas, y su mutación
hacia procesos más complejos, organizados y con un alcance más ex-
tenso, como es el regional. Es decir, el desarrollo y la eficacia demo-
gráfica que alcanzan estas redes tiene directa relación con la extensión
que obtuvieron de la relación con iglesias evangélicas en distintos paí-
ses, lo cual les ha otorgado no solo recursos humanos, financieros e
institucionales, sino un gran capital simbólico, los cuales han podido
proyectar desde una matriz más nacional hacia una regional o global.
Esto lo podemos ver en las características que configuran el sur-
gimiento del Congreso Iberoamericano por la Vida y la Familia, así
como su actuación en el sistema de coaliciones de la OEA. Este con-
greso se compone de una red de iglesias y organizaciones de la cual
nacen todas las coaliciones evangélicas que participan en el Diálogo
con la Sociedad Civil de este organismo. El andamiaje o imaginario
evangélico se expresa desde el nacimiento de este espacio. En su ori-
gen, vemos la centralidad de la figura de Aarón Lara Sánchez, pastor
y periodista, personaje mediático reconocido en México por ser uno
de los fundadores de la Asociación Cristiana de Periodismo (ACP) y
la Confraternidad Evangélica de México (CONEMEX). Desde fines
de la década de 1990 se hizo conocido por ser el autor de una serie de
libros y estudios sobre temas de género, familia y sexualidad. En 2011
fundó Red Soluciones, una organización orientada a la consultoría
para la apertura de organizaciones civiles, especialmente desde igle-
sias locales. Desde su nacimiento, ayudó a la apertura de 120 organi-
zaciones civiles en todo México. En 2016, Sánchez fundó también Ini-
ciativa Ciudadana por la Vida y la Familia, la cual cobra visibilidad en
México cuando el expresidente Peña Nieto intentó poner en discusión

34
una ley de matrimonio igualitario. Esta organización, gracias a su ex-
tensa red de organizaciones aliadas e iglesias, logró juntar más de 360
mil firmas con el propósito de frenar dicho proyecto.
Siguiendo el impacto social que produjo dicho acontecimiento, y
teniendo en cuenta situaciones similares que comenzaron a vivirse
en otros países de la región, dicha organización tomó la iniciativa
para desarrollar un congreso en México en el año 2017, para el cual
se convocó a representantes de 17 países (Argentina, Bolivia, Chi-
le, Colombia, Costa Rica, Ecuador, España, Guatemala, Honduras,
México, Nicaragua, Panamá, Paraguay, Perú, Puerto Rico, Repú-
blica Dominicana y Uruguay), con el propósito de conformar un
frente entre iglesias y organizaciones dentro del espectro evangéli-
co, para posicionarse frente a lo que identificaban como la escalada
de la “ideología de género” en la región. En este evento se firmó
la “Declaración de Santa Fe”, cuyas temáticas centrales fueron: la
promoción de la familia como núcleo de la sociedad, una crítica a
las políticas públicas sobre género y la defensa de la vida desde la
concepción, argumento desde el cual se oponen a cualquier tipo de
legislación a favor del aborto.
A partir de este evento, la organización Iniciativa se bifurca entre
un cuerpo con énfasis local y otro regional: por un lado, nace el Con-
greso Iberoamericano por la Vida y la Familia como una red interna-
cional, mientras el anclaje en México queda bajo Iniciativa Ciudada-
na, una ONG que actúa en todo el país a través de la convocatoria de
movilizaciones en distintas ciudades, la articulación con organizacio-
nes civiles para el tratamiento de agendas comunes y el desarrollo de
un fuerte lobby político entre diputados, senadores, gobernadores y
ministros de distintas área
En este Congreso y su declaración final, no solo se estipulan pun-
tos de partida doctrinales, morales o ideológicos, sino que se estab-
lece una clara agenda política, a través de cinco puntos: se hace un
llamado a la construcción de:

35
1.- Mecanismos de coordinación con otras entidades iberoamericanas
que comparten objetivos. 2.- Puesta en marcha de un Centro de Estu-
dios. 3.- Preparación de coaliciones de ONGs para lograr presencia y voz
en la próxima asamblea de la OEA, y en otras organizaciones internacio-
nales. 4.- El lanzamiento de un medio evangélico para Latinoamérica en
formato digital, y 5.- La conformación de una Fraternidad de Parlamen-
tarios Evangélicos (Declaración de Santa Fe, 17 de febrero, 2017)

En el año 2018 se llevó a cabo un segundo congreso en México, en


febrero de 2019 otro en Panamá y se desarrolló un último encuentro
durante marzo de 2020 en Perú. El anclaje local no solo queda en ma-
nos de Iniciativa Ciudadana, sino también de Concertación AC, Cen-
tro de Cultura y Orientación Civil, el cual actúa bajo la configuración
de un think tank a través del cual se coordinan instancias de comuni-
cación política y un programa de formación para jóvenes, llamado
BECARIOS. Este Congreso –el cual trabaja con otras redes regionales
como la Alianza Evangélica Latina (AEL), “Con Mis Hijos no te Me-
tas”, Parlamento y Fe, entre otros–, logra incidir en el Diálogo de la
Sociedad Civil mediante la conformación de estas cinco coaliciones,
las cuales se articulan con otras coaliciones aliadas en agendas y recla-
mos comunes.
En resumen, el nacimiento y la performance del Congreso en el
marco de la OEA nos permite ver varios de los elementos fundamen-
tales sobre la construcción de nuevas lógicas de incidencia: (i) el de-
sarrollo de una red de alcance regional apoyada en el establecimiento
de una plataforma nacional, desde representaciones eclesiales y de
organizaciones basadas en la fe; (ii) un proceso de articulación con
diversos actores de la sociedad civil para la construcción de instancias
de incidencia, presión, lobby y disputa de sentido discursivo; (iii) la evi-
dencia de polarizaciones que caracterizan a la sociedad civil latinoa-
mericana; (iv) la construcción de una estrategia política regional con
el objetivo de lograr instancias de incidencia a nivel local y nacional.

36
RPE y el sistema de coaliciones en el sistema interamericano
Como hemos indicado, la presencia evangélica en el sistema intera-
mericano se hizo más notoria a partir de la participación del Diálogo
de la Sociedad Civil en la OEA a través de la conformación de diver-
sas coaliciones. Cabe indicar que más allá de que existen coaliciones
explícitamente evangélicas, hay otras que se inscriben con nombres
genéricos, sin presentar una identificación religiosa y a partir de orga-
nizaciones sociales independientes, pero que poseen una vinculación
con diversos grupos evangélicos o católicos. En este apartado nos
concentraremos en identificar algunos de los puntos más importantes
en los discursos realizados por estas coaliciones en las instancias de
Diálogo con la Sociedad Civil en la 48a y 49a asamblea de la OEA.64
La centralidad sobre los temas alrededor de la llamada “agenda va-
lórica” constituye la columna vertebral de la demanda de estas coali-
ciones. El cuestionamiento a legislaciones sobre la diversidad sexual,
la negación del derecho al aborto, la crítica a los movimientos femi-
nistas y LGBTIQ, todo esto basado en la defensa de la “familia natu-
ral” y de los “valores fundamentales”. La particularidad que se des-
taca de los discursos sobre estos temas es la vinculación que se hace
entre esta agenda valórica y el desarrollo sociopolítico y económico
de los países. Es decir, la defensa de los valores tradicionales, según
estas coaliciones, tiene directa relación con el desarrollo socioeconó-
mico, la estabilidad social y la construcción de un ambiente democrá-
tico. Su negación o la promoción de otros temas y agendas contra-
puestas significan poner en peligro la estabilidad en cada uno de esos
ámbitos. En varios casos, además, dicha perspectiva se cimenta sobre
el supuesto fundamento científico que poseen las aseveraciones a los
valores y principios esgrimidos.

6.  Las fuentes de referencia, además de la presencia del autor en ambas actividades como ob-
servador, fueron extraídas del sitio oficial de la OEA (2018, 2019). Además, se utilizó el canal
de YouTube del Congreso Iberoamericano por la Vida y la Familia, disponible en: https://
www.youtube.com/channel/UCMqPV2uig2qOVzF-itfPWeA

37
[…] para hablar de un cáncer establecido en tantas naciones americanas
que ha frenado el desarrollo y la justicia social de las mismas. Es el moti-
vo de la paralización de mi nación y muchas naciones de las Américas: la
corrupción. Sin embargo, tenemos que alertar, que hay dos “Cánceres”
que comienzan a tomar proporciones mayores y que van a traer una
crisis mucho mayor, no sólo a mi nación pero las demás: el cáncer de la
devaluación de la vida y la familia. Son dos bases que afectarán estructu-
ralmente a las naciones […] Estamos a favor del desarrollo de todas las
naciones para que tengamos justicia social, pero no creemos en el de-
sarrollo sin la valorización del derecho a la vida ya la familia. (Coalición
Brasileira)7
No hay progreso con familias desintegradas y con niños a quienes se les
hace dudar de su identidad. La cohesión es un valor de futuro para nues-
tro continente. (Coalición Construyendo Nuevos Horizontes)8

Un discurso muy recurrente en varias de las coaliciones –no solo


de las evangélicas– es la defensa de la soberanía nacional y el cues-
tionamiento hacia cualquiera “intromisión externa”, incluyendo a
la propia OEA y el CIDH. Este recurso se eleva con el propósito de
evitar y cuestionar cualquier denuncia por violaciones de derechos
humanos en algún país o la promoción de proyectos de ley que
vulneren o pongan en tensión las fronteras constitucionales de una
nación. Este mismo mecanismo es el que están utilizando coalicio-
nes evangélicas para criticar las posibles “intromisiones ideológi-
cas” en y desde los Estados, especialmente en el campo educativo
y valórico.

7.  Ver en: “CLAUDIO CARAIOLA, BRASIL – MENSAJE ANTE LA 48 ASAMBLEA DE LA


OEA”. Consultado en https://www.youtube.com/watch?v=HA9ORKKhbYE&list=PLBn-
-zhNb6ki1xbBLePj3ZxV0_pRslOPRb, 15 de enero de 2020
8.  Ver en: “VOCEROS OEA 2019 – Silvana Vidal”. Consultado en https://www.youtube.
com/watch?v=fj3iX3o43nk&t=11s, 15 de enero de 2020

38
En esta línea, el Estado debe asegurar los recursos básicos para el desar-
rollo integral de las personas, pero debe renunciar a una actitud de tute-
laje integral; el Estado no debe tener ideología y no debe imponer nin-
guna agenda concreta a la sociedad. Esto es especialmente importante
en un área fundamental para el desarrollo de la sociedad como es la edu-
cación: el estado debe reconocer el área de competencia de los padres
y no competir con ellos, sino respetar su área de soberanía y colaborar
con ellos en la transmisión e integración de valores solidarios […] Prin-
cipal factor de descomposición social en nuestro continente: el descolo-
camiento de la familia natural. Los problemas sociales se solucionan con
‘familias naturales fuertes’. (Coalición para el Progreso de la Sociedad)9

Esto último también se vincula con una fuerte delimitación con


respecto a otros grupos y sus demandas, más concretamente pre-
sentando las propuestas de OSC relacionadas con DDHH como una
amenaza a los fundamentos de la convivencia democrática (Panotto
2019a). Por esta razón, otro elemento muy fuerte en estos grupos es
lo que podríamos denominar como un llamado a la desideologiza-
ción de la política. Aunque no utilizan con tanta frecuencia el concep-
to de “ideología de género”, realizan aseveraciones desde los mismos
objetivos retóricos y políticos que dicha expresión representa. Es de-
cir, deslegitiman la participación o demanda de otros sectores desde
la denuncia de “ideoligización” del reclamo, planteando su propuesta
desde un estatus de objetividad otorgado por la ciencia, el sentido co-
mún, la razón o la extensión de procesos históricos (Panotto, 2019b).
También se pueden ver reclamos sobre supuestas campañas conspira-
tivas e internacionales como intentos de intervención o incidencia en
planos globales.

9.  Ver en: “Congreso Iberoamericano, Milagros Jáuregui Perú”. Consultado en https://
www.youtube.com/watch?v=uRJs6Iv8aPo&list=PLBn-zhNb6ki3pbwczGX_iV-T6Kq_
B7YPS&index=5, 15 de enero de 2020

39
Pedimos por ejemplo, que esta representación internacional se abstenga
de atentar contra el idioma español al incluir un lenguaje que preten-
de ser inclusivo yendo en contra de lo dispuesto por la RAE. (Coalición
Construyendo Nuevos Horizontes)10

A pesar de esta denuncia sobre la “ideologización” de ciertos


discursos, es sugestivo ver cómo se evidencia en estos sectores una
reapropiación de discursos dentro de la agenda de los derechos hu-
manos. Hay una apelación al sentido de libertad, igualdad, libertad
de expresión, laicidad, independencia, entre otros, pero con un giro
retórico que se contrapone al trasfondo político que apelan y se rela-
ciona más directamente con las propuestas particulares en torno a la
agenda valórica.

Estas medidas permitirán generar una cultura de respeto e igualdad


frente a las libertades civiles como el derecho de expresión, de asocia-
ción, de libertad religiosa, de pensamiento, así como una mayor calidad
educativa científica y ajena a ideologías subjetivas, como derecho huma-
no de niñas, niños y adolescentes de la región. (Coalición Educación y
Cultura para la Democracia)11
En este sentido, la coalición que representamos propugna valores que
contrastan con la tradición controladora que ha creado dependencias in-
deseables y ha lastrado el avance de nuestras naciones; propugnamos así
valores de progreso, que dignifican a la persona, promueven su autono-
mía, sus libertades, su responsabilidad y su conciencia social. (Coalición
Oportunidades para el Ordenamiento Social Contemporáneo)12

10.  Ver en: “VOCEROS EN LA OEA: Silvana vidal”. Consultado en https://www.youtube.


com/watch?v=fj3iX3o43nk, 15 de enero de 2020
11.  Ver en: “GILBERTO ROCHA, MEXICO - MENSAJE ANTE LA 48 ASAMBLEA DE LA
OEA”. Consultado en https://www.youtube.com/watch?v=Jn8ohiWQV78&list=PLBn-
-zhNb6ki1xbBLePj3ZxV0_pRslOPRb&index=2, 15 de enero de 2020
12.  Ver en: “VOCEROS EN LA OEA: Clara Vega de Rocha”. Consultado en https://www.
youtube.com/watch?v=Wf2sjlZ2Wuk&t=32s, 15 de enero de 2020

40
Desde la independencia, el objetivo ha sido crear una educación laica y
científica, liberada de las ataduras dogmáticas. (Coalición Educación y
Cultura para la Democracia)13

Uno de los elementos más importantes a destacar sobre el discur-


so de estas coaliciones es cómo lo religioso (y lo evangélico en par-
ticular) ya no se presenta solo como la expresión de una identidad
específica, sino como el establecimiento de elementos que sirven a
la construcción de un proyecto político, con repercusión para toda la
sociedad. Se asume la identidad religiosa ya no como una disidencia,
sino como un agente fundamental para el desarrollo social y con un
proyecto político específico. Aquí podemos ver dos tipos de estrate-
gia: una primera es presentar explícitamente el nombre de Dios, la
iglesia, lo religioso, como un marco fundacional. Por ejemplo, lo ve-
mos con la siguiente afirmación de la Coalición Brasileira en 2018:
“Estamos a favor de la ideología de género: Dios creó al hombre y a la
mujer. Esto no es religión, esto es familia”.14
Una segunda responde a lo que Juan Marcos Vaggione denomina
como secularismo estratégico (Vaggione, 2005), es decir, la apelación a
una retórica que se presenta no religiosa, como vía estratégica para
transmitir un conjunto de valores religiosos particulares sin que sean
cuestionados de sesgo. Es decir, se pretende universalizar un “valor”
asociado al campo evangélico, a partir de una retórica política que le
otorga una aplicación universal. Uno de los casos más emblemáticos
son las intervenciones de la Coalición Congreso Evangélico Iberoa-
mericano. En la asamblea de 2018 interpelaron a los y las presentes a
la necesidad de buscar un “enfoque multidimensional”, especialmente

13.  Ver en: “VOCEROS EN LA OEA: Patricia Cortés”. Consultado en https://www.youtu-


be.com/watch?v=qgW7Kp9WpIk&t=12s, 15 de enero de 2020
14.  Ver en: “CLAUDIO CARAIOLA, BRASIL – MENSAJE ANTE LA 48 ASAMBLEA DE LA
OEA”. Consultado en https://www.youtube.com/watch?v=HA9ORKKhbYE&list=PLBn-
-zhNb6ki1xbBLePj3ZxV0_pRslOPRb, 15 de enero de 2020

41
a la cooperación policial en temas técnicos, científicos y educativos,
“mediante la Red Interamericana de Desarrollo y Profesionalización
Policial, y la implementación del Acuerdo Marco de Cooperación In-
terinstitucional suscrito entre la Secretaria general de la OEA y la Co-
munidad de Policías de América (AMERIPOL)” (Coalición Congreso
Evangélico Iberoamericano [en adelante CCEI])15. Esto serviría para
“resolver problemáticas que también se relacionan con los derechos
humanos más fundamentales”, como la proliferación en el continente
de lo que llaman “paraísos legales para la subrogación materna o ren-
ta de vientres”. Ello apunta, según esta Coalición, a desarmar “el trá-
fico de vientres, a través de la sinergia real y la participación directa e
integrada en los cuerpos de inteligencia y cooperación internacional,
de civiles expertos en la materia, activistas de derechos humanos”.
16
Esta presentación, que tenía por objetivo dar un enfoque político
multilateral sobre una problemática particular, en el fondo pretende
más bien destacar la relación entre políticas de despenalización del
aborto y el tráfico de bebes.
La intervención en la asamblea de 2019 de esta misma Coalición
tuvo una posición mucho más directa en términos de la dimensión
política de la identidad evangélica, pero dejando de forma explícita el
uso estratégico de cierto lenguaje de derecho liberal. Afirman:

Los evangélicos latinoamericanos somos conscientes de nuestro destaca-


do crecimiento numérico en los últimos años. Este avance ha supuesto
cambios sociales en nuestros países y algunos analistas indican que nues-
tra participación se ha convertido en un elemento crucial en recientes
cambios políticos muy relevantes. (CCEI) 17

15.  Ver en: “VOCEROS EN LA OEA: Marco A. Camargo”. Consultado en https://www.


youtube.com/watch?v=NJihdhqKA1I&t=2s, 15 de enero de 2020
16.  Ver link anterior
17. Ibíd.

42
De aquí, plantean tener “un mensaje propio que queremos ofrecer
como un instrumento de transformación, progreso social y económi-
co y profundización democrática”, a partir de los siguientes puntos18:
1. La reafirmación de los derechos de la persona y de las respon-
sabilidades del individuo, que “como evangélicos queremos, desde
nuestros códigos éticos, colaborar en su consolidación y desarrollo”.
2. El respeto a las minorías y el derecho a la disidencia. “Los evan-
gélicos sabemos lo que es sufrir discriminación y queremos que nues-
tra experiencia sirva para generar cambios en las mentalidades asen-
tando criterios de tolerancia y respeto a la disidencia”.
3. El control del ejercicio del poder. “El modelo de los checks and
balances surgió de una mentalidad protestante que entiende que todo
poder humano debe ser controlado. Como evangélicos queremos
transmitir esta perspectiva con el objetivo de mejorar la salud demo-
crática de nuestros países”.
4. La libertad de conciencia y de expresión. “La primera de las li-
bertades es la de conciencia, y como evangélicos tenemos detrás una
larga historia de lucha por su conquista.”
5. Un concepto claro de separación entre iglesias y estado. “Esto es
definitivamente compatible con la aportación de valores religiosos al
libre debate de ideas en el diálogo político.”
6. “La defensa de la vida humana desde su inicio hasta su fin, y de
la familia como elemento fundamental de una sociedad libre; ambos
son valores transversales básicos que deben estar por encima de deba-
tes ideológicos.”
En resumen, esta última intervención pone de manifiesto dos ele-
mentos centrales para nuestro análisis. Primero, la profundización
en los mecanismos de incidencia e intervención de las RPE a través
del uso estratégico de la retórica política no solo como un mecanis-
mo de intervención, sino también de articulación con otros actores y

18.  Ver link anterior

43
coaliciones. Segundo, se evidencia una exposición de la especificidad
evangélica, no solo ya como un agente de defensa moral (es decir,
como interviniente exclusivamente en temas de agenda valórica),
sino como un actor que puede aportar a cambios sociales más pro-
fundos y amplios, relacionados con la democracia, las políticas públi-
cas, la libertad de expresión, entre otras. Esto se basa, como vimos, en
la exaltación de su crecimiento demográfico. El tema valórico, por su
parte, se utiliza como un marco cosmovisional o como una bandera
de incidencia, cuyo impacto político alcanza otras áreas de la sociedad
y la política.

Conclusiones
El análisis del accionar de las RPE en el sistema interamericano da
cuenta de las propias transformaciones que se están gestando en el SI
con respecto al lugar de las religiones. Pero en este caso, no podemos
hablar de “religiones” en términos genéricos. Tal como se propuso,
hay que comenzar a delimitar qué tipo de actores son los que se mo-
vilizan en estas instancias, qué clase de vínculos poseen con las comu-
nidades religiosas que dicen representar y de qué manera se apropian
y resignifican políticamente los marcos de sentido que dicen encarnar.
Complejizar estas delimitaciones institucionales y cosmovisionales
servirá para ahondar en lo que Elizabeth Sharkman Hurd propone en
términos de politización e historización de los múltiples vínculos en-
tre religión-política-secularización, que se juegan dentro de las RRII,
con el objetivo de no caer en lecturas reduccionistas o polarizadas.
Dar cuenta de estos escenarios significa reconocer el creciente lugar
de lo religioso en el escenario de la incidencia regional e internacio-
nal, pero desde diversas facetas y expresiones que pueda tomar.
El estudio de las RPE esbozadas en este escrito nos permite ver
una mutación de los procesos de minoritización del campo evan-
gélico latinoamericano, desde la configuración de redes de alcance

44
regional, que no pierden las caracterizaciones típicas del imaginario y
performance evangélica, pero que construyen nuevos tipos de articula-
ción con las OSC, localizando nuevas disputas de sentido religión-po-
lítica y religión-religión a través de los siguientes elementos: lo evan-
gélico se presenta ya no únicamente como un marco reactivo, sino
más bien propositivo en términos de desarrollo de prácticas sociales
y resignificación de sentidos políticos; lo evangélico sirve a la reapro-
piación de significantes vinculados a la libertad de expresión, los dere-
chos humanos y la democracia, a partir de las múltiples tensiones que
se gestan en el campo de las OSC dentro del SI.
Por último, esto nos lleva a entender la incidencia neoconservado-
ra de las RPE desde una perspectiva más extensa, es decir, desde un
conjunto delimitado de especificidades políticas, pero a su vez plan-
teando un proyecto político que abarca todas las áreas de la sociedad.
De aquí la necesidad de entender la presencia de estos grupos no solo
desde la lógica de una “política de shock” o la “politización reactiva” a
partir de la promoción de una agenda valórica, sino desde la inscrip-
ción de su particularidad –identitaria y discursiva– en un escenario
mucho más extenso, donde su figura representa (y se autodefine), en
alguna medida, la respuesta frente a ciertos hiatos que se han abier-
to en los replanteamientos hacia actores sociales, discursos políticos,
agendas de políticas públicas y religiosas tradicionales, especialmente
en el campo de las políticas regionales.

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48
Opus Dei, el Fundamentalismo
También Puede Ser Católico
Pilar Cifuentes1
Rocío Cordones2
Ezequiel Oria3

El plano de la santidad que nos pide el Señor


está determinado por estos tres puntos:
la santa intransigencia, la santa coacción
y la santa desvergüenza.
José María Escrivá de Balaguer, Camino, 387

Introducción
El presente artículo propone un análisis sobre la naturaleza del Opus
Dei, haciendo hincapié en las prácticas religiosas de sus miembros,
como así también en los postulados de su fundador, Josemaría Escrivá
de Balaguer. Es una aproximación que intenta abrir un camino para se-
guir investigando esta organización compleja y polémica. En este caso
focalizaremos en los aspectos relacionados con la sociología de la reli-
gión y no pondremos nuestra atención sobre sus actividades más polé-
micas relativas a los manejos económicos y financieros (Non) Sanctos.

1.  Pilar Cifuentes - Universidad de Buenos Aires – pili-92@hotmail.com


2.  Rocío Cordones - Universidad de Buenos Aires – cordonesrociojimena@gmail.com
3.  Ezequiel Oria - Universidad de Buenos Aires - ezeoria@gmail.com

49
El Opus Dei es una -la única- Prelatura Personal4 de la Iglesia Ca-
tólica. Surge -podríamos decir- como respuesta a la modernidad o a
la secularización moderna. Realiza una interpretación literal de la Bi-
blia, así como también una idolatrización total al fundador de la Obra
a quien llaman directamente “Padre”. Tiene como fin -ellos afirman-
promover entre los laicos, valores que han sido históricamente limita-
dos a los religiosos, principalmente el valor de la santidad, el camino a
la santificación de todos los bautizados.
Teniendo en cuenta los valores sagrados promovidos para los lai-
cos, su carácter integrista y totalizante -así como también otras ca-
racterísticas que fuimos observando a lo largo de la investigación y
que desarrollaremos a continuación en este artículo- nos permiten
afirmar que es posible considerar al Opus Dei como un nuevo tipo
de fundamentalismo integrista totalitario, un fundamentalismo Católi-
co que trasciende los límites de la Iglesia, penetrando la totalidad de
los ámbitos del pensamiento y la vida de sus fieles para imponerles
su dogma.
Por otra parte si consideramos la etimología de la palabra secta,
que tiene dos raíces, una proviene del latín sequi -seguir- que signifi-
caría seguir a un líder religioso o político y creer en su mensaje, y la
otra raíz sería de secare o secedere -cortar, separar-, y en este caso sería
cortarse o separarse de un grupo religioso y cerrarse sobre sí mismo;
podemos ver que ciertas características del Opus también se asimilan
a las de una secta o grupo sectario. (García Hernando, 1990: 28)
Para lograr una mejor comprensión del Opus Dei, de su identidad
y su sentido, resulta necesario hacer referencia tanto al contexto de su

4.  Las prelaturas personales -auspiciadas por el Concilio Vaticano II, como se ha dicho- son
entidades al frente de las cuales hay un Pastor (un prelado, que puede ser obispo, que es nom-
brado por el Papa y que gobierna la prelatura con potestad de régimen o jurisdicción); junto
al prelado hay un presbiterio, compuesto de sacerdotes seculares, y los fieles laicos, hombres
y mujeres. Es una especie de Diócesis extraterritorial que evita el control de los Obispos
ajenos a la obra.

50
surgimiento en España, como a su posterior implicancia sociopolítica
en la Iglesia y en el mundo.
Partimos de la base de considerar que dentro del judeo-cristianis-
mo podemos distinguir diferentes proyectos socio-político-religiosos
que tuvieron un desarrollo concreto en la historia del Antiguo Israel,
a partir de la experiencia del Éxodo y además tienen su correlato en
la Biblia como escritura sagrada. A la vez estos diferentes proyectos
continuaron luego durante el desarrollo de la Iglesia Católica y se los
puede incluso rastrear con cierta vigencia hasta nuestros días.
Los proyectos que podemos distinguir tipológicamente son tres,
siendo dos de ellos proyectos excluyentes o de dominación, el Proyecto
Monárquico y el Proyecto Sacerdotal, mientras que el tercero se trata de
un proyecto inclusivo o de liberación, el Proyecto Profético-Apocalípti-
co. Esta es una tipificación sociológica de los proyectos principales, los
que en algún momento fueron hegemónicos o lucharon por la hegemo-
nía. En esta ocasión nos interesa centrarnos en el Proyecto Sacerdotal,
ya que en este los valores estrictamente religiosos son preponderantes,
de manera similar a lo que ocurre con la praxis del Opus Dei.
Este proyecto a su vez utiliza un determinado sistema de valores
para regir sus prácticas cotidianas, por lo que nos proponemos analizar-
lo y compararlo con la praxis del Opus. Pondremos especial acento en
lo que respecta a temas como, el matrimonio, la sexualidad y el trabajo.
Para realizar nuestro objetivo de acercamiento a esta organización
hemos consultado diferentes fuentes, desde libros de Escrivá, la Biblia
y otros libros de y sobre la Obra. Además utilizamos las técnicas de
entrevistas en profundidad semiestructuradas, relatos de vida a miem-
bros Numerarios, Supernumerarios y ex-miembros, observación par-
ticipante en Misas, y visitas a Centros del Opus Dei que funcionan
como vivienda para miembros Numerarios de la organización.
* Parte de este artículo fue publicado en la Revista de Filosofía y
Ciencias Sociales Diaporías n°14. Fue coordinado y realizado por el
Licenciado y Profesor de Sociología de la Religión de la Universidad

51
de Buenos Aires, Ezequiel Oria junto a las entonces estudiantes de So-
ciología y ahora Licenciadas Pilar Cifuentes y Rocío Cordones. For-
mó parte del proyecto de investigación “Las dos iglesias” dirigido por
el Teólogo y Filósofo Rubén Dri.

Epistemología
Desde la filosofía de la praxis, partimos de una epistemología basada
en la relación dialéctica entre práctica y conciencia, siendo que el su-
jeto es praxis en el sentido que es la unidad que logra superar o al
menos condensa la contradicción entre su manera de percibir el mun-
do que lo rodea y su forma de accionar sobre él. Entonces el sujeto
conforma una totalidad, ya que, en palabras de Gramsci, “no se pue-
de separar al homo faber del homo sapiens” (Gramsci, 1984: 382). De
la misma manera que al analizar las prácticas de los sujetos, cuando
hablamos de proyectos bíblicos nos referimos a la formulación teórica
de un determinado plan social, como el momento consciente de una
práctica económica, política y religiosa concreta.
A su vez incorporamos elementos del interaccionismo simbólico, en-
tendiendo a la vida social como un proceso en el cual el sujeto actúa
en su contexto a partir de una significación que es construida en la in-
teracción con sus pares. El sujeto reflexiona continuamente acerca de
la forma en la que debería actuar en situaciones particulares en base
a cómo su comportamiento podría ser visto por otros, en un proceso
continuo de interacción social e interpretación: dado que el significa-
do es un producto social, es importante tener en cuenta su punto de
vista subjetivo para lograr comprender el entorno.
Como estrategia de investigación utilizamos una metodología
cualitativa que nos permitió acercarnos a los individuos en particu-
lar con una mayor profundidad. Basados en un enfoque interpreta-
tivo y naturalista del mundo, nos propusimos analizar a los sujetos
en sus escenarios cotidianos, intentando entender o interpretar los

52
fenómenos en función de los significados que ellos mismos les asig-
nan. Buscamos conocer, analizar e interpretar lo que sienten, piensan
y viven, y de qué manera estas prácticas son condicionadas por su
pertenencia al Opus Dei, por esto es pertinente recuperar las perspec-
tivas de los actores y comprenderlas dentro de su contexto para poder
visualizar la escena completa de su vida. El método biográfico focali-
za en la reconstrucción del punto de vista del actor, en los significados
construidos socialmente y en las relaciones microsociales de las que
forma parte. Se centra en el estudio de las opiniones, creencias y valo-
res de los sujetos, así como sus prácticas concretas.
En cuanto al análisis, para responder a los objetivos de investigación
recurrimos al análisis de entrevistas biográficas, para comprender a ni-
veles más profundos las ideas y las prácticas de los entrevistados, sus
percepciones sobre el Opus Dei junto con sus vivencias personales res-
pecto del mismo. Para esto hemos indagado sobre la praxis cotidiana
de los entrevistados respecto a diferentes ejes. Entrevistamos a miem-
bros y ex miembros supernumerarios, como así también a miembros
numerarios que desempeñan roles destacados dentro de la comunidad:
un director de escuela, una directora de residencia femenina, un direc-
tor de residencia masculina y un rector universitario entre otros.
Asimismo consideramos importante ir más allá de las historias in-
dividuales, y ver de qué manera es posible reconstruir, a partir de las
narraciones individuales de los entrevistados -ubicadas en una red de
interacciones sociales- el panorama general del mundo que lo rodea.

¿Qué es el Opus Dei? -según el Opus Dei-


En palabras de Escrivá,

(…) es una movilización de cristianos que supieran sacrificarse gustosos


por los demás, que hicieran divinos los caminos humanos de la Tier-
ra, todos, santificando cualquier trabajo noble, cualquier trabajo limpio,

53
cualquier quehacer terreno… es un instrumento para servir a la Iglesia,
para servir a las almas, para contribuir a la paz y a la felicidad de las
criaturas todas, al bienestar del mundo, también material (…) (Escrivá,
1975, recuperado de http://opusdei.org/es-ar/article/llamados-a-ser-
-santos/).

Es decir que es una organización de laicos que profesan la fe ca-


tólica y que además buscan santificar sus vidas así como también el
mundo que los rodea, a través de la santificación de todas sus accio-
nes, su trabajo y su vida cotidiana. Posee una organización jerárquica,
al igual que la Iglesia Católica, dependiente de un Prelado con sede
en Roma, definido por el Papa. Este Prelado suele ser un Obispo,
que gobierna con potestad de jurisdicción, y junto a él hay un Pres-
biterio compuesto por sacerdotes seculares, y fieles laicos, hombres
y mujeres. Estos últimos, los laicos componen casi la totalidad de los
integrantes del Opus Dei, pero no son los que ocupan los cargos je-
rárquicos.
Proponen que los hombres y mujeres puedan amar y servir a Dios
y a los demás hombres. Los miembros deben ser coherentes con su
condición de hijos de Dios, seguir el modelo de Jesús en su vida coti-
diana, deben servir a la sociedad y a Dios a través de su trabajo. Tie-
nen el deber de orar constantemente y realizar actos de mortificación
y sacrificio. Deben también practicar la caridad y el apostolado, ser
corteses y gentiles. Llevar adelante una vida de fe como una unidad,
es decir sin separar momentos profanos de momentos sagrados, sino
siendo uno con Jesucristo, Dios perfecto, Hombre perfecto.

El espíritu del Opus Dei impulsa a cultivar la oración y la penitencia,


para sostener el empeño por santificar las ocupaciones ordinarias. Por
eso, los fieles de la prelatura incorporan a su vida unas prácticas asiduas:
oración, asistencia diaria a la Santa Misa, confesión sacramental, lectu-
ra y meditación del Evangelio, etc. [...] Para imitar a Jesucristo, realizan

54
también sacrificios, especialmente los que facilitan el cumplimiento fiel
del deber y hacen la vida más agradable a los demás, así como la re-
nuncia a pequeñas satisfacciones, el ayuno, la limosna, etc. (Documento
Oración y Sacrificio, 29/5/2001)

Breve recorrido histórico del Opus Dei


Para reconstruir la historia del Opus Dei, comprender sus caminos y
sentidos es necesario dirigirse a la biografía de su fundador, Josema-
ría Escrivá de Balaguer. Los primeros cincuenta años del Opus están
relacionados principalmente con su vida, sus homilías, sus escritos, su
práctica y proyectos. Son los años en donde se estableció la doctrina,
los vínculos y los horizontes que constituyen hoy al Opus Dei.
El surgimiento del Opus “ocurrió”, según Escrivá, mientras se en-
contraba rezando y meditando en un retiro espiritual en el año 1928.
En ese momento tuvo una “iluminación”. En ella “recibió una ins-
piración de Dios que le ilustraba con claridad sobre lo que debía ser
el Opus Dei” (Requena y Sesé, 2002: 13). De esta manera se explica
el nombre de este grupo católico: Opus Dei, Obra de Dios en latín;
su objetivo fue cristianizar la sociedad moderna y secularizada por
medio de la militancia y la vocación, llevar a Cristo en medio de las
instituciones del mundo seglar (Moncada, 1987). Para su tiempo esta
meta significaba una revolución y una renovación católica, más abier-
ta y menos clerical, en donde, siendo seglares o curas, cualquiera po-
día ser santo.
Entre medio de sus labores de capellán en el Patronato de Enfer-
mos en Madrid iba invitando y reclutando para comenzar su misión,
centrándose en hombres jóvenes laicos y universitarios, ya que éstos
contarían con influencia y formación para actuar y transformar en
la sociedad civil con los valores católicos que buscaba defender y ex-
pandir. Estos miembros eran seleccionados por ser los mejores en sus
estudios o profesiones, eran acompañados y formados para llevar una

55
vida seglar pero con votos de obediencia, celibato y de pobreza, santi-
ficando sus trabajos profesionales. Fueron los que hoy jurídicamente
dentro de la Obra se conoce como Numerarios.
Entre 1938 y 1939 Josemaría escribió su famoso libro Camino, obra
fundamental de la doctrina de la Obra. Durante el comienzo del fran-
quismo fueron los primeros años de expansión, proselitismo e in-
fluencia de la Obra. La ideología del Opus Dei respondía al contexto
histórico y social de la España de posguerra como describe Antonio
Pérez, ex miembro de la Obra:

En los jóvenes se mezclaba la religión, el patriotismo y la austeridad (...)


Entonces llega una institución que te plantea el que tú has sido elegido
por Dios, que puedes ser santo, que vamos a hacer la reconversión al
cristianismo de la ciencia, reclutando a las mejores cabezas, con una dis-
ciplina militar (...) Por otra parte, aquello presentaba un modo de vida
más atractivo que el de los religiosos. Lo de ser laico, estar en medio del
mundo, representaba un atractivo adicional. Por eso, creo, el Opus Dei
prendió enseguida. (Moncada, 1987: 27)

En 1941 la Obra fue institucionalizada por la Iglesia al concederle la


Pía Unión. Después del final de la segunda guerra mundial, el Opus co-
menzó a expandirse por Europa y algunos países de América. El carácter
de la misión del Opus Dei era del universal servicio a la Iglesia. Por esta
razón, en 1946 Escrivá se instala en Roma para coordinar desde allí el
avance y la profundización de la Obra en los distintos países y para buscar
la forma jurídica dentro de la Iglesia con la mayor legitimidad y fidelidad
a las características pretendidas. Así es como en 1950 durante el papado
de Pio XII, Josemaría presentó las Constituciones que establecían la doc-
trina y la organización de la Obra, obteniendo la aprobación como Insti-
tución Secular. Esto acentuaba las características seculares de la Obra y la
posibilidad de regirse a partir de sus propias leyes, que permanecieron en
secreto hasta 1986 cuando fueron publicadas por una revista italiana.

56
En 1942 se crea el primer Centro de Mujeres en Madrid, para que
las mismas participen como numerarias en el trabajo apostólico. En
ese entonces las mujeres no contaban con independencia económica
y social; era algo extraño que alguna estudiase, en general se dedica-
ban a las tareas domésticas.
En esos años, la Obra comenzó a incorporar personas casadas,
también solteros y solteras que quisieran ser parte de la Obra sin
hacer los votos que realizan los numerarios. Estos son hoy los Su-
pernumerarios, que como los numerarios, se les plantea santificar y
cristianizar el mundo a través de sus profesiones. Gracias a esto, el
Opus comenzó a realizar actividades específicas para acompañar las
problemáticas de la vida familiar cristiana en una sociedad cada vez
más secular, y así se insertó con mayor facilidad en la sociedad civil.
Entre moderno y tradicional con cierto tinte elitista y aspiraciones
burguesas, el opus se constituyó entonces como un espacio de segu-
ridad psicológica, de solidaridad y de complicidad para los individuos
que se encontraban incómodos con los cambios de la modernidad;
perpetuando costumbres y alianzas para mantener la identidad católi-
ca y conservadora. Para algunos significó la posibilidad de resguardar
algunas señas distintivas y para otros, un símbolo de ascenso social
(Moncada, 1987).
El modelo de catolicismo que Escrivá fue sembrando para los
opusdeistas estuvo apegado a la defensa de la propiedad y de la fa-
milia. Para esto, se utilizaron los centros y las residencias de la Obra;
también se crearon universidades con el objetivo de generar una élite
de futuros profesionales que pudieran influir en la sociedad para “me-
ter a Dios en todas las cosas” (Moncada, 1987).
En estos años de institucionalización, la formación, los retiros y
las publicaciones de Escrivá, se convirtieron en un arma de control
y de vigilancia a la personalidad de sus miembros. La identidad de
estos se volvía cada vez más cerrada y rígida. Esto se debía a que lo
que regía era el ejemplo y la lealtad con que se vivía la relación de

57
idolatría paternalista con el “Padre”, tal como llamaban al fundador.
Entre los años 40 y 60 la obra fue adquiriendo exposición pública,
no solo por su actividad apostólica, sino por las acciones políticas
y económicas de sus miembros. A medida que crecía, la búsque-
da de estrategias para recaudar dinero y solventar sus objetivos, les
permitió desarrollar grandes emprendimientos que significaron la
expansión del Opus por el mundo y el aumento de su influencia en
sectores de poder.
El factor económico más determinante para el crecimiento de la
Obra, fue su incorporación al mundo de las finanzas. Esto comenzó
con la creación de lo que se llaman sociedades auxiliares. Estas, son in-
tegradas por inversiones de supernumerarios, de amigos o parientes
de miembros de la Obra -fueran o no católicos- pero co-liderada por
fieles que tenían la misión de llevar adelante los fines de la Obra. Estas
empresas debían tener valores cristianos, por lo que el mensaje del
fundador era que quienes invirtieran en ellas, tendrían rédito tanto
material como espiritual (Moncada, 1987).
Esto los introdujo también en el mundo político. En España en los
años 50, gracias a la concordancia de la Obra con el proyecto de país
que tenía la dictadura de Franco, sus miembros comenzaron a partici-
par de dicho gobierno. Algunos vieron estratégica la entrada a pues-
tos de responsabilidad para facilitar las actividades tanto apostólicas
como económicas para continuar el crecimiento de la Obra. Al mis-
mo tiempo, el gobierno franquista encontraba en estos profesionales
la tenacidad y laboriosidad necesaria para los objetivos estatales desde
una perspectiva nacionalista, conservadora de valores burgueses, con
un fuerte componente de modernización y progreso capitalista en la
administración pública, y para la apertura económica buscada. Así
comenzó a destacarse en el gobierno español una tecnocracia opus-
deista, que en muchos casos aprovechó los lazos económicos con los
políticos para favorecer la expansión de las empresas auxiliares; en
esos años comenzaron a crecer internacionalmente acompañando la

58
expansión de la Obra alrededor del mundo. En consecuencia, tam-
bién se relacionaron políticamente con los gobiernos de derecha de
los países en los cuales iban instalándose, especialmente las dictaduras
de Chile y Argentina.
A fines de los años 60, durante la decadencia franquista los escán-
dalos políticos y económicos afectaron la imagen de la Obra. Para-
lelamente el mundo eclesial se estaba transformando drásticamen-
te: el Concilio Vaticano II con Juan XXIII y Pablo VI, desencajaba
algunas de las estructuras cerradas de la Iglesia Católica. Si bien el
Opus miraba con preocupación la apertura de la Iglesia, los cam-
bios hicieron posible que se consiguiera la forma jurídica que Escri-
vá tanto había ansiado. En 1982, durante el papado de Juan Pablo
II, el Opus Dei fue declarado finalmente Prelatura Personal; Escrivá
había muerto siete años antes. Esta declaración lo formalizó como
una estructura jurisdiccional perteneciente a la organización pasto-
ral y jerárquica de la Iglesia, consiguiendo al igual que las diócesis,
su propia autonomía y jurisdicción para la realización de su misión
(Prelatura Personal; s. f: http://www.sanjosemaria.info/articulo/
prelatura-personal).
Durante el papado de Juan Pablo II, la figura de Escrivá se convir-
tió en hegemónica, un ejemplo cristiano que llama a todos, sin impor-
tar clases sociales, a la santidad cotidiana. Desde allí el Opus Dei tuvo
un fuerte impulso para continuar expandiéndose y posicionándose de
forma dominante dentro de la Iglesia, ya que constituyó un apoyo
moral y económico importante para contrarrestar las corrientes más
proféticas dentro de la Iglesia y en el mundo secular.
A partir de ser declarados Prelatura Personal la obra tomó más
relevancia y esto llevó a la necesidad de modificar su imagen hacia
afuera. Si bien continuaron siendo una institución cerrada y hermé-
tica, desarrollaron una nueva imagen y una nueva forma de vincu-
larse con el mundo exterior que intenta disimular sus aspectos más
polémicos.

59
Fundamentalismo y sectarismo
El término fundamentalismo se utiliza para referirse a posiciones radi-
cales y conservadoras dentro de cualquier ideología o religión. Sostiene
una actitud contraria al cambio o a la desviación en las doctrinas y las
prácticas que se consideran esenciales e inamovibles. Otorga un carácter
dogmático al o a los textos sagrados, sin posibilidad de una interpretación
alternativa a la sostenida por la figura de autoridad que cumple el rol de
mediador entre la divinidad y los fieles. Como sostiene Farley (2005) esta
autoridad busca proteger los textos y a su propio rol de mediador frente a
la sociedad moderna y secularizada, adjudicándose a sí mismo el carácter
sagrado, digno de veneración y obediencia. Para esto, anula toda posibi-
lidad de hermenéutica o de posición crítica relacionada con los procesos
históricos y coyunturales, al poseer el carácter de “verdad eterna”.
Puede referirse tanto a fundamentalismos religiosos -islámico, ju-
dío o cristiano- como también a otras ideologías como ocurre por
ejemplo con el denominado fundamentalismo de mercado. En este
sentido, el sociólogo Peter Berger afirma que “(...) es importante
comprender que hay secularistas tan fundamentalistas como los reli-
giosos: unos y otros coinciden en no estar dispuestos a cuestionar sus
opiniones, así como en su militancia” (Berger, 2008: párrafo 46).
Consideramos a los fundamentalismos religiosos como formas de-
fensivas de espiritualidad que surgen para intentar volver a sacralizar
a un mundo cada vez más escéptico. Son respuestas a una crisis ame-
nazante generada por la modernidad.
Urs Von Balthasar, uno de los teólogos católicos más importantes
del siglo XX escribió en 1963 una obra llamada Integrismo, en la que
definió al Opus como “una concentración del poder fundamentalista
dentro de la Iglesia”. Desde el comienzo el Opus Dei desarrolló acti-
vidades formativas que se caracterizaron por la rigurosidad, la ora-
ción, el sacrificio, la obediencia, el alimento del pudor; acompañadas
por un reglamentarismo y control de las identidades que en muchos
casos llegó a ser contraproducente para sus miembros.

60
A partir de lo anterior, podemos considerar al Opus Dei como un
nuevo tipo de fundamentalismo, uno particular y complejo, ya que
combina elementos religiosos y laicos, conservadores y modernos. Al
funcionar como una doctrina que rige sobre la totalidad de las prácti-
cas cotidianas de los individuos, los integrantes de la Obra dedican su
vida a la causa durante el tiempo completo, y es aquí quizás en donde
radica su ventaja y también el secreto de su éxito.
La concepción católica tradicional se basa en una visión dualista
del mundo, esto es, divide al mundo en una esfera sagrada diferencia-
da de otra profana. El Opus Dei tiene en cambio, una postura parti-
cular, si se quiere novedosa al respecto. El Opus se propone hacer sa-
grados todos los momentos de la vida de sus fieles, es decir, suprimir
todo lo profano. “Hacerse santo a través de la vida cotidiana. Ser san-
tos en lo ordinario, en el trabajo, en la familia y en todo momento”
(Numerario). Aquí podemos ver también un rasgo fundamentalista
totalizante, ya que al convertir absolutamente todo en sagrado, no deja
lugar a lo profano, a lo impuro.
Desde este concepto de fundamentalismo observamos que la
Obra impone a sus miembros un absoluto acatamiento de los pre-
ceptos establecidos en su libro sagrado, la Biblia, a la que interpreta
de manera dogmática, no admitiendo ningún tipo de réplica o inter-
pretación contextual. A fin de que el sistema de fe no tenga fisuras, no
se permite una completa hermenéutica ni una exégesis que la com-
plemente. Existe de hecho lo que el Opus llama “la santa coacción”,
una dinámica coercitiva que persigue la sumisión y obediencia total
de los miembros a través de una justificación divina, que es revestida
de santa.
En general en el concepto de fundamentalismo está implícito que
las ideas a las que se apega son falsas o peligrosas, asociado al fanatis-
mo. Sin embargo hay una característica que observamos al analizar
al Opus que le permite dar una imagen de racionalidad que lo ale-
jan -en parte- de la irracionalidad fanática: la corrección política. Esta

61
corrección se hace manifiesta en la manera que tienen de desenvol-
verse y de relatar la naturaleza de la Obra.
Frente a la desconfianza que generó el Opus Dei desde los comien-
zos, sus miembros tuvieron que, primeramente mantener un perfil
bajo, manteniendo oculto su estatuto y también debieron ser suma-
mente meticulosos con el discurso público a fin de no generar mayo-
res censuras, críticas o rechazos a sus posturas polémicas. Al respecto
podemos rastrear en dicho estatuto secreto -vigente desde 1950- en
el que sostiene que “Los miembros del Instituto, que deben ser los
mejores dentro de su propia clase social, ejercen su apostolado entre
sus iguales valiéndose de la amistad y confianza mutua” (Opus Dei,
1986a: art. 186). Vemos aquí la necesidad de mantener las formas po-
líticamente correctas para lograr sus fines, utilizando los buenos mo-
dos para minimizar la posibilidad de ofensa en cuestiones que podrían
generar controversia.
El hecho de que haya existido un estatuto secreto desde 1950 hasta
1986 -cuando sale a la luz contra la voluntad de la organización- con
la implicancia oscurantista que significa la existencia de un saber esoté-
rico -de circulación para una elite- y un saber exotérico -utilizado como
fachada- es una característica que nos lleva a considerar al Opus como
una secta. La revelación de ese estatuto interno hizo necesaria la pu-
blicación de un segundo estatuto -escrito en 1982 luego de haber sido
jerarquizados por el Papa Juan Pablo II como Prelatura Personal- con
un lenguaje mucho más suave, políticamente correcto, con omisiones
importantes que dan al Opus una imagen acorde a las nuevas posibili-
dades de visibilidad y crecimiento.
Es importante decir que, en este estatuto nuevo, en sus disposi-
ciones finales aclara que: “Este Codex (...) comienza a tener vigencia
desde el día 8 de diciembre de 1982. Todos están obligados con las
mismas obligaciones y guardan los mismos derechos que tenían en el
régimen jurídico precedente, a no ser que los preceptos de este códi-
ce establezcan otra cosa expresamente” (Opus Dei, 1986b: 34). O sea

62
que a través de este artilugio logró el Opus mantener la vigencia del
estatuto original. En el nuevo -políticamente correcto- omite puntos
polémicos del anterior, como por ejemplo el considerar fugitivos a
quienes intentan abandonar la organización, el secretismo con res-
pecto a los miembros de la obra o el precepto que manda utilizar el
cilicio y las disciplinas diariamente.
Con respecto al sectarismo, partimos del concepto de secta, que
etimológicamente se refiere a un grupo de personas que sigue a un lí-
der o que se cierra en sí mismo; es una agrupación de individuos que
luego de una conversión refuerza su fe en la doctrina, pero a través
de la “nueva revelación” de un líder carismático cuya interpretación
resulta fundamental para comprender la doctrina y respetar la Ley o
el dogma.
Según Ernst Troelsch “las sectas tienen creencias estrictas. Sus
miembros se unen voluntariamente, tienen una ética maximalista,
priorizan el pequeño número, el espíritu de austeridad y ascetismo y
exigen una conversión previa al ingreso” (Tarcus, 1999). En la secta se
acentúa el valor doctrinal, moral y el rigor disciplinario. Es necesario
pasar una rigurosa selección para poder formar parte. En este sentido
solamente ingresan los religiosamente calificados.
Es fundamental la personalización del poder en la figura paterna-
lista del líder como mensajero de la divinidad, reforzada por un culto
a la obediencia ciega, sin críticas ni cuestionamientos.

Los opusdeístas se reconocen a sí mismos como miembros de una fami-


lia, antes de cualquier otra definición, una familia en la que el padre es
el personaje principal. La historia de estos primeros cincuenta años del
Opus Dei no es sino una biografía ampliada de Monseñor Escrivá, de su
evolución psicológica, de sus relaciones con propios y extraños y de la
obediencia incondicionada de sus gentes. Esta obediencia, esta devoción
al Padre, nutrida de los más viejos materiales del patriarcado tradicional,
se convierte en razón de vivir para sus hijos, en clave para sus vivencias

63
religiosas y termina oscureciendo cualquier otro modo de entender la
vocación del Opus Dei. El culto a la personalidad del Padre… (Moncada,
1987: 3).

El proceso de identidad de pertenencia de sus fieles y la relación


con el fundador nos lleva a afirmar que el Opus Dei posee varias de
las características de lo que sociológicamente se considera como una
secta. Desde esta perspectiva, tomamos a Tarcus quien la define como
un grupo de individuos que permanece atrapado en un imaginario
que otorga identidad y cohesión al grupo a través de ceremonias y
rituales que contribuyen a disolver al individuo en el todo, a dividir
fuertemente el “afuera” del “adentro”, la estratificación interna, el
culto al líder, la esperanza mesiánica, etc. Una secta, regula la existen-
cia de sus miembros en todos los campos, condiciona sus actividades
y las encamina según las propias normas hacia los fines que propug-
na. “La pura identidad ideal implica la disolución del individuo en el
todo grupal, lo que se expresa habitualmente en los juramentos de
lealtad, de renuncia a la vida profana” (Tarcus, 1999: 5).
Su sectarismo se sostiene a través de una vigilancia permanente
sobre la forma de vida de los miembros de la obra, quienes en una
aparente libertad de conciencia son cercenados constantemente en
sus lineamientos intelectuales. Los postulantes deben pasar largo
tiempo a prueba al final del cual habrán transformado su subjetivi-
dad y radicalizado sus prácticas católicas. Guiados por un numerario
como referente, figura a seguir, quien acompaña y evalúa la admisión
y la permanencia en la Obra.
En la definición de totalitarismo, el politólogo Norberto Bobbio
(1997) sostiene que en éste el líder es el depositario de la ideología,
y solamente él puede interpretarla o corregirla. Al respecto observa-
mos en el Opus que la figura de Escrivá ocupa el rol de líder y Padre
cuya palabra es sacralizada. Su libro Camino es venerada por los inte-
grantes de la obra. En él comienza diciendo:

64
Lee despacio estos consejos. Medita pausadamente estas consideracio-
nes. Son cosas que te digo al oído, en confidencia de amigo, de herma-
no, de padre. Y estas confidencias las escucha Dios. No te contaré nada
nuevo. Voy a remover tus recuerdos, para que se alce algún pensamiento
que te hiera: y así mejores tu vida y te metas por caminos de oración y
de Amor. Y acabes por ser alma de criterio (Escrivá, 2000: 1).

Con esta introducción, Escrivá se ubica en una posición privilegiada


primero buscando la confianza de amigo y hermano, para luego ascen-
der a la figura de padre e incluso ponerse a la altura de Dios. Luego afir-
ma la intención de remover los pensamientos buscando causar dolor.
De esta manera podemos ver dos características del Proyecto de Man-
cha-Pureza. Por un lado, la imagen paternal del sacerdote como único
mediador entre Dios y los fieles. Por otro lado, el lugar que ocupa el
sacrificio/sufrimiento en el cuerpo como purificador de alma.
En el consejo 74 afirma que “Amar a Dios y no venerar al sacerdo-
te... no es posible” (Escrivá, 2000: 7), podemos observar el privilegio
dado al sacerdote al ser igualando a Dios, contribuyendo al sosteni-
miento de una relación paternalista y dependiente con el sacerdote
para obtener el amor divino. Tan solo en el libro fundacional de la
obra podemos encontrar este y tantos ejemplos más de esta relación:
“Cómo hemos de admirar la pureza sacerdotal! ...” (Escrivá, 2000: 7).
Aquí se exalta la figura central del sacerdote, ya que es quien repre-
senta la “pureza”, valor fundamental del Proyecto Sacerdotal.
Para alcanzar la pureza es necesaria la práctica del sacrificio. “Nin-
gún ideal se hace realidad sin sacrificio. - Niégate. - Es tan hermoso
ser víctima!” (Escrivá, 2000: 15). Teniendo en cuenta que el objetivo
de la Obra es buscar la santidad en cada acto cotidiano, el sacrificio
-que etimológicamente es sacro y facere, es decir hacer sagrado- se
convierte en medio y fin. Escrivá asocia el sacrificio al dolor y a la
mortificación, tal como se plasma en la cita anterior, existe un gozo
por ser víctima.

65
Una forma de llevar a cabo una vida sacrificada, es decir santifi-
cada, es por medio de las mortificaciones, como dejar de beber un
vaso de agua o también utilizar el cilicio.5 Se trata de gran cantidad de
actos de la vida cotidiana en donde se apela al dolor físico y a la abne-
gación. En el consejo 180 sostiene que “Donde no hay mortificación,
no hay virtud” (Escrivá, 2000: 15). Esto tiene relación con la visión
dualista del Proyecto Sacerdotal donde el cuerpo está asociado a lo
manchado y es un obstáculo para alcanzar la purificación del alma.

¡Cuánto te cuesta esa pequeña mortificación! -Luchas. -Parece como si


te dijeran: ¿por qué has de ser tan fiel al plan de vida, al reloj? -Mira: ¿has
visto con qué facilidad se engaña a los chiquitines? -No quieren tomar la
medicina amarga, ¡pero... anda! -les dicen-, esta cucharadita, por papá;
esta otra por tu abuelita... Y así, hasta que han ingerido toda la dosis.
Lo mismo tú: un cuarto de hora más de cilicio por las ánimas del purga-
torio; cinco minutos más por tus padres; otros cinco por tus hermanos
de apostolado... Hasta que cumplas el tiempo que te señala tu horario.
Hecha de este modo tu mortificación, ¡cuánto vale! (Escrivá, 2000: 73).

Las mortificaciones implican un sufrimiento que emula la cruci-


fixión de Jesús, interpretada por este Proyecto como el sacrificio del
“hijo de Dios” para la salvación de la humanidad. Es una acción que
busca el perdón y la misericordia de Dios tanto para el creyente que la
practica como para su prójimo.
Para el Opus el cilicio es una mortificación necesaria, aunque a
juicio de una ex miembro de la obra, se trata de una vieja costum-
bre que produce un sufrimiento innecesario. No obstante están a
favor de su uso como sacrificio físico retomado de las vivencias de
los santos:

5.  El cilicio es un cinturón con púas que se utiliza como penitencia por los pecados cometi-
dos para pedir misericordia y/o perdón..

66
(…)... algunos santos destacados, como san Francisco de Asís, santa Te-
resa de Jesús, san Ignacio de Loyola, santo Tomás Moro, san Francisco
de Sales, el cura de Ars o santa Teresa de Lisieux, utilizaban cilicios o dis-
ciplinas para generarse alguna molestia, sin lesionar su salud. La Iglesia
ha aprobado estas prácticas y muchas instituciones las siguen actualmen-
te (Página del Opus Dei, 2016: párrafo 5).
El Opus Dei también propone soportar otras situaciones de la vida co-
tidiana:
La “santidad en la vida ordinaria” que predica el Opus Dei, hace que los
sacrificios más importantes sean los propios de la vida ordinaria: sonreír
cuando se está cansado, acompañar a una persona en un trayecto, no
retrasar un trabajo aunque aparezca la desgana… (Página del Opus Dei,
2016: párrafo 6).

La adoración al líder paternalista, la importancia de la pertenencia


al grupo por medio de la santificación cotidiana y el rigor disciplinario
nos permite observar en el Opus Dei varias características de lo que
entendemos como una secta fundamentalista.

El Proyecto Sacerdotal
A partir del análisis de los textos bíblicos, y siguiendo los aportes
de Belo (1975), Clevenot (1978), Dri (1997) y Pixley (1993), distin-
guimos diferentes proyectos allí incluidos. Cuando hablamos de
proyectos nos referimos a proyectos políticos en el sentido profun-
do del término política. Un proyecto que abarca todo el ámbito de
lo humano, un proyecto de sociedad, de relaciones sociales. En este
sentido incluye, lo económico, lo social, lo político, lo cultural y lo
religioso.
Es necesario tener en cuenta que la Biblia es una compilación de
casi setenta textos o libros diversos, escritos por múltiples autores,
en distintos contextos y con diferentes intencionalidades, incluso

67
opuestas entre sí. Estos proyectos atraviesan toda la historia del pue-
blo hebreo y luego del cristianismo y el catolicismo.
El Sacerdotal es un proyecto autoritario de dominación que tuvo
su origen en Palestina durante el siglo VI a.C. En ese entonces domi-
naba por parte de una potencia extranjera que gobernaba a través de
los sacerdotes judíos. Se trataba de un Estado hierocrático, centrado
en el Templo, regido bajo el sistema de valores al que denominamos
Mancha-Pureza, siguiendo a Michel Clevenot. En este proyecto la pu-
reza constituye el valor central que rige la sociedad y es la clave para
la estratificación, que sostiene la desigualdad social. Este dominio en-
cierra a Dios en el Templo. Producto de una cosmovisión dual, que
lleva a la división del mundo entre lo sagrado y lo profano. Así, lo
sagrado se concretiza en determinadas personas, objetos y aconteci-
mientos.
Los dominadores apoyándose en la declaración de impureza exclu-
yen de la participación social a los sectores más pobres. Este sistema
no cuestiona la sociedad de clases, permitiendo señalar y someter a
los impuros, quienes son relegados socialmente. De esta forma los
sectores dominantes más cercanos al valor de la pureza, mantienen
una situación de privilegio (Dri, 1997).
La pureza se define en el establecimiento de un orden basado en
reglas y prohibiciones en distintos ámbitos de la vida. La mancha en
cambio, tiene lugar cuando entre los elementos hay confusión, cuan-
do no se respeta la heterogeneidad y la reciprocidad. Fernando Belo
(1975) distingue tres centros de consumición: el alimento, el cuerpo
y la ideología. El primer centro lo constituye la Mesa, referido a la
normativa sobre a la ingesta y manipulación de alimentos; el segundo
es la Casa, relacionado a la familia y las relaciones. Aquí la mancha, o
el pecado, está relacionado con la impureza que representa el cuerpo,
la menstruación, el sexo por placer, la homosexualidad, el incesto, la
prohibición de contraer matrimonio con alguien ajeno al pueblo ju-
dío. El tercer centro está representado por el Templo, es decir, el culto

68
religioso: el lugar de Dios, el mandato de la circuncisión, la observan-
cia del sábado y de las leyes; La impureza en esta dimensión está dada
por la indiferenciación o la destrucción de los valores y las jerarquías,
la relación entre el pueblo y Dios debe ser mediada por el sacerdote.
El medio para la purificación es el culto y los rituales sagrados. Dios
solamente habita dentro del templo y se le debe ofrecer sacrificios
que implican la mortificación de la vida.
Desde esta perspectiva, Dios-Yahveh otorga el poder al sumo sacer-
dote y a su descendencia; los Mandamientos, esos que en el Proyecto
Profético sirven como guías para el buen funcionamiento de la Con-
federación de Tribus, para este proyecto son sustento de la domina-
ción sacerdotal que transforma a la gran mayoría de la población en
“pecadora”, sin derechos.
Se divide al mundo, entre lo sagrado y lo profano, siendo que lo
sagrado es lo valioso y lo profano es rechazado, no tiene un sentido ni
justificación, por ello lo sagrado debe investir a lo profano, sostenerlo,
realimentar al mundo para que este no se disuelva.

Así, el mundo del trabajo, de los negocios, de la política, no tienen sen-


tido de por sí. Es el mundo profano. Para que adquiera sentido debe ser
bendecido por el sacerdote, por el brujo o el chamán, de acuerdo con las
distintas culturas. El hombre cada tanto debe participar en oficios reli-
giosos, procesiones, ceremonias, misas (Dri, 1997: 38).

El Proyecto Sacerdotal ha ido alternando la hegemonía a lo largo


de la historia con su aliado, el Proyecto Monárquico, el cual también
es un proyecto de dominación sostenido en valores similares, pero en
éste último los sacerdotes están sometidos al Rey, quien es hijo de la
divinidad, es decir, el poder espiritual se somete al poder terrenal.
Esta fue la configuración jerárquica del orden de exclusión y domi-
nación, primero del Sanedrín -el sacerdocio judío- y luego de la Iglesia
Católica que llega hasta nuestros tiempos.

69
Mancha-Pureza: Trabajo
Según el Opus Dei, Escrivá fundó un “nuevo camino para promover,
entre las personas de todas las clases sociales, la búsqueda de la santi-
dad y el ejercicio del apostolado, mediante la santificación del trabajo
ordinario” (Escrivá, 2012: 8). Para la obra este es un mandato irrenun-
ciable ya que si bien el hombre necesita trabajar para su subsistencia,
además tiene un sentido de trascendencia. De hecho, al trabajar, el
hombre participa de la “Providencia amorosa de Dios con el mundo”.
En este sentido “un vago, no tiene lugar en el Opus Dei, un vago, no
puede existir en el Opus, pero un vago tampoco es un buen cristiano”
(Supernumerario).
Siguiendo a Berglar (2002), la doctrina del Opus Dei habla de “san-
tificar el trabajo, santificarse en el trabajo y santificar a los demás con
el trabajo”. Mediante esta estrecha vinculación entre trabajo y santi-
dad los fieles son llamados a realizarlo con la mayor profesionalidad
que sean capaces, hecho que probablemente los hará exitosos pero no
exclusivamente para sí, sino también para el mundo, ese es el fin y el
sentido que persiguen.
Observamos que este discurso omite la estratificación social y la
desigualdad de oportunidades para acceder a determinados trabajos y
conseguir el éxito profesional anhelado. Es por ello que podemos afir-
mar que existe una impronta asociada a la idea de meritocracia.6 Ellos
justifican su posición económica, en general privilegiada, no como un
fin perseguido sino como una consecuencia de la centralidad que la
organización le da al trabajo, al esfuerzo y al sacrificio. No obstante, si
bien todos los individuos son llamados a trabajar con la mejor calidad

6.  La meritocracia proviene del latín merĭtum debida recompensa, a su vez de mereri ganar,
merecer; y el sufijo -cracia del griego kratos, poder, fuerza) es una forma de gobierno ba-
sada en el mérito (los mejores), y en términos más generales, se refiere a la discriminación
positiva por méritos. Las posiciones jerárquicas son conquistadas con base en el mérito, y
hay un predominio de valores asociados a la capacidad individual o al espíritu competitivo,
tales como, por ejemplo, la excelencia en educación o deportes (sf: https://es.wikipedia.org/
wiki/Meritocracia).

70
posible, se invisibilizan las condiciones sociales preexistentes, natura-
lizándose el privilegio conseguido como consecuencia del mérito y
el esfuerzo personal. Por eso el “vago” representa lo impuro y como
tal no puede formar parte de la Obra. Entonces procuran convocar
personas que además de esforzarse en su trabajo, ya posean un perfil
destacado en su área.

(...) también es un poco natural que eso ocurra aun cuando no es in-
tención de la Obra, si vos tenés una organización, cierto, que privilegia
el trabajo, quiere hacer un cambio en la sociedad, por eso atrae en su
mensaje, convoca a una cantidad de gente importante que tiene perfil
universitario, naturalmente, el universitario es el que genera actividad
económica (Supernumerario).

Desde esta perspectiva que busca santificar el trabajo se justifica y


se sostiene el statu quo ya que los sectores profesionalizados pueden
destacarse en puestos laborales políticos y económicos dirigenciales,
mientras que para los sectores populares la obra brinda formación
como personal auxiliar. El Opus Dei cuenta con centros de capacita-
ción para oficios y servicios como jardineros, sirvientas, carpinteros,
entre otros. Todos estos reciben una educación católica integral. “El
fin principal de I.C.I.E.D.7 es: Dignificar el trabajo de la empleada do-
méstica, revalorizando las tareas que le son propias, dándole la cate-
goría de auténtica profesión” (Ruiz Núñez, 1991: 28). Es decir, una au-
téntica profesionalización de la desigualdad que fortalece el statu quo.
Para santificar el trabajo, el Opus también promueve que este debe
implicar un sacrificio individual, por amor a Dios y al prójimo. Se-
gún su discurso esta práctica los llevaría a destacarse en sus respec-
tivas profesiones; “es frecuente que quien busca santificar el trabajo
se destaque profesionalmente entre sus iguales porque, el amor a

7.  Instituto de Capacitación Integral en Estudios Domésticos

71
Dios impulsa a excederse gustosamente, y siempre, en el deber y en
el sacrificio” (http://opusdei.org/es-ar/article/trabajar-a-conciencia,
2009: párrafo 7).
El trabajo se realiza en todo momento, también los ámbitos priva-
dos de la vida: el cuidado de la familia, de los enfermos, la educación de
los hijos, el esfuerzo interior de la persona por superarse, etc., siempre
debe hacerse con alegría, y aquellos demasiado duros o enajenantes se
sobrellevan acercándose a Cristo, abrazando la cruz. No importan las
horas de trabajo duro o la alienación, no importa el sufrimiento terre-
no porque mediante este sacrificio se santifica a sí mismo y al mundo
circundante. Sin embargo no cualquier trabajo lleva a la santificación,
quedan excluidos los “no éticos” y es deber de la persona saber si está
haciendo lo correcto. De todos modos, “el acento exclusivo puesto en
la santificación por el trabajo favorece el culto del éxito material y el
reino del capitalismo liberal” (Normand, 2002: 75).

Mancha-Pureza: Matrimonio, sexualidad y educación en el


pudor
Al intentar santificar por completo la vida de los miembros, observa-
mos en la doctrina del Opus Dei un enfático interés por irradiar pau-
tas y lineamientos sobre la mayoría de los ámbitos de la vida de sus
fieles; desde el seno de la familia, pasando por la educación, el traba-
jo, la comunidad, las formas de esparcimiento –clubes, utilización del
tiempo libre, vacaciones- la inculcación de normas del “buen gusto” y
de “buenas maneras”.
La dirección y seguimiento personal tendientes a evaluar constan-
temente el accionar del sujeto, no dejan prácticamente espacio a lo
profano. Desaparece su separación de lo sagrado. Se busca llevar a
Dios en todos los ámbitos. Observamos que estas características se
reflejan en el matrimonio y la sexualidad, así como también en el
trabajo.

72
Para los seguidores de la Obra el amor es el fin máximo que de-
ben alcanzar en la vida, es la vocación fundamental. El matrimonio
constituye un modo específico para realizar dicha vocación, como lo
es el celibato o la vida religiosa.8 A través de la vida matrimonial los
esposos son llamados a ser santos en la donación total al otro: se vive
para el otro, para su realización, que es a la vez la propia. El compro-
miso asumido es la entrega mediante prácticas y conductas que hacen
del amor algo concreto, que si bien se ha iniciado en los sentimientos
recíprocos, se plasma en objetivos, deseos y proyectos comunes, pri-
meramente a los esposos, y luego a los hijos y a toda la comunidad.
Esta entrega total se realiza por medio del pacto conyugal que “crea
entre los esposos un modo específico de ser, de amarse, de convivir y
de procrear” (Escrivá Ivars, 2016, párrafo 4).
En este sentido, analizando las entrevistas realizadas a miembros del
Opus observamos cuál es la postura de la Obra con respecto al divorcio.
Tienen ideas rígidas en torno al mismo, si bien parecen aceptar que en
estos tiempos la gente se separa, o al menos esto es lo que sostienen, sin
embargo están apegados a lo que dice la doctrina de la Iglesia:

(…) por eso no es que apoya el divorcio, el divorcio es de un vínculo,


existe, está, ahora lo queremos romper, la Iglesia no puede romper algo
que selló Jesucristo, no tiene potestad, entendés no es que no lo quiera
porque está cerrada no tienen potestad porque cristo no se la da... enton-
ces que no separe lo que dios ha unido, no puede ser la Iglesia, entonces
si hay unión verdadera no la puede romper (Numeraria 1).

8.  Celibato es la renuncia al matrimonio, implícita o explícita, que hacen los que reciben
el Sacramento de las Órdenes en cualquiera de los grados más altos para la más perfecta
observancia de la castidad. (Por: Thurston, Herbert, 1908. Párrafo 1. Obtenido en http://
ec.aciprensa.com/wiki/Celibato_del_Clero) Vida religiosa: Es el seguimiento evangélico de
Cristo. Es seguir a Cristo de una manera radical según el Evangelio, en pobreza, castidad y
obediencia, en comunidad de vida fraterna y apostólica. (Pastoral Vocacional de la Arquidió-
cesis de San Luis Potosí, México. Párrafo 1.
Recuperado de http://es.catholic.net/op/articulos/10210/cat/741/que-es-la-vida-religio-
sa.html).

73
Al respecto, otro entrevistado sostuvo el mismo pasaje bíblico,
dando cuenta que el Opus Dei tiene como fundamento primordial a
la Biblia como libro sagrado, que debe ser respetado al pie de la letra
de manera dogmática: “el concepto de matrimonio donde Jesucristo
dijo claramente que el hombre no separe lo que dios ha unido” (Nu-
merario 2).
El matrimonio y la familia constituyen el medio “natural” para la
búsqueda de la santidad. Desde esta perspectiva, la familia necesita, y
por ello, debe ser estable y duradera, por lo cual se impide la posibi-
lidad del divorcio “por eso algunos autores dicen que el matrimonio
indisoluble sea una exigencia de la naturaleza antes que un producto
de las tradiciones culturales o de las creencias religiosas o un invento
del Estado” (García, M. A. y Segura, A., 2016: párrafo 5).
El sexo sólo es admisible dentro del matrimonio porque es prueba
del “amor verdadero”. No se busca solo el placer sino una unión supe-
rior en cuerpo y alma. Una sola carne, y con el fin de la procreación.

El sexo no es una realidad vergonzosa, sino una dádiva divina que se or-
dena limpiamente a la vida, al amor, a la fecundidad. Ese es el contexto,
el trasfondo, en el que se sitúa la doctrina cristiana sobre la sexualidad.
Nuestra fe no desconoce nada de lo bello, de lo generoso, de lo genuina-
mente humano, que hay aquí abajo. Nos enseña que la regla de nuestro
vivir no debe ser la búsqueda egoísta del placer, porque sólo la renuncia
y el sacrificio llevan al verdadero amor (Escrivá, 2015: párrafo 12).

Se debe mantener la castidad conyugal; a través de la cual se exclu-


yen de la vida sexual actos indignos “los que no son verdaderamente
humanos” (ídem sgte. párrafo 13) “…egoísmo, agresividad, atropello,
cosificación del otro, narcisismo, lujuria, violencia…” (Escrivá Ivars,
2016: Párrafo 12) con el fin del cuidado del amor auténtico y del do-
minio de sí, de los impulsos que pudieran rebajarlo a puro sexo, físico,
sin “alma”.

74
Las fuerzas instintivas, emocionales y racionales que se hallan presen-
tes en la dimensión sexual de los esposos se ordenan y se transforman
en dignas de la persona humana, y del amor matrimonial, cuando se
realizan presididas por las características esenciales del amor y la unión
conyugales: en el contexto de un amor indisolublemente fiel y abierto a
la vida. En el matrimonio, en este sentido, también se da una escuela de
la inclinación sexual en la que no cabe el libertinaje (Escrivá Ivars, 2016:
párrafo 1).

Esta entrega es total, este cuidado del amor auténtico y digno


conlleva la aceptación de la paternidad y maternidad siempre; dado
que el fin de la sexualidad es la procreación, acto en el que los esposos
comparten con dios la acción creadora, la trasmisión de la vida.
Los esposos, por motivos contundentes, pueden evitar buscar una
nueva concepción –siempre a través de un método natural- pero es-
tarán siempre abiertos a su paternidad y maternidad “no hacen nada
positivo que se oponga a la concepción” (Melendo, 2016: párrafo 43).
A partir de esta centralidad que se le da a la fecundidad podemos
comprender el rechazo hacia los métodos anticonceptivos o el abor-
to, volviendo a tomar la doctrina de la iglesia: “la Iglesia Católica, y yo
te diría que todas las iglesias cristianas, (...) defienden la vida a partir
del momento de la concepción” (Supernumeraria 1).
En ese mismo sentido,

(…) quien con su palabra o escritos apruebe el uso de la contracepción


química o se beneficie comercialmente con su difusión, debe saber que
estará aprobando el conjunto de abortos que la contracepción ha pro-
vocado y provocará(...). También debe saber que un día habrá que darle
cuentas a Dios (Albino, 2010: 144).

Para el Opus Dei el matrimonio es sólo admisible entre individuos


heterosexuales: “el mismo de la Iglesia Católica o sea que es... un

75
matrimonio cristiano que es una con uno…” (Numeraria). La sexua-
lidad está determinada desde una concepción biologicista del géne-
ro. Por ello, la homosexualidad es considerada un factor cultural de
desorden e impureza, ya que perturba lo establecido por el “orden
natural”.

… ahora vos imagínate un padre que tiene un chico de catorce años, una
chiquita de doce, casos que ocurren y que de pronto el padre plantea su
propia homosexualidad, en un momento en que la imagen paterna es
muy importante para los chicos. Por eso digo, hay un fenómeno cultu-
ral en este momento en que la identidad sexual, no solo biológica, no
responde solamente a un patrón biológico sino que tiene una influencia
de la cultura tremenda, ¿qué creo yo en lo personal? y creo que eso no
es sano, creo que no es bueno, creo que hay una alteración de algunos
patrones biológicos que no son buenos, me parece que la humanidad va
a sufrir más con estas consecuencias (Supernumerario).

Coherentemente con la concepción del matrimonio, los padres


tienen la tarea y la responsabilidad de educar a los hijos en el cami-
no de la santidad. De esta forma se van transmitiendo los valores de-
seados para los miembros de la Obra: dignidad, caridad, santificación
del trabajo, etc. Ejemplo de ello lo constituye la educación en el pudor.
Como venimos observando hay una marcada influencia sobre el trato
del cuerpo propio y el ajeno, sobre el “buen gusto”, sobre las eleccio-
nes de las amistades, etc.:

En tal sentido, Karol Wojtyla afirmaba que el pudor es la tendencia


de todo ser humano, a esconder sus valores sexuales en la medida en
que serían capaces de encubrir el valor de la persona; es un movimien-
to de defensa de la persona que no quiere ser objeto de placer, ni en el
acto, ni siquiera en la intención sino que quiere, por el contrario, ser
sujeto destinatario de amor. Así por ejemplo, para un jovencita, vestir

76
pudorosamente no es otra cosa que vestirse de modo tal que el cuerpo
no tape su persona ante aquellos muchachos que podrían verla (Albino,
2010: 107).

La curiosidad de los niños no debe ser indiscriminada. Esto es: se


trata de saciar el ansia de saber de los niños en forma escindida del
cuerpo, en el sentido de que éste tiene siempre una connotación ne-
gativa si no se lo enlaza a un fin superior -“cuerpo-templo de dios”-.
Para esto son muy precisos con las conductas que las familias deben
tener internalizadas: desde el resguardo de “puertas cerradas” hasta
las demostraciones de cariño de los padres frente a los hijos, conduc-
tas y clima hogareño para “una efectiva defensa y ayuda para guardar
la pureza del corazón” (De La Vega, 2014: párrafo 2).
Las expresiones y ensayos del despertar de la sexualidad son vistas
como necesarias de ser reprimidas. El contemplarse, la imagen, los
modos de tratarse y vestir de las chicas y chicos son un punto neurál-
gico de la educación en el pudor. “Cualquier forma de vestir que re-
sulta contraria al buen gusto no debe entrar en el hogar” (De La Vega,
2014: párrafo 4). Siguiendo esta línea “...un buen atuendo ayuda así
a que se respete la propia libertad sin exponer la intimidad a miradas
indiscretas, dado que contemplar algo es, en cierta medida, poseerlo”
(Walters, 2015: párrafo 3).
Las formas de diversión de los jóvenes constituyen una fuerte
preocupación de los adultos de la Obra:

Y también hace falta acabar con la insensata cultura de los boliches y


demás locales nocturnos, los cuales, con independencia de la legitimidad
de bailar y divertirse, para nuestros jóvenes son focos de droga y alcohol,
sexo precoz y música a decibeles lesivos del sistema nervioso, violencia
física y falta de descanso; es decir, antros desgraciados que, tras lesio-
nar el sistema nervioso con traumas acústicos… derivados de la música
violenta y dañar la mielina del sistema neurológico con las consabidas

77
borracheras (o fumatas) semanales, fomentan además, la falta de domi-
nio de los jóvenes, pues los incapacitan para gozar virtuosa y amable-
mente de la propia sexualidad (Albino, 2010: 100).

El entorno es muy importante para la formación y la educación


en el pudor, por eso otro aspecto que las familias no deben descuidar
en resguardo de sus hijos, es la elección del lugar al que se sale de
vacaciones: “En muchos países, las playas en verano son poco acon-
sejables; incluso cuando se ponen medios para evitar un panorama
poco edificante, el clima general es tan descuidado que dificulta el
decoro” (De La Vega, 2014: párrafo 5).

A modo de conclusión que no concluye...


Al cabo de haber realizado esta exploración sobre el Opus Dei pode-
mos afirmar que se trata de una organización que irrumpe dentro de
la escena católica preconciliar de una forma sumamente novedosa y,
a través del siglo XX hasta la actualidad, se constituye como un actor
fundamental del Vaticano. A lo largo de este período pasa de ser una
pequeña organización paralela a la Iglesia, hasta ser la única Prelatura
Personal de la misma, mientras que su fundador Josemaría Escrivá es
beatificado y luego canonizado en tiempo récord por el Sumo Pontífi-
ce Juan Pablo II en el año 2002.
Podemos decir que el Opus Dei representa uno de los grupos más
conservadores y recelosos de las palabras de la Biblia, como también de
los sacramentos y dogmas, que existen en la Iglesia Católica, ya que, des-
de un mensaje asociado al Proyecto Sacerdotal, basado en el sistema de
valores de Mancha-Pureza, sostiene el orden jerárquico y la desigualdad
social. No obstante, la innovación de este grupo fue atravesar el umbral
que separaba lo secular de lo clerical, lo profano de lo sagrado, estimu-
lando la democratización de la posibilidad de ser “santo” para cualquier
cristiano comprometido que se animara a cristianizar la sociedad civil.

78
El Opus Dei responde a la secularización, busca recristianizar y san-
tificar la sociedad sin cuestionar el orden establecido. La Obra contri-
buye a profundizar un sistema de dominación social a través de diver-
sos consejos y reglas que apuntan a santificar cada ámbito de la vida;
sin embargo, son consejos y reglas que no todos pueden seguir. Esto
lo hace a través de valores como la obediencia, el pudor, la observancia
sacramental, el respeto por las instituciones sociales como el matrimo-
nio heterosexual, la concepción y todo lo que representa la familia nu-
clear junto con el repudio al divorcio, al aborto y a los anticonceptivos;
lo que más se destaca es la santificación por medio del trabajo. Esto
último implica la aceptación de cualquier trabajo y obstaculiza la posi-
bilidad de cuestionar si este presentara condiciones precarias o injustas.
Sin embargo, el Opus juzga la moralidad de ciertas ocupaciones desde
el sistema de valores Mancha-Pureza, como sinónimo de pecado y santo.
Esto nos permite afirmar que el Opus Dei se trata de un movi-
miento sacerdotal y conservador pero secular y moderno al mismo
tiempo. A través del análisis realizado podemos decir que el Opus Dei
logra tener dicha dinámica debido a sus características sectarias y fun-
damentalistas con las que se desenvuelve hasta la actualidad.
Su fundamentalismo se sostiene en la búsqueda de la santificación de
la totalidad de la vida del sujeto, a través de la interpretación literal de la
Biblia, en la defensa celosa de los dogmas de la Iglesia y en la fidelidad y
adoración a la figura del Padre Fundador de la Obra, Josemaría Escrivá de
Balaguer. Teologizan cada ámbito de lo profano: el trabajo, la educación,
la familia, la sexualidad para que los fieles en medio de un mundo cada
vez más secularizado puedan practicar su fe sin contradicciones. Todo
esto se refleja en las distintas instituciones y emprendimientos que gene-
ra para santificar la sociedad civil: escuelas, universidades, hospitales, ca-
sas de formación y acompañamiento en la fe y en los dogmas religiosos.
También es fundamentalista cuando Escrivá impone la santa coac-
ción como norma a seguir, siendo que coacción es la fuerza o violen-
cia con la que se obliga a alguien a hacer algo determinado por más

79
que se utilice la salvedad de santa que es más un eufemismo para cali-
ficar al objetivo sacralizándolo y así lavar su conciencia y su connota-
ción negativa. Otro elemento claro de su preocupación por la correc-
ción política y la imagen pública de la Obra.
Su sectarismo se observa en las siguientes características: sus ini-
cios históricos secretos y ocultos; su proceso de ingreso a través de
una carta de solicitud enviada a las autoridades para la admisión a
modo de rito de pasaje, acto fundante de conversión y promesa de
obediencia; el priorizar la calidad de los fieles por sobre la cantidad,
siguiendo una lógica de “pocos pero fuertes”, con un dogma suma-
mente estricto y una ética extrema. Es en este punto quizás donde
radica la mayor diferencia con algunas congregaciones pertenecientes
a la Iglesia Católica, ya que podríamos decir que varias congregacio-
nes tienen un dogma estricto y una ética extrema, pero la novedad del
Opus Dei en este aspecto es que busca santificar la vida cotidiana por
completo, de manera integral, avanzando sobre la totalidad de la vida
del sujeto, ejerciendo una vigilancia minuciosa sobre cada momento,
buscando sacralizar todo, y suprimiendo la existencia de momentos
profanos.
La verticalidad es otra característica importante, ya que ordena el
mundo jerárquicamente de forma patriarcal, colocando en la cima a
Dios, y luego en orden decreciente a Cristo, el Sumo Pontífice, Es-
crivá, el sacerdote, el guía numerario y por último los fieles. Además
la adoración de la figura del líder carismático como palabra sagrada,
poseedor de una verdad revelada, también es una característica que
acerca al Opus a las sectas, en un ejemplo evidente de personalización
del poder absoluto y de obediencia ciega a éste.
Otro elemento típico de la secta es el tema del sacrificio. En el
caso del Opus, éste se da a través del ascetismo, la abnegación, la
mortificación, el dolor y el sufrimiento. Estos son valores que apa-
recen tanto en los textos del Opus como en las entrevistas a sus inte-
grantes. Cualquier malestar que les pudiera causar la vida cotidiana,

80
es interpretado como un sacrificio para santificarse. El dolor o la ab-
negación de cualquier deseo “mundano”, es vivido como una mor-
tificación en demostración de fidelidad y aceptación a los preceptos
divinos. A través del esfuerzo en el trabajo persistente y silencioso,
de la obediencia y la prudencia de las “buenas maneras”, el fiel se
santifica. Por medio de estas prácticas se relacionan, demuestran
su amor y se acercan a su Dios, el cual “bendice” a sus fieles con
“méritos” y “virtudes”. Estos justifican la posición social y el éxito
profesional ya sea desde roles dirigentes o auxiliares. Cabe destacar
que los estratos superiores del Opus Dei, a pesar de gozar de una
buena situación socioeconómica, no muestran actitudes ostentosas
sino más bien austeras, y esto podría considerarse como parte de su
sacrificio.
En la obra Camino, pilar fundamental del dogma del Opus Dei,
Escrivá de Balaguer hace gran cantidad de referencias dando un rol
central al tema del sacrificio para alcanzar el estado de pureza. Los
fieles suelen abstenerse de beber un vaso de agua al sentir sed como
forma de hacer un pequeño sacrificio. Indagando más insistentemen-
te a los entrevistados -ya que hay cierto recelo para hablar de algunos
temas que desafían el límite de lo políticamente correcto- aparecen
en el relato la existencia de las disciplinas y el cilicio. En este sentido
el “Padre” sostiene que los fieles “Conserven fielmente la piadosa cos-
tumbre, para castigar el cuerpo y reducirlo a servidumbre, de llevar
al menos durante dos horas cada día un pequeño cilicio, de recibir las
disciplinas una vez por semana…” (Opus Dei, 1986a: art. 260). Esto,
para ellos, permite purificar el cuerpo -que es lo manchado- para así
santificarlo.
Finalmente, podemos concluir este trabajo -sin ser del todo con-
cluyentes con respecto a la Obra que se encuentra en transformación
constante- afirmando que, si bien el Opus Dei tiene características
conservadoras y fundamentalistas, propias de una secta -por ejem-
plo, manteniendo durante largo tiempo su dogma de manera secreta,

81
oculta-, ha logrado construir una imagen pública “lavada” y un dis-
curso políticamente correcto para poder esquivar críticas y acusacio-
nes. Esta imagen, oculta ese costado más polémico a fin de lograr el
éxito en sus santos propósitos.

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83
O Sexismo Institucional Eclesial e
sua Violência Simbólica. Uma leitura
crítica a partir de Pierre Bourdieu.
Railson da Silva Barboza1

Introdução
Entende-se a definição de sexismo (DRUMONT, 1980) como um sis-
tema de representações simbólicas, que mistifica as relações de explo-
ração, de dominação, de sujeição, entre o homem e a mulher. O ma-
chismo utiliza o argumento do sexo como instrumento de validação
que reduz à hierarquização sexual, separando em polos dominante
e dominado (p.82). O machismo, como foi definido acima, está re-
lacionado com o que entendemos por Gênero, pois o machismo se
dá através da sobreposição de um sob o outro, do masculino sobre o
feminino. Todavia, qual significado desse termo, tão aprofundado em
estudos sociais recentes?
Mesmo sendo um conceito socialmente novo, historicamente as
relações de gênero são tão antigas quanto a própria existência hu-
mana. Existe uma enorme diversidade na existência humana (raça,
idade, classe social, sexo, etc.), sendo a priori herdada geneticamente,
a posteriori condicionadas pelo ambiente social. O conceito Gênero

1.  Mestrando em Política Social, na Universidade Federal Fluminense (UFF). Brasil. Bacharel
em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: rail-
son_barboza@yahoo.it

84
elucida os processos da história humana, das diferenças biológicas
(macho/fêmea), entretanto continua desenvolvendo e desvelando
como essas diferenças foram sendo enquadradas discursivamente pe-
las forças de poder, naturalizando corpos biologicamente distintos,
impondo, determinando e fazendo prevalecer representatividades de
papéis sociais dos corpos sexuados, que reproduzirão historicamente,
relações desiguais baseadas nas diferenças percebidas desses corpos
marcados por sua biologização (ARAUJO, 2011, p.3). Gênero, portan-
to, engloba tanto o masculino como o feminino, sendo que sua pro-
blematização advém da análise sobre as relações desiguais construí-
das historicamente entre o feminino e o masculino. Atualmente, por
diversos meios a disparidade de gênero é propagada e disseminada,
sendo algo calculado com um objetivo específico. Quais meios disse-
minam? Por quais instrumentos? Quais seus objetivos?
Durante o artigo vemos como os ritos, fenômenos e leituras teo-
lógicas foram construídas em torno da diferença de gênero. Por in-
termédio da Igreja Católica, se solidifica uma estrutura hierárquica
e pragmática pautada no poder centralizador masculino, tratando
o feminino como subjugado ou dependente, submisso e sem voz.
Mais adiante, entende-se que os discursos proferidos pelas autorida-
des eclesiásticas, e pela própria Igreja, atuantes no modo de agir de
algumas pessoas, mantendo sua atuação dominante nos campos re-
ligiosos e civis. Têm-se por objetivo mostrar a força simbólica da insti-
tuição religiosa enquanto formadora de opinião, agindo diretamente
nos hábitos cotidianos, bem como nas relações de dominação do gê-
nero masculino sobre o feminino.

Ritos e Divinização do Dominante.


Neste ponto do trabalho, acho importante trazer o debate sobre a
divinização da figura masculina através dos ritos religiosos. Por meio
dos ritos, a instituição religiosa, no caso a Igreja Católica, legitima o

85
seu modo de pensar e agir, baseando na figura “paternal” de Deus o
status dominante masculino. Assim, trato de explicitar neste ponto
como essa divinização masculina se deu e como a leitura religiosa se
transforma num instrumento de propagação do machismo.
Durante toda a história, sequências de fenômenos religiosos ocu-
param e adequaram determinado lugar, se apossando e introduzindo
suas crenças e hábitos. Os ritos, as consagrações, ordenações da insti-
tuição têm importância dobrada em virtude de seu caráter extraordi-
nário e transcendente.
A concepção do referencial masculino como protagonista da se-
xualidade e o feminino como coadjuvante é uma concepção que
permeia a cultura ocidental por séculos, ou até milênios. Desde as
primeiras sociedades conhecidas, passando por aquelas diferenciadas
pela estrutura religiosa, há uma visão patriarcal aonde o masculino
é ritualizado e cultuado como o ser dotado de ação, decisão, de che-
fia, tanto na estrutura privada (família) quanto na estrutura pública
(trabalho). Historicamente, é naturalizado ao masculino a posição so-
cial de agente do poder da violência, detentor do monopólio da força,
uma relação direta entre as concepções vigentes de masculinidade e
o exercício do domínio de pessoas, das guerras e das conquistas (MI-
NAYO, 2005).
Para Bourdieu (2012), tudo isso visa instaurar em nome e em pre-
sença de toda a coletividade para tal mobilizada, uma separação sa-
grada, marca distintiva e introdutória de um rito de passagem, que ao
ser dignificada, exclui definitivamente as que são consideradas indig-
nas, ou seja, as mulheres (p. 34-35). Na religião judaica, berço de todo
monoteísmo ocidental, no caso da circuncisão, que por excelência é
um rito de instituição da masculinidade, o infante tem sua virilidade
consagrada como um dom de Adonai2, a fim de prepará-lo simbolica-

2.  Entre os hebreus, Adonai é o título de maior honra utilizado para Deus na Literatura He-
braica. Nenhum outro título tem valor mais definitivo a Deus do que este, pois é designado a
partir de seu atributo de Senhor, o poder que emana de Deus.

86
mente para sua vida religiosa. Dentro dessa perspectiva, a masculini-
dade é vista como dom e a feminilidade como um castigo, pois esta é
excluída dos principais ritos de iniciação, como no Barmitzva, ou no
caso da circuncisão.
Essa série de ritos institucionalizados visam destacar cada agen-
te, homem ou mulher, designando sua função social através da
distinção sexual, estimulando as práticas que convém a cada sexo,
tangendo hábitos e posturas, proibições e permissões de condutas,
consideradas como próprias ou impróprias, sobretudo na relação
entre os sexos (BOURDIEU, 2012, p.35). Vê-se, que a estrutura re-
ligiosa imersa na masculinização institucional cria uma disparidade
sexual, inferiorizando aquela considerada como sujeita apenas aos
serviços de cuidado do ambiente privado, excluindo-a dos principais
ritos, enquanto diviniza o outro, conferindo-lhe status de dignidade
e de excelência. Além disso, a exclusão do feminino nos principais
momentos de ritualização da instituição religiosa, que ultrapassa a
esfera religiosa, chegando até os meios de socialização daquela co-
munidade, cria a noção de que as mulheres não são “puras”. O que
remete a uma denominação que redunda numa negação total das
virtudes femininas, ou qualquer influencia que advenha da relação
materna, que influi diretamente no poder de criação e educação pe-
las mulheres.
Outro aspecto que se pode destacar do fenômeno religioso como
instrumento de propagação do sexismo, advém da ideia de depen-
dência existencial da mulher ao homem e, não menos importante, da
mulher como obra pecaminosa ou incentivadora do pecado. O cris-
tianismo, contudo, se apropria deste conceito para formular sua hie-
rarquia eclesial, destinando apenas aos homens e sem espaço para as
mulheres. No segundo Capítulo do Gênesis, livro da Bíblia que trata
dos aspectos da criação de Deus, está escrito que a mulher é nomeada
a partir do homem, pelo homem. Adonai retira do homem uma parte
de seu corpo (a costela) e a partir dela faz nascer a mulher.

87
[...] Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma
mulher e a trouxe a ele. Disse então o homem: “Esta, sim, é osso dos
meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque
do homem foi tirada”. (BÍBLIA, 2000, Gênesis 2:18, 21-23)

A hermenêutica proveniente desta leitura aponta, em sua maioria,


para a condição da mulher subalternizada ao homem, ou existente
por causa do homem. Sua condição de existência, filosoficamente,
seria “à partir de” e não “por si mesma”. Todas essas interpretações
hermenêuticas literais e semióticas, abrem espaço para o apontamen-
to da existência da mulher à partir da carência do homem. A mulher,
por si, não tem vontade nem escolha, existindo apenas por causa da
ausência de companhia do homem. Por conta da noção e história do
pecado, a mulher é reduzida ao máximo de sua potencialidade, tor-
nando sua existência sinônimo de pecado e atração ao erro, o oposto
da masculinidade que está intrinsecamente ligada a Deus, Pai, Ho-
mem, Criador. Para a mulher, recai a culpa e responsabilidade pela
queda, pela expulsão do Paraíso, pois o homem exime sua parcela de
culpa ao responsabilizá-la pelo oferecimento e persuasão para comer
do fruto da árvore, que fora proibida por Adonai (Gênesis 3, 12-13).
O cristianismo ao trazer todo esse aparato teológico para funda-
mentar sua estrutura física e espiritual, cria uma rede de socialização
religiosa (catecismo, bíblia, frequência nas missas, a imersão do su-
jeito num mundo impregnado de religiosidade) que permite a pro-
pagação da inferioridade da mulher, traduzindo uma forma de poder
e dominação interior, que se traduz nos hábitos e comportamentos.
Elas, por si, são justificadas e propagadas pela eficácia da mensagem
religiosa (através das pregações nas igrejas, bulas papais, profecias,
etc.), fabricando através da crença o processo de violência simbólica.
Na própria Sagrada Escritura, encontramos passagens utilizadas
para reforçar a dependência e inferioridade da mulher em relação ao
homem, resquícios herdados do Patriarcado Judaico, reforçado por

88
um ex-judeu convertido ao cristianismo: Paulo. Um grande exemplo
está em sua carta dirigida aos Efésios, que em seu 5º Capítulo reforça
a autoridade masculina e a submissão da mulher: “As mulheres sejam
submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe
da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o
Salvador.” (Ef 5, 22-23). A submissão, como é dita por Paulo, é uma
total subserviência ao outro, sem poder de escolha ou autonomia nas
ações, pois o homem é a figura divina naquela família. Família, in-
clusive, é o respaldo teológico que justifica essa submissão feminina,
pois a responsabiliza pelo cuidado doméstico, com os filhos e com o
bem estar do seu cônjuge, reduzindo a figura da mulher apenas ao
ambiente familiar. Desse modo, a religiosidade expressa pela institui-
ção Igreja Católica se torna mais uma violência simbólica, traduzida
numa força que adestra os corpos e legitima o poder dominante.

A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos,


diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas
essa magia só atua com o apoio de predisposições colocadas, como
molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos. (BOURDIEU,
2012, p.50)

A relação de Domínio entre os géneros e sua validação insti-


tucional religiosa.
No ponto anterior do trabalho, analisamos a influência direta que a
mitificação religiosa tem sobre a divisão sexual e a sobreposição do
masculino ao feminino. A divisão sexual está inscrita, segundo Bour-
dieu, na divisão das atividades produtivas que nós associamos à ideia
de trabalho. Entende-se o conceito de trabalho, nessa perspectiva,
como algo que vai para além da divisão do capital social e simbólico,
englobando atividades que envolvam diretamente os indivíduos de
forma geral. Essa divisão, apontada pelo autor, fragmenta ainda mais

89
a valoração atribuída a cada gênero, favorecendo o monopólio pela
parte masculina de todas as atividades oficiais, públicas, de represen-
tação e em particular, de todas as trocas de honra, das trocas de pala-
vras, que se dão nos encontros diários e sobretudo nas assembleias ou
convenções (BOURDIEU, 2012, p.60). A socialização dos espaços pú-
blicos, as relações interpessoais, a valoração atribuída às capacidades,
sofrem com a influência normativa e pejorativa advindas do misticis-
mo religioso. Em todo o ritualismo, que foi tocado no ponto acima
deste trabalho, há uma divinização do gênero masculino pari passo
uma desvalorização do feminino, que se torna oposto do masculino,
tanto na prática dos afazeres quanto no aspecto moral, se tornando
sinônimo de “pecado”, “sedução”3.
Quando retomamos a discussão sobre a influência religiosa e seu
modus operandi de reprodução dessa relação dominante x dominador,
a leitura feita a partir da Gênese e estrutura do campo religioso, de Bour-
dieu (2011), por Guidotti (2015), aborda a pretensão religiosa em “ar-
quitetar explicações de mundo cuja aceitação seja condição sine qua
non para sua existência”. Suas explicações, continua, “precisam aten-
der as ansiedades de todos os grupos a partir das condições materiais
e sociais de suas existências, respectivamente” (p.3). A sobrevivência
de suas ideias devem coadunar com o discurso heteronormativo e
sexista, aonde se alicerçam seus fundamentos hierárquicos e doutri-
nais, raízes de sua propaganda de exaltação e divinização masculina.

[...] as explicações religiosas necessitam ir de acordo com os interesses


dos grupos dominantes, para que estes mantenham-se em tal situa-
ção e que os grupos dominados compreendam a condição que lhes foi

3.  A concepção de pecado, sedução, advém da memória da personagem Eva, do Antigo Tes-
tamento, que personifica essa desvalorização (ou demonização) do feminino. Somente no
Novo Testamento, com a figura de Maria, Mãe de Jesus, o feminino ganha um status de
“remissão”. Todavia, a remissão se dá pela maternidade de Maria, relacionada também com
sua virgindade perpétua (um dogma alguns séculos depois), modelo de mulher a ser seguido:
mãe, esposa e submissa à vontade de Deus.

90
imposta, pois isto lhe propicia à religião devida aliança com aqueles que
detêm o poder, pertinente para sua situação de monopolização do cam-
po religioso [...]” (GUIDOTTI, 2015, p.3)

Assim, a hermenêutica religiosa atua subordinando “às funções


socialmente diferenciadas de diferenciação social e de legitimação das
diferenças”, de maneira que “as divisões efetuadas pela ideologia re-
ligiosa vêm recobrir as divisões sociais em grupos ou classes concor-
rentes ou antagônicas” (BOURDIEU, 2011, p. 30-31), atuando sempre
em favor dos opressores e contra os oprimidos, tanto no aspecto da
desigualdade como no da discriminação. Seu discurso, para ser ab-
sorvido e propagado pela comunidade (sociedade), necessita ser na-
turalizado, isto é, “demonstrar que as explicações sobre as condições
sociais são fruto de uma vontade divina” (GUIDOTTI, 2015, p.4). A
religião, assim, constrói concepções transcendentes sobre a realidade,
ou seja, reconhecidamente divinas, desempenhando uma função sim-
bólica de intervir na ordem social com seu discurso inquestionável,
fazendo-se presente também na lógica da política e da democracia.

[...] não basta, contudo, que o conjunto de práticas e esquemas de pen-


samento religioso seja coerentemente estruturado para exercer essa fun-
ção social. Sua eficácia simbólica reside em sua capacidade de inculcar-se
nos membros de uma dada sociedade, e assim moldar seu comporta-
mento. Em outras palavras, a religião só é socialmente eficaz quando
seus esquemas de pensamento se inscrevem nas consciências individuais
e nelas se incorporam como se naturais fossem, transformando-se então
em hábitos. (OLIVEIRA, 2011, p.180-181)

Para que haja uma influência na vida das pessoas, e que sua ora-
tória seja cada vez mais aderida e propagada, a Igreja como institui-
ção se apropria do aparato burocrático. A burocracia, em Weber,
“tem um caráter ‘racional’: regras, meios, fins e objetivos dominam

91
sua posição” (WEBER, 1982, p. 282). Podemos dizer que a burocra-
cia descansa na aceitação da validez de algumas leis, de forma que as
atividades destinadas a atingir os objetivos organizacionais, apresen-
tam-se aos executores como ‘deveres oficiais’. Portando, para Weber
a burocracia é um eficiente instrumento de poder. “A configuração
das organizações burocráticas propicia uma articulação entre os inte-
resses propriamente daqueles que gerenciam a organização para com
os que ocupam os diversos cargos e funções” (GUIDOTTI, 2015, p.7),
contribuindo para os objetivos previamente estabelecidos pelo corpo
dominante, que ocupa o topo da pirâmide hierárquica, estreitando
alianças com outros grupos dominantes, favorecendo a manutenção
desse jogo de domínio. A burocracia se torna assim, uma ferramenta
de poder, explicitando a relação entre a Igreja e as classes dominan-
tes, As instituições se tornam instrumentos de relações burocráticas,
garantindo o controle social por meio das relações de poder, que por
sua vez ocorrem sempre entre desiguais.
As organizações burocráticas se tornam unidades de dominação,
responsáveis pela propagação ideológica, pela absolvição da submis-
são sexista, pelo controle dos comportamentos através de regras so-
cialmente aceitas. A organização burocrática, aqui entendida como a
instituição religiosa, configura-se numa estrutura de poder e controle
(FARIA e MENEGHETTI, 2011, p. 434). Essas organizações, que são
estruturadas pela hierarquia exercem significativo papel de controle,
traçando uma relação de vigilância e de disciplinamento, essenciais
para garantir qualquer tipo de submissão.
Vê-se, portanto, que além do discurso e sua propagação, a rela-
ção burocrática que o grupo dominante encontra na religiosidade
favorece a legitimação da subalternidade feminina, usando do ins-
trumento da fé como respaldo na perpetuação das relações de do-
mínio. Para que seja perpetuada a dominação, diversos instrumentos
são utilizados de acordo com seus propósitos: a importância da po-
sição conservadora em reproduzir a divisão de classes, cuja essência

92
fundamenta-se na desigualdade intrínseca ao capitalismo, conecta
a formação de valores culturais produzidos pela Igreja e sua legiti-
midade na hierarquização e subalternidade do gênero feminino ao
masculino.
Assim, estigmatiza-se a inferioridade da mulher em relação ao
homem, não apenas restrita ao âmbito religioso, mas social, repro-
duzida no controle e regulamentação do corpo feminino (questões
sobre o aborto), na desigualdade salarial e na exclusão em decisões
públicas, políticas e religiosas. E, conforme sua classe social, isso vai
se tornando mais forte e frequente. Por isso, as alianças dos governos
ultraconservadores serão sempre estabelecidas com os setores fun-
damentalistas e também ultraconservadores religiosos, pois são eles
reprodutores do status quo dominante masculino.

Considerações finais
Ao refletirmos a abordagem teórica levantada pelo trabalho, sobres-
saem diversas questões que evidenciam a influência do dogmatismo
religioso na sociedade, através de seus múltiplos instrumentos de
participação. Influência, esta, que tem como um de seus objetivos a
perpetuação da posição de dominante da hierarquia eclesial, compos-
ta por homens, através da propagação da hermenêutica doutrinal e
bíblica, que justifica a sobreposição sexista ao feminino. No entanto,
através da leitura de Bourdieu e outros autores citados, pode-se iden-
tificar questões que vão para além da análise das influências externas,
notórias, que os hábitos evidenciam, que transformam os discursos
religiosos em diversos tipos de violência, sejam eles simbólicos ou
materiais.
Todavia, uma questão que pode surgir dessa análise está ligada ao
fato de que esta violência simbólica não somente atinge as mulheres,
de uma forma geral, mas aprisiona os homens na sua representação
de figura dominante. Nas palavras de Bourdieu (2012),

93
“se as mulheres, submetidas a um trabalho de socialização que tende a
diminuí-las, a negá-las, fazem a aprendizagem das virtudes negativas da
abnegação, da resignação e do silêncio, os homens também estão pri-
sioneiros e, sem se aperceberem, vítimas, da representação dominante”.
(BOURDIEU, 2012, p.63)

O que pode-se constatar é que ambos os lados sofrem com a obri-


gação de se adequarem à um status controlado por regras de manipu-
lação, no intuito de manutenção de seus privilégios, através de uma
linguagem acessível e facilmente recebida. Discorre Bourdieu, que o
privilégio masculino é uma cilada que encontra sua contrapartida na
tensão e contenção permanentes, “levadas por vezes ao absurdo, que
impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circuns-
tância, sua virilidade” (BOURDIEU, 2012, p. 64).
Para além de um levantamento de conceitos teóricos, o que essa
dinâmica nos revela é que as instituições burocráticas religiosas por-
tam o poder e controle de manutenção dos grupos ou classes na con-
dição de explorados e subalternos, numa relação intrínseca de desi-
gualdade, muitas relacionadas quase sempre e exclusivamente com
a condição de trabalho dos indivíduos com o intuito de conservar o
poder político das instituições religiosas, no que tange a monopoliza-
ção e perpetuação de seu discurso.
A Igreja, como instituição bimilenar deveria ajudar na construção
de uma sociedade mais justa e igualitária, tanto no aspecto humano
como social. Durante o trabalho, procurei estabelecer um diálogo en-
tre os autores, em especial Bourdieu, para debater sobre a influência
da Igreja, como instituição, nos hábitos e costumes cotidianos. Ela se
apropria da hierarquia judaica, bem como seu referencial patriarcal,
fincando bases para construção de sua moralidade. Moralidade essa,
como vimos, pautada na figura do homem como ser feito à imagem
e semelhança de Deus, traduzindo seu protagonismo na vida social.
Com isso, a figura do feminino é vista como coadjuvante, subalterna,

94
tanto na vida social como na vida religiosa. A discussão paira entre
esses elementos: a religiosidade como fonte de adestramento, o res-
paldo teológico-bíblico que a Igreja encontra para justificar seu dis-
curso e o resultado deste na vida social, influenciando na separação
de gênero.
Numa sociedade em que organizações influenciam diretamente
num cenário vergonhoso quanto ao real valor da dignidade humana,
a partir da exploração da força produtiva e de suas consequências po-
líticas, culturais e sociais, sublinha Guidotti (2015, p. 8), o sujeito “há
de se posicionar de tal modo que essa configuração social seja contes-
tada”. Sem o devido embate contra as forças dominantes, sejam elas
institucionalizadas ou fincadas no cotidiano, tende-se a manutenção
contínua deste cenário, que privilegia em diversos aspectos a figura
masculina, carregando consigo o discurso patriarcal e religioso, ins-
trumentos essenciais para a propagação e manutenção do status quo
religioso. Através da luta constante e de uma mudança nos valores
pré-estabelecidos, creio, há possibilidade de mudança e um vislumbro
de uma nova sociedade, pautada na igualdade e sem sobreposição de
classes. Porém, para que haja uma transformação da sociedade plena-
mente de forma plena, é necessário que haja a igualdade de gênero,
tanto social quanto religiosamente.

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96
Os Princípios Ideológicos dos
Evangélicos na Política Brasileira
Luana Reis Andrade1
Luci Faria Pinheiro2

Introdução
Nas últimas três décadas, o número de cristãos evangélicos vem so-
frendo uma grande expansão e a maioria é composta por neopente-
costais. Tal crescimento causou alterações no campo religioso brasi-
leiro e contribuiu para uma reconfiguração da esfera pública, tendo
em vista a apropriação, por parte deste grupo, de meios de comu-
nicação de massa3 e também do crescente ativismo político. Assim,
seus representantes vêm alcançando cada vez mais posições de des-
taque, ao defender pautas relacionadas a questões morais, aos valores
da família, bem como do combate ao comunismo e aos movimentos
de esquerda, refletindo o avanço do conservadorismo e suas formas
específicas, sobretudo nas últimas eleições presidenciais. Diante disso,

1.  Doutoranda em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Brasil.
2.  Doutora em Antropologia e Sociologia Política, Professora da Escola de Serviço Social e
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade Federal Flumi-
nense-UFF.
3.  Diversas igrejas são proprietárias de canais de TV aberta e programas de rádio, ou ainda
investem em tele-evangelismo. É o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mun-
dial, Igreja Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, Assem-
bleia de Deus, entre outras.

97
o presente artigo busca analisar as ideias centrais que mobilizam os
evangélicos no cenário político brasileiro, com sua defesa do poder da
religião no Estado em detrimento do Estado laico.
Por meio de uma revisão bibliográfica, recuperamos a trajetó-
ria histórica desse segmento religioso, analisando a relação entre o
protestantismo, o pentecostalismo e neopentecostalismo no Brasil.
Posteriormente, foi feita uma análise de dois documentos pertinen-
tes à atuação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) do Congresso
Nacional, no intuito de identificar as ideias e conceitos presentes, qu
e podem fornecer pistas dos interesses defendidos por este grupo: o
Estatuto da FPE e o “Manifesto à Nação: O Brasil para os brasileiros”,
um documento de 2018, que contém as diretrizes da legislatura que
se iniciou em 2019.
Em tempos de ataques severos aos frágeis direitos sociais conquis-
tados no país, ao mesmo tempo em que se assiste ao avanço dos seg-
mentos ultraconservadores da sociedade, tendo na política seus re-
presentantes que, através do fundamentalismo religioso, defendem a
moral e os valores da família (baseados em sua fé), despresando princí-
pio de laicidade do Estado, torna-se fundamental e urgente analisar
e refletir sobre este processo e seus rebatimentos na sociedade, e na
própria democracia.

Breve histórico do (neo)pentecostalismo no Brasil


De acordo com Rolim (1985), o protestantismo histórico no Brasil
preparou terreno para o estabelecimento e desenvolvimento da re-
ligião pentecostal. As primeiras igrejas pentecostais no país foram a
Congregação Cristã do Brasil, fundada em São Paulo, em 1910, e a
Assembleia de Deus no Pará, em 1911. Ambas eram baseadas na ex-
periência dos grupos brancos estadunidenses, marcada pela separação
clara entre o religioso e o social. Os novos convertidos deveriam abs-
ter-se das reivindicações sociais, não por omissão, mas como recusa,

98
o que encaminhou os crentes para um horizonte a-histórico. Enquan-
to segmentos da burguesia e altos setores da classe média seguiam o
protestantismo, o setor cafeicultor e a classe média permaneceram no
catolicismo. Os setores populares das classes dominadas foram o alvo
dos pentecostais, que se dirigiam diretamente a eles desde o início.
O grupo valorizava a cultura oral, em detrimento de uma formação
mínima anterior ao exercício de cargos de liderança, ou seja, já não
seria necessário frequentar seminários, desde que se tivesse o “dom
da palavra”.

Não basta dizer que os crentes, além de pertencerem às suas igrejas, tra-
balham na sociedade, exercendo profissões em geral menos qualificadas.
Importa ainda observar que estas profissões são socialmente determi-
nadas, dentro de um sistema de produção determinado, o sistema ca-
pitalista. (...) digamos que o sistema capitalista, ao mesmo tempo que
desperta nas camadas pobres aspirações para vida melhor, restringe-lhes
as oportunidades de efetivação. Assim, quando se diz que eles exercem
profissões de carpinteiros, de pedreiros, etc., não se trata apenas de pro-
fissões distintas e menos qualificadas. Trata-se ainda de um bloqueio, de
uma determinação advindos de um estreitamento de atividades em face
de aspirações a bens materiais e não materiais, o que constitui uma for-
ma de dominação. (ROLIM, 1985, p. 235)

Os fiéis deveriam, portanto, continuar exercendo suas atividades


profissionais, mantendo distância das reivindicações sociais e dos
questionamentos sobre a pungente realidade dos operários.
De acordo com Mariano (1996), posteriormente surgem as igrejas
do Evangelho Quadrangular (1951), O Brasil para Cristo (1955), Deus
É Amor (1962), Casa da Bênção (1964), sendo as três primeiras em
São Paulo e a última em Minas Gerais. Com o discurso baseado na
cura divina, uso de rádio e cultos itinerantes, houve a expansão do
pentecostalismo no país.

99
Mas é na segunda metade da década de 1970 que tem origem o mo-
vimento neopentecostal, com a fundação em 1977 no Rio de Janeiro,
da Igreja Universal do Reino de Deus-IURD, dirigida por Edir Macedo.
Em 1980, surge sua dissidente Igreja Internacional da Graça de Deus
(1980), dirigida por Romildo Soares. Ha também a Comunidade Evan-
gélica Sara Nossa Terra, que nasceu em Goiás, em 1976 e a Igreja Re-
nascer em Cristo , em 1986, em São Paulo, dentre outras menores.
E enquanto as primeiras igrejas pentecostais brasileiras eram ca-
racterizadas pelo anticatolicismo, pela ênfase no dom de línguas, por
radical intolerância, práticas austeras e comportamentos disciplina-
dos de rejeição ao mundo, os neopentecostais não adotam tais cos-
tumes, ao contrário, mostram grande acomodação, participam da
política partidária e utilizam intensamente as mídias eletrônicas.
Além disso, dão grande ênfase à guerra espiritual contra o Diabo,
relacionando-o com outras religiões, principalmente as de matrizes
africanas, e difundem a Teologia da Prosperidade, defendendo que o
cristão está destinado a ser próspero materialmente, saudável, feliz e
vitorioso em todos os seus empreendimentos. (MARIANO, 1996)
Mas tal mudança não se deu ao acaso, é expressão de um contexto
socio-econômico e político. Embora os fiéis pentecostais pertences-
sem, majoritariamente, às classes mais pauperizadas, a ascensão so-
cial de uma parte ínfima dos fiéis e a conversão de membros da classe
média, aliadas as promessas da sociedade de consumo, dos serviços
de crédito ao consumidor, das atividades de lazer e entretenimento
oferecidas pela indústria cultural, forçaram a religião a fazer conces-
sões, ajustando gradativamente suas mensagens e exigências à dispo-
sição e às possibilidades de cumprimento por parte dos fiéis. Também
houve influência de teologias, literaturas, ritmos musicais e práticas
trazidas de outros países, e do surgimento de novas igrejas e novos
líderes. (MARIANO, 1996)
Com o desejo e as condições necessárias para usufruir “das coisas
boas que o mundo podia oferecer” (MARIANO, 1996), era necessário

100
abandonar a concepção teológica vigente e, nesse sentido, a Teologia
da Prosperidade surgiu como a resposta aos anseios de justificativa
para uma vida de fortuna e felicidade. “Estes, agora, podiam se escu-
dar nas novas concepções bíblicas da TP em vez de ter de recorrer,
para seu tormento, à teologia (cf. Mateus 19: 24; Marcos 10: 25 e Lu-
cas 18:25) que falava a respeito da impossibilidade de o rico entrar no
reino dos céus tal como a de o camelo atravessar o buraco de uma
agulha”. (MARIANO, 1996, p. 28)
Dessa forma, multiplicam as programações diárias, tanto nos tem-
plos, como através dos diversos canais de comunicação, que pregam
a prosperidade, baseando-se ainda na Confissão Positiva (MARIANO,
1996) - crença de que o cristão tem o poder de trazer à existência o
que declaram, decretam, confessam ou determinam em alta voz, se-
jam coisas boas ou más.
Assim, a vitória, a prosperidade, a saúde, a felicidade são des-
tinadas ao crente, que só precisa “tomar posse” das suas bênçãos
por meio da fé e da Confissão Positiva. O contrário, o fracasso, é
atribuído à falta de fé, a não-confissão ou à ação do Diabo e seus
demônios – figuras estas que têm grande destaque nos cultos neo-
pentecostais. Outro elemento marcante do neopentecostalismo é a
grande ênfase nas contribuições, os dízimos e ofertas: eles são pré-
-requisitos para que o fiel seja abençoado, conforme o seu esforço
de desprendimento.
Nas últimas décadas, o número de cristãos evangélicos, principal-
mente dos movimentos (neo)pentecostais, vem crescendo constante-
mente no Brasil. Ao mesmo tempo foi disseminada a ideia da necessi-
dade de um protagonismo político desse segmento, a fim de garantir
os interesses da Igreja na condução do Estado, desprezando o princí-
pio da laicidade, em nome de valores conservadores.
Mas cabe destacar que na formação social brasileira, marcada pela
violência, pela herança escravocrata e anulação do dissenso, o conser-
vadorismo é um elemento estruturante, complexo, que não se reduz

101
a um único segmento, mas se faz presente em toda a sociedade e se
reproduz mediante os partidos políticos.

Atuação política da “Bancada Evangélica”


Diante de tal contexto, torna-se necessário compreender as origens
e consequências dessa crescente inserção política aliada a segmentos
religiosos. Assim, através da análise documental, buscou-se identificar
alguns elementos que merecem destaque no processo de constituição
da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e sua consolidação enquanto
grupo influente e estratégico no Congresso Nacional, identificando
os atores envolvidos e os interesses que representam.
Como abordado anteriormente, o grupo de cristãos evangélicos,
notadamente pentecostais, vêm crescendo nas últimas décadas, alcan-
çando um protagonismo político empenhado em eleger representan-
tes que garantam interesses da Igreja na condução do Estado. Maria-
no e Moreira (2015) destacam que o ativismo político neopentecostal
teve início no final da década de 1970, rompendo com a abstenção da
participação política e partidária, até então considerada “mundana”.
Em 1986, na Assembleia Nacional Constituinte, houve intensa mo-
bilização do eleitorado religioso em prol dos candidatos oficiais da
igreja, sob a justificativa de conter os interesses da Igreja Católica, e
de combater os adversários religiosos (homossexuais, feministas, se-
cularistas e políticos de esquerda), bem como de outras pautas, como
a defesa da [sua] liberdade religiosa, da família nuclear, da moral e dos
bons costumes, dentre outros interesses institucionais.

Desde então, diferentes igrejas pentecostais negociam o apoio a candida-


tos a cargos ao executivo e procuram eleger seus irmãos de fé, incluindo
pastores e bispos, a cargos legislativos. Assim, a cada eleição, Assembleia
de Deus, Universal do Reino de Deus, Evangelho Quadrangular, Inter-
nacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Maranata, Sara Nossa

102
Terra, Fonte de Vida, entre outras, lançam seus candidatos oficiais para
vereador, deputado estadual e federal e até ao Senado. (MARIANO, MO-
REIRA, 2015, P. 61)

Machado (2006, p.148) realizou uma pesquisa sobre a bancada


parlamentar evangélica no Rio de Janeiro, em 2005. Uma dissidência
na IURD foi liderada por um “televangelista famoso”, que havia se
candidatado a deputado federal. De “visão pragmática e corporativa
das disputas eleitorais e da política, de uma forma mais ampla dos
seus antigos companheiros da IURD”. Segundo Machado a disputa
eleitoral dos dois grupos é motivada pelo expansionismo das igrejas
às quais pertecem. A política é um meio estratégico de exercer in-
fluência e o vinculo entre religião e o partido é sempre difuso. Para
um bispo da IURD no Partido Social Liberal (PSL), essa perspectiva
da política derivou da consciência de que a expansão da Igreja devia
resultar em maior influência religiosa no espaço publico. A partir de
então, o Conselho de Bispos da Igreja exerce o papel de um partido
interno, definindo através de estudos realizados o perfil dos candida-
tos ao pleito, o cargo politico e a região por onde deverão se candida-
tar. Nos partidos há uma resistência a candidaturas de representan-
tes religiosos, a exemplo do Partido Democrático Trabalhista (PDT)
que as restringem ao mínimo. Para o candidato a sensação é de estar
sempre se explicando, como se não tivesse o direito de pensar a polí-
tica conforme sua profissão de fé, conforme relata um representante
da IIGD (Igreja Internacional da Graça de Deus), vinculado ao Par-
tido Liberal (PL). Este partido tinha o domínio da IURD. Segundo
ele, no Rio havia uma fronteira bem mais tênue das duas esferas do
que no resto do Brasil. Outro elemento que é determinante no cres-
cimento dos evangélicos na política, é o método utilizado, como o
poder econômico obtido através de doações e publicidade em redes
próprias de comunicação, derivando dai além do dinheiro e das in-
serções fiscais, um trampolim para candidaturas de profissionais da

103
comunicação ou apresentadores, com o objetivo de elegerem-se com
os votos dos evangélicos. Embora o grupo não seja homogêneo por-
que o parlamentar tem autonomia política, há uma tendência da ban-
cada e seus assessores parlamentares em exercer pressão, sobretudo
quando a pauta de votação pode comprometer os interesses da Igreja,
em nome do estado laico.4
Os pentecostais atuaram em todas as eleições presidenciais no Bra-
sil, após a redemocratização, demonstrando apoio ou resistência aos
principais candidatos. Em 2014, lançaram dois candidatos próprios:
Marina Silva e o Pastor Everaldo Dias Pereira5. (MARIANO, MOREI-
RA, 2015)
Nesse sentido, a FPE é criada em 2003 e registrada na Câmara
dos Deputados. O grupo adquire então, grande influência no pro-
cesso legislativo, sendo considerado um grupo estratégico para for-
mação de coalizões e obtenção de apoio político. Observa-se que
nem todos os deputados dentre um total de 199 e os senadores num
total de quatro, assinaram o requerimento de registro da bancada,
tampouco alguns integrantes e apoiadores atuais, são evangélicos.
Há uma heterogeneidade desse grupo, que é proporcional as deze-
nas de denominações evangélicas no país e os investimentos políti-
cos que avançam aceleradamente, como demonstram as candidatu-
ras apresentadas nas eleições municipais de 2020, que registraram

4.  Ha registros de relatos em que os parlamentares da bancada evangélica se organizam pre-


viamente às sessões de votação para verem aprovadas os valores mais conservadores que
representam, utilizando a fé para alimentar ódio em relação aquele que ameaça não garante
seu voto favorável. A heterogeneidade do segmento evangélico também se deve ao posicio-
namento mais social de alguns progressistas, como a posição por exemplo da insignificante
atuação social a despeito do seu faturamento, que é muito superior ao orçamento dos muni-
cípios, como São Paulo e Rio de Janeiro. (Machado, 2006)
5.  O pastor Everaldo Dias Pereira, presidente nacional do Partido Social Cristão (PSC), foi
preso em agosto de 2020 juntamente com seus filhos, sob a acusação de desvio de recursos
da saúde do estado do Rio de Janeiro, corrupção e lavagem de dinheiro. O governador do
estado Wilson Witzel, que também pertence ao PSC, foi apontado como líder do esquema,
sendo afastado de seu cargo. Pastor Everaldo tem grande influência política e foi ele quem
realizou o batismo de Jair Bolsonaro, que é católico, no rio Jordão, em Israel.

104
um aumento de 34% dos evangélicos dentre aqueles que defendem
a religião. Os candidatos com tal identificação cresceram 26% em
quatro anos.6
Abaixo mostramos um quadro das assinaturas que lançaram o re-
ferido documento (por partido, por número de candidatos que subs-
creveram o documento, e o percentual de cada um correspondente
ao total de deputados).

Assinaturas de deputados por partido politico.

Fonte: Req. 3424/2015 - Câmara dos Deputados.

Assinaram ainda tal documento quatro senadores pertencentes ao


PSDB, PRB, PT e PR. Nota-se que alguns partidos têm representação
maciça na bancada, dentre eles o PRB (Partido Republicano Brasilei-
ro), criado em 2003 vinculado à Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), e que após disputar as eleições de 2006, revelaram um gran-
de crescimento. Em 2014 o partido elegeu 21 deputados federais, e
dois anos depois, na eleição de 2016, 106 prefeitos. Dentre os prefeitos
eleitos, um bispo da IURD Marcelo Crivella que era senador da FPE,

6.  Conforme matéria da Revista Exame: “o avanço dos evangélicos na população brasileira
se reflete no cenário político. Para as eleições de 2020, houve um aumento de 34% no regis-
tro de candidatos que utilizam a designação de pastores e pastoras no nome que aparecerá
nas urnas, incluindo siglas e abreviações. São 4.915 inscrições que fazem referência exclusi-
vamente ao cristianismo evangélico, quase metade das 11.059 candidaturas explicitamente
ligadas à religião. No pleito municipal de 2020, os candidatos religiosos cresceram 26% em
comparação a 2016, que somavam 8.783.” Por Carolina Riveira e Cecília do Lago. Publicado
em: 11/10/2020 às 08h05. Acesso https://exame.com/brasil/eleicoes-2020-aumenta-em-
-34-o-numero-de-candidatos-evangelicos/ Acessado em 15.01.21.

105
a partir de 2017 administrará a cidade do Rio de Janeiro de forma de-
sastrosa, sofrendo até 2020 nove pedidos de impeachment.7
Em 2010 os evangélicos elegeram, segundo Mariano e Moreira
(2015), 70 deputados federais, a maioria pentecostais, corresponden-
do a 15% de parlamentares no Congresso Nacional. O apoio institu-
cional das igrejas à campanha eleitoral, leva muitos a não estabelece-
rem fronteiras entre a atuação política e religiosa.
O grupo de identificação religiosa defende ações “voltadas à prote-
ção da família, da vida humana e dos excluídos”, conforme a Ementa
do requerimento 3424/2015, da Câmara dos Deputados, que solicita
o registro da FPE. O que não é coerente com sua atuação política
concreta. Porém, discurso e prática não podem ser separados, desco-
lados, pois a ação também é discurso. Assim, as aparentes contradições
podem revelar outros interesses envolvidos, para além da questão
religiosa, como um alinhamento com a agenda econômica do novo
governo, que no item III estabelece como objetivo:

Procurar, de modo contínuo, a inovação da legislação necessária à pro-


moção de políticas públicas, sociais e econômicas eficazes, influindo
no processo legislativo a partir das comissões temáticas existentes nas

7.  O licenciado bispo da IURD, sobrinho do fundador Bispo Macedo, realiza uma gestão de-
sastrosa e suspeita como Prefeito do Rio. Sobre os pedidos de impeachment, de acordo com
dados divulgados pela Revista Veja: “… O primeiro foi do vereador Átila Nunes (MDB) e o ou-
tro o deputado estadual Marcelo Freixo do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com o di-
retório municipal deste. Um terceiro pedido foi apresentado ao Tribunal de Justiça do RJ pelo
sindicato dos servidores municipais.” Em matéria publicada pela Redação da Veja, em 10 jul
2018: “Crivella enfrenta três pedidos de impeachment por improbidade.” https://veja.abril.
com.br/politica/crivella-enfrenta-tres-pedidos-de-impeachment-por-improbidade/ Acessado
em 15/01/2020. Crivella se livra do impeachment. Contudo, ele não foi reeleito em 2020, ape-
sar de ter recebido o apoio do Presidente da Republica, Jair Bolsonaro. Em outra matéria de
29/10/2020 “Disputando reeleição por liminar, Crivella sofreu 9 pedidos de impeachment no
mandato”. “Quatro representações foram feitas em 2020, duas em 2019 e outras três em 2018.
Somente duas denúncias foram arquivadas sem apreciação por não atenderem aos requisitos
legais para o processo, as outras sete foram rejeitadas em Plenário.” https://fiquemsabendo.
com.br/transparencia/crivella-impeachment-eleicoes/ Acessado em 15/01/2021.

106
Casas do Congresso Nacional, segundo seus objetivos, combinados com
os propósitos de Deus, e conforme a Sua palavra.(ESTATUTO DA FPE,
2015, p. 1)

O objetivo é contraditório, pois ao mesmo tempo em que afirma


a busca pela inovação legislativa, determina claramente a influência
religiosa, cujos valores remetem à idade média.

De fato, para além da pauta tradicionalmente por nós defendida, - de


preservação dos valores cristãos e de defesa da família -, compreendemos
que é chegada a hora de darmos uma contribuição maior à sociedade,
a qual seja consentânea aos mais de 45 milhões de eleitores brasileiros
que professam a fé evangélica. Nesse sentido, cerca de 180 parlamen-
tares federais que comungam dessa visão de mundo foram eleitos no
último pleito, o que por si só demonstra a importância deste documento
programático, o qual servirá de base de atuação da Frente Parlamentar
Evangélica na próxima legislatura. (MANIFESTO A NAÇÃO: O BRASIL
PARA OS BRASILEIROS, 2018, p. 2).

O documento também prevê o intercâmbio com “entes assemelhados


de parlamentos de outros países” com o objetivo de “aperfeiçoar” (2015,
p.1) políticas e atuação. Um alinhamento politico da FPE com o Presi-
dente Bolsonaro, mostrou seus sinais quase que imediatamente após a
posse, através da viagem oficial do governo à Israel. A IURD tem uma
política de expansão de influência na Europa e no Oriente Médio, onde a
hegemonia do islamismo coloca grandes desafios.8 Mas a “guerra religio-

8.  Como argumenta Oro (2019, p.19) “o pentecostalismo investe na Teologia da Prosperi-
dade, que aproxima o religioso e o econômico, sacralizando, de certa forma, o mercado e
os bens materiais, especialmente o dinheiro, chegando ao ponto de estabelecer uma relação
entre compromisso de fé e desprendimento financeiro, na Europa esta perspectiva não é bem
acolhida, posto que ali prevalece a mentalidade que tende a separar religião e economia,
assim como religião e política”. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/etn/v23n1/
v23n1a01.pdf Acessado em 17/01/2019

107
sa” que tem sido travada desde o ataque terrorista de radicais islâmicos
aos Estados Unidos, alterou a política mundial e o poder bélico atualizou
a necessidade de defesa do Estado laico, como principio da democracia.
Por outro lado, ampliaram-se os movimentos anti- globalização, enquan-
to estratégia de protesto contra o aumento da exploração dos países cha-
mados emergentes, aumentando assim a pobreza no mundo.
O avanço da extrema-direita no mundo tem sido acompanhado
pelo fundamentalismo religioso, e no Brasil a FPE foi essencial na vi-
tória de Jair Bolsonaro ao governo federal. Não é nosso foco, porém,
nao é menos importante considerar os alicerces político-corporativos
que levantam a onda bolsonarista, dando-lhe unidade, através de uma
pauta de valores. A despeito de inegável favorecimento ao capital pe-
los governos petistas, (representado pelo mercado financeiro, mercado
imobiliário, setor de telefonias, o mercado agro-exportador, dentre ou-
tros), não eram conhecidos descontentamentos dos setores mais com-
petitivos da economia, que justificassem apoio ao golpe de 20169. Mas
tais governos tinham outra marca, a popular, pelo apoio de movimen-
tos sociais de minorias, sindicais e de luta por reforma agrária, que
pressionavam para maiores investimentos do Estado em direitos so-
ciais, exercendo oposição às reformas macroeconômicas. Afirmando
os valores laicos do Estado brasileiro, a democracia se consolidava por
meio de políticas afirmativas, redução do desemprego, de combate às
desigualdades sociais. Por outro lado, o Brasil conseguia no governo
Dilma Roussef reduzir em 30% o efeito estufa, aumentando a fiscali-
zação ambiental e incentivando a indústria não poluente. A destruição

9.  É importante considerar que a pesquisa de Machado (2006) registra a trajetória do Presi-
dente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, na bancada evangélica do Rio de Janeiro, preso
na Operação Lava-Jato por corrupção, depois de assinar o impeachment da Presidente da
Republica. Conforme matéria do Globo.com, ele “foi condenado a 15 anos e 11 meses de
reclusão pelos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro na Lava Jato no Paraná.
É a 2ª condenação dele neste âmbito.” Acesso em: https://g1.globo.com/pr/parana/noti-
cia/2020/09/09/eduardo-cunha-e-condenado-a-15-anos-de-prisao-por-corrupcao-passiva-e-
-lavagem-de-dinheiro-na-lava-jato-no-parana.ghtml Acessado em 25.jan.2021.

108
desse projeto será possível na medida em que a FPE, pautada na teolo-
gia da prosperidade, não se contentando com as alianças políticas que
a favorecem economicamente, se impõe para lançar um candidato a
eleição presidencial e, assim, poder conter a democratização dos direi-
tos das minorias sociais.
Para vencer o crescimento do PT, que também contava com apoio
de setores evangélicos, foi necessário utilizar de forma eficiente e an-
ti-ética os recursos eletrônicos e de midia como fundamento de uma
ideologia conservadora, moralista e anticomunista. Essa lógica teve
respaldo de setores descontentes com as políticas de cota a negros, de
redução da pobreza, como o Programa Bolsa Família e a ampliação do
ensino publico superior a setores populares. Além destes elementos, o
ódio ao PT e seus governos, foi azeitado por uma disputa pela gestão
privada de instituições do Estado. Essa disputa por hegemonia econo-
micamente heterodoxa, que viabilizasse efetivamente privatizações,
que minassem investimentos em saude e educação que tem as maiores
fatias do orçamento publico, culminou com um processo de politização
da justiça e por conseguinte, através da Operação Lava-Jato, resultou
num golpe politico que levaria à destituição do governo e à prisão pre-
ventiva do ex-presidente Lula, impedindo-o de concorrer à reeleição. A
midiatização dessa criminalização do PT, foi potencializada na campa-
nha presidencial através de estratégias muito contemporâneas de esva-
ziamento da grande política, que invertem alguns valores essenciais: da
igualdade social e os direitos das minorias sociais; da sanidade do Esta-
do através de uma desmoralização dos serviços públicos; de fake news
que associam o ódio como tática no uso de algoritmos e difamação dos
concorrentes. Os evangélicos, por comporem uma classe desfavorecida
historicamente em relação ao acesso à cultura e à educação, tornaram-
-se vetores potenciais do consumo de noticias destorcidas sobre os fa-
tos. Outro setor que forma os alicerces da extrema-direita no poder são
os militares, empenhados em render justiça aos carrascos da ditadura e
defender a corporação, apoiando a pauta da segurança e armamento da

109
população. O tripé que sustenta a ala conservadora no governo, não é
homogênea, e essa heterogeneidade é talvez o que dificulta uma unida-
de que supere os interesses imediatos dos grupos (ideológico e militar),
mas ao mesmo tempo garante uma agressividade política, que leva o
governo a situações limites, sem as quais ele não faria diferença junto
ao seu eleitorado nas próximas eleições. Enfim, o PT não conseguiu
em quatro governos, democratizar o acesso ao conhecimento, o que
torna as classes populares alvo da pequena política, que abraça muitas
lideranças religiosas através da legitimação de fake news geradas pelo
governo e seu eleitorado. Isso não quer dizer que os evangélicos sejam
maciçamente aliados do bolsonarismo, mas não é comum lideranças
evangélicas que defendam pautas democráticas-populares.
O segundo documento, “Manifesto à Nação Brasileira” foi divulga-
do antes das eleições de 2018, apresentando o que será desenvolvido
como política econômica do Governo Bolsonaro, onde a educação
assume um caráter exclusivamente técnico, meritocrático e expressa-
mente, alinhado à ideologia da Escola sem Partido. O Manifesto se divi-
de em quatro eixos que orientam uma «agenda mínima” para atuação
dos parlamentares e das negociações de apoio nas eleições. São eles:
“modernização de Estado, segurança jurídica, segurança fiscal e revo-
lução na educação”. A primeira ação do governo foi a redução drástica
do número de ministérios, adotando os demais pontos como diretrizes.

Diretrizes de ação do Manifesto à Nação Brasileira

Moder- Enxugamento da máquina e racionalidade administrativa


nização Desburocratização, governança e transparência
de Estado
Governo digital e efetividade dos serviços públicos
Princípio constitucional da subsidiariedade e as parcerias com o setor
privado
Segurança A Segurança Jurídica como valor fundamental
jurídica Consolidação normativa, racionalidade e cidadania
O devido processo legal e o Novo Processo Administrativo brasileiro

110
Seguran- Modernização tributária: racionalidade e justiça fiscal
ça fiscal Modernização previdenciária: sustentabilidade econômica e combate aos
privilégios
Responsabilidade fiscal e independência da Autoridade Monetária
Modernização Comercial: a nova “abertura dos portos às nações amigas”
Revolu- Mérito: a base de um sistema educacional de sucesso
ção na Escola sem ideologia e escola sem partido
educação
O novo ensino superior brasileiro
Eficientização dos recursos destinados à educação – prioridade à universali-
zação do ensino básico e técnico de qualidade

Fonte: “Manifesto à Nação: O Brasil para os brasileiros”. FPE, 2018.

A lógica utilizada pela FPE é de formar consenso a partir de projetos


de lei, reformas através de mandatos parlamentares, alianças e acordos po-
líticos. Muitas reformas conservadoras apoiadas foram apresentadas pelo
Presidente Michel Temer, que tornou-se um dos governos mais anti-po-
pulares do período pós-ditadura, sucedendo Dilma Roussef após o impe-
dimento golpista, que criou as condições jurídico-políticas convergentes
com a ideologia da extrema-direita hoje no poder.10 O Manifesto é uma
ferramenta importante de legitimação da ideologia neoliberal, em defesa
de uma aceleração antidemocrática das contrarreformas que intensificam
a super-exploração do trabalho, transferindo ao mercado a gestão dos re-
cursos públicos e financiando os prejuízos, que em 2020 gerou a maior
crise do capital em um século, provocada pela pandemia da covid-19.

10.  Uma forte liderança do partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB), principal
partido do chamado Centrão, Michel Temer será investigado e preso por corrupção na Ope-
ração Lava-Jato, após sua sucessão pelo governo Bolsonaro e será habilmente utilizado para
evitar o impeachment do novo presidente, suspeito de chefiar uma organização criminosa
(em associação com o chamado “Clã Bolsonaro”, formado por tripé parlamentar, seus filhos,
que o assessoram todo tempo. A organização estaria instalada no Palacio do Planalto, através
do Escritório do Ódio, sendo acusada de coordenar as redes sociais do presidente, através das
quais ele se dirige diariamente aos eleitores. A tática é profissional e emprega blogueiros tam-
bém investigados e presos preventivamente pelo Supremo. O ex-presidente será prestigiado
como enviado à Beirute em nome do governo em 2020, por ocasião da explosão no porto
daquela capital, que resultou em milhares de mortos e desabrigados.

111
No Brasil, ser servidor público é anseio dos jovens, – em detrimento do
empreendedorismo ou de uma carreira na iniciativa privada –, tendo em
vista o fim em si mesmo que o funcionalismo se tornou: um conjun-
to de privilégios, com estabilidade, independentemente de qualquer
avaliação de desempenho ou de satisfação de seu cliente, o cidadão.
(FPE, p. 5, grifo nosso)

O documento apresenta uma crítica evidente à estabilidade do ser-


vidor público como estratégia de convencimento dos trabalhadores, da
vantagem de tornarem-se empreendedores – conforme a financeiriza-
ção que a “teologia da prosperidade” representa na liderança da IURD,
sustentada pela FPE. A estabilidade do servidor publico é vista como
privilégio, sem um controle de produtividade, como o indicado na ló-
gica empresarial. Colocar o mercado acima da eficiência na gestão do
Estado faz parte da ofensiva do Capital, apoiando os super-poderes do
Ministro da Economia, Paulo Guedes e que desfaz a falsa divisão entre
economia e ideologia no governo ultra-conservador. Ao contrário, o
modelo a ser radicalizado com base na experiência neoliberal do Chile,
possível a partir da ditadura do General Pinochet, não se sustenta no
Brasil sem um grau elevado de táticas fascistas, sendo bombardeadas
pelo poder como ameaça cotidiana à democracia e ao bem-estar da
população. Faz parte da estratégia política, ignorar a Lei nº 8.112, de
1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis
da União, das autarquias e das fundações públicas federais. De fato a
operação de desmonte do Estado democrático é a meta, eliminando os
quadros de carreira que mediante concurso publico, assumem o com-
promisso moral com a ética que sedimenta e democratiza a esfera pu-
blica. A seriedade que envolve o processo de formação do servidor pu-
blico é totalmente condenada em nome da ideologia do mercado, que
em nada diverge dos critérios do mercado: “assiduidade, disciplina, pro-
dutividade e responsabilidade”. Não lhes interessa a normalização da
Constituição Federal para a estabilidade do servidor público, “mediante

112
procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei
complementar, assegurada ampla defesa”. (BRASIL, 1988)
Destaca-se na conjuntura atual, de pandemia de Covid-19, o item
“segurança fiscal” relativo à modernização tributária e previdenciária.
O deputado federal Marcelo Ramos (PL/AM), intregrante da banca-
da, apresentou o Projeto de Lei nº 1.581/2011 que Regulamenta o acor-
do direto para pagamento facilitado de precatórios federais, mediante
a destinação dos descontos obtidos pela União exclusivamente para o
enfrentamento da emergência de saúde pública. A proposta recebeu
várias emendas, inclusive do deputado David Soares do Democratas
(DEM) de São Paulo, filho do pastor R.R Soares, fundador da Igreja I
Igreja da Graça de Deus e detentor de grandes dívidas de tributos com
a união. O texto final previa a isenção, para as igrejas, do pagamento da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e anistia das multas
decorrentes do não pagamento, bem como o perdão de dívidas relati-
vas à contribuição previdenciária. Advertido por sua equipe econômica,
o presidente Jair Bolsonaro aprovou o projeto de lei, mas vetando o per-
dão das dívidas. Contudo, ele terceirizou para o congresso a função de
vetar o seu próprio veto, ou seja, indiretamente favorecendo a bancada
evangélica.
A construção da argumentação transita do liberalismo econômico
para um radical conservadorismo a exemplo do eixo “Revolução na
Educação” em contraposição ao juízo de valor atribuído ao serviço
publico, como “democratismo comunista”, destruidor “do ensino de
qualidade, pois, quanto mais ideológico, mais ele se torna improduti-
vo, ineficiente e corrupto.” (FPE, p. 53)

A tragédia que se instituiu no Brasil nas últimas décadas teve como uma
das causas o desprezo pelo esforço, pelo estudo, pelo mérito conquistado

11.  Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?-


codteor=1873460&filename=PL+1581/2020. Acesso em 17 jan, 2020.

113
ao longo do tempo, em benefício do caminho mais curto da demago-
gia, do uso político-partidário das escolas e universidades públicas, que
se tornaram instrumentos ideológicos que preparam os jovens para a
Revolução Comunista, para a ditadura totalitária a exemplo da União
Soviética e demais regimes sanguinários.
A destruição dos valores e princípios do mérito escolar e do mérito aca-
dêmico-universitário contribuiu para a violência contra a civilização ju-
daico-cristã, atingindo duramente o Cristianismo, tal como aconteceu
na URSS e demais Estados totalitários, como na Itália Fascista e na Ale-
manha Nacional-Socialista, China, Cuba etc. O mérito é rigorosamente
democrático, todos podem conquistá-lo. (FPE, p. 53)

A universidade pública foi um dos primeiros espaços combatidos


em nome do projeto liberal e populista conservador, sem qualquer
respeito pela tradição cientifica e preocupação com os efeitos nefastos
das medidas preventivas à crise econômica que o pais enfrenta. A crise
é a justificativa para a ofensiva contra a educação pública que, por sua
vez, deve ser reduzida aos cursos e pesquisas funcionais, conforme a
orientação positivista pragmática do governo. Não há qualquer sen-
sibilidade com o conhecimento e a comunidade científica, mas deve
corresponder aos valores da família, da propriedade e da religião,
contra os direitos das minorias sociais: LGBTQIA+, comunidades tra-
dicionais, indígenas, mulheres e negros. Os novos valores defensores
dos direitos sociais tornaram-se ponto de ataque, “instrumento ideo-
lógico” de uma corrida contra a suposta e iminente revolução comunis-
ta. São estabelecidas ligações de sentido sem qualquer nexo causal.
O documento é marcado pela crítica ao que chama de “discur-
sos ideológicos”, mas ao mesmo tempo reflete a ideologia burguesa
na defesa de valores elitistas, onde a meritocracia é a solução para o
problema da educação no país. Ignora-se a necessidade de acesso da
grande massa de trabalhadores, em um dos países com maior defi-
cit de mão de obra qualificada no continente latino-americano. Tal

114
ideia mascara os maiores indices de desigualdade social que perdu-
ra no Brasil, ampliando a divisão de classes. A meritocracia pressu-
põe igualdade de oportunidades, pois não é possível acontecer uma
competição justa entre desiguais. No entanto, essa proposta elitista, é
apontada como alternativa à baixa produção tecnológica do país:

O Brasil não cria patentes. Para começarmos a vencer esse atraso im-
pressionante é necessário termos um sistema de ensino fundado na me-
ritocracia, em permanente ascensão de conhecimento, sempre visando
a mais alta qualidade em todas as etapas, da Educação Básica ao Douto-
rado”. (FPE, p. 54)

A formação social brasileira, de tradição agrária, carrega uma for-


te herança escravista, sem romper com a dependência à economia
mundial12, subalternizada aos interesses das economias centrais. Por-
tanto, a democratização do Estado em permanência pela burguesia
nacional, reproduz processos contraditórios e a FPE trata de repro-
duzir, a exemplo da cultura de subserviência do Estado ao mercado e
negação de direitos universais à educação, com acesso digital.
O conceito da ideologia de gênero é criado para denominar os
avanços conquistados no debate e direitos da mulher e comunida-
des LGBTQIA+ os quais devem ser destruídos, para tal é necessário
indicar as fontes políticas, como partidos e movimentos sociais, os

12.  As diferenças no desenvolvimento do capitalismo nos países centrais e periféricos estão


relacionadas, sendo duas faces de um mesmo processo. Sendo assim, a condição de depen-
dência dos países periféricos é resultado e, ao mesmo tempo, contribui para o desenvolvi-
mento dos países centrais. Em função do desenvolvimento desigual e combinado, com a
associação de elementos “arcaicos” e “modernos” dos países periféricos, Fernandes (1968)
constrói o conceito de capitalismo dependente. Trata-se de uma forma específica do capita-
lismo em uma de suas fases de desenvolvimento – o capitalismo monopolista. Segundo o au-
tor, “a persistência de formas econômicas arcaicas não é uma função secundária e suplemen-
tar. A exploração dessas formas, e sua combinação com outras, mais ou menos modernas e
até ultramodernas, fazem parte do ‘cálculo capitalista’ do agente econômico privilegiado.”
(p. 65)

115
denominados comunistas, como o Partido dos Trabalhadores (PT)
que precedeu o então governo durante treze anos. Defendem o papel
da família na educação sexual das crianças em contraposição a “uma
ideologia da pornografia” (FPE, 2018, p. 54), supostamente difundida
nas escolas públicas do país. Na execução da política de educação as
primeiras ideias defendidas pelo Ministro da pasta, foi de criminaliza-
ção do ensino publico superior onde as drogas e o comunismo sobre-
põem à verdadeira ciência.
Ao mesmo tempo, o documento sustenta que a escola deve pro-
mover uma educação moral, porque “faz a liga da cidadania, e cria
resistências contra o crime organizado em todos os setores da vida
nacional”. (FPE, 2018, p. 56). Mais uma vez determinantes históricos
e sociais são desconsiderados, como se o crime estivesse ligado, ex-
clusivamente, a uma questão moral, de falta de caráter, e não como
consequência da miséria e pobreza, das desigualdades e tantas outras
expressões da “questão social”. (SANTOS, 2012)
Fica evidente, portanto, a fragilidade dos argumentos utilizados,
baseados apenas no senso comum e em discursos moralista-conser-
vadores, como direção da chamada “revolução cultural”, que objetiva
o governo Bolsonaro. Alguns conceitos utilizados, como a ideologia
de gênero, têm sido fortemente difundidos na sociedade, sobretudo
nos segmentos evangélicos, que em tom alarmista atenta a população
para a ameaça que sofre a família tradicional, devendo portanto ser
recuperada pelo Estado.

Considerações Finais
O número de evangélicos (neo)pentecostais vem aumentando nas úl-
timas décadas, fortalecendo o poder e a influência das grandes corpo-
rações da fé. Discursos alarmistas, baseados em informações incom-
pletas e falsas, têm sido cada vez mais difundidas, no intuito de se
criar um inimigo a ser combatido: a esquerda comunista e imoral. E a

116
solução apontada por este segmento tem seguido em direção ao con-
servadorismo e mesmo, ao fundamentalismo religioso13, cuja inter-
venção na política, ocorre através de representantes identificados na
pauta moralista, defensora de interesses burgueses.
Assim, líderes religiosos vêm alcançando cada vez mais espaço
na política, se utilizando da baixa cultura política dos fiéis, que em
sua maioria pertencem à classe mais pauperizada da sociedade. E
esse fenômeno ficou muito evidente nas campanhas pré-eleitorais de
2018, marcadas pela difusão de fake news, que alarmaram os leitores
evangélicos, por meio do ódio, medo e revolta. Os candidatos tem
como virtude o combate às ideologias de esquerda, presentes nos
movimentos de defesa dos direitos humanos, criando uma narrativa
contrária como arma de combate, como a ideologia de gênero, os movi-
mentos feministas pela pauta da legalização do aborto e até a suposta
legalização da pedofilia.
Mas o discurso moralista camufla o apoio aos interesses das gran-
des elites, da manutenção dos privilégios, alinhamento do país, ain-
da de maneira subalternizada, com os interesses internacionais dos
países capitalistas centrais, sobretudo dos EUA, cujo armamentismo
xenofóbico e anti-muçulmano tem servido para a disputa dos evan-
gélicos nos países de cultura hegemônica islâmica. Alinha-se ao avan-
ço do conservadorismo no mundo, gerando grande preocupação por
parte das forças democráticas, sobretudo em relação à minorias, até
mesmo combatidas: mulheres, negros, indígenas, LGBTQI+ entre
outros.

13.  Entendemos que o fundamentalismo religioso, em se tratando do segmento evangélico


(neo)pentecostal, se baseia na crença em uma verdade absoluta, na “revelação divina” que é
inquestionável e supra-histórica; na visão idealizada e petrificada do passado, que recusa as
transformações sociais ao longo do tempo, sobretudo em relação à família, sexualidade, ciên-
cia, entre outras; na concepção totalitária de mundo que busca disciplinar a sociedade pelo
conteúdo de suas crenças individuais; e na aversão à diversidade, que se manifesta de forma
intolerante e violenta.

117
Conclui-se que a sociedade enfrenta um momento sombrio. Mo-
mento em que o caráter ultraconservador das elites, também apoiada
pelas classe média, tem ficado cada vez mais evidente, com ataques
vorazes aos direitos sociais, bem como aos direitos civis, tentativas de
cerceamento das liberdades individuais de pensamento, manifestação
e a liberdade religiosa – que não seja a evangélica. Frente às pautas da
extrema-direita que se ampliam no Brasil e no mundo, é necessário
análise e reflexão sobre esta realidade, a fim de se construir uma resis-
tência democrática.
A insustentabilidade do quadro politico atual, frente a pandemia,
mostrou que mesmo em condições de isolamento social, a política
em forma de protesto tem sido exercida mediante movimentos im-
portantes, com uma resistência espelhada nas mobilizações interna-
cionais e articulada via internet. A exemplo do movimento Black Lives
Matter, que aqueceu a candidatura e eleição do democrata norte-a-
mericano Joe Biden, houve no Brasil um levante de movimentos con-
trários a atual participação institucional e equivocada das igrejas na
política, por meio da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito,
a Bancada Evangélica Popular, Cristãos contra o Fascismo, os movi-
mentos progressistas de fé e política, a frente antifascista da policia,
dentre outros.

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119
Valores e Princípios Religiosos enquanto
Expressão do Conservadorismo
na Execução das Políticas de
Educação e Assistência social
no Município de Londrina
Claudia Neves da Silva1

Introdução
A cada semana constatamos a contraofensiva do conservadorismo
nos campos social, econômico, político, cultural e religioso, demons-
trando que sempre esteve presente, recuando em alguns momentos
e retornando em outros, passando por mudanças conforme o con-
texto sócio-histórico, estruturando ideias, pensamentos, concepções
de mundo, hábitos, comportamentos e apresentando-se em todas as
esferas da sociedade.
Dentre as variadas expressões do conservadorismo a que mais nos
chamou a atenção foi a retomada, com força total, das manifestações
religiosas entre os diferentes estratos sócio-econômicos. Se inicial-
mente era expressivo o número de grupos religiosos nas regiões onde
se concentram os segmentos de baixa renda, logo se fizeram notar
nos segmentos da classe média - profissionais liberais, professores,

1.  Doutora em História Social. Pós Doutora em Serviço Social. Profa. do PPGSER e do
Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Líder do Grupo de
Pesquisa História, Religião e Sociedade/CNPq. Membro do Laboratório de Estudos sobre
Religiões e Religiosidades.

120
servidores públicos, comerciantes, entre outros – que vão às celebra-
ções religiosas em busca de respostas para suas dificuldades e proble-
mas emocionais.
Nos últimos 50 anos, essa participação provocou - e foi provoca-
da - pelo surgimento e crescimento de inúmeros grupos religiosos
e igrejas em todas as cidades do Brasil. Seja de matriz católica ou de
matriz evangélica, este aumento gerou mudanças no campo religioso
brasileiro, porque constata-se uma predominância de manifestações
individuais fundadas na emoção e na subjetividade, diminuindo os
espaços das igrejas tradicionais – Anglicana, Presbiteriana, Luterana,
Congregacional, Católica – obrigando-as a também adotarem cele-
brações centralizadas no fervor individual. E esse fenômeno religioso
tornou-se objeto de interesse científico.
Estudiosos que vinham de uma tradição religiosa2, se debruçaram
sobre essa temática com a intenção de analisar o crescimento das ma-
nifestações religiosas. Na década de 1980 e, principalmente nos anos
2000, pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento voltaram-se
para o estudo do fenômeno religioso, como cientistas sociais, antro-
pólogos, historiadores.
Desde o ano de 2008 estudamos a presença e a influência de va-
lores religiosos entre os/as Assistentes Sociais e estudantes do curso
de Serviço Social3. Como resultado desta investigação, constatamos
que valores religiosos por vezes orientam as ações dos profissionais
na execução das políticas sociais. Ainda que na formação profissional

2.  Verificar os estudos de CAMPOS, L. S. Protestantismo histórico e pentecostalismo no


Brasil: aproximações e conflitos. In: GUTIERREZ, B. F.; CAMPOS, S. L. Na força do Espírito:
os pentecostais na América Latina: um desafio às igrejas históricas. São Paulo: Associação Evangé-
lica Literária Pendão Real, 1996. p. 77-120; CORTEN, A. Os pobres e o Espírito Santo: o pente-
costalismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1996; MENDONÇA, A.G. O celeste porvir: a inserção do
protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1995.
3.  SILVA, C.N; LANZA, F. Estudantes de Serviço Social e as religiões: conservadorismo sob nova
roupagem? Disponível em:
http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_38_SL_art_1_Silva_Lanza%20(1).pdf

121
haja uma interlocução do Serviço Social com a teoria social crítica –
estruturada no legado de Karl Marx e seus principais herdeiros, esteja
fundamentada na consolidação do projeto ético-político, cuja base é
o projeto social democrático, na defesa dos direitos sociais e da classe
trabalhadora e no rompimento com o tradicionalismo ético e mo-
ral, para alguns profissionais do Serviço Social a resposta para enfren-
tar os problemas que lidam em seu cotidiano está na religião e seus
princípios.
A partir do resultado desta pesquisa, surgiu o interesse de ampliar
a investigação, tendo em vista testemunhar a presença constante de
líderes religiosos e membros de igrejas em ações – e decisões - que
deveriam ser tomadas por técnicos da área social, como assistente so-
cial, pedagogo, psicólogo, na execução das políticas sociais públicas.
Tivemos por objetivo entender como o conservadorismo, expres-
so nas atitudes, valores e princípios religiosos, se faz presente na im-
plementação e execução das políticas de educação e assistência so-
cial, e como os profissionais que atuam na execução destas políticas
lidam com seus valores e princípios religiosos durante sua atividade
profissional.
Por meio da aplicação de um questionário entre os anos de 2016
e 2019 junto aos profissionais do Serviço Social da região norte do
Paraná e professoras da rede municipal de educação do Município de
Londrina foi possível nos aproximarmos de nosso foco de interesse,
qual seja, a influência de valores religiosos durante a atividade profis-
sional. Pretendemos neste texto apresentar algumas reflexões sobre
a temática conservadorismo, políticas sociais, valores religiosos e sua
influência durante o exercício profissional.
Devemos ter em mente que os profissionais levam para sua ação
cotidiana características e particularidades pessoais – origem de clas-
se, gênero, raça, etnia, formação escolar e religiosa; e as marcas ad-
quiridas e moldadas em função de suas condições e experiências na
infância, na puberdade, na juventude e na vida adulta serão levadas

122
para diferentes campos onde estabelecerão múltiplas relações. Afinal,
o profissional não “pendura” seus valores e princípios morais ao en-
trar em seu local de trabalho; muito menos assume uma nova identi-
dade a cada dia.

Religião e políticas sociais: interesses em conflito


Antes de continuarmos, é importante destacar que conservadorismo
é um termo que apresenta variadas interpretações, sendo relaciona-
do ora a concepção e retórica política e econômica, ora a compor-
tamento humano e até como forma de xingamento, exaltando um
caráter emotivo à palavra. Assume diferentes aspectos em função do
contexto político, social e econômico em que se apresenta, tornando
difícil abordar conservadorismo a partir de um conceito singular ou
monolítico, justamente porque incorpora uma amplitude de ideias,
costumes, comportamentos e resiste de forma articulada, racional e
sistemática a mudanças e rupturas. Neste sentido, em virtude do li-
mitado espaço de um artigo, não será possível fazer uma análise das
múltiplas questões acerca do conservadorismo.
Nesse texto, trabalharemos uma das expressões do conservadoris-
mo, ou seja, conservadorismo como concepção de mundo, concep-
ção moral e ética que reforça e legitima normas, valores e princípios
religiosos que visam a manutenção e continuidade da instituição re-
ligiosa (não importando denominação religiosa) e sua ordem moral
nos diferentes campos – social, político, econômico, cultural.
Ao longo das últimas décadas do século XX, as manifestações re-
ligiosas sairam do interior dos templos e ganharam a adesão de ho-
mens e mulheres de diferentes estratos sociais, demonstrando uma
vitalidade que se supunha em declínio, já que muitos pesquisadores
acreditavam que a modernidade levara ao declínio as verdades reli-
giosas, deixando em seu lugar o pensamento racional, desprovido de
certezas (BERGER, 1985; WEBER, 1999). De acordo com Pierucci

123
(1997), o processo de secularização se daria de forma irregular e osci-
lante, porém irreversível: “No mundo globalizado de agora, eu diria
que quanto maior o número de religiões compartilhando o mesmo
espaço-tempo comprimido, tanto mais intensificada se vê a seculari-
zação estrutural da cultura” (PIERUCCI, 1997, p. 115).
No entanto, a procura por respostas para o inexplicável, como
dor, doença, morte e consolo para as dificuldades do dia-a-dia – de-
semprego, falta de dinheiro, violência - leva homens e mulheres ao
encontro de experiências que declaram estar além do mundo terre-
no, localizando-se no plano do sagrado sob a proteção de um poder
divino.
A crença religiosa se sustenta pelo medo do desamparo, do aban-
dono e a religião torna-se, para a pessoa desamparada, o abrigo, o
refúgio contra a violência, a falta de saúde, as incertezas. A crença
diminui a angústia, o medo e traz a superação das dificuldades hu-
manas (FREUD, 1990). Não obstante o acesso e a disponibilidade à
informação, com o suposto domínio da natureza, com a tecnologia
cada vez mais avançada, as religiões estão vivas e fortes.
Os perigos se renovam, assim como os medos; tanto conhecimen-
to traz ao homem a consciência de que os riscos que assolam a huma-
nidade são dignos de temor, como as pandemias, os terremotos, os
tsunamis, o aquecimento global. A ciência que edifica é a mesma que
destrói, a que cria possíveis condições de cura, mas ao mesmo tempo,
cria armas, venenos, condições cada vez mais rápidas de ruína.
Em busca de maior compreensão em como as pessoas vivenciam
sua religiosidade em celebrações religiosas, fizemos algumas obser-
vações destas celebrações, sendo possível uma primeira aproximação
para entendermos o fenômeno religioso que promoveu o surgimento
de centenas de igrejas e está presente tanto na Igreja Católica, como
nas Protestantes Históricas – Anglicana, Luterana, Metodista, Con-
gregacional, Presbiteriana, Batista: o movimento pentecostal, que
está na origem de dezenas de igrejas pentecostais.

124
As novas Igrejas Evangélicas Pentecostais brasileiras, com novas
práticas religiosas, também apresentaram uma nova teologia, aqui
entendida como uma formulação conceitual (de questões relativas ao
conhecimento de Deus) e sistemática de uma doutrina (um conjunto
de normas e princípios que regem o pensamento e o modo de agir
do fiel).
Na visão de mundo pentecostal, a força do mal é uma realidade
concreta, porque habita no mundo, manifestando-se no dia-a-dia da-
queles que não crêem e também daqueles que crêem, como a falta de
emprego, as enfermidades físicas e mentais, a violência doméstica. Na
guerra contra o mal, as armas são as vigílias, a oração e o jejum.
A pobreza para aqueles que compartilham essa concepção de
mundo, decorre de uma situação individual, tanto do que tem mais,
porque movido pelo egoísmo, pelo anseio do ganho fácil, que o leva a
explorar seus empregados, pagando-lhes salários injustos e a não aju-
dar os mais necessitados, quanto do que nada tem, porque uma força
fora deste mundo, maligna, o estaria impedindo de prosperar, de ter
um emprego, a casa própria (SILVA, 2008).
Da mesma forma, é em nome da religião, ou melhor da concep-
ção cristã de caridade, que grupos de voluntários de diferentes reli-
giões e grupos sociais desenvolvem atividades assistenciais junto aos
segmentos mais empobrecidos; uma ação que não deveria visar in-
teresses pessoais ou recompensas materiais. Para exercê-la, segundo
esta concepção, o critério exigido seria a vontade de servir ao próxi-
mo. Nesse sentido, a prática assistencial entendida como manifesta-
ção de caridade acaba por ser difundida como um dever moral, uma
possibilidade para aquele que pratica a caridade demonstrar perante a
sociedade um caráter nobre e bondoso (SILVA, 2008).
A ação sócio-assistencial é uma prática recente nas igrejas pente-
costais; seu exercício se dá ao lado de expressões religiosas guiadas
pela espontaneidade e pelas emoções. Essa situação ocorre porque
tais igrejas são frutos de movimentos que se fundamentaram na

125
subjetividade de seus principais dirigentes, que exortam todos a expe-
rimentar e proclamar sua fé sob grande emoção.
Por essa razão, as justificativas para a atividade assistencial se dão
em bases espirituais e não fundamentadas nos direitos sociais. Ho-
mens e mulheres que vivem experiências religiosas se voltam para os
problemas sociais, mas o seu habitus religioso centraliza-se na oração
e no louvor; desse modo, suas ações também se justificam em bases
no sagrado. Romper com hábitos e concepções tão fortemente enrai-
zados, construir e reconstruir novas formas de pensar e agir exigiria o
questionamento e a superação dos próprios valores éticos e cristãos,
já que haveria uma abertura e conseqüente compreensão da realidade
social em que se está imerso, o que possibilitaria elaborar novos valo-
res morais e espirituais (SILVA, 2008).
Proselitismo e defesa dos direitos sociais não caminham na mesma
estrada (será que ao menos na mesma direção?), porque enquanto o
segundo visa mudanças e melhorias sociais por meio do acesso aos re-
cursos e serviços da comunidade sob a garantia e proteção do Estado,
o primeiro fundamenta-se na idéia de que a crença e a prática religio-
sa é a garantia de conseguir prosperidade, saúde, emprego.
Quando os caminhos se cruzam, o conflito logo se manifesta, visto
que são duas concepções distintas com poucas possibilidades de se
conciliarem, não obstante alguns cursos de Teologia ligados às igre-
jas evangélicas atualmente estarem adotando em seus programas de
disciplinas, temas como missão integral, ação social, responsabilidade
social; mas não questionando a ordem social e econômica estabeleci-
das, o que exigiria a ruptura com valores tão fortemente arraigados.
Nesta perspectiva é que o peso da religião na implementação das po-
líticas sociais tem sido observada ao longo dos últimos anos no Brasil,
provocando alguns conflitos em sua execução. Se nos voltarmos para a
Constituição de 1988, símbolo da mudança no Brasil pós-ditadura mili-
tar, há a determinação de que as políticas sociais são direitos garantidos
a todos os cidadãos e cidadãs independente de credo religioso.

126
O Estado brasileiro, enquanto promotor na implementação das
políticas sociais públicas, atende à lógica de expansão do capital, res-
pondendo, porém, minimamente às necessidades sociais básicas dos
cidadãos. Ou seja, as políticas sociais emergem para atender a inte-
resses diversos e por vezes contraditórios, expressando conflitos, ten-
sões, ambiguidades e contradições. Se por um lado, o Estado inter-
vém por meio das políticas sociais públicas para manter a ordem e
assim garantir o pleno desenvolvimento do capital, por outro lado, é
preciso responder a algumas reivindicações dos trabalhadores na es-
fera social. Neste sentido, as políticas sociais lhes possibilitam acessar
serviços e recursos necessários para sua reprodução e sobrevivência.
Conforme Behring (2000, p. 20):

As políticas sociais são concessões/conquistas mais ou menos elásticas,


a depender da correlação de forças na luta política entre os interesses
das classes sociais e seus segmentos envolvidos na questão. No período
de expansão, a margem de negociação se amplia; na recessão, ela se res-
tringe. Portanto, os ciclos econômicos, que não se definem por qualquer
movimento natural da economia, mas pela interação de um conjunto de
decisões ético-políticas e econômicas de homens de carne e osso, bali-
zam as possibilidades e limites da política social.

Ainda de acordo com Behring (2000, p. 21), a política social carac-


teriza-se como um espaço “da luta de classes: da defesa de condições
dignas de existência, face ao recrudescimento da ofensiva capitalista
em termos do corte de recursos públicos para a reprodução da força
de trabalho.”
Contudo, o investimento do Estado nas áreas da saúde, educação,
assistência social, habitação, é insuficiente diante da vulnerabilidade
e das precárias condições em que vive grande parcela dos trabalhado-
res, já que o financiamento estatal privilegia os interesses do mercado.
Conforme Yasbek (2002, p. 2-3):

127
O que se constata é que, nos últimos anos, as intervenções do Estado
brasileiro no campo social sequer vêm cumprindo o papel de amenizar
as condições de pobreza e as desigualdades da população no país. São
ações ad hoc, tímidas e incapazes de interferir no cenário de pobreza e
exclusão e que, sobretudo não dão conta da imensa fratura entre direitos
sociais e possibilidades efetivas de acesso às políticas sociais em geral.

Não há o reconhecimento, muito menos a defesa dos direitos sociais,


levando a ações pontuais e emergenciais, e o estímulo à solidariedade
voluntária, ou seja, entre aqueles que têm mais e melhores condições
em relação àqueles que têm menos. É transferida para a sociedade, leia-
-se organizações não governamentais (ONGs), organizações da socieda-
de civil de interesse público (OSCIPs), voluntários e instituições religio-
sas, a tarefa de atender as pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Como já havia verificado em pesquisa realizada entre os anos de
1999 e 2002, a partir do fortalecimento da perspectiva neoliberal de
que o mercado é o espaço legítimo para resolução dos problemas
econômicos e sociais, assim como para regulação das relações sociais,
subordinando os interesses e necessidades sociais às estratégias mer-
cantis, o Estado para implementar esta política neoliberal, entre ou-
tras medidas, apropria-se da idéia de cooperação solidária entre indi-
víduos e grupos sociais e passa a utilizá-la enquanto instrumento para
livrar-se da pressão da sociedade civil por ações mais efetivas diante
das desigualdades sociais (SILVA, 2006). O resultado é o crescimento
de ações promovidas por organizações não governamentais, institui-
ções e indivíduos cujo objetivo não fundamenta-se na ideia do direito,
mas de ajuda ao próximo e da caridade cristã.
Se está presente na Bíblia que a caridade deve ser praticada por
aqueles que desejam seguir a Jesus Cristo, porque é a expressão má-
xima de amor ao próximo, a forma como ela é colocada em prática
diferencia-se nas religiões cristãs, em razão do fundamento teológico
que as embasa, gerando, por sua vez, conseqüências diferenciadas.

128
Para a Igreja Católica é a possibilidade de estabelecer a união e co-
munhão com o outro, o irmão, porque considerado filho do mesmo
pai, garantindo-se a salvação a rico e a pobre, a recompensa de uma
vida eterna plena de amor e paz, pois o que se quer são ações de aco-
lhimento e humildade: a um porque ajuda e ao outro porque aceita o
que lhe é oferecido.
Já para as igrejas protestantes históricas de missão, a caridade se
justifica pelas palavras de um de seus principais reformadores, Cal-
vino, o qual afirmou que Deus, para demonstrar seu poder perante
o homem, o afligiria com enfermidades, miséria, guerra, e somente
pela obediência às suas determinações seria libertado desses males.
E aquele que se encontrasse em abundância não deveria fugir à res-
ponsabilidade de fazer caridade ao que se encontrasse em situação de
infortúnio (SILVA, 2008, p.129).
Para as Igrejas Evangélicas Pentecostais, a oração é a base de qual-
quer atitude e ação, porque os problemas vividos decorrem da pouca fé
em Jesus Cristo e da desobediência aos seus mandamentos. Concepção
presente entre os líderes religiosos, membros das igrejas pentecostais, e
profissionais que atuam na implementação das politicas sociais, como
pudemos verificar em pesquisa realizada entre os anos de 2014 e 2017
junto aos assistentes sociais da região Norte do Paraná.
Foram aplicados 147 questionários aos assistentes sociais que atuam
na implementação das políticas sociais de saúde, educação, assistência
social, habitação na região norte do Paraná. Contudo, apenas 96 profis-
sionais responderam. O objetivo era verificar como se dá a presença e a
influência de valores religiosos durante o exercício profissional. Entre
outras perguntas, indagamos como relacionavam os problemas sociais,
com os quais lidavam diariamente, com sua espiritualidade:

Foi verificado que alguns sujeitos atribuíram a “culpa” dos casos de vio-
lência ao fato de as famílias não terem uma prática religiosa. Há a ideia
de que não adianta o trabalho da instituição ou do Serviço Social, ou

129
seja, o trabalho pautado nos princípios da categoria ou da política social
que atende essas situações se “não seguem a Deus”. (SILVA; DUTRA;
LANZA, 2016, p. 434)

Podemos afirmar, a partir da pesquisa que realizamos, que alguns


Assistentes Sociais em sua atividade profissional por vezes tendem a
dar maior atenção à esfera religiosa, o que “podem levar a uma cul-
pabilização dos usuários das políticas públicas, pela sua condição so-
cioeconômica, a partir de sua crença ou não, o que, ao nosso ver, é ex-
pressão da herança histórica do conservadorismo religioso” (SILVA;
DUTRA; LANZA, 2016, p. 437).
Quanto aos profissionais da área da educação, verificamos que há
uma proximidade no que se refere a buscar na esfera religiosa respos-
tas para as dificuldades que enfrentam no trabalho. Foram aplicados
61 questionários aos professores da rede municipal de educação do
Município de Londrina que participavam de uma roda de conversa
sobre ensino religioso. Na tabela abaixo, destacamos alguns dados co-
lhidos no questionário e que vêm ao encontro do que estamos ana-
lisando.

Tabela 1: Participação e manifestação religiosa

Frequentam uma igreja 76.67%


(46 professoras)
Frequentam regularmente uma igreja (uma ou mais 56.66%
vezes por semana) (34 professoras)
Frequentam a igreja há mais de 10 anos ou sempre 58.33%
frequentaram (35 professoras)
Vivem sua espiritualidade no dia-a-dia 78.33%
(47 professoras)
Relacionam aspectos de seu cotidiano de trabalho 63.33%
com sua espiritualidade (38 professoras)

Fonte: Questionário/2017

130
Os dados revelam que são pessoas que vivem sua religiosidade em
igrejas e vivenciam sua espiritualidade cotidianamente, relacionan-
do-a com situações do trabalho; ou seja, assim como os Assistentes
Sociais, os valores religiosos por vezes estão presentes em suas ações
profissionais, determinando suas decisões. E entre algumas respostas
escritas por professoras quando indagamos se relacionam sua espiri-
tualidade com aspectos de seu trabalho, selecionamos duas que refor-
çam nossa afirmação:

Procuro praticar em meu trabalho “entendendo” certos posicionamen-


tos ou dogmáticos, ou sem fé, que prejudicam o meu relacionamento
em sala ou c/ os colegas.
No trabalho tenho mais consciência para tomar atitudes com respeito ao
proximo, trabalhando valores.

As pessoas agem e se comportarm conforme seus princípios e va-


lores, forjados e sedimentados ao longo do processo de socialização,
dando sentido às suas ações e definindo as relações sociais, afetivas
e profissionais com outros indivíduos (WEBER, 2004). Desta forma,
quando observamos profissionais que defendem que a vontade e o
ensinamento divino possibilitam constituir bons costumes e a mora-
lização da sociedade, na verdade estão expressando o que foi interna-
lizado e naturalizado cotidianamente ao longo de sua formação en-
quanto indivíduo.
Não temos por finalidade questionar ou relativizar a religião e os
valores e princípios de homens e mulheres. Até porque religião é um
direito garantido na Constituição:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer nature-
za, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:

131
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a pro-
teção aos locais de culto e a suas liturgias (http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)

Nosso interesse é destacar os problemas que ocorrem quando va-


lores religiosos embasam ações e decisões durante o exercício profis-
sional, em detrimento dos direitos dos usuários das políticas sociais,
também garantidos na Constituição:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o traba-


lho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)

O aumento de cargos públicos ocupados por líderes religiosos –


prefeitos, ministros, além de vereadores, deputados e senadores - o
crescimento de manifestações religiosas em locais públicos, o aumen-
to de denúncias de casos de intolerância religiosa, demonstra que os
ideias conservadores, manifestado na religião e seus valores, vinham
crescendo e se fortalecendo nas últimas décadas do século XX e con-
quistou variados espaços em nossa sociedade nas primeiras décadas
do século XXI.
O Congresso Nacional é um exemplo de como a religião espraia-
-se por todos os setores, já que deputados e senadores são eleitos por
pesssoas que se identificam com seus ideiais e concepção de mundo:

A bancada evangélica no Congresso Nacional está cada vez mais nume-


rosa e, com isso, busca mais poder e cargos relevantes. Em 1994, eram 21
deputados federais evangélicos, hoje já são 105 deputados e 15 senado-
res, o que equivale a 20% do Congresso […]

132
(https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/veja-quais-deputa-
dos-e-senadores-fazem-parte-da-bancada-evangelica/)

Desta forma, o fato de alguns – ousaríamos escrever, muitos - pro-


fissionais das áreas da assistência social e educação pautarem sua ação
profissional cotidiana em valores religiosos reflete o que está ocorren-
do no Brasil contemporâneo, ou seja, o influxo de ações e pensamen-
to progressistas - a tentativa de amplos segmentos sociais construírem
uma sociedade menos desigual e intolerante - e o reavivamento do
conservadorismo – impulsionado por intelectuais , líderes políticos e
religiosos - que se materializa em pensamentos, ações e valores para a
manutenção das ideias e concepção de mundo daqueles que detêm o
poder econômico e político.

Considerações Finais
A partir da segunda metade do século XX, o crescimento da hetero-
geneidade social e cultural no Brasil provocou uma multiplicidade de
“retransmissores” de normas, comportamentos, valores e princípios,
com o consequente enfraquecimento das tradicionais instituições en-
carregadas de transmitir e promover a interiorização destes valores e
normas, como a escola, a família, a igreja. A mobilização de setores da
sociedade para reforçar a ofensiva conservadora - e neste texto nos pro-
pomos entender como se apresenta na religião - repercute na atividade
profissional dos técnicos da área social, como professores e assistentes
sociais. O projeto conservador, que penetra todas as esferas da socieda-
de, se anuncia como defensor da vida, da família e dos bons costumes e
torna-se atraente porque traz o sentimento de continuidade, de ordem
natural e de apresentar respostas para situações incompreensíveis.
Assistentes sociais e professoras são pessoas cujas identidades se
constituem a partir de seu processo de socialização, de suas relações
sociais, afetivas, de suas ideias e ideais e não estão isoladas e imunes

133
ao que ocorre ao seu redor. Portanto, se são pessoas que se identi-
ficam com o projeto conservador, também irão implementá-lo du-
rante seu exercício profissional, buscando na religião resposta para
situações que se deparam junto aos usuários da política de assistência
social e da educação, respectivamente.
É preciso considera que essa realidade que se constrói, descons-
trói e reconstrói exige constantes mudanças na atividade da pesquisa,
como a ampliação dos campos e saberes disciplinares e uma “multipli-
cidade do número de pesquisadores”, assim como exige um constante
“diálogo interdisciplinar” entre as ciências humanas - Sociologia, An-
tropologia, História - para que se possa compreender, minimamente,
as consequências das mudanças que se dão na contemporaneidade:
suas possíveis causas – resgatando o passado; e suas repercussões – no
futuro; no plano individual e no plano coletivo.
Enfim, entender as múltiplas apresentações e representações do
conservadorismo entre os profissionais da área social e suas repercus-
sões na garantia dos direitos dos usuários das políticas sociais.

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135
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136
Evangélicos na Arena Política
do Uruguai Contemporâneo1
Victoria Sotelo2

Introdução
O enfraquecimento do monopólio católico é um processo de longo
prazo que mostra suas características em todos os países da América
Latina, onde em paralelo se observa o crescimento contínuo de adep-
tos a religiões cristãs não católicas. O Uruguai não é exceção, já que a
porcentagem de católicos vem diminuindo nas últimas décadas, che-
gando aos 38% hoje. Por isso, uma nova agenda de estudos, aborda-
gens e metodologias está sendo proposta para entender “as múltiplas
consequências do pluralismo religioso, tanto para a própria religião,
quanto para a política e, sobretudo, por uma vida política democráti-
ca” (LEVINE, 2006, p. 27).

1.  Algumas ideias deste artigo foram originalmente apresentadas no trabalho “Claves para
comprender el accionar de los evangélicos en la política uruguaya” GT 1: “Religião e Política.
Fontes e manifestações politico-religiosas do movimento ultra-conservador na América lati-
na”, apresentado no X Jornadas Internacionales Ciencias Sociales y Religión – CEIL – CONI-
CET - Facultad de Ciencias Sociales UBA, Buenos Aires, Argentina. Noviembre, 2019. Estes
foram reelaborados e atualizados para o atual ensaio.
2.  Doutoranda em Sociologia, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade da Repúbli-
ca (UdelaR). Mestre em Sociologia e Graduada em Sociologia pela UdelaR. Professora do
Centro Regional de Professores do Sudoeste, CFE-ANEP, Colonia del Sacramento, Uruguai.
Membro do grupo de pesquisa “Coletivo Interdisciplinar de Estudos do Religioso (CIER)” da
UdelaR. victoria.sotelo@gmail.com

137
Religión - Uruguay 2017 %
Católica 38
Evangélica o cristiana (no católica) 6
Cultos afroamericanos, Umbanda, etc. 2
Creyente, no pertenece a Iglesia 10
Agnóstico 3
Ateo 8
Otra 1
Ninguna 31
No sabe/ no responde 1
Total 100

Fuente: Elaboración propia en base a Latinobarómetro 2017

Na América Latina, região de onde vem o atual “Papa “Francis-


co” (o argentino Jorge Mario Bergoglio), 59% da população se define
como católica, de acordo com dados do Latinobarômetro (2017). O
percentual de católicos em 1996, atingia 80% da população latino-a-
mericana, ou seja, há uma queda de 21 pontos percentuais de cató-
licos no espaço de duas décadas. Uma verdadeira revolução cultural
em muito pouco tempo. Essa revolução cultural é chamada de evan-
gelismo. Hoje, aqueles que professam o cristianismo evangélico são
um em cada cinco latino-americanos: 19%. Segundo o Latinobaró-
metro (2017), a população cristã não católica representa em cada país:
Argentina (9%), Bolívia (19%), Brasil (26%), Chile (12%), Colômbia
(14%), Costa Rica (26%), República Dominicana (22%), Ecuador
(15%), El Salvador (28%), Guatemala (43%), Honduras (39%), México
(7%), Nicarágua (33%), Panamá (25%), Paraguai (5%), Peru (14%),
Venezuela (18%), Uruguai (6%) (elaboração própria).
Em vários países latino-americanos (Argentina, México, Peru,
Chile, Costa Rica, Colômbia), os evangélicos têm se manifestado em
marchas contra o aborto, contra o casamento gay e em defesa da fa-
mília tradicional, em aliança com os católicos. Em todo caso, vemos
que esse conservadorismo religioso esbarra em um imenso número

138
de latino-americanos que se definem como “não crentes”, 18% segun-
do o Latinobarómetro (2017), número que vem crescendo ano a ano.
Isso significa que estamos diante de um cenário altamente polarizado
na região, onde também há manifestações de cidadãos que reivindi-
cam o laicismo do Estado, por não compartilharem as posições reli-
giosas desses grupos nas questões de família, gênero ou reprodução.
Na arena política latino-americana os evangélicos se mobilizam
contra projetos de lei, em outros têm seus próprios partidos políti-
cos e até candidatos presidenciais. O presidente guatemalteco Jimmy
Morales é um evangélico (um ferrenho oponente do aborto e do
casamento gay), enquanto no México um partido de base evangéli-
ca apoiou o presidente Andrés Manuel López Obrador, que repeti-
damente cita a Bíblia e o evangelho em seus discursos. No Brasil, o
apoio dos evangélicos ao atual presidente Jair Bolsonaro foi funda-
mental para sua vitória nas eleições eleitorais de 2018. Mesmo em um
país como a Costa Rica, o apoio que o candidato evangélico Fabricio
Alvarado teve foi surpreendente. Na Venezuela e na Colômbia em
2018, dois pastores evangélicos ( Javier Bertucci e Jorge Antonio Tru-
jillo respectivamente) concorreram como candidatos presidenciais.
Por essas razões, podemos afirmar que os evangélicos estão avançan-
do com força no mapa de poder da América Latina. Desde meados da
década de 1980, a partir do caso brasileiro, o surgimento de uma ban-
cada evangélica trouxe à luz o perfil completo desse novo ator social
que as ciências sociais reconheceram tardiamente, já que o pentecos-
talismo vinha crescendo há décadas (BURITY, 2008, p. 7).
Guigou (2006) se refere à presença pública do neopentecostalismo
no Uruguai, pelo menos desde a década de 1980, e se refere à “neo-
pentecostalização da linguagem política”, mas na época afirma que
“Não há, portanto, bancos evangélicos, nem diferentes nomeações
do universo pentecostal disputam posições na arena política ”(GUI-
GOU, 2006, p. 51). Esse diagnóstico deixa de coincidir com a realidade
e mostra como as mudanças têm se desencadeado rapidamente nesse

139
cenário religioso e político que nos mobiliza para pensar o fenômeno
a partir de uma nova perspectiva sociológica.
Recentemente, o sociólogo uruguaio Rafael Bayce (2017) reflete sobre
o crescimento dos evangélicos pentecostais e neopentecostais em toda a
América Latina desde a década de 1980, tanto em termos religiosos quan-
to políticos. Para o autor, esse crescimento está ligado a “uma ressurrei-
ção espiritual conservadora, reacionária, quase fundamentalista da ‘Nova
Direita’ ou ‘Maioria Moral’ nos Estados Unidos, que surgiu em 1974, e a
partir daí, e inicialmente com Ronald Reagan, apoia Direitos ideológicos
políticos americanos em todo o mundo” (BAYCE, 2017, p. 1).
A partir de 1913, o presidente Roosevelt assinalou que seria difícil
absorver os países latino-americanos enquanto fossem católicos. O
Relatório Rockefeller (1960) sublinha explicitamente que a América
Latina deixou de ser confiável em termos religiosos porque as Comu-
nidades Eclesiais de Base no Brasil e a Teologia da Libertação em toda
a América do Sul - especialmente na região andina e no Brasil - lidera-
ram radicalmente as massas e grupos sociais, entre outras tendências
menos agressivas em outros países, como Chile e Uruguai.

“A Teologia da Libertação teve que ser combatida apoiando crenças con-


servadoras que se distanciavam da intervenção da justiça no mundo,
como as religiões umbandistas e as igrejas neopentecostais. Essas ideias
estão refletidas no documento do Comitê de Santa Fé (1980), e um novo
documento de 1984 recomenda “a continuação da revolução conserva-
dora [...] o fortalecimento dos laços com os setores conservadores da
Igreja Católica [...] e que a Teologia da Libertação seja lutada por todos
os meios” (BAYCE, 2017, p. 2).

No entanto, argumenta Bayce (2017), seria uma simplificação pen-


sar que o crescimento dessas igrejas se explica apenas pela trilogia de
conservadores religiosos (protestantes, católicos e judeus) que co-
mandam os Estados Unidos há quase quarenta anos.

140
“Existem razões econômicas e sociais poderosas que pavimentam o
caminho para que essas teologias infantis, esperanças neo-mágicas de
bonança diária, sejam semeadas e colhidas abundantemente em solos
latino-americanos e até surpreendam a muitos, incluindo aqueles que
confiaram excessivamente no lendário secularismo racional uruguaio”
(BAYCE, 2017, p. 2).

O autor afirma que a primeira geração nascida no pós-guerra tem


necessidades instantâneas, tanto pela ordem econômico-social vigen-
te, quanto pelo sistema de crenças disponível. As classes média e bai-
xa têm um desejo consumista e hedonista prometido e não realizado
pelo estado de bem-estar instalado. A busca racional e progressiva
desses objetivos e o fracasso em alcançá-los desacredita o Estado e
desperta a busca e esperança nos bens simbólicos e salvadores.
Segundo esse autor, as crenças pentecostais ou evangélicas fazem
parte da oferta em um mercado de bens simbólicos para os quais as
classes médias ameaçadas pela mobilidade descendente e aquelas que
não têm acesso ao pacote de bens e serviços que o Estado declina.

“Mas esses bens simbólicos não são totalmente alheios à necessidade de


bens materiais, cuja provisão é magicamente confiada a curas demonía-
cas e atos de fé, geralmente apoiados monetariamente, é claro, na ausên-
cia de suficiência do Estado em prover o desejo crescente e estimulado
cientificamente” (BAYCE, 2017, pp. 4-5).

O autor aponta que os mapas de intersecção entre política e reli-


gião são apreciáveis e​​ iluminam a profunda realidade em que estamos
imersos, uma vez que nesta companhia de provisão de bens materiais
magicamente fornecidos “contrabandeam-se crenças macropolíticas
muito abrangentes” (BAYCE, 2017, p. 5). A oferta religiosa não está
alheia aos modelos político-econômicos de que nasceu parte de sua
racionalidade.

141
A presença de lideranças evangélicas na arena política
uruguaia
O Uruguai, o país mais secular do continente, pouco a pouco começa
a perceber o aumento de figuras políticas publicamente reconhecidas
como evangélicas na arena política.
Na última legislatura (2015-2020) já havia pelo menos dezesseis fi-
guras políticas entre deputados, vereadores e governantes que se de-
clararam publicamente evangélicos. Na atual legislatura (2020-2025)
esta tendência continua, já que são eleitos os mesmos três deputados
evangélicos como na última legislatura (Gerardo Amarilla, Benjamín
Irazábal e Álvaro Dastugue) pertencentes ao Partido Nacional. Algu-
mas personalidades evangélicas foram inclusive indicadas pelo atual
presidente Luis Lacalle Pou para ocupar cargos de especial confiança.
É o caso de Gabriel Cunha, que estava vinculado à Igreja neopente-
costal Missão Vida, que foi nomeado para liderar o programa do Mi-
nistério de Desenvolvimento Social que atende a moradores de rua.
Outro caso é o de Gustavo Silveira, genro do Pastor Márquez (líder da
Igreja Missão Vida), dirigia o setor “Cristãos pelo Uruguai” dentro do
Partido Nacional e foi nomeado chefe da Direção Nacional de Apoio
aos Libertados.
É um fenômeno que, embora já esteja presente na região há muito
tempo, chegou tardiamente ao Uruguai para se instalar de forma de-
finitiva. O objetivo deste artigo é analisar a visão de mundo religiosa
que inspira a agenda desses representantes políticos no parlamento
uruguaio, bem como em outras áreas da política uruguaia.
Os evangélicos realizaram na última legislatura (2015-2020) uma
forte ofensiva contra a “nova agenda de direitos”, mesmo em 2019
eles coletaram assinaturas para realizar um pré-referendo para re-
vogar a Lei Integral para as pessoas Trans, que acabou sem sucesso.
Chamamos “nova agenda de direitos” a um conjunto de leis votadas
nas duas últimas administrações da Frente Ampla: Lei nº 18.987 sobre
a interrupção voluntária da gravidez (2012), Lei nº 19.075 e nº 19.119

142
sobre casamento igualitário (2013), Lei nº 19.172 sobre a Regulação
e Controle da Cannabis (2013), a Lei Integral para Pessoas Trans nº
19684 (2018)3.
O primeiro evangélico a entrar na arena política uruguaia é o de-
putado Dr. Gerardo Amarilla (Partido Nacional), advogado, membro
da Igreja Evangélica Batista. Amarilla foi Deputado pelo departamen-
to de Rivera no período 2010-2015 e é reeleito para os períodos 2015-
2020 e 2020-2025, tendo exercido o cargo de autarca do Município de
Rivera no período 2000-2010. Amarilla foi quem formulou a polêmica
frase ao assumir seu assento: “A Lei de Deus está acima da Repúbli-
ca”. Atualmente Amarilla é nomeado Subsecretário do Ministério do
Ambiente.
Outra figura relevante quando falamos de política e religião é o
deputado Álvaro Dastugue, eleito pelo setor da Aliança Nacional,
Partido Nacional. Dastugue é o primeiro pastor evangélico na histó-
ria da política uruguaia em ocupar uma cadeira; a sua afiliação ins-
titucional é a Igreja neopentecostal “Missão Vida para as Nações”,
cuja figura mais importante é o Apóstolo Jorge Márquez (sogro do
Dastugue). A terceira figura política na esfera evangélica é Benjamín
Irazábal, Deputado Herrerista por Durazno, também pertencente ao
Partido Nacional.
Os três deputados em exercício acima mencionados no período
2015-2020 juntaram-se a um deputado suplente (Luis Pintado) pelo

3.  Em novembro de 2012, foi aprovada no Uruguai a Lei nº 18.987 de Interrupção Voluntária
da Gravidez, que estabelece que as interrupções da gravidez que atendam aos requisitos esta-
belecidos pela nova Lei (entre outros requisitos, que sejam realizados durante a primeira 12
semanas de gestação). No Uruguai, desde agosto de 2013, está em vigor a Lei do Casamento
Igualitário, que reconhece como legítimo o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo
(Lei nº 19.075 e Lei nº 19.119). Em 2013, o Parlamento uruguaio aprovou a Lei de Regulação
e Controle da Cannabis (Lei nº 19.172), que criou um mercado legal de maconha, contro-
lado pelo Estado. A Lei nº 19.172 prevê a criação do Instituto de Regulação e Controle da
Cannabis (IRCCA) para regulamentar o plantio, cultivo, colheita, produção, processamento,
armazenamento, distribuição e distribuição de cannabis. Em outubro de 2018, a Lei Integral
para Pessoas Trans (Lei nº 19684) foi aprovada no Uruguai.

143
Partido Colorado (que assumiu o cargo de titular em 2018 após a
formalização da renúncia do titular) e dois deputados nacionalistas
suplentes: Betiana Britos (Partido Nacional, setor Aliança Nacional)
e Grisel Pereyra (Partido Nacional, setor Esperança Nacional). Tudo
isso levou ao início de conversas nos últimos cinco anos sobre a exis-
tência de uma “bancada evangélica”. Seus membros negam, pois ale-
gam não ter agenda própria ou coordenação específica. Atualmente
nos governos departamentais encontramos mais de uma dezena de
conselheiros evangélicos (titulares e suplentes) e dois cargos de con-
fiança nos municípios de Rivera e Cerro Largo.
No início da última legislatura (2015-2020), dezesseis pessoas (en-
tre deputados, vereadores e cargos de confiança) receberam a bênção
numa cerimônia denominada “Consagração aos Cristãos no Gover-
no”. Nele, eles prometeram respeitar a Constituição e as leis “desde
que não contradigam a palavra de Deus”. Asseguraram que obedece-
riam «aos ditames» das suas consciências «informados pela Palavra de
Deus, sobretudo a lealdade pessoal ou partidária», e afirmaram que a
“base” e “fundamento” da sua atividade seria o Evangelho. São sete
as áreas da sociedade uruguaia onde os evangélicos atuam na política
e buscam exercer influência: governo, igreja, família, economia, cul-
tura, artes e comunicação4.
Sem dúvida, uma das principais figuras políticas do eleitor evan-
gélico foi uma mulher pertencente ao Partido Nacional, uma ca-
tólica convertida ao judaísmo: a ex-senadora nacionalista Verónica
Alonso (período 2015-2020). Alonso foi uma das figuras políticas
mais visíveis contra a lei “trans” quando ela foi discutida no Parla-
mento. Representa os mesmos valores que as igrejas neopentecos-
tais promovem, principalmente o valor da família tradicional e a
defesa do valor da vida.

4.  Veja a cerimônia completa de “Consagração aos Cristãos no governo” 13 de setembro de


2015 em: https://www.youtube.com/watch?v=Tm3Px6CzqW4

144
Alonso despertou a sombra do partido no poder pela suposta con-
tribuição da Missão Vida para as Nações no financiamento de sua úl-
tima campanha (2014), já que uma fatura não paga foi deixada em
uma gráfica em nome de um membro da igreja (Gabriel Cunha), que
levou a litígios legais. A contribuição dos religiosos na campanha de
Alonso foi analisada pela Comissão de Investigação sobre o financia-
mento de partidos políticos e, a denúncia de voluntários do Hogares
Beraca distribuindo suas listas, foi investigada pela Comissão de Direi-
tos Humanos do Parlamento, por exploração de trabalho de jovens
internos nessa comunidade.
Alonso não pode manter sua cadeira em 2019, após uma aliança
com o atual senador Juan Sartori que a coloca em desvantagem.
O senhor Carlos Iafigliola, político do Partido Nacional, que foi
pré-candidato a presidente por seu partido nas eleições internas de
junho de 2019, foi o promotor do pré-referendo. Iafigliola se identifica
como um católico carismático e teve o apoio durante esse processo
de evangélicos neopentecostais, principalmente o deputado Álvaro
Dastugue da Igregja Evangélica Neopentecostal Missão Vida para as
Nações.
Iafigliola justificou sua iniciativa afirmando que a lei “trans” é “in-
constitucional, perigosa e injusta” (Rádio Universal, 14 de novembro
de 2018). Ele desenvolveu seu pensamento ao expressar que acom-
panha o projeto desde que foi apresentado pela ex-senadora trans-
-Michele Suárez (do Partido Frente Amplio), e considerou perigoso
enquadrar a possibilidade de que menores possam realizar processos
hormonais e mudança de sexo. Afirma que, embora qualquer pessoa
idosa possa fazer a mudança de sexo, é injusto que o Estado garanta o
processo gratuitamente, uma vez que não pode atender às necessida-
des básicas de saúde, medicamentos de alto custo ou cirurgias.
Por outro lado, também é importante notar que os evangélicos
neopentecostais estão contra a educação sexual nas escolas, como o
Pastor Márquez, líder da Igreja Missão Vida para as Nações, afirmou

145
em várias ocasiões, lembrando que “manuais de sexualidade do go-
verno incitam a pedofilia e que o ‘lobby gay’ busca legalizar o sexo
com menores” (SEMANARIO BRECHA, 2018, p.1).
Quando se trata de aborto, os evangélicos condenam sua prática e
declararam em inúmeras entrevistas à imprensa que pretendem revo-
gar a lei na próxima legislatura. Prova disso é um projeto apresentado
em 2016 por Dastugue e Irazábal -que não prosperou- para comemo-
rar o “Dia do feto” no dia 25 de março. O referendo para revogar a lei
que descriminaliza o aborto em 2013, não alcançou as assinaturas ne-
cessárias, mas isso não garante a persistência da lei, já que o próprio
Iafigliola promete continuar trabalhando para erradicá-la.
Com relação ao uso de drogas, o deputado Álvaro Dastugue afir-
mou que a discussão no Parlamento da Lei de Regulamentação da
Maconha foi o que o levou a se tornar um militar na política. A razão
se deve ao fato de que nas residências da Beraca da Igreja Mission
Vida para as Nações, é realizado trabalho social para atender os usuá-
rios que apresentam uso problemático de drogas, por isso são contrá-
rios a esta Lei.
Os evangélicos também fazem alianças com movimentos sociais
e ONGs pró-vida e pró-família, como a do Uruguai chamada “Meus
filhos não tocam”, que surgiu como uma rejeição à proposta didáti-
ca de abordagem da educação sexual na educação inicial e primária,
apresentada pelo CEIP (Conselho de Educação Inicial e Primária).
Durante alguns meses de 2019, pela primeira vez na história
política do Uruguai, quatro deputados evangélicos se reuniram no
Parlamento. Nesse quinquênio legislativo, onze iniciativas foram
apresentadas por legisladores evangélicos seguindo as mesmas con-
vicções religiosas: dois projetos de lei contra a descriminalização
do aborto, quatro projetos de lei associados à proibição e tratamen-
to das drogas, quatro que promovem a família “tradicional” e aque-
le que estabelece 31 de outubro como o “Dia Nacional das Igrejas
Evangélicas”. Por fim, a questão do casamento igualitário também

146
é um flanco para onde apontam os evangélicos, já que o modelo
de família que defendem é a família nuclear, composta por um ho-
mem e uma mulher. É por isso que também se opõem à dita lei já
aprovada em nosso país.

A Lei Integral para Pessoas Trans no Uruguai e suas resistências


Nesta seção, nos aprofundaremos na mobilização de atores político-
-religiosos (evangélicos e católicos) para revogar a Lei Integral para
Pessoas Trans (Lei Nº 19684) aprovada no Uruguai em 2018, que en-
volveu a coleta de assinaturas e que levou à realização de um pré-refe-
rendo em agosto de 2019.
É um evento social onde entram em jogo a política, a religião, a
saúde e o Coletivo Trans do Uruguai. Em outubro de 2018, foi apro-
vada no Uruguai a Lei Integral para Pessoas Trans, que propõe a
criação de políticas públicas específicas voltadas para essa população.
Através da concepção e promoção de ações afirmativas -públicas e
privadas-, procura-se reduzir a discriminação estrutural e permanente
vivida pelas pessoas trans, promovendo a sua inclusão nas áreas das
quais historicamente foram excluídas: social, educacional, cultural,
econômica, trabalho, saúde, etc.
O caso apresentado seria uma “controversia” formal na perspecti-
va de Giumbelli (2002, p. 46), tomando seu modelo de análise das re-
lações entre Estado, religião e sociedade. À luz do modelo de Gium-
belli podemos ver que neste caso entram em cena diversos atores: o
Estado, grupos religiosos (evangélicos e católicos), o Trans Colecti-
vo del Uruguai, a mídia e os cientistas. O autor aconselha considerar
o Estado como um grande regulador da interação religiosa, mas ao
mesmo tempo transcendendo-a. A polêmica foi elogiada nas urnas do
dia do pré-referendo, onde não foram alcançados os votos necessários
para submeter a lei a referendo. 25% dos cadernos eleitorais foram
exigidos e 9,9% (266.503 votos) foram obtidos.

147
O maior voto contra a lei trans foi observado nos departamentos
onde há mais evangélicos (principalmente pentecostais), ou seja, nos
departamentos limítrofes com o Brasil (Rivera, Artigas, Cerro Largo).
Em Rivera, os votos necessários foram alcançados (25%) e é onde há
mais “cristãos não católicos” no país (30,9%) (SOTELO, 2010, pg. 75).
Em Artigas (16%) e Cerro Largo (15%) os votos também foram supe-
riores à média devido à alta presença de evangélicos pentecostais. É
importante notar que nesta votação nos departamentos de fronteira
com o Brasil os evangélicos obtiveram o maior número de adesões, o
que mostra uma certa internacionalização do fenômeno e a influên-
cia do país vizinho. Da mesma forma, em Salto se observou um bom
voto (19%) devido à alta presença de católicos conservadores naquele
departamento (53,3%) (SOTELO, 2010, pg. 76).
À luz de Giumbelli (2002), podemos perceber que há uma inte-
ração entre atores sociais que com suas resistências, imposições e
resultados encontraram dispositivos para a regulação da religião. Os
dispositivos revelam uma determinada relação entre modernidade
e religião, cristalizada localmente. A modernidade está construin-
do uma certa concepção do religioso e o religioso surge como um
domínio que revela as características da sociedade que o engendra.
“Estado, religiões e outros personagens são observados por meio de
instituições, agentes, discursos e práticas específicas que se dão con-
juntamente em determinadas situações e que em sua interação (re)
definem as configurações e sentidos do ‘pluralismo confessional’ e da
‘liberdade religiosa’ ” (GIUMBELLI, 2002, p. 51).

Sinais da erosão lenta e gradual do “Uruguai secular”


O Uruguai experimentou no início da modernidade um forte proces-
so de secularização de mentalidades, costumes, instituições e educa-
ção, onde o secularismo tinha profundas raízes sociais. Nesse proces-
so houve dois elementos que desempenharam um papel primordial:

148
a fraca implantação do catolicismo em nosso país, desde os tempos
coloniais; e o papel das elites modernizadoras que estiveram presen-
tes antes e durante a consolidação do Estado moderno.
O processo de secularização em nosso país concentrou-se histori-
camente ao longo das seis décadas da primeira modernização capita-
lista (1860 e 1920), e é entendido como uma progressiva “privatização
da religião”. Nesse período houve uma forte luta entre Igreja e Esta-
do pela ocupação dos espaços públicos, cujos dois marcos iniciais po-
dem ser marcados com as Leis da Educação de 1877 e sua imposição
do “laicismo”, e o Registro do Estado Civil de 1878.
Não porém, o ponto culminante foi alcançado nas primeiras déca-
das do século XX, com o chamado “primeiro batismo”, onde o Estado
relegou definitivamente o religioso à esfera privada. Entre as iniciativas
de Batlle e Ordóñez podemos citar a lei do divórcio, a retirada dos cruci-
fixos dos hospitais, a supressão do ensino religioso nas escolas públicas,
a substituição por decreto de festas religiosas por seculares, etc.
Segundo Gerardo Caetano (2007), é evidente o caráter radical em
vários aspectos do conceito de laicidade imposto no país no período es-
tudado. A adoção de posições oficiais fortemente críticas à religião ins-
titucional hegemônica (a Igreja Católica), junto com uma transferência
da sacralidade do religioso para o político, “aos poucos levou à forma-
ção do que passou a ser denominado uma espécie de religião civil, com
símbolos e doutrinas alternativas, rituais e liturgias cívicas que visam o
reforço da identidade e da ordem social” (CAETANO, 2007, p. 43). Na
opinião de Caetano, a privatização da religião e a implantação de uma
religião civil secularizada foram as marcas do processo de secularização
uruguaia, que transcendeu o plano das relações entre Igreja e Estado
(ou dos vínculos entre religião, política e sociedade), “registrar-se como
perfil fundamental da vasta identidade cultural dos uruguaios” (p. 44).
No entanto, pode-se afirmar provisoriamente que hoje existe um
certo grau de divergência entre a imagem laica apresentada pelo Uru-
guai e o progressivo aumento de novos movimentos religiosos. Esse

149
paradoxo e suas possíveis repercussões sobre a identidade religiosa
atraem enormemente nossa curiosidade sociológica. O surgimento
de práticas religiosas orientalistas ou da Nova Era, a proliferação de
igrejas pentecostais de grande poder econômico, as novas abordagens
do neo-cristianismo e a adesão de novos crentes aos cultos umban-
distas sugerem que o Uruguai está mudando fortemente no sentido
religioso.

“A conversão de grandes cinemas em igrejas, por exemplo, modifica re-


ferências urbanas e significados dos espaços da cidade em todo o territó-
rio nacional. As práticas religiosas generalizadas, as mensagens midiáti-
cas de caráter religioso, a proliferação de templos, são todos elementos
que manifestam alterações substantivas na forma como os uruguaios se
concebem, pensam e agem” (FILARDO, 2005, p. 7).

Isso trará consequências políticas e sociais que, sem dúvida, afeta-


rão os crentes e os cidadãos em geral.
No Uruguai, ao contrário de outras sociedades latino-americanas,
a Igreja Católica historicamente não teve um grande peso institucio-
nal e social, devido ao processo de secularização inicial, desde o início
do século XX. Como aponta Da Costa, “‘ser católico’ não faz parte da
construção identitária do Uruguai e o reconhecimento do Uruguai
como uma sociedade secularizada e laica faz parte dessa construção”
(DA COSTA, 1999, p. 139). Quanto dessa imagem de país laico conti-
nua e quanto mudou?
Desde 1919, a Constituição da República estabelece claramente a
liberdade de culto e simultaneamente o laicismo do Estado em seu
artigo 5º: “Todos os cultos religiosos são gratuitos no Uruguai. O Es-
tado não defende nenhuma religião”. No entanto, vários episódios
suscitam debates na sociedade por violação do laicismo do Estado,
seja pela irrupção de políticos em contextos religiosos, seja de religio-
sos na esfera pública / política.

150
Por exemplo, em 2018 o atual Prefeito de Salto Andrés Lima rece-
be a bênção de dois pastores do Ministério Evangelístico Tiempo de
Victoria em seu gabinete e é divulgado na imprensa nacional, tendo
sido um caso bastante polêmico por violação do laicismo do Estado.
Outro caso que relançou o debate sobre a laicidade do Estado foi
a aprovação pelo atual prefeito de Cerro Largo Sergio Botana de um
monumento à Bíblia, a pedido da União dos Pastores Evangélicos
de Melo em outubro de 2018, sem prévio envio a Diretoria Departa-
mental para aprovação dos conselheiros. Para corrigir seu erro, após
a construção do monumento, ele encaminhou o pedido à Diretoria.
A iniciativa do Cardeal Sturla de instalar um monumento à Vir-
gem Maria na Rambla de Montevidéu não teve a mesma sorte, fato
que foi longamente discutido na Junta Departamental de Montevi-
déu, sendo o pedido finalmente rejeitado.
Da mesma forma, foram levantadas polêmicas pelas recentes de-
clarações da ex-senadora Verónica Alonso em meio à campanha elei-
toral, que junto com o pastor Álvaro Dastugue e diante de uma au-
diência de fiéis nas instalações de uma igreja evangélica pentecostal,
indicou que “Deus tem um propósito com esta nação e com a gente
aqui [...] ”, acrescentando “Eu vim me apresentar na sua frente e que-
ro me comprometer na sua frente”: [...]“ Vou erradicar a ideologia de
gênero que tanto magoa nossos filhos”5.
Outro episódio que gerou a mesma polêmica por suposta viola-
ção do laicismo do Estado foi a participação de oficiais do Exército,
chefiados pelo ex-Comandante do Exército Guido Manini Ríos e pelo
Comandante da Aeronáutica Alberto Zanelli, em missa celebrada na
Catedral metropolitana presidida pelo Cardeal Daniel Sturla. Na oca-
sião (18 de maio de 2016) foi comemorado o aniversário do Exército.
Nesta cerimônia religiosa os soldados foram uniformizados, Manini

5.  https://laicismo.org/sobre-politica-religion-y-laicidad-en-uruguay-ante-los-dichos-de-la-
-senadora-veronica-alonso-y-el-cardenal-daniel-sturla/

151
Ríos falou e deu um presente ao Cardeal Sturla em nome do Exército.
A isso se somam outros fatos polêmicos: o juramento da bandeira na
catedral metropolitana - ato presidido pelo cardeal Sturla; a inaugu-
ração de uma capela no hospital das Forças Armadas, a nomeação de
um capelão e a criação de um “departamento de assuntos religiosos”.

Estudos sobre religião e política no Uruguai


O caso particular do processo de secularização no Uruguai e o impac-
to das recentes transformações tornam o estudo de caso único em
relação a outros países latino-americanos. O historiador e cientista
político uruguaio Gerardo Caetano é, sem dúvida, uma referência in-
contornável na pesquisa acadêmica sobre o processo de secularização
do Uruguai (1859-1919) e no estudo dos significados e da abertura
das transformações mais contemporâneas e em curso, sob o título
que se denomina “crer sem pertencer”, a qual dedica o epílogo de
sua recente obra intitulada “El Uruguay Laico. Matrizes e revisões”
(CAETANO, 2013).
Mais recentemente, Juan Scuro (2018) analisou como a questão
do secularismo ressurgiu com ímpeto no Uruguai nas últimas dé-
cadas no Uruguai progressista. O autor apresenta em sua pesqui-
sa um cenário de fervorosas discussões e trocas de perspectivas a
respeito do novo lugar da religião na cena pública uruguaia. Nos
meses que se seguiram à posse de Tabaré Vázquez como presidente
(2005), o governo apoiou o pedido do arcebispo Nicolás Cotugno
para retirar a estátua do recém-falecido João Paulo II de uma igreja
ao pé da já chamada “Cruz del Papa”, na Avenida Artigas, na ci-
dade de Montevidéu. Esse episódio, gerou críticas na sociedade e
principalmente na Federação das Igrejas Evangélicas do Uruguai,
uma vez que com essa medida, a cruz não representava mais o con-
glomerado cristão, mas especificamente a Igreja Católica (SCU-
RO, 2018).

152
Scuro (2018) também analisa a chegada de líderes religiosos à es-
fera parlamentar, como é o caso de Mae Susana Andrade (deputada
afrodescendente da Partido Frente Amplio) ou dos deputados evangé-
licos Gerardo Amarilla, do pastor neopentecostal Álvaro Dastugue e
do deputado Benjamín Irazábal. O autor conclui que:

“Moralidades, identidades e liberdades estão em uma vigorosa disputa


política no Uruguai. O arcabouço interpretativo do laicismo é um im-
portante eixo por meio do qual se movem e se manifestam as tentativas
de materialização dessas licitações pelos diversos setores envolvidos. A
esfera política em sentido estrito (partidário) é uma delas. A presença
de símbolos religiosos no espaço público é outra forma óbvia de tornar
visíveis os processos de identificação e disputa” (SCURO, 2018, p. 55).

Magdalena Milsev, uma antropóloga uruguaia, também estuda a Igre-


ja Missão Vida para as Nações em sua dissertação de mestrado. Ela apre-
senta exemplos etnográficos onde podemos encontrar efeitos políticos de
práticas e discursos que geralmente não são concebidos como políticos
- doutrina religiosa, hermenêutica bíblica, discursos morais - que estão re-
lacionados com o ativismo conservador desta Igreja. “Este último ponto
- facilmente identificado como ‘político’ por estar associado a um partido
- é apenas um dos muitos níveis em que a política está presente nessa or-
dem cosmológica neopentecostal” (MILSEV, 2019, p. 327). O autora des-
taca que as megaigrejas neopentecostais têm crescido constantemente no
Uruguai desde sua chegada nos anos oitenta e, apesar das citadas raízes
seculares do Estado, “elas adquiriram relevância social - e política - pela
atenção aos setores populares, prestando serviços sociais onde o Estado
não está presente, como poderosos referentes simbólicos para pessoas em
situação de privação” (MILSEV, 2019, p. 328). A Igreja Missão Vida para as
Nações tem participado ativamente dos assuntos da agenda pública desde
que começaram a ser discutidas as inovações relativas aos direitos sexuais
e reprodutivos - que em Uruguay se somam também à Legalização da

153
Cannabis - o que tem acontecido de forma ampla em nível regional em
relação aos religiosos conservadores denominações. Nesse sentido, conti-
nuam trabalhando contra o aborto e o casamento homossexual apesar de
terem sido legalizados em 2012 e 2013, perseverando nos discursos junto
com uma campanha ativa contra o Guia de Educação Sexual da Educa-
ção Pública e a ‘Lei Trans’” (MILSEV, 2019, p. 337), como já apontamos.

Considerações finais
A transformação religiosa latino-americana dos últimos tempos sem
dúvida impactou nas relações entre religião e política. Surge assim
um novo ator social: os pentecostais, que avançam no cenário político
latino-americano com uma agenda conservadora em defesa da famí-
lia tradicional, contra o aborto legal, contra a chamada ideologia de
gênero e a educação sexual nas escolas.
Na última legislatura (2015-2020) a “agenda de direitos” conquista-
da em nosso país tem sido questionada por esses grupos evangélicos
em aliança com os católicos, tentando destruir alguns direitos já con-
quistados por outros grupos.
Luis Lacalle Pou, o atual presidente uruguaio, conseguiu sua vi-
tória após 15 anos de governo da Frente Amplio (à esquerda), junto
com uma coalizão “multicolorida” de vários partidos : Partido Nacio-
nal, Partido Colorado, Conselho Aberto (Cabildo Abierto), Partido
Independente, Partido da Gente (Partido de la Gente).
Um novo partido chamado Conselho Aberto (Cabildo Abierto)
surgiu no Uruguai nas últimas eleições y capturou o voto conserva-
dor e contrário à agenda de direitos (obteve 11% dos votos, 3 senado-
res 11 deputados, nenhum evangélico), liderado pelo ex-comandan-
te-em-chefe do Exército Guido Manini Ríos, um católico confessado.
Conselho Aberto tem um discurso conservador em defesa dos va-
lores tradicionais e contrário à ideologia de gênero, o que atraiu a
militância de fiéis cristãos e neopentecostais.

154
O Uruguai viu na última década um aumento considerável de re-
presentantes evangélicos no parlamento, embora neguem que haja
uma bancada como a brasileira. Devemos considerar a hipótese de
que a influência evangélica pode ter contribuído para a decisão das
últimas eleições nacionais uruguaias (2019), que foram decididas em
votação por apenas 25.000 votos.
Lacalle Pou se comprometeu na campanha para não tocar na
agenda de direitos durante seu mandato, mas certamente Conselho
Aberto vai realizar uma oposição a ela, fato que será valorizado pelos
cristãos mais conservadores e neopentecostais.
Até 2019, pensava-se que os evangélicos continuariam a crescer
dentro do Partido Nacional, fato que no futuro não fica tão claro com
o surgimento do Conselho Aberto. Todas essas questões nos moti-
vam a valorizar o estudo das relações mútuas entre religião e política,
um campo de estudos pouco explorado em nosso país. Neste artigo
procuramos nos aproximar da agenda promovida pelos grupos evan-
gélicos presentes no Uruguai e das reações que isso provoca dentro de
uma sociedade que se percebe como uma “ilha secular” do continen-
te latino-americano, mas que começa a reconhecer que essa matriz
começou a se desgastar.
A chegada de Lacalle Pou ao governo (católico confesso) e a pre-
sença do partido Conselho Abierto na coalizão mostram um cená-
rio favorável para a ação dos evangélicos no atual cenário político
uruguaio.

Referências bibliográficas
BURITY, Joanildo. Religião, política e cultura. Tempo social. San Pablo: Revista de
sociología da USP, Vol 2, 2008.
BAYCE, Rafael Os evangélicos avançam na política e na religião. Montevidéu: Re-
vista Caras y Caretas, 2 de julio, 2017. Disponível em: https://www.carasycaretas.
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155
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Artigos de imprensa:
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estão vinculadas à Igreja Missão Vida para as Nações, do Pastor Márquez. 13 de
setembro de 2018.
Semanario Brecha, 2018. Evangélicos no Uruguai, seu crescimento e relevância so-
cial. Bolha e reação. 9 de novembro de 2018. Escrito por Betania Núñez.
Semanario Brecha., 2018. Evangélicos e sua ligação com a política. 9 de novembro
de 2018. Escrito por Daiana García.
La Diaria (2015, 13 de setembro). Evangélicos que têm um banco. Disponivel em:
https://www.elpais.com.uy/que-pasa/evangelicos-banca.html
 
Recursos de internet:
https://laicismo.org/sobre-politica-religion-y-laicidad-en-uruguay-ante-los-dichos-
-de-la-senadora-veronica-alonso-y-el-cardenal-daniel-sturla/
«Consagración a cristianos en el gobierno» 13 de setiembre de 2015 en: https://
www.youtube.com/watch?v=Tm3Px6CzqW4

157
PARTE II

Neoliberalismo Conservador
e Resistência política
nos Movimentos Sociais
e Politico-religiosos
Neoliberalismo e Teologia da Libertação.
A resistência a partir das experiências
da Comissão Pastoral da Terra e
do Movimento de Fé e Política.
Lucí Faria Pinheiro6
Camila Faria Pançardes7

Introdução
A particularidade da cultura política brasileira em relação ao modelo
de desenvolvimento dependente, no qual situamos fé e política, são
as relações entre o poder e as massas, viciadas pelo domínio dos inte-
resses privados, cooptando lideranças e criminalizando a resistência
popular. Procuramos analisar a Teologia da Libertação como uma
dialética que se destaca em períodos de eclosão dos movimentos so-
ciais e sofre impactos nos momentos de crise democrática. Sua prá-
xis cotidiana é um importante recurso na elaboração de uma nova
consciência democrática, o que a torna aliada das esquerdas, desde

6.  Assistente Social, doutora em Antropologia e Sociologia Política pela Universidade Paris
8. Professora da Universidade Federal Fluminense-UFF, na Escola de Serviço Social e Progra-
ma de Estudos Pós-Graduados em Política Social-PPGPS. Coordenadora do LASSAL (La-
boratório de Serviço Social, Movimentos Sociais e Novos Projetos Societários na América
Latina).
7.  Assistente Social, Doutora em Política Social e pós-doutoranda no Programa de Estudos
Pós-Graduados em Política Social-PPGPS, sob supervisão da Professora Lucí Faria Pinheiro.
Professora Substituta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. Colabo-
radora do LASSAL-UFF.

161
os anos de ditadura (1964-1986) até a crise do ciclo democrático-po-
pular protagonizado pelo PT. Em menor grau esse modelo depen-
dente e desigual, perpassa e também é seguido nos governos recentes
(2003-2016), gerando contradições e novos desafios aos cristãos que
os apoiaram.
Ao se legitimar no trabalho de base e primar pelos valores cris-
tãos encarnados na realidade dos pobres, a referida teologia se man-
tém como uma referência moral e política necessária em momentos
de criminalização dos movimentos sociais. Contudo, ela enfrenta as
mesmas dificuldades do contexto sócio-econômico e político atual,
de revalorização dos valores morais conservadores. Os movimentos
estudados significam uma consciência consolidada em décadas de ex-
periências anticapitalistas, uma apropriação de teorias críticas para in-
terpretação das particularidades no território brasileiro. Isso significa
uma esperança de que os enfrentamentos nos territórios e no centro
da política nacional, sejam expressão das lutas de classe com a clareza
do projeto das esquerdas contra o capital.
Metodologicamente, analisamos duas experiências: da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), onde foi realizado um acompanhamento das
intervenções da CPT em diversos espaços e grupos de camponeses,
além de pesquisa documental, desenvolvida em 2018; e do Movimento
Nacional de Fé e Política (MNFeP), que serviu de base para uma tese
de doutorado em Política Social, concluída em 2019, para a qual foram
realizadas entrevistas com lideranças e observação participante.

O Modelo de desenvolvimento brasileiro e as lutas contra-


-hegemônicas.
Para compreensão do processo histórico do qual emergem as ações
combativas no seio da Igreja, mediante uma esquerda católica e a de-
nominada Teologia da Libertação, situamos o golpe de 1964 na polí-
tica nacional que o precede. As esquerdas tinham em seu centro dois

162
atores coletivos importantes, os estudantes através de suas organiza-
ções, a UNE (União Nacional dos Estudantes) e AP (Ação Popular),
esta originada de uma radicalização política da JUC (juventude uni-
versitária católica). O movimento camponês desponta com as Ligas
Camponesas, formadas pelos comunistas no ano de 1945, para a defe-
sa da reforma agrária como estratégia para a distribuição de terras. A
luta de classes no campo foi acirrada com o crescimento de invasões
de terras e a violência sobre os camponeses. Diante do contexto his-
tórico de acirramento dos conflitos agrários, a práxis das ligas aliadas
da AP, obteve adesão entre os camponeses.
As arbitrariedades dos grandes proprietários gera cifras cotidianas
de lideranças mortas e famílias aterrorizadas pela violência na dispu-
ta pela terra. A União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do
Brasil (ULTAB) foi fundada em 1954, em São Paulo, liderada por um
membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), para organizar os
camponeses de todo o pais, e na década seguinte, criar os sindicatos
rurais e a CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura). A questão agrária ganha uma importante dimensão no
pais pela perspectiva revolucionária, ampliando as invasões de terra,
condicionadas pela ofensiva capitalista. A reforma agrária era pensada
por João Goulart, em 1959, como saída para ampliação do mercado
interno, contra a burguesia financeira internacional defensora dos la-
tifúndios. (BANDEIRA, 1983, p. 54).
O Plano Trienal, medida de contenção do deficit público e de ten-
dência desenvolvimentista, prevendo uma taxa inflacionária alta, faz
parte do conjunto de determinantes do Golpe de 64, segundo Bandei-
ra (1983, p. 55). Além disso, o Plano contribuiu para reformas institu-
cionais essenciais ao desenvolvimento e a justiça social (SKIDMORE,
1975). Ao mesmo tempo a organização dos camponeses e operários,
levava a burguesia agrária e industrial a combater a democracia e
criar as condições de um golpe, com a participação dos Estados Uni-
dos. Para destituição do governo de João Goulart sucedeu-se uma

163
ação imediata da imprensa para acionar os militares, provocar medo
na população e os consequentes “atos de terror e sabotagem, lutas de
guerrilha e anti guerrilha”. A ofensiva anticomunista foi liderada pe-
los militares, imprensa brasileira e a norte-americana, de acordo com
os interesses do Pentágono. (BANDEIRA, 1983, p. 67-76)
Para Ianni (1981, p.197) a crise econômica e política operava uma
crise de hegemonia do Estado burguês, entre 1961 e 1964, dando for-
ça às classes subalternas para a política de reformas estruturais: “o
golpe de Estado concretizou a vitória da opção capitalismo dependente, am-
plamente determinado pelo grande capital financeiro e monopolista”. Netto
(2005, p. 37) interpretou esse contexto no marco de “contrarrevolu-
ção preventiva”, dado por meio de sucessivos golpes de Estado que
viriam alterar de forma profunda “a divisão internacional capitalista
do trabalho, os centros imperialistas”, consolidando a hegemonia do
imperialismo norte-americano, a partir dos anos 60. Além da interna-
cionalização do capital, era necessário desmobilizar a resistência dos
trabalhadores e subalternizá-los, diminuindo as tendências revolucio-
nárias e socialistas. (NETTO, 2005, p. 16). Por outro lado, a democra-
cia burguesa avança paradoxalmente, na medida em que extingue as
organizações dos trabalhadores.
Fernandes (1973) explica que na América Latina esse padrão de
desenvolvimento foi destrutivo. No Brasil não havia condições auto-
-sustentáveis, economia integrada internamente e uma industrializa-
ção dinâmica. Os governos ditatoriais resgataram o poder do Estado,
devolvendo a estabilidade que requeria o capital financeiro nacional e
estrangeiro, mas também, em alta escala, a coerção estatal. Esta vio-
lência é visível “na prisão, processo, ameaça, sequestro, desapareci-
mento ou assassinato de membros e líderes de sindicatos operários,
ligas camponesas, igrejas e partidos, a violência política, policial e mi-
litar aparece também nos locais de trabalho”. Esse caráter autoritário
fortaleceu as forças no poder em seu projeto de defesa da “grande
burguesia financeira e monopolista”, porém tornou-se mais evidente

164
com a crise de hegemonia dos militares, em 1974, momento em que
as forças operárias e camponesas já conseguiram se mobilizar e ga-
nhar adesão dos descontentes com o regime. (IANNI, 1981, p. 44-45)
A década de 1970 foi o palco de movimentos populares, a exemplo
daqueles contra o custo de vida: de moradia, o desemprego, pela saúde,
transporte coletivo, movimentos situados por Doimo (1995) no campo
ético-político. Estes movimentos conduzem uma luta continuada pela
participação e em defesa de políticas alternativas de direitos humanos e
sociais. No bojo da transição democrática, nascia em 1980, o Partido dos
Trabalhadores (PT), que segundo Vieira (2012, p.2) foi fundado sob um
contexto de luta de classes que tinha como pressuposto a abertura polí-
tica e a democracia após 21 anos de ditadura civil militar. Nos primeiros
anos de atuação, o PT fomentou significativamente o movimento dos
trabalhadores tendo participado da construção do MST (Movimento
dos trabalhadores sem terra) e da CUT (Central Única dos trabalhado-
res). Entretanto, o que se verificou ao longo de sua trajetória foi o que
aponta Iasi (2012, p. 100) uma atuação “nos limites da ordem”.
Essa atuação limítrofe é uma das particularidades que o capitalis-
mo assume tanto no Brasil como na América Latina, em sua face de-
pendente. Este processo histórico é permeado por contradições. de
um lado, as forças sociais mobilizadas pelos seus direitos, de outro as
forças conservadoras, em defesa do capital nacional e internacional.
Castelo (2017, p.61), diz que se caem as ditaduras, também não se
avança na democratização. Nos anos 80 a “reação burguesa” promo-
via o endividamento externo, articulando burguesia nacional, Estado
e o capital estrangeiro. Conduzia-se uma “reestruturação industrial e
financeira nos países centrais”, atribuindo os custos ao Estado, sindi-
catos e países periféricos, em busca da hegemonia ao projeto neolibe-
ral. (BEHRING, 2008, p. 46).
Para David Harvey (2008, p. 15) na concepção do neoliberalismo
o bem estar humano “pode ser melhor promovido liberando-se as
liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de

165
uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a pro-
priedade privada, livres mercados e livre comércio”. Na América La-
tina, segundo Tavares (2009), os efeitos da crise financeira e da dívida
externa, reforçam em certos países a perspectiva do Banco Mundial,
do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Interamericano,
no ‘’Consenso de Washington’’ (1989). As regras predefinidas foram
“centradas na desregulamentação dos mercados, na abertura comer-
cial e financeira, na privatização do setor público e na redução do Es-
tado”. (TAVARES, 2003, p. 16).
Observam-se então no Brasil a eleição de governos, como o ex pre-
sidente Fernando Color de Mello (1990-1992), representando as oli-
garquias rurais e o grande capital, causando maior concentração de
renda e consequentemente desemprego e precarização das relações
de trabalhos, recessão, inflação e crise na educação e saúde publicas.
Decorrem da crise política, processos de investigações de corrupção
na base governamental, desencadeando movimentos pelo impeach-
ment do governo. O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2003), adotará uma típica racionalidade burguesa que acelera privatiza-
ções do Estado, garantindo o consenso da sociedade civil, ao financiar,
legislar e investir na produção de mais-valia (LEBAUSPIN, 2002).
Em relação aos movimentos sociais, enquanto os anos 80 foram de
eclosão de uma nova esquerda no país, marcada pela emergência do
MST, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Tra-
balhadores (PT), além da realização de cinco greves gerais, entre 1983 e
1989, a década de 90 será de eclosão das lutas anticapitalistas pós-neolibe-
rais, com a realização dos fóruns mundial e os movimentos antiglobaliza-
ção. Neste período, a Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB)
lançou sua campanha pela ética na política e neste ínterim, nasceu o Mo-
vimento Nacional de Fé e Política (MNFeP). Esse vasto conjunto de re-
formas e golpes preventivos esboçam a história de domínio burguês em
nosso país, acompanhado pelos movimentos dos “cristãos da libertação”
(LÖWY, 1992) e frentes de defesa dos trabalhadores pobres e oprimidos.

166
CPT, Teologia da Libertação e movimentos sociais.
Embora as lutas pela terra estejam nas bases políticas da teologia da
libertação no Brasil e na América Latina, sua identificação com as
concepções marxistas expressam apenas uma convergência, demar-
cada no tempo histórico. Nos anos 70 a criação da Comissão Pasto-
ral da Terra, ainda guardava resquícios do anticomunismo da Igreja.
Após o período de redemocratização do país, essa convergência foi
aprofundando um caminho próprio e corroborando para um caráter
mais classista ou popular, levando à uma abordagem da subjetividade
aliada ao trabalho e à consciência política de grupos excluídos. O re-
sultado foi um combate das exclusões imantadas de preconceitos.

A igreja funcionou como uma espécie de celeiro, criadoura, criadouro


dos filhotes, dos pintinhos que depois iam fazer a militância. E não é que
ela só empurrou o pessoal da igreja sobretudo na década de 70/80, já
vinha com uma formação religiosa de fé, bíblica e teológica, mas tam-
bém política dentro da igreja, para militar dentro do partido, desde o
enquadramento que o Vaticano fez sobre a CNBB, coibida da teologia
da libertação, tirando os bispos. (trecho da entrevista Manoel Santos rea-
lizada em 15/12/2018).

Enquanto teologia, a perspectiva libertadora não se limita a esse


período, mas se estende aos dias atuais, incorporando o trabalho de
formação política, a partir da condição de dominação que gera a ex-
clusão, o preconceito e aprofunda as desigualdades sociais.8 A tradi-

8.  Apesar da originalidade da perspectiva de socialismo da CPT, derivada do cristianismo pri-


mitivo, naquele período de necessária resistência ao regime autoritário, era necessário com-
preender a exploração capitalista. As análises marxistas traziam uma contribuição, nos limi-
tes do que os clássicos da revolução soviética elaboraram. Nesse sentido, é importante situar
esse debate, pouco desenvolvido devido à censura no período, mas de acesso dos cristãos
desde os anos 60. Falamos da “lei do desenvolvimento desigual” de Lênin (atentando para as
contradições da agricultura na Rússia) e sua ligação com a visão de Trotsky (onde a formação
social russa é determinada como periferia do capitalismo mundial), das quais deriva a “lei do
desenvolvimento desigual e combinado” nos países atrasados (LÖWY, 1998).

167
ção de intercâmbio da Igreja brasileira com a Europa, permite que os
ativistas contra a ditadura recebam uma formação crítica e elaborem
seu pensamento a partir da perspectiva de fé vinculada à realidade
brasileira. Portanto, cristãos e comunistas se identificam em aspectos
precisos: na leitura das concepções socialistas oriundas da Europa, no
período de guerra fria; na inspiração destas leituras para interpretar
as contradições do capitalismo no Brasil, que é parte do continente
latino-americano e vive a situação de dependência como em outros
continentes libertados da colonização europeia, a partir dos meados
do século XX; e a influência exercida sobre o movimento operário e
popular, nos meios urbanos e rural.

O que nós chamamos...o que Marx chama de uma sociedade sem classe
é o que nós chamamos de Reino de Deus...Tá!? Só que o reino de Deus é
mais do que uma sociedade sem classe, mas se você não faz....sem passar
por uma sociedade sem classe. Tá!? Isso ai é uma chave, importantíssi-
mo, para entender. Então...entender o modo de classe, entender modo
de produção capitalista, entender o Estado e um monte de outras coisas,
para mim é fundamental na construção do Reino de Deus, tá!? (Trecho
da entrevista de João Cardoso realizada em 03/10/2017).

Pesquisas são constantemente realizadas pela CPT sobre a questão


da terra no capitalismo contemporâneo, resgatando as contradições e
desdobramentos sobre os pobres no país, na medida em que a globaliza-
ção da economia as impulsionem assustadoramente. A entrada de capi-
tal estrangeiro e o incremento da produção de grãos e da carne para ex-
portação, transforma o agronegócios num vilão das agressões ao meio
ambiente e à democracia. Atualizando através de estudos e acompanha-
mento da devastação nas regiões de maior crescimento da agricultura,
a CPT acaba por constituir-se em vanguarda inseparável das lutas pela
reforma agrária, das quais faz parte uma escolha pela Agroecologia, a
partir dos anos 90, como estratégia de luta do movimento camponês.

168
Identifica-se em síntese, que a teologia da libertação não se per-
deu diante dos avanços do conservadorismo que ameaça os direitos
sociais, num processo de embates permanentes contra os valores uni-
versais e as lutas por igualdade social. Apesar de ter surgido como
resposta à extrema violação de direitos humanos em várias regiões,
provocada pelos conflitos no campo, as Comunidades de Base e agen-
tes pastorais nos territórios já interpretavam a criminalização dos mo-
vimentos sociais como conteúdo de um Estado autoritário, acredi-
tando que a democratização do país pudesse ser uma arma definitiva
em favor das classes desfavorecidas. Acreditava-se que o modelo de
desenvolvimento pudesse se expandir com justiça e respeito aos tra-
balhadores da terra. Na persistência das relações de trabalho forçado,
desrespeitando a vontade própria do trabalhador e seus direitos, sub-
jugados por determinações do Capital em suas estratégias por maior
lucratividade, coloca desafios a CPT que são os mesmos dos trabalha-
dores, no estágio de globalização da economia, agora enfrentados de
forma radicalmente conservadora, pelos partidos de extrema-direita,
que ressurgem na Europa e se espalham em todo mundo.
Historicamente, a pastoral da terra nasce como resistência dos
cristãos aos contornos que assume o capitalismo dependente, no
campo, combatendo as classes que protagonizam no país os proces-
sos de agressão e exclusão dos camponeses e povos originários, que
preservam a natureza e sua própria cultura, ao ter seus direitos pro-
tegidos pela Constituição de 1988. A organização para resistência à
tamanhas agressões, inscreve os movimentos sociais e suas lideranças
no papel de guardiões da democracia.9

9.  A origem da CPT está ligada a um trabalho pastoral de resistência da Prelazia de São Felix
do Araguaia-MT e da Pastoral da Amazônia, onde sentiu-se a necessidade de uma resposta
da Igreja, como informações e forças organizadas para enfrentar os conflitos sociais no cam-
po, que já ocorriam em todo o território nacional durante a ditadura militar. São preceden-
tes de sua criação, documentos históricos, lançados em 1971, por Dom Pedro Casaldáliga:
“Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” e “Ouvi
os clamores do meu povo”, pelos bispos do Nordeste e Y Juca-Pirama. Em 1975 é articulada

169
Houve um persistente avanço da ação pastoral, em conjunto com
uma rede de apoio entre sociedade civil e Estado, construída nesse pro-
cesso, resultando em vasta divulgação dos atentados, envolvendo um
jornalismo sério e uma apuração em tempo, para os procedimentos
legais de defesa e denúncias ao Ministério Público, derivando uma polí-
tica do Estado de proteção às vítimas. Ao mesmo tempo, manteve-se a
publicação anual dos Cadernos de Conflitos, impressos e digitalizados.
Na sociedade, frações do mundo acadêmico e cultural aliam a esse pro-
pósito, contando com projetos que envolvem inclusive uma cinemato-
grafia própria das bases dos movimentos sociais e pastorais, além de
videos amadores e expressivos, disponibilizados no Youtube.
Por outro lado, a CPT tem uma agenda permanente de formação e
integração dos agentes pastorais. A plataforma digital vem permitindo
que mediante as novas tecnologias, possa haver uma comunicação ime-
diata e horizontal entre os cristãos envolvidos nas ações de base, divul-
gando-as simultaneamente para estimular a participação e denunciar pos-
síveis ataques de grupos ultra-conservadores. Questões diversas vem se
disseminando e tornando objeto na formação de novos valores, de acor-
do com as necessidades das comunidades: tanto na produção, mediante
condições de acesso a tecnologia e socialização dos encaminhamentos e
comercialização dos produtos da agricultura diversificada, quanto no ní-
vel da reprodução - que vai do indivíduo até a formação de uma cultura
necessária ao avanço político do coletivo de movimentos camponeses.
A práxis das pastorais que constroem a CPT adota o princípio ecu-
mênico, se abrindo a outras espiritualidades em diálogo, de acordo
com os princípios do respeito à vontade e cultura dos povos excluídos.

uma reunião em Goiânia, Goiás, pela Comissão de Justiça e Paz Nacional, da CNBB, com a
participação de 67 representantes entre os quais do Conselho Indigenista Missionário-(CIMI),
cujas funções são análogas à CPT e ao Centro de Estudos e Ação Social (CEAS). Além de
intelectuais, sindicalistas e agentes pastorais, participaram representantes oficiais do INCRA
e da antiga SUDECO. Submetidos ao presidente da CNBB os resultados da reunião foram
aprovados, através de uma carta dirigida ao responsável pela sua Linha Missionária, que dele-
ga a presidência da CPT a Dom Moacyr Grechi (Ferani, 2006, p. 48-58).

170
A fé na libertação é a chama que tornam conscientes agentes pas-
torais e camponeses, sempre resgatando a cultura popular, mediada
pelo conhecimento que conduz as lutas pela terra e o respeito a cultu-
ra enraizada nas tradições dos povos da floresta e do campo, remanes-
centes de quilombos, catadores/as, sementeiros/as, de acordo com
a formação dos povos em cada região. As ações de educação popular
compreendem um conjunto de conhecimentos e organização políti-
ca, para preservar a vida e garantir a justiça. A sobrevivência nas áreas
de conflitos, compreende a CPT, exige um reconhecimento e valo-
rização do saber camponês. Por isso, os agentes pastorais aprendem
com o povo que é preciso considerar a cultura e a história como parte
da formação de uma consciência política, para que possam combater
as relações de trabalho forçadas, por exemplo. Mediante conquistas
trabalhistas, tornou-se crime o trabalho análogo ao escravo ou escra-
vismo moderno, ao qual a CPT contribui diretamente nas denúncias
e apoio às vitimas. (LIMA, PINHEIRO, 2016)
Outra dimensão que ganha força nessa práxis entre fé e política, é
a consciência ambiental, contribuindo para assegurar os direitos e o
lugar do camponês na sustentabilidade da floresta, na preservação da
biodiversidade que fundamenta suas lutas. Uma resistência organiza-
da se institui contra o uso abusivo de agrotóxicos na produção de ali-
mentos, afetando a saúde na medida em que transformam os recur-
sos naturais em mercadoria, e eliminando em consequência, as fontes
primarias de sustento de povos tradicionais, pescadores e pequenos
agricultores, sobreviventes do desequilíbrio causado pelos avanços do
capital no campo. Essa perspectiva permite enfrentar a exclusão do
camponês, a contaminação das fontes de preservação da vida, do tra-
balho e da segurança alimentar. A desertificação do solo e o aumento
do efeito estufa são os mais preocupantes impactos ambientais. Essa
consciência emerge da inserção nos processos de subsistência da pe-
quena agricultura, em desvantagem em relação ao agronegócios que
por meio de lob no Congresso, aprovam medidas que os favorecem.

171
A forma educativa como se deu a transição do cooperativismo
para a agroecologia, a partir da década de 90, coaduna em estratégias
de resistência aos efeitos nefastos das políticas neoliberais. A produ-
ção dos cristãos no aspecto de uma concepção que compreenda e
estimule o respeito à natureza, passa por um aprofundamento de
outras filosofias não ocidentalizadas e, neste sentido, corrobora a
práxis de respeito às tradições dos “povos oprimidos”, desenvolvida
pela CPT, derivada de alternativas de mobilização social, pelo movi-
mento Chiapas no México e o MST em conjunto com as organiza-
ções camponesas.
Pinheiro (2010) afirma que as experiências agroecológicas do MST
são uma nova forma de defender a reforma agrária. Borges (2010)
explica que o processo de desconstrução/reconstrução de suas bases,
saberes e práticas antes desconsiderados nos assentamentos rurais,
agora são princípios fundamentais da agroecologia, da luta pela terra
e a resistência dos trabalhadores assentados.
A perspectiva da ecoteologia, que de certo modo se soma ao
ecossocialismo, é um movimento que surge na era neoliberal como
parte da resistência. Boff (1993) defende uma teologia ecológi-
ca “Ecologia, mundialização, espiritualidade: a emergência de um
novo paradigma”. O ecossocialismo é uma ponderação da ontolo-
gia social de Marx, situada numa racionalidade que produz a eman-
cipação do homem ao passo que domina a natureza. Sua preocupa-
ção gira em torno da discussão de que na economia globalizada as
contradições sociais aumentam com o progresso técnico, por sua
vez produzidas como forma de manipulação humana pelo próprio
capital. Essa ideia Boff desenvolve em “Ecologia, Grito da terra, grito
dos pobres” (1995).
Se por um lado, se desenvolve no amplo espectro de pensa-
mento da teologia libertadora um esforço de oferecer alterna-
tivas de interpretação e ação de resistência ao esgotamento dos
recursos naturais, segundo uma referência que se limita entre a

172
identidade e o diálogo/respeito entre o homem e a natureza, por
outro lado, há perspectivas como o “bem-viver” que são coloca-
das em ação nos movimentos camponeses e a CPT no trabalho
pastoral. Derivada de interpretações da lógica cultural dos povos
originários, essa concepção vem sendo adotada como instrumen-
to e orientação na formação militante dos camponeses. Contudo,
seria precipitado interpretar como contrassenso ou um retrocesso
da sensibilidade socialista da teologia latino-americana. Seria ne-
cessário uma pesquisa a este respeito, com base no peso das deter-
minações sócio-econômicas sobre as escolhas do movimento por
alternativas originais aos modelos eurocêntricos, mas também
considerar que o capitalismo é um modelo mundial que sobrevive
da exploração “inesgotável” do homem e da natureza, indepen-
dente de suas crises cíclicas que sempre resultam em sacrifícios
dos direitos sociais.
Em conclusão, a CPT desenvolveu uma crítica ao longo de seus
enfrentamentos ao capitalismo no campo, que a distingue de outras
vertentes que conduziram os governos de esquerda. Mas isso não
ameaça a teologia da libertação, apenas a inscreve num momento de
pluralismo e de renovação das bases dos movimentos sociais frente a
pauta neoliberal.

O MNFP e o Partido dos Trabalhadores. Entre a ética e o


apoio político.
Para Iasi (2012, p. 43-45) quando o Partido dos Trabalhadores, que
foi “um dos maiores e mais significativos partidos de base trabalhadora já
criado na América Latina”, chegou ao poder, ele seguiu um exemplo
contrário e de adaptação à ordem do capital que prometera superar.
Para Gramsci (2000) a vontade coletiva tem origem na necessidade
consciente elevada à condição de práxis política, onde o partido é o
articulador e representante, em processo de luta pela formação de

173
um novo bloco histórico. Ao criar o movimento de fé e política na
modalidade dos encontros nacionais, com dimensão de mega-even-
to em quantidade de participantes, o interesse de políticos é atraído
em busca de legitimaçao moral, que coloca o politico de frente para
os representantes populares, os dirigentes, militantes do partido
numa perspectiva de assessorar os movimentos sociais, diversifican-
do a metodologia. Os encontros nacionais acabam seguindo uma
tendência ja presente nos movimentos anti-globalização, por um
lado, mas também nos movimentos que se realizam em estádios, a
exemplo de vertentes cristãs conservadoras, como os carismáticos e
os evangélicos.
O MNFeP e a teologia da libertação indiretamente, enfrentam
uma aprovação em sua relação com o partido politico, ao estabe-
lecerem como objetivo estimular a organização dos cristãos junto
aos movimentos sociais. Enquanto participantes engajados no PT, a
questão da política institucional se coloca como um desafio, tendo
em vista sua opção pelas bases e não pela representação ou o centro
do poder. Esse desafio já se colocava no marco das gestões públicas
petistas em diversos municípios brasileiros, orientadas pelo Orça-
mento Participativo (OP). Contudo, vivia-se no auge da ideologia
neoliberal, onde a propaganda é de uma política preocupada com a
reeleição.
A resposta da vanguarda do MNFeP foi fortalecer a dimensão ética
da formação militante, tendo em vista as contradições e processos éti-
cos que envolvem o exercício dos mandatos políticos, principalmente
após a massiva publicização do Mensalão, no processo envolvendo o
PT. Essa dimensão do movimento é certamente marcada pela posi-
ção da CNBB que resulta na campanha pela ética na política, contra a
corrupção que tomava os partidos ao chegarem ao poder, a exemplo
da causa do impeachemnt do presidente Collor de Mello, em 1992,
acusado de liderar o esquema de corrupção dilapidando os recursos
do Estado. Por outro lado, a reeleição beneficiava os favorecidos por

174
financiamentos privados, enquanto o PT tinha dificuldade de estabe-
lecer alianças pré-eleitorais, preferindo seguir a tradição de enraiza-
mento no movimento popular.
O MNFeP lança o formato de grandes encontros nacionais e busca
o apoio de prefeituras municipais do PT como sede dos mesmos. os
ENFeP. Como situamos acima, a década de 90 é marcada por uma
crise política criada pela hegemonia neoliberal, onde as reformas
trabalhistas e os ajustes fiscais são defendidos como única saída para
saneamento e eficiência do Estado. Nesse período seguindo os prin-
cípios da teologia da libertação, os cristãos se unem para apoiar o PT
nas eleições, mas se dividem no começo do segundo milênio, quando
a decisão do partido será pela chegada ao poder, obtida com a eleição
de Lula a presente da república.
O MNFeP surge em 1989, como uma ‘’das estratégias de sobrevivên-
cia não apenas da política, mas também da fé na emancipação social’’ (PI-
NHEIRO, 2010, p. 124). Mudanças culturais consideráveis e conser-
vadoras convergem na ampliação das seitas religiosas de segmentos
evangélico e neopentecostal, que usam canais de TV como marketing
de seu projeto de influência, a exemplo da Igreja católica tradicional.
É neste contexto que cresce sob o domínio da IURD (Igreja Univer-
sal do Reino de Deus), a teologia da prosperidade e seu projeto de
influência na política e na economia, deteriorando o nível da política
em prol dos interesses do mercado, além de aproximar de forma an-
ti-laica, religião e política10. Ao mesmo tempo, há uma ofensiva con-
servadora do Vaticano, mediante a disseminação da corrente do
Papa João Paulo II, a Renovação Católica Carismática (RCC). Como

10.  Este segmento está representado no parlamento mediante a chamada Bancada da Bíblia,
que elabora a plataforma de campanha do candidato Jair Bolsonaro, que como o deputa-
do federal mais reacionário e militarista, adota os valores da família tradicional e o antico-
munismo, a homofobia, o racismo e a violência contra os pobres, mulheres e negros para
contrastar com os governos democráticos do PT. Na economia no entanto, ele segue como
recomenda a teologia da prosperidade, a agenda neoliberal, porém contra os mercados su-
pranacionais, em nome do nacionalismo.

175
observa Sanchis (1992, p. 78) surgem “as Jornadas Mundiais da Juven-
tude, a política de ampliação da influência, o uso da mídia eletrônica
e dos eventos de multidões, em concorrência com a forma de organi-
zação dos evangélicos, que se disseminaram em múltiplas seitas”.
Esse conjunto contraditório de mudanças distancia o cristão de
seus compromissos com os pobres e excluídos, germinando uma
nova cultura de retrocesso em relação ao projeto da teologia latino-
-americana da libertação. Nesse sentido, as pautas dos movimentos
sociais são reforçadas nos Encontros de Fé e Politica, em nome da
ética na política e de um reforço das bases populares, para apoiar os
governos e parlamentares de esquerda e exigir coerência com suas
plataformas eleitorais.
Deste modo, é importante enfatizar algumas características dos
encontros nacionais Fé e Política, ponto culminante de um Movi-
mento que compreende todo território nacional. Primeiro, o movi-
mento exerce indiretamente um serviço ao partido, mas ao mesmo
tempo, baseado em seus próprios valores cristãos, em nome de uma
identidade religiosa, conectada às teologias que se formam com a
prática dos grupos sociais organizados, atacados e marginalizados
pelo projeto da burguesia, a exemplo de: mulheres, indígenas, qui-
lombolas dentre outros. É importante a perspectiva de defesa da
biodiversidade e dos biomas naturais, em extinção, para a sobrevi-
vência dos povos da floresta e camponeses, da saude e segurança
alimentar com qualidade. Assim, congrega as programações dos
ENFeP, a pauta dos movimentos sociais e se encaminham no pla-
no das celebrações, do discurso e da estética, as diferentes teologias
libertadoras dos oprimidos, que se constroem mediante a práxis
de indígenas, negros, mulheres, LGBTQIA+, juventude, terra, etc.
Em segundo lugar, os Encontros não se diferem inteiramente, em
perspectiva, de outros movimentos cristãos de base. Eles atraem
militantes de todo o país, da política e da Igreja, identificados na
fé como instrumento de luta, por direitos e contra a desigualdade

176
social. O terceiro ponto diz respeito à perda de capacidade da esfera
partidária em realizar a relação entre formação para a militância de
base em face dos problemas contemporâneos, o que provoca inicia-
tivas especificas dos cristãos. Os encontros atraem representantes
de várias frentes de esquerda, produzindo um debate que é próprio
do partido, mas também dos movimentos sociais em seu embate
com o Estado. Representantes do governo se fazem presentes, às
vezes na condição de convidados ou como membros engajados ao
movimento. A tônica é afirmar no militante seu compromisso par-
tidário com a ética libertadora. Nesse sentido, a vasta dimensão das
pautas dos encontros atrai em uma ampla participação.
Por outro lado, a política no cotidiano demanda um afinamento
de ideias em torno do encaminhamento de projetos de lei, do enfren-
tamento de projetos e bancadas conservadoras, mobilizando a comu-
nidade para a necessidade de participação em plenárias e conselhos
institucionais. A política é a disponibilidade de disputa de projetos em
nome dos interesses da maioria. Isso significava no período de auge
do PT, uma intensa mobilização em torno das plenárias do Orçamen-
to Participativo, do ativismo institucional em nome de uma gestão
popular.
O acompanhamento do MNFeP através de seus encontros nacio-
nais e documentos disponíveis em Cadernos impressos e na mídia ofi-
cial do mesmo, nos permite inferir que foi a necessidade do período
de redemocratização, onde se afirmam os pressupostos neoliberais,
que vem provocar tal iniciativa por parte dos intelectuais e ativistas
cristãos, como estratégia oriunda de seu compromisso com as lutas
dos movimentos sociais. Contudo, eles enfrentam barreiras recen-
tes na cultura política do PT, que transita no final dos anos 90 para
uma plataforma de alianças, recuando em pautas reformistas, como
é a reforma agrária e permanentes investimentos em políticas de se-
guridade social e educação. A chegada ao poder leva o PT a realizar
reformas identificadas com o projeto neoliberal, inserindo a iniciativa

177
privada nos serviços públicos, cortando recursos para obras de in-
fraestrutura, etc.
Desde a fase inicial, marcada pela impressão dos Cadernos de Fé
e Política, publicados em número de quinze, observamos que a van-
guarda do MNFeP se aproxima do conceito de intelectual orgânico,
de Antonio Gramsci, na medida em que se coloca como instrumento
de consenso ou hegemonia, em frações da classe trabalhadora. Para
Oliveira e Toledo (2017, p. 57) os Cadernos refletem uma opção que
“os militantes cristãos tinham de refletir e responder sobre os desafios da
realidade concreta”. Gramsci (1979) diz que a hegemonia demanda a
mediação da direção política e da cultura da classe, por intelectuais
e não de forma imediata na produção. Ela é sim mediatizada, em di-
versos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto de superestru-
turas, dos quais os intelectuais são precisamente os “funcionários’”
(GRAMSCI, 1979, p. 13).

Atualidade da Teologia da Libertação.


Nossa compreensão é de que a teologia da libertação se desdobrou
numa diversidade de movimentos que proliferam, de acordo com a
necessidade de fazer oposição aos avanços dos valores burgueses e à
crescente insuficiência de atendimento aos direitos sociais e retroces-
sos do movimento democrático na sociedade. Essa teologia se carac-
teriza pela capilaridade e identificação com os interesses dos povos
oprimidos e busca se legitimar no esforço da praxis militante dos cris-
tãos na formação dos movimentos sociais.
A CPT representa uma parceira solidária e presente, a todos os
movimentos sociais do campo, que buscam uma vida digna, como os
trabalhadores da terra em seus movimentos pela garantia dos meios
de sobrevivência, mediante uma lógica de vida nos acampamentos e
assentamentos, com qualidade na produção e garantia de educação,
centrada na agroecologia como método e alternativa ao comando

178
do mercado. Dessa relação onde os valores solidários são cultivados
e voltados para o bem-estar e à saude da comunidade, a fé cristã se
alimenta de uma compreensão do mundo em que o sofrimento e a
esperança se superam na luta social e se renovam como forma de
consciência.
Um sujeito fundamental nessa busca de energia para a resistên-
cia, material e espiritual, é a mulher, passando pelo redimensiona-
mento do seu papel, na produção e reprodução, mas também de sua
subjetividade como trabalhadora, chefe de família e mãe militante.
As experiências de agroecologia apresentam resultados muito im-
portantes na geração de uma consciência de gênero, que é ao mes-
mo tempo, ecológica e teológica. Enquanto praxis social o trabalho
produtivo adotado por meio desse tipo de produção, traz além de
renda familiar, habilidades que extrapolam a esfera econômica, por-
que favorecem a organização política das produtoras/es, da família,
a criatividade e a diversificação de produtos, a segurança alimentar
e a qualidade de vida da comunidade imersa nesta práxis. As formas
de organização se diversificam e colocam as mulheres no contato
com o consumidor, numa relação de comunicação e valorização do
trabalho, que não existe nas relações econômicas tradicionais, entre
produtores, atravessadores e consumidores. A vitalidade dessas no-
vas relações resulta em novas elaborações e consciência política de
favorecimento da solidariedade, exigida na renovação permanente
do movimento camponês.
Nesse processo, cujas mudanças de paradigma ocorrem nos anos
90, em compasso com os desafios colocados pelo capitalismo e a glo-
balização, as pressões do mercado imobiliário e do agronegócios, exi-
gem dos camponeses uma permanente atenção e atividade política
para conter os abusos e ameaças de expulsão da terra. Porém, a na-
turalização do crime em nome da propriedade, que se incorpora nas
investidas sobre o espaço do outro por meio da grilagem de terra, é
parte da política consentida do Estado contra os pobres.

179
À resistência destes a policia responde com a criminalização dos
camponeses e suas famílias, acirram os conflitos, ampliando os pro-
blemas psíquicos entre os camponeses e a estigmatização dos pobres
do campo. A crise do capital penetra diretamente as relações pessoais
e famíliares, de forma a exigir que o movimento absorva em suas lu-
tas a questão da juventude, negros, das mulheres, da saude, da edu-
cação, de grupos LGBTQ+ dentro das comunidades rurais e povos
tradicionais. Essas mudanças no seio do movimento requer um diá-
logo da cultura popular com uma educação para a sobrevivência da
produção e da reprodução dos indivíduos. Aos problemas agudizados
pelo modo de produção em grande escala que torna o país o maior
exportador de grãos, gerando pobreza, repercute profundamente na
qualidade de vida dos pequenos produtores.
A libertação é uma referência através da consciência ecológica,
seus experimentos de agroecologia mostram que a política de base
constrói referências de democracia e constrói uma nova cultura.
Dessa práxis de resistência, emergem várias concepções de teolo-
gia, dentre as quais a ecoteologia é apenas uma, que serve de objeto
de reflexão na programação dos Encontros Nacionais de Fé e Política.
Este espaço se transforma em uma grande mobilização, visando a nu-
trição de movimentos sociais, na medida em que oferece ao militante
uma possibilidade de suspensão do cotidiano e de integração das lutas
sociais através da renovação da fé e da esperança na liberdade e solida-
riedade, mediante a garantia dos direitos sociais.
Podemos mediante tais reflexões entender que a Teologia da Li-
bertação nasce das pastorais da terra, delas se alimenta na persistência
cotidiana de um trabalho excepcional da CPT. Encontra-se em toda
a extensão do movimento de fé e política, que tem os encontros na-
cionais como ponto de referência e contato com a realidade nacional,
que neles se manifesta mediante o aprendizado da práxis dos movi-
mentos sociais, nos quais o movimento camponês e a CPT registram
a sua radicalidade. A força da resistência no campo faz do movimento

180
uma ala sempre presente e crítica aos governos, pois sofre diretamen-
te e em permanência os insultos da policia em benefício dos interes-
ses privados. Essas reflexões, politizam a teologia da libertação, num
embate com as concepções de Estado, contraditórias diante do apro-
fundamento da crise que representa o neoliberalismo no Brasil.
Partindo de uma interpretação da história do capitalismo depen-
dente, na América Latina, onde emerge e continua atual, essa teolo-
gia reflete as mudanças necessárias à resistência, refletindo-as em si
mesmas, em forma de resistência. Assim, a traduzimos como potência
espiritual/cultural, de resistência ao projeto ultraconservador para o
qual evolui o neoliberalismo, como ideologia para enfrentamento da
crise do capital. A democratização dos países latino-americanos depen-
de do esforço de luta das classes oprimidas e dos trabalhadores de for-
ma geral, pela construção do Estado, contra a privatização da vida so-
cial, por meio de reformas contra os preceitos da Constituição federal.
Esses conteúdos foram evidenciados durante os governos do PT,
nos encontros nacionais de fé e política, nos congressos nacionais do
MST, de forma articulada com o projeto de hegemonia das esquerdas
na América Latina. Contudo, a solidariedade e a crítica ao Estado per-
manece como instrumento fundamental das lutas sociais, em qual-
quer governo. Essa crítica é também essencial à teologia da liberta-
ção, sem a qual a politização partidária pode causar um deslocamento
dos interesses populares para a esfera da institucionalidade, logo de
crise da resistência. Portanto, parece-nos que a teologia é uma esfera
que se consolida na interação dos movimentos sociais, no cotidiano
e na superação do imediato, onde se cultiva uma cultura que sinte-
tiza como força espiritual, capaz de alimentar a esperança necessária
numa sociedade onde haja igualdade e justiça social.
A teologia da libertação se mantém como instrumento e ação, no
resgate da dignidade e da consciência daqueles que tem sua essên-
cia humana aviltada pelo projeto do capital. A desumanização vem
aumentando na orientação antidemocrática do Estado em favor do

181
neoliberalismo, que invade o continente após os ciclos ditatoriais e se
radicaliza com o extremismo conservador. Essa política torna-se mui-
to agressiva a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos
e poucos anos depois aparece no Brasil, mediante o golpe para derru-
bar o PT do poder. Após o impeachment da presidente Dilma Rous-
sef, se evidencia como método a agressividade na política a chegada
da extrema-direita, selada na eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.

Considerações Finais
A atualidade da teologia da libertação reside em sua práxis libertado-
ra como método de transformação da realidade de milhares de tra-
balhadoras e trabalhadores no Brasil e em toda América Latina. O
pressuposto de construção de uma teologia latina americana capaz de
capturar o real vivido pelo conjunto da classe trabalhadora somente
foi possível pela aproximação dos intelectuais cristãos, vindos de uma
formação intelectual séria e comprometida com as lutas sociais, com
as categorias marxianas e com a análise crítica da totalidade.
Esta formação comprometida se juntou à mística vivida pelos cris-
tãos nas bases na emergência das CEBs nas cidades e na CPT no cam-
po, o que proporcionou a formação de um partido de esquerda – o
PT que era a novidade naquele período, representando a mudança na
Nova República. A experiência dos governos de esquerda e os limites
das mudanças realizadas reforçaram as convicções de fé nos projetos
populares, nas lutas e na resistência contra a classe burguesa no cam-
po e, suas armas genocidas, de militarização dos conflitos, assassina-
tos constantes de camponeses e naturalização dos pesticidas como
instrumento de trabalho e produção de alimentos, independente das
ameaças comprovadas à saude pública. O terror promovido pelo capi-
tal no meio rural brasileiro, reforçou a fé e renovou a consciência po-
lítica dos agentes pastorais e a religiosidade popular dos camponeses,
como instrumento de resistência.

182
A aproximação com o materialismo histórico foi bastante fecun-
do, sendo responsável, em alguma medida pela formação dos quadros
da esquerda católica, entretanto é necessário cautela para não homo-
genizarmos esta relação. Como processo dialético, se faz de tensões
e distensões que incidiram sobre a manutenção dos quadros das es-
querdas.
Com mais de cinquenta anos de existência, a originalidade da teo-
logia latino-americana na atualidade está no compromisso com a de-
fesa do meio ambiente, na preservação dos biomas e ecossistemas,
na defesa dos direitos sociais e humanos da população LGBTQ+, po-
vos tradicionais e movimentos indígenas, camponeses, urbanos/Sem
Teto, de barragens, ecológicos pela defesa da floresta e diversidade
ambiental, pequena agricultura e assentamentos rurais, sem terras,
mulher, negros, favelados, etc.

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184
Confinamiento y Modernidad o
Autonomía y Dignidad. Movimientos,
territorios, estados, para-
Estados y decolonización.
Fabio Lozano1
Oscar Melo2

Introducción
En el planeta entero el término y la estrategia del confinamiento se
colocaron a la cabeza de todos los titulares de los medios, de las de-
cisiones de los gobiernos, de las recomendaciones de la ONU a pro-
pósito de la pandemia originada por el Covid-19. Los efectos de di-
cha pandemia a pesar de las medidas de confinamiento han sido tan
devastadores que en septiembre de 2020 se anunciaba el millón de
muertos en el planeta a causa del virus. Ciertamente hay males de
consecuencias más graves que, sin embargo, están lejos de lograr la
atención de la agenda pública interna e internacional. Por ejemplo, el
7 de septiembre del 2020 el secretario General de la ONU, comunica-
ba que se estima que “el aire contaminado causa alrededor de 7 millo-
nes de muertes prematuras cada año, fundamentalmente en países de

1.  Profesor, Doctorado en Humanidades, Universidad de San Buenaventura, Bogotá; miem-


bro Grupo Interdisciplinario de Estudios sobre Religión, Sociedad y Política GIERSP; miem-
bro fundador de la Red Pluriversitaria para la Construcción de Territorios de Sumak Kawsay
2.  Profesor Universidad de San Buenaventura, miembro Grupo Interdisciplinario de Estu-
dios sobre Religión, Sociedad y Política GIERSP

185
ingresos bajos y medios. La contaminación del aire también amenaza
la economía, la seguridad alimentaria y el medio ambiente” (Guter-
res, 2020, p. 1). Es decir, cada año se generan 7 veces el número de
muertos totales que hasta el momento lleva el coronavirus.
Ahora, más allá de la eficiencia de las medidas y del cubrimiento
mediático, nos interesa aquí preguntarnos por la significación política
de los confinamientos y medidas semejantes especialmente para los
movimientos sociales y para las dinámicas de construcción de comu-
nidad que puedan resultar alternativas a los poderes hegemónicos. En
tal sentido es necesario que resaltemos varios hechos:

– Las medidas de confinamiento y sus vinculadas (desplazamien-


to, reubicación, desarraigo, desaparición, exilio, reducciones)
se han generado a través de los siglos y para el caso latinoa-
mericano tienen una especial significación como estrategia de
conformación social desde las épocas coloniales, como bien
lo manifiestan diversos autores (Garzón, 2017), (Lozano &
Muñoz, 2018)
– Aparecen con el argumento de protección, asumiendo diver-
sos nombres legitimadores (protectorado, resguardo, hospicio,
campo de concentración, gheto, refugio)
– Constituyen una forma de control sobre la población que es
señalada como peligrosa y/o en peligro bien por razones de
carácter étnico-racial, sanitarias o de seguridad.
– En todo caso, casi siempre significan una forma de conquis-
ta territorial basada en el miedo y, por tanto, generalmente
acompañada, por una parte, de diversas formas de violencia
con frecuencia legalizada y, por otra parte, de discursos civi-
lizatorios, es decir, de mecanismos simbólicos de auto y alter
convicción de que lo que se está ejecutando es una acción sal-
vífica, ordenadora, progresista, modernizante.

186
Teniendo en cuenta estas constantes en la historia de las naciones,
vale la pena resaltar algunos hechos dentro del panorama histórico
latinoamericano que ejemplarizaremos especialmente con el caso co-
lombiano.
Es claro que la invasión europea al continente que gracias a ella
misma pasaría a llamarse América generó uno de los genocidios y et-
nocidios más radicales de la historia humana que en ciertas regiones
pudo llevar a la desaparición del 90% de la población:

« ¿Cuántos indígenas había antes de la llegada de Hernán Cortés? No


tenemos censos exactos, pero con base a las matrículas de tributo reco-
gidas por los españoles se calcula que eran 11 millones. No obstante, y
debido a las enfermedades, la curva demográfica se desplomó a tal pun-
to que, para mediados del siglo XVII, sobrevivían apenas un millón 500
mil. Hablamos aquí de una pérdida de entre el 85 y el 90 por ciento de
la población originaria en apenas un siglo. Esto es muy rápido”. (Wobe-
ser, 2019)3

El argumento de Wobeser sobre las enfermedades como causa de


la radical diminución demográfica, repite la tesis de uno de los más
destacados relatores españoles de la invasión y la colonización, el
fraile franciscano Bernardino de Sahagún4 y de cierta manera “lava

3.  Para análisis de mayor profundidad de la autora y colegas ver: Von Wobeser, Gisela
(coord.) (2010), Historia de México, Fondo de Cultura Económica-Secretaría de Educación
Pública, México, 288 pp., ISBN: 978-607-160-173-5.
4.  En su Historia general de las cosas de la Nueva España, fray Bernardino de Sahagún escri-
bía sobre los indígenas: “Las gentes se van acabando con gran prisa, no tanto por los malos
tratamientos que se les hacen, como por las pestilencias que Dios les envía. En 1520, cuando
echaron de México por guerra a los españoles, hubo una pestilencia de viruelas donde murió
casi infinita gente. Después de haber ganado los españoles esta Nueva España, en 1545 hubo
una pestilencia grandísima y universal, donde murió la mayor parte de la gente que en ella
había. Ahora, en agosto de 1576, comenzó una pestilencia universal y grande, la cual ha ya
tres meses que corre, y ha muerto mucha gente, y muere y va muriendo cada día más”. Cita-
do en (Wobeser, 2019). La obra general se encuentra como: Bernardino de Sahagun O.F.M.
Historia general de las Cosas de Nueva España / que en doce libros y dos v. escribió el R.P.

187
las manos” de los invasores y su acción de conquista y colonización.
Sin embargo, es claro que por una parte, los virus fueron en muchos
casos intencionalmente introducidos (está documentado el caso del
militar Lord Jeffrey Amherts, en la región de los Grandes Lagos, re-
galando mantas infectadas con viruela como estrategia frente a los
actos de resistencia conocidos como la Rebelión Pontiac) y, por otra
parte, que no fue el virus el que destruyó las grandes ciudades, enter-
ró bajo millones de toneladas las pirámides sagradas (construyendo
sobre ellas catedrales e imponiendo divinidades externas) como lo
atestiguan los restos arqueológicos; que no fueron los virus quienes
esclavizaron, confinaron, desplazaron, violaron y en fin impusieron
un régimen militar y político de saqueo de tal magnitud que permitió
la conformación del sistema-mundo capitalista (Wallerstein, 2007).
No fue tampoco el virus quien secuestró millones de seres humanos
en África y los vendió como esclavos en los puertos de América. Es
posible entonces concluir que los virus y las enfermedades fueron en
este contexto de invasión y saqueo instrumento, oportunidad y argu-
mento legitimador para el etnocidio y el genocidio y para la apropia-
ción y dominación de territorios (cuerpo, cultura, dones naturales,
identidades), en el nombre del progreso, la civilización, la salvación.
Se nos ha creado el imaginario de que estos fueron hechos del pa-
sado, que la conquista y la colonia se terminaron con los llamados
proceso de independencia y con la conformación de los estados na-
ción. Pero, una mirada detenida de los procesos de apropiación de
los bienes, producción, comercialización, relacionamiento laboral,
conformación de los estados, fácilmente nos permite verificar que
la colonización y sus diferentes formas de violencia y confinamien-
to poblacional han sido y son una realidad sistemática y continua-
da para la mayoría de las personas en las comunidades y sociedades

Fr. Bernardino de Sahagún... ; dala a luz con notas y suplementos Carlos María de Bustaman-
te. México : Imp. del Ciudadano Alejandro Valdés, 1829-30

188
latinoamericanas: pueblos indígenas, campesinos, comunidades ne-
gras, pobladores urbanos, especialmente mujeres y jóvenes. El con-
finamiento, el desplazamiento y el sometimiento han sido tácticas de
control territorial hacia grupos que por sus formas de vida o simple-
mente por su ubicación (geográfica, cultural, relacional), quedan en
el camino de invasión, uso y saqueo.
La apropiación de la tierra por medio de diferentes mecanismos de
despojos violentos legalizados o ilegales ha sido una labor sistemática
y continuada a lo largo de toda Latinoamérica no solo en los siglos
iniciales de la conquista en provecho de los invasores peninsulares y
sus descendientes sino a lo largo de los siglo XIX, XX y XXI (Lozano &
Ferro, 2009) así en México (Gisela Landázuri Benítez, 2011), como en
Bolivia (Lizárraga & Vacaflores, 2014); en Ecuador (Martínez, 2015)
como en Brasil (Fernandes, 2012); en Colombia (Legrand, 2019), (Fa-
jardo, 2013) como en Perú (Borneo, 2011). El informe de OXFAM en
2016, titulado Desterrados: Tierra, Poder y Desigualdad en América Latina
realizado con un impresionante rigor y fundamentación es contun-
dente mostrando no solo los niveles de la iniquidad sino los mecanis-
mos que la generan.

“América Latina es la región del mundo más desigual en cuanto a la dis-


tribución de la tierra. El coeficiente de Gini para la tierra – un indicador
entre 0 y 1 donde 1 representa la máxima desigualdad– es de 0,79 para el
conjunto de la región, siendo 0,85 en América del Sur y 0,75 en América
Central. Se trata de niveles de concentración muy superiores a los obser-
vados en Europa (0,57), África (0,56) o Asia (0,55)” (OXFAM, 2016, p. 21)
“Hace siglos que una lógica de explotación de las riquezas naturales y de
las personas se impuso sobre el territorio latinoamericano. Este modelo
extractivista busca el control del territorio para acceder a todas las fuen-
tes posibles de materias primas y se ha expandido vertiginosamente al
ritmo de la demanda insaciable de alimentos, materias primas y energía”
(OXFAM, 2016, p. 31)

189
Se ha tratado de un permanente proceso de invasión en el que
según los intereses del mercado internacional, la gran agroindustria
(azúcar, banano, madera, caucho, palma aceitera) la ganadería exten-
siva, la minería (oro, esmeraldas, platino, ferroníquel, carbón), la in-
dustria energética (hidrocarburo, hidroeléctricas) y la infraestructura
necesaria para el saqueo (ferrovías, autopistas, puertos) han expropia-
do a los campesinos y los indígenas de las zonas de refugio que habían
colonizado ante la violencia expulsora (Molano, 1987) generando así
la imposición de un sistema socioeconómico y el desarraigo masivo y
sistemático de millones de personas, de miles de comunidades y cul-
turas (Lozano, 2018) y confinando a los sobrevivientes a condiciones
de miseria, dependencia, explotación laboral, pérdida de la identidad
y de la dignidad. Las víctimas de este proceso macabro son inconta-
bles pero algunos indicadores pueden servir de referencia. En el caso
colombiano el Registro Único de Víctimas (Unidad para la Atención y
Reparación Integral a las Victimas, 2020) del mal llamado “Conflicto
Armado Interno” menciona de 1985 hasta la fecha, por abandono de
tierras, 23.630 personas; por actos terrorista, 90.374; por amenazas,
456.339; por confinamiento 41.506; por desaparición forzada, 190.402;
por desplazamiento, 8.433.119; por homicidios, 1.109.572; por inte-
gridad sexual, 30.940; por lesiones personales físicas, 8.746; por lesio-
nes personales psicológicas, 15.858; por minas antipersonal, 11.892;
por pérdida de bienes muebles o inmuebles, 125.678; por secuestro
38.426; por tortura, 10.739; por vinculación de niños y adolescentes
a grupos armados, 8.533. A pesar de que estas cifras tienen proble-
mas de subregistro y muchos límites en cuanto a sus conceptos y en-
foques, hablar de más de ocho millones de desplazados en un país
con una población total de 48 millones indica que las dinámicas de
muerte impuestas han conducido al destierro de uno de cada cinco
habitantes. Se trata pues de la continuidad de la dinámica de reduccio-
nes y confinamientos masivos propios de la colonización de naciones
(Lozano, Tres décadas de desarriagos, historias y explicaciones, 2018)

190
y en tal sentido de la reconfiguración de dominios territoriales que se
dan en el aquí y el ahora. Los líderes de las organizaciones indígenas
lo siguen denunciando:

“El Cabildo Mayor AWÁ de Ricaurte informa a la opinión pública que


desde el mes de agosto y de manera ininterrumpida el ejército nacional
ha hecho presencia en nuestro territorio. Que dicha presencia ha causa-
do el confinamiento y desplazamiento de 428 personas” (Cric-Colombia,
2012, p. 1)
“Hoy esta pesadilla que incluso creíamos del pasado aún sigue presente
en nuestras comunidades. Los confinamientos, señalamientos, restric-
ciones al paso de alimentos, restricción a la libre movilización, el no po-
der acceder al disfrute de nuestro territorio para practicar la agricultura,
la caza, la pesca hacen parte de la cotidianidad en las que nos tienen los
actores armados.” (Cric-Colombia, 2013, p. 1)

Pero esta reconfiguración de los territorios no se agota en la ocu-


pación geográfica y el saqueo de los bienes naturales que son apenas
la punta del iceberg de un sistema en el que patriarcalismo, racismo,
capitalismo, colonialismo se retroalimentan con la promesa de la mo-
dernidad y el progreso generando no solo una catástrofe humanita-
ria5 sino toda una catástrofe civilizatoria.
Este proceso no es solo físico y político sino, como lo han mos-
trado diferentes autores, epistemológico (De Souza Santos, 2018) y
ontológico (Escobar A. , 2018) Se requiere entonces una adecuada
deconstrucción frente a los hechos brevemente enunciados antes y
sus discursos legitimadores. Ello nos lleva a confrontar el papel del

5. “El conflicto entre los intereses de sectores privilegiados, frecuentemente respaldados por políticas
hechas a su medida, y los derechos de las mayorías rurales ha dado lugar a una verdadera crisis de
derechos humanos en la región. Con 122 defensores y defensoras asesinados, 2015 fue el peor año en la
historia reciente de América Latina para la defensa de los derechos humanos. Más del 40% de los casos
estaban relacionados con la defensa de la tierra y el territorio, el medio ambiente y los derechos de los
pueblos indígenas”.

191
Estado, de agencias supraestatales especialmente financieras y a pre-
guntarse sobre los movimientos sociales y sobre las posibilidades
de la resistencia y del surgimiento de nuevas sociedades (Zibechi,
Movimientos Sociales en América Latina: el «Mundo Otro» en mo-
vimiento, 2017).

El Estado y la captura del espacio


El diario El País de España, en el año 2015 realizó una investigación
que estudiaba cómo algunos proyectos del Banco Mundial (BM) para
mitigar la pobreza perjudicaron a quienes buscaban ayudar. Tanto en
Perú, India, Brasil, Colombia y Albania el patrón era el mismo despla-
zar poblaciones para realizar proyectos de desarrollo. La ecuación a
la que respondían dichos proyectos era: incrementar la inversión en
infraestructuras en regiones que presentaban dificultades en el sumi-
nistro de agua potable, electricidad, asistencia médica entre otras ne-
cesidades, para solucionar problemas de pobreza y exclusión social.
Por citar dos ejemplos, en el este de Brasil en la década de los se-
tenta el BM adopta medidas para proteger a la población del impacto
causado por las grandes obras de desarrollo, sin embargo, obras fi-
nanciadas por el BM para la construcción de la presa de Sobradinho
obligó a 60.000 personas a salir de sus hogares, porque la intervención
inundó sus casas y cultivos.
En el año de 2007 en las costas de Albania, los habitantes se in-
terponían a un plan de limpieza financiado por el BM, pero para el
gobierno era una zona perfecta para construir un complejo hotelero,
además, el proyecto facilitaba la renovación de esa área costera. Las
autoridades albanesas irrumpieron en la comunidad

“y se dirigieron a las construcciones previamente identificadas por las


fotos tomadas gracias a estudios aéreos pagados por el Banco Mundial.
La policía sacó a los residentes de la cama y los obligó a marcharse de

192
sus casas. Los equipos de demolición echaron abajo viviendas enteras
o derribaron las construcciones anexas a las casas que, según el Gobier-
no, se habían erigido sin los permisos pertinentes.” (Chavkin, Hallman,
Hudson, Schilis, & Schifflet, 2015, p. 31)

Dicha entidad es enfática al decir que reubicar las poblaciones es


difícil, no obstante, es imposible el progreso sin desplazar a la pobla-
ción de sus tierras, “El BM admite que la reubicación es difícil, pero
afirma que a menudo es imposible construir carreteras, centrales
eléctricas sin trasladar a la gente de sus tierras” (Chavkin, Hallman,
Hudson, Schilis, & Schifflet, 2015, p. 30) En otras palabras, se admi-
te la necesidad de confinamiento, donde por esto entenderemos, una
mecánica de inclusión/exclusión relacionada con el binomio aden-
tro/afuera, como lo aclara Perea (Perea, 2016). No es un afuera vi-
sual, en sentido explícito, sino una práctica social de encierro, Perea
recurre al trabajo de Foucault porque este plantea en los estudios que
realiza sobre la locura, que los muros de las instituciones psiquiátricas
no sólo suponen un espacio cerrado, a la vez, representa un lugar de
aislamiento y captura. El confinamiento es una captura del espacio y
tiene el poder de segregación.
En esta sección se abordan conceptos que permiten comprender el
confinamiento como metáfora de la modernidad. En donde en nom-
bre del progreso, la civilización y la salvación, se aíslan y capturan
espacios y poblaciones, específicamente grupos sociales que habitan
en los bordes de la gramática moderna.
Los conceptos de confinamiento y dominación colonial conver-
gen, son categorías que permiten observar la articulación entre las
dinámicas del mercado capitalista mundial y los sujetos colectivos
excluidos. Las movilizaciones indígenas han sido fundamentales
para desvelar la realidad del poder colonial, no obstante, este tipo de
acciones amplió la compresión que se tiene frente a otros tipos de
conflictos interétnicos, de hecho, los entendimientos acerca de las

193
resistencias comunitarias y sociales, frente a las prácticas de los Esta-
dos y las corporaciones transnacionales, ha permitido determinar las
formas de reproducción de las estructuras de dominación colonial.
En este sentido, el confinamiento como categoría analítica observa
las zonas de excepción sobre la vida. Los confinamientos muestran el
discurso totalizante y violento de la modernidad, los casos atrás men-
cionados reflejan que cuando la modernidad se expresa en proyectos
de desarrollo, exponen la vida a la posibilidad de la muerte. López
(López, 2018) vincula esta contingencia a un tipo específico de racio-
nalidad que naturaliza el sacrificio, ya intuye, siguiendo a Agamben,
que la vida está sujeta al ejercicio del poder “en matar está el poder de
establecer un nuevo orden” (López, 2018, p. 238)
Por tal razón, el encierro sustrae comunidades para que el progre-
so continúe, el caso colombiano ilustra esta relación entre orden y
confinamiento de forma clara. Las dinámicas de la violencia no sola-
mente han generado desplazamientos, sino también confinamientos,
esta forma de victimización se producen muchas veces por enfrenta-
mientos o simplemente para impedir el libre tránsito de las comuni-
dades por su territorio. La apropiación del espacio vital hace posible
el horror, la dinámica económica actual ha incrementado los conflic-
tos ambientales (Parra-Romero, 2016) cita ejemplos como la cons-
trucción de represas, la expansión de la actividad minera, entre otros,
lo cual ha implicado aislar a los afectados, puesto que la dominación
de la naturaleza y los cuerpos para que el desarrollo avance, necesita
el encierro de las comunidades que resisten.
La apropiación/explotación de los territorios, tiene un asidero
fundamental en la forma como se ha configurado el espacio. Apon-
te-Motta (Aponte-Motta, 2019) sugiere que la imagen de espacios
vacíos o salvajes, pero que encierran abundantes recursos naturales,
representa la idea de la existencia zonas sin dueños o habitantes ci-
vilizados, sin embargo, dichos vacíos esconden luchas territoriales y
disputas por el control territorial. Los confinamientos generan la idea

194
de desierto, pero es una práctica que corre en paralelo con la disposi-
ción de dominio “hace parte de un discurso que revela otro nivel de
formas del ejercicio de control o reivindicación del dominio espacial
sobre una región específica” (Aponte-Motta, 2019, pág. 73). La idea
del vacío esconde confinamientos, los baldíos ejemplifican este princi-
pio, un territorio que carece de dueño.
La captura del espacio por parte del Estado, no se limita a la aplica-
ción de la violencia física, la violencia simbólica regula el orden social
desde procesos de apropiación que organizan las relaciones de poder.
Los estados logran la homogenización del colectivo social por me-
dio de relatos que construyen territorios más virtuales que reales, sin
embargo, este principio jerarquiza el espacio, lo organiza desde un
centro que delimita unas fronteras (Gouëset, 1999). La producción y
reproducción del Estado por medio de políticas de desarrollo remite
al planteamiento foucoultiano del “dejar morir”, (Arias, 2016, p. 466)
establece que tanto la arbitrariedad como la indiferencia ante los im-
pactos de las políticas y programas que enfrentan la pobreza extrema
y la exclusión, se desprenden de ideas universalistas y expansionistas
que coloca a las poblaciones con otras ontologías, en el vacío, o, si-
guiendo la lógica del presente análisis, en el desierto.
El texto de Arias “La antropología del estado” que se basa en Gup-
ta (2012) muestra que la acción biopolítica de los estados trabaja a
través de procedimientos que terminan despolitizando la muerte de
los más pobres y de poblaciones étnicas al margen de la modernidad.
Por esto plantea, que los resultados de los programas estatales enfo-
cados en el cuidado de la población y dirigidos a disminuir la pobreza
extrema y la exclusión, crean ilusiones y fantasías que encubren los
intereses de los grupos dominantes. La paradoja de las acciones del
BM muestra este principio.
La categoría de confinamiento señala las prácticas de estado y de
actores armados montados sobre acciones de depredación. Consi-
deramos que abre un campo de análisis para explicar la integración

195
espacial diferenciada entre Estado y ciertas sociedades, los confina-
mientos no son prácticas neutrales, definen el sentido del adentro
y el afuera ontológico. Abrams, Gupta y Mitchell (Abrahms, 2015)
marcan un tipo de análisis enfocado en mostrar que la línea entre Es-
tado y sociedad es un trazo que no se produce necesariamente entre
actores sino a través de mecanismos institucionales que mantienen y
delimitan un tipo de orden social y político.
Por lo tanto, la noción de confinamiento muestra la dominación
como separación y encierro, que hace posible la barbarie invasora y
extractora. La gramática de la modernidad excluyó el mito y lo sagra-
do al llevarlos a nivel de mentira y falsedad, lo real es lo racional y por
esto lo racional es incuestionable. El pensamiento moderno consolida
un tipo de conocimiento único y excluyente, la supremacía de la ra-
zón conlleva a un desencantamiento del mundo y desmitización de lo
humano, porque el logos puede configurar la totalidad de las relacio-
nes humanas (Waisman, 2014). La idea de progreso, así, se funda en el
antropocentrismo, en la separación con las leyes naturales y divinas.
A la escala del Estado central y los actores armados que buscan
el control del territorio, el poder se fundamenta en la posibilidad de
intervención. La dominación se circunscribe en una racionalidad que
ordena “técnicamente” las cosas y las relaciones sociales: la explota-
ción del ser humano y la naturaleza es racional; la productividad, la
eficiencia, la calidad de vida, producen una modelo de justificación
que absuelve la opresión. Los confinamientos esconden los aspectos
más destructivos y violentos de la doctrina del progreso.

“La población civil es el escenario de esa guerra para desalojar a un actor del
territorio en disputa o para obtener ventajas tácticas en su estrategia de con-
trol. Para comprender la lógica de muchos de estos impactos, y de los casos
colectivos que se analizan en este estudio, hay que mirar detrás de lo visible.
Zonas de retaguardia, zona roja o rosa, pacificación contrainsurgente, son a
la vez conceptos de la guerra y lógicas de las acciones contra la población. A

196
veces, predominan los asesinatos selectivos, en otras las masacres. A veces se
quiere el desplazamiento, en otras el confinamiento. Incluso los proyectos
de desarrollo pueden ser parte de la lógica de control militar de un conflicto
o de tejer las relaciones socioeconómicas en un escenario de consolidación
de dicho control.” (La verdad de las mujeres, 2013, p. 183)

Entender el confinamiento en clave territorial supone, comprender el


territorio como un cuerpo en disputa entre la doctrina del progreso y
otras formas de habitar la tierra, sin embargo, la otredad no es algo válido
e incluso posible; pues la razón moderna no ha sido un saber integrador,
sino un mecanismo de conquista. Las consecuencias ambientales y so-
ciales se presentan como paradojas de acciones bien intencionadas, sin
embargo, las resultados de los macroproyectos o la acción de grupos ar-
mados implica una separación espacial. El “confinamiento tiene que ver
directamente con el ejercicio de segregación de la diferencia a algún espa-
cio que se vuelve periférico, no solo por su ubicación sino también por el
sentido social y político que se le otorga.” (Castaño, 2018, p. 143)
En este sentido, las autonomías son fuente de afirmación que escapa
a la conquista de las identidades que sostienen otras relaciones con el
territorio. Proponen otras relaciones políticas y económicas, una ciuda-
danía posliberal “el desafío posliberal plantea la cuestión de quién cuen-
ta como ciudadano o ciudadana. Rechazando la asimilación forzada a
una identidad homogénea y mestiza” (HARVEY, 2016, p. 9). Las auto-
nomías buscan superar el confinamiento producido por las dinámicas de
mercado y crecimiento económico, como se expondrá a continuación.

Los movimientos sociales frente al Estado o a la defensa de


la autonomía
Ante esta condición y característica esencial de los estados-nación
como instrumento de confinamiento, (es decir como estructura
dual: adentro/afuera, nosotros/ellos, amigos/enemigos; hombres/

197
no-hombres; bien/mal; ciencia/no-ciencia; desarrollados/no desar-
rollados; centro/periferia; cuyas “líneas abisales” han sido descritas
por Boaventura de Souza) las personas, las organizaciones, las masas
sociales y los pueblos van generando varias formas de re-existencia,
ontologías6 y epistemologías otras, marcando así dinámicas de transi-
ción hacia otros mundos posibles.
Estas dinámicas de transición no pueden ser adecuadamente leí-
das desde las clásicas categorías de los movimientos sociales (o las ac-
ciones colectivas) que han sido propuestas por interpretes sociales de
gran reconocimiento (Touraine, Tilly, Taylor, Olson, Hechter, entre
otros), aún enmarcados en los parámetros hegemónicos de la moder-
nidad antropocéntrica y eurocéntrica. Jaspers ( Jasper, 2012), ya hace
una década, había advertido sobre las limitaciones de las interpreta-
ciones estructuralistas y macrosociales, aún en las autocríticas que
algunos de ellos se habían hecho (McAdam, Tarrow, & Tilly, 2001)7.
Dentro de las limitaciones señaladas por Jasper, y que valen a nues-
tro modo de ver no sólo con respecto a los estructuralistas, como lo
señala él, sino a otros paradigmas, destacamos el entendimiento de
los movimientos sociales como confrontados con el estado-nación,
que quedaban expuestas especialmente desde las teorías de la globa-
lización ( Jasper, 2012, p. 37). En efecto, por una parte, muchas de las

6.  Sobre el giro ontológico ver (Escobar A. , 2018, pág. 40 y ss)


7.  Jasper recoge dicha autocrítica citando el siguiente párrafo: “1). Se enfoca en las relaciones
estáticas en vez de en las dinámicas; 2). Funciona mejor cuando se centra en movimientos
sociales individuales y en menor medida con respecto a episodios más amplios de lucha; 3).
Su génesis, en la relativamente abierta política de los Estados Unidos de los sesenta, llevó
a poner más énfasis en las oportunidades que en las amenazas, y más confianza en la ex-
pansión de recursos organizacionales que en el déficit organizacional que sufren muchos
contestatarios; 4) Se enfoca desproporcionadamente a los orígenes de las luchas en vez de a
sus fases finales” Después lanza un ataque demoledor contra estos autores por permanecer,
según él, atados al estructuralismo y por tanto no poder reflejar el dinamismos reales de los
movimientos y de las motivaciones e intereses de los actores, que sí estaría leídos desde la
perspectiva culturalista de las emociones y de las estrategias: “permaneció ciego ante los
significados culturales y las ricas emociones de la acción estratégica”, defendidas por éste.
( Jasper, 2012, p. 13-17)

198
motivaciones, metas, preocupaciones y actores en conflicto, superan
las instancias estatales (organismos multinacionales, cambio climáti-
co, modelo neoliberal, movimientos ecológicos, movimientos de los
pueblos aborígenes, movimientos feministas étnicos, etc). En segunda
instancia, oculta el verdadero papel del estado como agente de confi-
namiento de las poblaciones que vimos en el apartado anterior. Pero,
por otra parte, centrar la comprensión misma de los movimientos
sociales en la relación de confrontación ante los estados-nación cons-
tituye una forma de desconocimiento, de confinamiento a la no-exis-
tencia, de muchas de las luchas de los pueblos, de los movimientos
anti-sistémicos y en general de formas de re-existencia que a lo largo
de siglos muchas sociedades han desarrollado. Es decir, de entrada,
estas categorías de interpretación están dejando por fuera todas las
formas de resistencia descritas como “resistencias pasivas” (Scott,
2000),”culturas híbridas” (Canclini, 1990), y, más allá de las catego-
rías, con las que se las describa, están ignorado las múltiples dinámi-
cas creativas con las que sociedades otras reconstruyen y reproducen
sus existencias, su ser (ontologías), su conocer (epistemologías), sus
sentires, sus vínculos, sus sentipensactuares, a pesar y más allá de las
dinámicas de invasión, despojo y dominación dentro de las cuales está
precisamente la creación e imposición de los estados-nación como
mecanismo civilizatorio de la modernidad.
En este sentido más allá de la defensa de una corriente teórica o
de unas categorías de interpretación, se trata del reconocimiento de
la emergencia de formas otras de ser. Raúl Zibechi lo describe de la
siguiente manera:

“Postulo que en América Latina existen muchos movimientos sociales,


pero, junto a ellos, superpuestos, entrelazados y combinados de formas
complejas, tenemos sociedades otras que se mueven no sólo para re-
clamar o hacer valer sus derechos ante el Estado, sino que construyen
realidades distintas a las hegemónicas (ancladas en relaciones sociales

199
heterogéneas frente a la homogeneidad sistémica), que abarcan todos
los aspectos de la vida, desde la sobrevivencia hasta la educación y la
salud” (Zibechi, 2017)

Zibechi (2017) señala varias características en esas “sociedades


otras” que las diferencian de los movimientos sociales convencionales
y que, por tanto, le permiten hablar más bien de “sociedades otras en
movimiento”: no solamente resisten ante los poderes hegemónicos,
sino que crean, a la vez, formas de relación y de organización vital
alternas; las familias extensas y las mujeres están en el centro de las
acciones8; los pueblos negros y los pueblos indígenas de tierras bajas
han ganado protagonismo en las últimas décadas; los pueblos organi-
zados crean poderes propios, justicia propia, y sobre todo formas pro-
pias de defensa o autodefensa; asumen crecientemente una potente
actitud anticolonial; enlazan en su comprensión y su acción diversas
vertientes: anticapitalista, anticolonial y antipatriarcal.
Zibechi, se refiriere en sus trabajos de décadas de participación y re-
flexión autocrítica a las búsquedas y luchas de los sectores subalternos
de mediados del siglo XX hacia acá. Habría que hacer un trabajo histó-
rico un poco más largo, para constatar que estas “sociedades otras” o
territorialidades alternativas u ontologías diversas se han tejido (imper-
ceptiblemente para la sociedad hegemónica) como formas de “re-exis-
tencia” a pesar de la invasión, el saqueo, en fin, el confinamiento del que
venimos hablando, desde los tiempos mismos del inicio de la invasión
del Abya Yala por parte de los europeos. En otros términos, los pueblos

8.  Más aún, las relaciones que se establecen pueden interpretarse en las que según algunas
autoras constituyen lo femenino alterno frente a lo patriarcal: lo vincular (Segato, 2018). En
el caso de estas sociedades en movimiento Zibechi resalta que esta presencia de las mujeres
se ha expresado en que gracias a ellas se desborda la cooptación; ellas asumen la reproduc-
ción en el cuidado ya no doméstico sino colectivo y que se ha diversificado y enriquecido
como feminismos comunitarios, feminismos negros, feminismos indios, populares y autóno-
mos, además de feminismos anticoloniales o decoloniales, ecofeminismos y muchas prácti-
cas feministas sin etiqueta

200
tanto los aborígenes, como los afrodescendientes esclavizados y los/las
millones de campesinas y pobladoras urbanas han generado en realidad
sus existencias no solo por fuera, sino a pesar del estado, en territoria-
lidades externas a las institucionalidades dominantes, es decir, no solo
algunas veces ilegales, sino a-legales. Los estados-nación en realidad no
han sido: no han tenido soberanía, no han garantizado derechos para
sus supuestos ciudadanos, no han sido el acuerdo de voluntades, no han
representado o convocado identidades nacionales. Pero la vida de la gen-
te ha sido, su ser ha continuado, a pesar del desarraigo, del saqueo y
de las diversas formas de control. Tres aspectos nos pueden servir para
ejemplificar esta afirmación: territorialidad, autonomía, espiritualidad.
Es verdad que en las últimas décadas muchas de las luchas sociales,
especialmente aquellas de los grupos aborígenes se han visibilizado
por los logros en la recuperación y consolidación de los dominios so-
bre sus territorios y que esto marca una de las grandes diferencias
con respecto a los movimientos sociales de otras latitudes. También
es cierto que el polisémico concepto de territorio y su correspondien-
te territorialidad se ha puesto en la agenda pública de las academias,
de los entes de planeación y de las organizaciones sociales apenas
hace unas cuantas décadas. Por otra parte, se reconoce con claridad
la enorme diferencia entre la visión de territorio occidental heredera
de la raíz latina del imperio romano, como dominio (torium) sobre la
tierra (terra) o apropiación física y simbólica del espacio (y en reali-
dad de sus pobladores mediante formas de desplazamiento y confina-
miento) y la comprensión de pertenencia, afecto y vínculo vital (ter-
ruño) propia de muchas culturas ancestrales (campesinas, indígenas,
negras). Estas territorialidades han sido construidas y reproducidas
por históricas generaciones, así los estados solo muy recientemente
les den reconocimiento legal9. Pero las relaciones de carácter colec-

9.  En muchos casos estos reconocimientos, se hacen mediante la generación de escrituras


públicas que en la práctica son instrumentos que facilitan la expropiación legal.

201
tivo en el ámbito simbólico (por ejemplo, mediante la toponimia, la
sacralización ritual, las narrativas cosmogónicas), en el ámbito eco-
nómico (siembra, cuidado, cosecha, descanso), en el ámbito biofísico
(presencia, nacimiento, reproducción, construcción de viviendas), en
el ámbito afectivo, organizativo, etc. son relaciones tejidas mediante
la participación de múltiples generaciones. El estado ha llegado allí
tarde y generalmente respaldando a los ocupantes y los extractores.
Las dinámicas sociales territorializadas existen pues antes, en paralelo
y de manera eficiente, con respecto al estado. Por supuesto los ter-
ritorios han sido violados históricamente, pero el estado no ha sido
defensor y garante de soberanía, sino agente de dichas violaciones.
Las sociedades territorializadas han sido en muchas ocasiones derro-
tadas, pero muchas formas de re-existencia han continuado aun cuan-
do sea necesario reconocer su fragilidad no solo por los ataques exter-
nos sino internos10. Tal vez incluso uno de los mayores riesgos se está
dando por la debilidad, la desintegración, la desorientación causada
precisamente por la intervención del estado con intencionalidades de
apoyo, reconocimiento y colaboración para el desarrollo y la paz11.
Basta ver par el efecto el muy autorizado trabajo de Vilma Almendra,
bajo el título “Entre la Emancipación y la captura. Memorias y cami-
nos desde la lucha Nasa en Colombia” (Almendra, 2017,)
Las autonomías reales han sido más un hecho que una procla-
mación. Si bien en la mayoría de los casos se han dado precisamente
por la realidad de marginación, confinamiento, expulsión y búsque-
da de refugio durante los cinco siglos de re-existencia de los pue-
blos del AbyaYala/Afro/Latinoamérica, el reconocimiento estatal

10.  En mucha de estas sociedades se cuelan iniciativas de carácter capitalista que realizan
gran daño. Recientemente es evidente el enorme mal causado por la inserción de cultivos de
uso ilícito que han llevado no solo al asesinato de líderes, sino a la pérdida de la autonomía, la
autoridad de los mayores, el respeto a la ley de origen.
11.  La experiencia vivida por los colectivos en mención durante la oleada de gobiernos pro-
gresistas en Latinoamérica, deja al respecto un balance bastante negativo y la necesidad de
una mirada autocrítica muy importante.

202
(constitucional o legal) de la plurinacionalidad y la multiculturalidad
es de las últimas décadas del siglo XX. Los pueblos por sus herencias
ancestrales y/o por las necesidades propias de la convivencia (no solo
entre humanos sino con los demás vivientes) desarrollaron sus pro-
pias regulaciones, mediaciones, formas de tomas de decisiones co-
lectivas, organizaciones de sus tiempos y sus espacios, conformación
de las familias y regulaciones de la reproducción y el cuidado de los
hijos, administración de los bienes, etc. El estado no ha sido necesa-
rio para el efecto. Las proclamaciones de autonomía han tenido muy
diversos alcances, pero en varios casos han resultado más bien decep-
cionantes en tanto varios eran más anti-partidos que anti-sistema y
por tanto, mucho de los líderes y de los proyectos colectivos queda-
ron cooptados en las lógicas desarrollistas, extractivistas, rentistas o
mercantilistas.
Si bien el continente latinoamericano llegó a ser reconocido pla-
netariamente como el gran baluarte del catolicismo y las estadísticas
señalaban que sus habitantes eran en más del 90 por ciento católicos,
es claro, por una parte que muchísimas de las formas de espirituali-
dad existentes antes del arribo de los peninsulares y aquellas traídas
por los africanos secuestrados y esclavizados, siguieron reproducién-
dose no solo en forma soterrada sino en muchas ocasiones en formas
incluso públicas mediante diferentes formas de fiestas y carnavales;
pero por otra parte, dicho catolicismo no fue propiamente el euro-
peo, sino que sufrió una enorme resignificación en la confrontación
con las culturas y las espiritualidades populares. Diversas formas de
re-existencia se produjeron en paralelo o en relaciones complejas y di-
versas con el poder religioso hegemónico. Dentro de las expresiones
de vínculos de convivencias-otras recientes, resaltan convocatorias
espirituales que sin duda beben de esas fuentes, se ligan a procesos
tan variados como movimientos étnicos, de género, ambientalistas,
de víctimas y en ellas el papel de las mujeres como guías se destaca
en muy diversos ámbitos: la música, la danza, el acompañamiento en

203
proceso de gestión y de parto, la afirmación y recuperación de los ter-
ritorios corporales, la bendición de cultivos, entre otros.
Las vidas otras, los mundos otros, las ontologías y epistemologías
otras, entonces no solo son posibles, sino que han sido la realidad
“verdadera” de las mayorías. El confinamiento, en los términos ante-
riormente expresados, ha sido verdadero; pero más allá de la muerte,
del saqueo, de los estados-nación y de la imposición del mundo de la
modernidad, diversas sociedades y colectividades han re-existido y en
los últimos tiempos han logrado emerger, ganar mayor visibilidad y
en algunos casos mayor protagonismo.
Múltiples tareas, colocadas a la vez como retos, como posibilida-
des y como parciales y frágiles logros, se colocan en el andar de estas
sociedades en movimiento. Arturo Escobar, en diálogo con los movi-
mientos constructores del territorio región del pacífico colombiano
enuncia algunas de ellas que nos parecen sirven de referente: generar
condiciones para la auto-creación continua de las comunidades y sus
entornos, desde una perspectiva de autonomía; fundamentar en la
ancestralidad los futuros posibles; fomentar formas de organizaciones
antirracistas y antipatriarcales, no individualistas y autónomas; propi-
ciar sociedades conviviales, respetando la integridad de los territorios
y la biodiversidad; articularse con actores sociales y técnicos externos
desde la preservación y el fortalecimiento de la autonomía; resistir la
deslocación, descomunalización y deslugarización potenciando eco-
nomías diversas relocalizadas (autonomía alimentaria); promover or-
ganizaciones colaborativas; articularse a iniciativas de Buen Vivir y de
los derechos de la naturaleza; fomentar aperturas pluriversales (más
que simplemente multiculturales), impulsar la armonía con la vida y
la Tierra.
Adoptar estas tareas implica un vuelco radical de frente a las po-
líticas de desarrollo propuestas desde la institucionalidad y el estado
hegemónico, implica ciertamente quebrar las líneas de confinamiento
impuestas por la modernidad y sus estados-nación.

204
Conclusiones y proyecciones.
Los confinamientos son la expresión opuesta a las autonomías ter-
ritoriales, los encierros son producto de la expansión de economías
predadoras, la autonomía se revela contra la máquina del capitalismo
en su fase neoliberal y la desimaginación de otro mundo posible. En
este sentido, las autonomías buscan la reapropiación comunitaria de
los espacios de la vida “esta tendencia de reapropiación del territorio-
-lugar donde se asientan dichos movimientos refiere a la expansión de
las experiencias de autogestión productiva, de la solución colectiva de
necesidades sociales y de formas autónomas de gestión de los asuntos
públicos”. (Toro, 2012, p.24)
En las comunidades locales la autonomía es una capacidad para
desarrollar formas de gobierno en sus territorios. En los modelos
de Estado centralista, otras visiones del desarrollo se encuentran en
el afuera epistemológico, la experiencia de la democracia local en
estas comunidades se expresa “como un sistema construido desde
abajo permite la construcción de una alternativa (al) Estado-Nación
existente” (Altmann, 2012, p.131) Es decir, las comunidades colocan
en duda el modelo de Estado eurocéntrico y su paradigma demo-
crático liberal, el poder se redefine en términos espaciales, aunque
también topológicos, desde abajo y en territorios definidos ontoló-
gicamente.
Aunque a pesar de estos procesos la voluntad de dominación per-
siste y se expresa en una ontología dualista que separa/confina “lo
humano y lo no humano, naturaleza y cultura, individuo y comu-
nidad, “nosotros” y “ellos”, mente y cuerpo, lo secular y lo sagrado,
razón y emoción, etcétera), esta modernidad se ha arrogado el de-
recho de ser “el” Mundo (civilizado, libre, racional) a costa de otros
mundos existentes o posibles.” (Escobar, 2015, p. 29) Por esta razón,
los confinamientos se apoyan en la separación y las autonomías terri-
toriales en la unidad, principalmente en concepciones del mundo no
dualistas.

205
Los confinamientos separan mundos, Escobar señala que el pro-
yecto moderno privilegia el mundo del individuo y busca llevar estos
otros mundos a la lógica de mercado. Es por lo que afirma estamos
en un mundo en transición, cambio necesario para enfrentar las cri-
sis ambientales, ecológicas y humanas. El modelo del Estado-nación
es un entendimiento de mundo jerárquico, la experiencia de demo-
cracia local, parte de los sensible, es decir, como lo plantea Ranciere,
la presentación de lo común “la práctica política reparte y compo-
ne espacios sensibles, los nombra y les asigna visibilidad.” (Escudero,
2009, p. 11)
Zibechi (2020) señala que los pueblos originarios de América La-
tina, en el contexto del coronavirus, con base territorial están mejor
preparados para enfrentar la crisis derivada de la pandemia. Los pro-
yectos autogestionados, los espacios colectivos con posibilidades de
cultivar alimentos son una línea de fuga para afrontar la crisis, ya que
se sostienen a partir de redes de solidaridad y apoyo mutuo. La vi-
gencia de lo local como espacio político, en contextos con Estados y
paraestados concentrados en la explotación de riqueza, implica refle-
xiones enfocadas en la superación de la modernidad que erigió a los
Estados nación como el elemento central de la organización política y
económica de las sociedades.
En el nivel local encontramos la lucha por la autonomía, esto es
consecuente con los valores de la comunidad que habita el territorio.
Sin embrago, la crisis del 2020 afecta el conjunto de lo político, enten-
dido como la totalidad de las instituciones, ideologías, actores polí-
ticos y al modo de producción capitalista. El fracaso del capitalismo
como vinculo unificador del territorio, conlleva al autoritarismo y
este sistema busca salvaguardar sus estructuras económicas colocan-
do dos lógicas en tensión: por un lado los gobiernos buscan estimular
el crecimiento desde políticas expansivas -por ejemplo incrementado
el gasto en infraestructuras- y por el otro “los pueblos indígenas apro-
vechan para poder retomar su historia, en resurgir sobre las bases de

206
sus principios y valores milenarios, frente al irrespeto a los seres de la
naturaleza y su entorno.” (Tzoc, 2020, p. 13)
Por esta razón, los eventos entorno al coronavirus, suponen, des-
de el reconocimiento de otros saberes, conocimientos y prácticas de
vida que las dinámicas locales, son un punto de inflexión. Los confi-
namientos que encapsularon mundos evidencian que, para salir de
la crisis, necesita valerse del redescubrimiento de lo local, articular
redes que habiliten dinámicas dirigidas a una mayor cooperación,
los márgenes de discrecionalidad de los Estados cuentan con un
campo ideológico limitado y volcado sobre los asuntos económicos,
el conocimiento y praxis de las comunidades locales lleva a otros
ensamblajes.
La democracia local y las autonomías territoriales describen prác-
ticas de agencias emergentes situadas en diferentes sitios. Para encon-
trar alternativas, es necesario analizar las múltiples formas de coope-
ración y solidaridad que no toman como referente al Estado (Scauso,
2020) estas prácticas y saberes como se señaló en el presente texto
han sufrido confinamientos ontológicos, físicos y epistemológicos.
Este contexto, es la posibilidad de ampliar la categoría de mundo a
una ecología sustancialmente más amplia, como un mecanismo para
mantener el equilibrio a partir de la coexistencia.

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210
Mobilização Social no Brasil.
Considerações acerca das
“Jornadas” de junho de 2013
Emilie Faedo Della Giustina
Danuta Estrufika Cantóia Luiz

Introdução
O presente texto reúne algumas reflexões analíticas acerca das mobi-
lizações sociais desencadeadas em junho de 2013 no Brasil. Conside-
radas como expressões da sociedade civil brasileira na contempora-
neidade, foram retomadas de maneira mais expressiva ao repertório
de atuação dos cidadãos a partir deste estopim, sendo seus desdobra-
mentos perpassados por diferentes intencionalidades e narrativas em
disputa.
Para a composição da discussão aqui traçada foram utilizadas pro-
duções teórico-críticas de analistas brasileiros como Rolnik (2013),
Singer (2013), Antunes; Braga (2014), Nogueira (2014); Lima (2018),
dentre outros, com o objetivo de apresentar um panorama em que
as mobilizações se desenvolveram – permeadas pelo neoliberalismo e
neodesenvolvimentismo hegemônicos no país1.
A partir do que se organizam movimentos de resistência a estas
tendências, em um mundo de relações sociais globalizadas, com par-
ticularidades inerentes aos contextos nacionais, mas reproduzidas

1.  Acerca do prefixo “neo”, retoma-se Hobsbawm (1995) quando este afirma que uma ten-
dência político-histórica que se intitula como “nova”, via de regra corresponde ao velho tra-
vestido de novo, reconfigurado conforme os tempos e para dar uma impressão de atualidade.

211
características gerais do movimento histórico do capitalismo no sé-
culo XXI.
Na sequência do texto apresentam-se as mobilizações de junho de
2013, destacando os acontecimentos, movimentos e sujeitos envolvi-
dos no processo, por meio da análise de alguns dados delineadores
de um perfil básico dos participantes e as principais demandas voca-
lizadas.
Para essa discussão foram utilizados autores de referência que tra-
zem substancial contribuição ao debate proposto, e também algumas
categorias teóricas do referencial gramsciano, um clássico do pensa-
mento político que instrumentaliza a interpretação de fenômenos
contemporâneos. Mais especificamente as noções de espontaneísmo
e direção consicente dos movimentos populares, senso comum, con-
cepção de mundo tradicional, hegemonia política e cultural e intelec-
tual orgânico.
Como eixo condutor está o reconhecimento da potencialidade das
organizações e fluxos da sociedade civil em mobilizar politicamente
questões que permeiam sua existência e sua relação com o Estado,
sem tomá-la, contudo, de maneira homogeneizada mas, consideran-
do sempre as correlações de forças estabelecidas na luta de classes.

Elementos contextuais das mobilizações de junho de 2013


no Brasil
As determinações econômicas, sociais e políticas que balizaram a he-
gemonização do projeto neoliberal no Brasil a partir do final da década
de 1980 e as estratégias políticas de dominação de classe empreendidas
nesse contexto desembocaram, a partir dos anos 2000, no estabeleci-
mento de um projeto “pós-neoliberal” neodesenvolvimentista.
A reatualização do discurso desenvolvimentista no país cumpre
a função de elaborar consensos para a continuidade do projeto polí-
tico de modernização capitalista em um país subdesenvolvido que

212
experimentou a falência do que prometia o discurso neoliberal. De
modo que o discurso neodesenvolvimentista tem o objetivo de susten-
tar ideologicamente a atual dinâmica capitalista, caracterizada pelo an-
tagonismo entre crescimento econômico e ganhos civilizatórios.
Trata-se de um discurso travestido de intenções progressistas que
concilia desenvolvimento econômico e social, sem significar um rom-
pimento com o núcleo central das políticas neoliberais, mas ofere-
cendo uma “[...] união sincrética entre políticas econômicas incenti-
vadoras dos mecanismos de liberalização do mercado e políticas de
proteção social compensatórias e de alívio da condição de miséria”
(MARANHÃO, 2014, p. 328).
O discurso do neodesenvolvimentismo resgata a bandeira da su-
peração do “atraso” estrutural do país como condição para solução
dos problemas sociais, políticos e econômicos. De modo que são ne-
cessários incentivos para o desenvolvimento econômico por meio da
modernização das estruturas produtivas, incentivo às exportações,
estímulo ao crédito financeiro, no subsídio estatal aos empresariais
estratégicos, etc. No entanto, tais incentivos à modernização e cres-
cimento econômico propostos pelos defensores do neodesenvolvi-
mentismo como solução para o desenvolvimento social mostram-se
ineficazes na superação das contradições sociais típicas do capitalismo
periférico brasileiro.
Borón (2010), ao analisar o capitalismo em uma perspectiva his-
tórica e geográfica mais ampla, considera tratar-se de um modo de
produção que serve para que um grupo de nações (das quais nenhu-
ma foi “subdesenvolvida”) se desenvolvam a custo de excluir as de-
mais. Para o autor, o subdesenvolvimento é um conceito relacional
que vem à tona no processo de mundialização do capitalismo, cuja es-
trutura formada por um centro integrador se desenvolve em grande
parte pela exploração das nações periféricas. De modo que o reverso
do desenvolvimento do capitalismo nas metrópoles é o subdesenvol-
vimento na periferia.

213
No entanto, isso não significa negar que, a partir dessas relações
capitalistas globalizadas, alguns países experimentaram um expres-
sivo crescimento econômico ligado ao comércio exterior, como é o
caso do Brasil. A questão é que este crescimento não permite superar
a condição de país subdesenvolvido para o desenvolvimento.

O capitalismo, portanto, não é uma receita que se pode tornar uni-


versal, muito menos eterna. Não é universal porque possibilitou o
desenvolvimento de um punhado de nações, as metrópoles, e teve um
efeito exatamente contrário nas colônias. Também não é eterno, porque
essa mesma fórmula tem hoje limitações históricas incuráveis (BORÓN,
2010, p. 12 – grifo nosso).

O argumento é o de que já não estão mais em curso as condições


econômicas, políticas, militares e internacionais que possibilitariam a
passagem do subdesenvolvimento para o desenvolvimento pela via
capitalista. A globalização do capital impossibilita tentativas de desen-
volvimento capitalista autônomo, de modo que a “[...] heteronomia
seja o aprofundamento da dependência e da perpetuação do subde-
senvolvimento” (BORÓN, 2010, p. 13).
A proposta neodesenvolvimentista, ao se constituir em uma alter-
nativa frente à deslegitimação do discurso neoliberal, mas preservar
seu núcleo central de condução política, pode ser caracterizada como
uma “reciclagem” das ideias liberais, acrescidas de algumas necessá-
rias concessões aos grupos vulnerabilizados. O que se coloca como
condição para continuidade política e ideológica do projeto neolibe-
ral de modernização capitalista.
Ainda que travestida do discurso modernizador de estímulo à pro-
dução, ao crédito e à criação de postos de trabalho, a política econômi-
ca neodesenvolvimentista não rompe com a histórica dependência ex-
terna nacional. E, juntamente a uma condução focalizada das políticas
sociais, que estimulam o desenvolvimento das capacidades individuais

214
dos mais pobres para que estes acessem o mercado como alternativa
ao quadro de desigualdade social, faz com que questões estruturais de
subdesenvolvimento e desigualdade social sejam reproduzidas.
Para Maranhão (2014) é característico de regimes “pós-neolibe-
rais” ou de “neoliberalismo social” expandirem o rol do capital fi-
nanceiro para desenvolver a economia e tentar conservar o apoio das
massas por meio do financiamento de vastos programas de combate
à pobreza.
Em um contexto em que a estrutura e a dinâmica do capitalismo con-
temporâneo puseram por terra as esperanças de equalização entre cresci-
mento capitalista e ampliação de ganhos civilizatórios significativos (MA-
RANHÃO, 2014), o papel desempenhado pela sociedade civil coloca-se
como fundamental. Pois, é no palco da sociedade civil que são travados
os embates das correlações de forças estabelecidas em cada conjuntura,
as disputas por projetos societários, as resistências diante das reformas do
Estado, a elaboração de consensos. Estado aqui compreendido como es-
paço que pode também ser apropriado pelo movimento transformador,
sob a perspectiva de elaboração e disputa de hegemonias.
Este contexto coloca-se como pano de fundo para o estopim de
mobilizações sociais massivas pelas ruas do Brasil, em junho de 2013.
O presente texto reúne algumas reflexões analíticas acerca desta for-
ma de expressão da sociedade civil, que é retomada de maneira mais
expressiva ao repertório de atuação dos cidadãos brasileiros a partir
desse período, e perpassada por diferentes intencionalidades e narra-
tivas em disputa.

As “Jornadas” de junho de 2013


Mesmo que amenizada por estratégias neodesenvolvimentistas, a
condução macroeconômica neoliberal se mostrou ineficiente na ge-
ração de crescimento econômico sustentável a longo prazo e mui-
to menos eficiente na superação do subdesenvolvimento dos países

215
periféricos ao capitalismo globalizado. E, acrescidas às crises econô-
micas cada vez mais frequentes, abrem espaço para movimentos de
resistência popular ao neoliberalismo na América Latina, podendo
ser citados: os movimentos indígenas, os cocaleiros na Bolívia, o Mo-
vimento Zapatista em Chiapas, o Movimento de Trabalhadores Sem-
-Terra (MST) no Brasil, o Movimento dos Sem Trabalho na Argenti-
na, entre outros (MARANHÃO, 2014).
A sociedade civil brasileira, nesse contexto, é palco de disputas e
manifesta diferentes formas e conteúdos: desde o fortalecimento do
“terceiro setor”2 até a revitalização das grandes mobilizações em mas-
sa/de rua.
Por isso, em se tratando do contexto sociopolítico da última déca-
da, é preciso lançar o foco da análise sobre as grandes mobilizações
desencadeadas a partir das “Jornadas”3 de junho de 2013 no Brasil.
As quais, em uma sociedade globalizada e conectada em rede, rela-
cionam-se a diversas outras expressões mundo a fora, em uma era
de rebeliões em escala global: a Primavera Árabe, os Indignados na
Espanha, Occupy Wall Street nos Estados Unidos, etc.4

2.  Concepção neoliberal de sociedade civil, separada do Estado e do mercado, concebida como
esfera de mediação entre o econômico e o político. Noção que despolitiza e instrumentaliza a
ação da sociedade civil conforme a hegemonia neoliberal. Especialmente percebida no proces-
so de desresponsabilização estatal frente aos direitos sociais, em consequência do enxugamento
do Estado, ocasionando um processo de (re)filantropização da questão social.
3.  Singer (2013, p. 24) desenvolve uma reflexão acerca da denominação dos acontecimentos
de junho de 2013 como “jornadas”. Para o autor, “as jornadas originais constam de O 18 Bru-
mário de Luís Bonaparte como nada menos que ‘o mais colossal acontecimento na história
das guerras civis europeias’. Trata-se do momento em que, na conjuntura aberta pela revolu-
ção de 1848, o proletariado de Paris lança-se a uma tentativa insurrecional, sendo esmagado
pela repressão à bala [...]. Diferentemente do caso francês, entretanto, não houve aqui um
desenho insurrecional. Ninguém seriamente imaginou estar em curso uma tentativa de re-
volução”. Por isso a utilização das aspas ao cunhar o termo que foi amplamente difundido,
referente ao ciclo de protestos desencadeados no período.
4.  A característica de conexão entre o movimento no Brasil e outros tantos espalhados pelo
planeta está na transformação de espaços públicos urbanos em palcos de protestos majori-
tariamente formados por jovens, mobilizados por meio de redes sociais, sem a presença de
partidos, sindicatos ou organizações de massa tradicionais (ROLNIK, 2013). Resguardadas

216
Nos diversos países citados, assim como nas cidades brasileiras, fo-
ram postos em questão os modelos de desenvolvimento e as formas
de fazer política. Para Castells (2013), o tradicional modelo de demo-
cracia representativa, baseado em estruturas verticais e centralizadas,
já há muito tempo dá sinais de esgotamento. Ao que as mobilizações
em massa têm reagido com propostas de organizações horizontais,
sem personificação de lideranças nem comando de partidos ou comi-
tês centrais.
A análise de Estanque (2015) é de que dois principais elementos
configuram o pano de fundo dessas mobilizações, para além da esfera
política (em sentido estrito): a degradação das condições materiais de
vida de uma parte significativa da população, combinada à crise de le-
gitimidade das instituições políticas. Para Antunes; Braga (2014, p. 42)
tratou-se de uma explosão de processualidade interna, advinda de um
longo período de letargia das grandes mobilizações sociais, articulada
a uma processualidade externa, “caracterizada por um época de sub-
levações em escala global, que se ampliaram enormemente a partir
da crise estrutural de 2008”.
Características que remetem ao conceito gramsciano de crise or-
gânica: quando há perda de hegemonia do bloco no poder que, ao ser
fissurado, abre brechas para novas elaborações hegemônicas (LIMA,
2018). O que não significa necessariamente, vale a ressalva, que essas
possibilidades resultarão em ganhos progressistas – conforme os pró-
prios desdobramentos pós-2013 no Brasil permitem ilustrar.
Tratam-se de movimentos que evidenciam um contexto de crise
das tradicionais estruturas de representação coletiva de interesses po-
pulares. Contexto em que a democracia é limitada pelos verdadeiros
poderes que agem “apesar dela” e anulam a soberania popular. O que

suas particularidades e singularidades, as manifestações têm em comum a apropriação das


massas do espaço público, das ruas e das praças, exercitando práticas mais plebiscitárias, hori-
zontalizadas, manifestando um descontentamento com as formas de representação e de ins-
titucionalidade das democracias vigentes nos países capitalistas (ANTUNES; BRAGA, 2014).

217
se tem chamado de “crise de representatividade” das instituições po-
líticas, esvaziadas de seu potencial democratizador e colonizadas pelo
poder econômico.
Na análise de Castells (2013), o capitalismo é um processo comple-
xo que afeta diversos países de maneiras variadas, e o que unifica tan-
tos protestos em sua multiplicidade é que são todos reações contra as
múltiplas facetas da globalização capitalista. Nogueira (2014) reforça
este argumento ao considerar que se trata de uma crise com amplas
determinações:

O sistema político em seu sentido estrito surge nela como a ponta de


um iceberg, o protagonista que sintetiza o que há de perverso no todo.
[...] Não é o sistema escrito, constitucionalizado, mas o que funciona
(ou não funciona) de fato. O que se questionou, portanto, foi o arranjo
político protagonizado por pessoas, grupos e classes, interesses econô-
micos e organizações que [...] têm-se associado para governar o país. A
crise que temos diante dos olhos é mais que crise política: é crise de um
sistema perverso, que encontra apoio em múltiplos aspectos, econômi-
cos, socioculturais, políticos, éticos, institucionais, governamentais (NO-
GUEIRA, 2014, p. 20).

Para Lima (2018), os sujeitos políticos que defendiam “práticas au-


tonomistas” manifestavam o desejo de estarem liberados do engessa-
mento burocrático-organizativo das tradicionais estruturas e instân-
cias de representação política, de terem mais liberdade para propor e
executar novas maneiras de se organziar coletivamente.
No Brasil, as “Jornadas de Junho”, onda de protestos que tomou
o país em 2013, levou às ruas milhões de brasileiros5, jovens em sua
maioria, em um protesto maciço contra as deficiências do sistema

5.  Tendo-se espalhado por mais de 350 municípios, calcula-se que cerca de três milhões de
pessoas tenham participado das manifestações no mês de junho, embora essas medições se-
jam sempre controversas (ESTANQUE, 2015).

218
de prestação de serviços públicos. Houve registros de manifestações
em mais de trezentas cidades brasileiras, as quais tiveram como foco,
inicialmente, a luta pela melhoria da qualidade dos serviços públicos
como transporte, educação, saúde e segurança.
Reuniram diferentes experiências mobilizadoras, de um vigor po-
pular que eclodiu caoticamente nos espaços públicos urbanos, e evi-
denciaram que a sociedade brasileira segue profundamente desigual
e suas instituições padecem de legitimidade. Há um senso comum
que reitera que as classes subalternas não se mobilizam no Brasil, não
resistem, não pensam. Existência submersa ou negada que, a partir
desses acontecimentos, passa a exigir atenção. Nas palavras de Lima
(2018, p. 150), é preciso “[...] encarar as ações coletivas populares
como um processo cumulativo de energias dispersas que, em dado
momento, encontram condições para a sua massificação”, o que sig-
nifica “[...] encará-las como elementos ativos de aparelhos privados de
hegemonia erigidos também pelas classes populares e que disputam
concretamente poder e narrativas”.
Foram desencadeadas pela mobilização contra o aumento da ta-
rifa nos transportes públicos convocada pelo Movimento Passe Livre
(MPL)6 na cidade de São Paulo e em outras capitais7. A bandeira
de luta pela mobilidade urbana é o contraponto a uma imobilidade
estrutural das grandes cidades brasileiras, resultado de um modelo

6.  O MPL se autocaracteriza como um movimento social autônomo, horizontal e apartidá-


rio, cujos coletivos locais não se submetem a uma organização central. Fundado em 2005,
organizado durante o Fórum Social Mundial e existente em várias cidades, é fruto do acúmu-
lo de revoltas contra o aumento de tarifas de transporte público que ocorreram em 2003 em
Salvador e, em 2004, em Florianópolis. Sua principal luta centra-se na gratuidade do trans-
porte público de qualidade e foi o ator mais importante na primeira fase dos protestos (MO-
VIMENTO PASSE LIVRE - SÃO PAULO, 2013).
7.  “Começando em 6 de junho com uma passeata em São Paulo, com aproximadamente 2
mil pessoas, contra o aumento das tarifas no transporte público, os jovens do Movimento
do Passe Livre não poderiam imaginar que estariam sacudindo o Brasil, numa explosão que
só teve similar [...] na campanha pelo impeachment de Collor em 1992 e na Campanha pelas
eleições diretas em 1985, ainda sob a ditadura militar” (ANTUNES; BRAGA, 2014, p. 42).

219
de crescimento urbano produzido pela especulação imobiliária e de
um transporte coletivo a serviço da indústria do automóvel, subsidia-
da pelo governo brasileiro8. Nas palavras de Castells (2013, p. 178),
“tempo de vida roubado e pelo qual, além de tudo, deve-se pagar”.
Impulsionados pelas redes sociais, logo se espalharam e diver-
sificaram sua agenda. O sucesso dessas manifestações foi coroa-
do com a vitória na suspensão do reajuste da tarifa pela prefeitu-
ra municipal e governo do Estado de São Paulo. A partir disso o
movimento de rua se espalhou pelas principais cidades do país e a
pauta de reivindicações extrapolou o tema do direito ao transporte
coletivo de qualidade, expandindo-se para demandas a respeito de
outros serviços públicos, principalmente saúde e educação (ANTU-
NES; BRAGA, 2014).
O direito à mobilidade entrelaçou-se fortemente com outras pau-
tas constitutivas da questão urbana, como o tema dos megaeventos e
sua lógica de limpeza social (Copa/2014 e Olimpíadas/2016), a luta
por maior eficácia governamental e o combate à corrupção na polí-
tica, etc. Tiveram, portanto, uma base multicausal, remetendo para
forças e conexões de diferentes dimensões, do contexto local às esca-
las estadual, nacional e global (ESTANQUE, 2015).
A violenta repressão policial ao movimento gerou grande solida-
riedade e levou ainda mais gente às ruas. O relato de Rolnik (2013, p.
10) é de que “[...] a tropa de choque, que no cotidiano executa pessoas
sumariamente nas favelas e realiza despejos jogando bombas de gás
nos moradores, entrou e saiu de cena ao longo das manifestações”. O
que demonstra a relação entre um projeto excludente de cidade e a
militarização dos territórios populares.

8.  A estratégia de crescimento neodesenvolvimentista pode ser analisada como uma espécie
de “transformismo”, no sentido que Gramsci atribui ao termo: “um método para garantir
a realização de um programa limitado de reformas e prolongar a permanência no poder
mediante a cooptação de membros da oposição”. O que não se trata de uma novidade na
vida brasileira, toda ela modelada por processos de “revolução passiva” (NOGUEIRA, 2014,
p. 36).

220
Singer (2013) organiza os acontecimentos em três fases, as quais
duraram cerca de uma semana cada uma:

• dias 6, 10, 11 e 13 de junho, tendo o MPL como condutor ideo-


lógico, nessa primeira etapa havia um objetivo específico, a re-
dução do preço das passagens do transporte público;
• o uso desmedido de força policial atraiu a atenção e a simpatia
do grande público desencadeando a segunda etapa de mani-
festações, nos dias 17, 18, 19 e 20 de junho, quando os protes-
tos alcançam seu auge, somando-se espontaneamente outras
frações da sociedade, potencializando os protestos e tornando
vagas suas demandas;
• a terceira e última etapa, que vai do dia 21 até o final do mês,
em que o movimento se fragmenta em mobilizações parciais
com objetivos específicos (redução de pedágios, derrubada da
PEC 37, protesto contra o Programa Mais Médicos, etc).

Sobre a composição social dos acontecimentos de junho, dados


sistematizados por Singer (2013) demonstram tratarem-se de traba-
lhadores, em geral jovens, que conseguiram emprego com carteira
assinada na década lulista (200-2013), mas que padecem com baixa
remuneração, alta rotatividade e más condições de trabalho.
O perfil de idade, escolaridade e renda demonstram a pluralidade
dos participantes. No Quadro 1 pode‑se verificar o predomínio dos
jovens sobre as demais faixas etárias nas manifestações.

221
Quadro 1 – Idade dos manifestantes

Fonte: Singer (2013, p. 28).

E, com relação a escolaridade, o Quadro 2 demonstra uma míni-


ma parcela de baixa escolaridade, o que significa certa ausência da
base da pirâmide social brasileira nas manifestações.

Quadro 2 – escolaridade dos manifestantes

Fonte: Singer (2013, p. 29).

222
Nas oito capitais pesquisadas, pelo menos 43% dos manifestantes
tinham diploma universitário, quando, em 2010, apenas 8% da po-
pulação brasileira possuía ensino superior. O que manifesta uma in-
fluência da classe média tradicional nos protestos pois, a despeito da
significativa ampliação recente do acesso à universidade, na maioria
dos casos, a posse do diploma é um elemento distintivo de pertenci-
mento à uma camada social que já se estabeleceu há pelo menos uma
geração.
Contudo, se os dados acerca da escolaridade remetem ao topo da
escala social, o perfil de renda dos manifestantes aponta para uma
incidência expressiva da metade inferior da pirâmide. Para Singer
(2013), em função do processo relativamente acentuado de escolari-
zação ao longo da última década e meia é razoável pensar em um
novo proletariado com nível escolar elevado.
Dados organizados por Antunes; Braga (2014, p. 44) revelam que
na passeata do dia 20 de junho de 2013, na cidade do Rio de Janeiro,
a maioria dos manifestantes encontrava-se no mercado de trabalho
(70,4%), ganhando até um salário mínimo (34,3%). Se somados aos
que ganham entre dois e três salários mínimos (30,3%), tem-se que
mais de 64% do total de um milhão de pessoas que foram às ruas no
Rio de Janeiro são parte desse proletariado precarizado urbano.
Do que pode ser interpretado que havia a presença de um con-
tingente de classe média nas manifestações, mas ele não respondia
pelo todo, e que a segunda fase dos protestos foi caracterizada por
um cruzamento de classes. De modo que, na análise de Singer (2013),
trataram-se simultaneamente de duas coisas: tanto a expressão de
uma classe média tradicional inconformada com diferentes aspectos
da realidade nacional quanto um reflexo do que o autor denomina de
novo proletariado.
Ou seja, havia, no início, o predomínio de uma juventude estu-
dantil, que posteriormente se mesclou aos assalariados médios ur-
banos, passando então a atingir as periferias, em um cenário de

223
manifestações e reivindicações diretamente relacionadas às classes
populares (ANTUNES; BRAGA, 2014, p. 44).
Essa pluralidade de perfil dos manifestantes também se constituiu
em manifestações dispersas e multicêntricas, sem lideranças fixas e sem
maior dimensão organizacional, de modo que a ocupação das cidades
foi disputada por diferentes sentidos. A “voz das ruas” não foi uníssona:
“trata-se de um concerto dissonante, múltiplo, com elementos progres-
sistas e de liberdade, mas também de conservadorismo e de brutalidade,
aliás presentes na própria sociedade brasileira” (ROLNIK, 2013, p. 12).
Socialmente heterogêneos, os protestos foram também multifaceta-
dos no plano das propostas, sendo-lhes imputado todo tipo de sentido
ideológico: desde o ecossocialismo até impulsos fascistas, passando por
diversas gradações de reformismo e liberalismo. Acabaram por ser uma
espécie de “Jornadas de Juno”, cada um vendo nas nuvens levantadas
nas ruas a forma de uma deusa diferente (SINGER, 2013).
A observação das frases escritas em cartazes e dos cantos entoados
ilustravam essa ampla, e por vezes contraditória, diversidade de pau-
tas e ideologias: “Se o povo acordar, eles não dormem!”, “Não adianta
atirar, as ideias são à prova de balas!”, “Não é por centavos, é por di-
reitos!”, “Põe a tarifa na conta da FIFA!”, “Verás que um filho teu não
foge à luta!”, “Se seu filho adoecer, leve-o ao estádio!”, “Ô fardado,
você também é explorado!”, “Oi FIFA, paga minha tarifa!”, “Copa do
Mundo eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”, “Quere-
mos hospitais padrão Fifa”, “O gigante acordou”, “Não é mole, não.
Tem dinheiro pra estádio e cadê a educação”, “Era um país muito
engraçado, não tinha escola, só tinha estádio”, “Todos contra a cor-
rupção”, “Fora Dilma! Fora Cabral!”, “PT = Pilantragem e traição”,
“Fora Alckmin”, “Zé Dirceu, pode esperar, tua hora vai chegar” (SIN-
GER, 2013; ANTUNES; BRAGA, 2014).
A partir do momento em que importantes setores de classe mé-
dia se juntaram aos protestos, o que até então era um movimento
predominantemente da nova esquerda acabou por juntar desde a

224
extrema-esquerda até a extrema-direita. A partir do que as manifesta-
ções passaram a adquirir um caráter oposicionista generalizado que
não tinham antes. As bandeiras brasileiras passaram a ser elemento
constante e a direita buscou tingir as manifestações de um sentimen-
to anticorrupção.
Os protestos contra a precariedade do sistema de prestação de ser-
viços públicos, a princípio, ignoraram parlamentares, sindicatos e par-
tidos políticos. Ainda que de modo espontâneo e improvisado, deixou
evidente que se dirigia contra a forma de estruturação do governo re-
presentativo. O descontentamento não canalizado pela representação
política por parte daqueles que são “alijados do poder de decisão so-
bre seu destino” gerou um movimento de tomada deste destino com
seu próprio corpo, por meio da ação direta, da ocupação do espaço
público urbano e, por meio desta, da forçada ação política (HARVEY,
2013, p. 10).
Se o espaço público institucional, o espaço constitucionalmente
designado para a deliberação, é ocupado pelos interesses de uma elite
dominante em processo de perda de hegemonia, os movimentos con-
tra-hegemônicos, ainda que não formem uma massa coesa, ocupam
o espaço urbano e os prédios simbólicos com vistas a forçar a abertu-
ra de um novo espaço público não limitado à internet.
O tema que predominou nessas manifestações, de uma forma ge-
ral e em um primeiro momento, foi o apelo a novas formas de deli-
beração, representação e tomada de decisão na política. Gerado pela
perda de legitimidade de poder das elites dominantes, inevitável dian-
te do modo desigual de vida experimentado pela massa da população.
A desilusão em relação à democracia e as formas de expressão pú-
blica, na chamada agenda da “crise de representação” gera pautas e
leituras diversas. Tem-se operado nos últimos anos, sistematicamen-
te, a desqualificação dos políticos e da política e a insistência na pauta
da corrupção como a grande responsável pelos problemas do país. A
influência neoliberal ao alterar o modo como se faz política, por meio

225
da prioridade da governabilidade, influencia no distanciamento dos
partidos políticos em relação à população.
Na análise de Singer (2013, p. 36), “a direita trouxe para a segunda
fase das manifestações o problema da corrupção e a esquerda, o das
iníquas condições de vida urbana, produzindo um cruzamento ideo-
lógico” que se compôs com a mistura de classes demonstrada nos da-
dos de escolaridade e renda citados anteriormente.
O movimento que começou apartidário9 tornou-se antipartidário,
por meio da negação radical, inclusive violenta em alguns casos, da
manifestação dos partidos. Trazendo à tona uma dissonância entre
Estado e sociedade, a qual expressou não pactuar com o modo como
se faz política no país. Castells (2013) ao estudar essas expressões con-
temporâneas de mobilização social elabora uma síntese:

De início, eram uns poucos, aos quais se juntaram centenas, depois for-
maram-se redes de milhares, depois ganharam o apoio de milhões, com
suas vozes e sua busca interna de esperança, confusas como eram, ultra-
passando as ideologias e a publicidade para se conectar com as preocupa-
ções reais de pessoas reais na experiência humana real que fora reivindi-
cada. Começou nas redes sociais da internet, já que estas são espaços de
autonomia, muito além do controle de governos e de empresas – que, ao
longo da história, haviam monopolizado os canais de comunicação como
alicerces de seu poder. Compartilhando dores e esperanças no livre espaço
público da internet, conectando-se entre si e concebendo projetos a partir
de múltiplas fontes do ser, indivíduos formaram redes, a despeito de suas
opiniões pessoais ou filiações organizacionais (CASTELLS, 2013, p. 08).

Sua análise parte do pressuposto de que, se as relações de poder


são constitutivas da sociedade, aqueles que detém o poder constroem

9.  Dados de pesquisa realizada pelo Ibope mostram que o índice de não filiação partidária
dos manifestantes era de 96%, e 86% não sindicalizados (ESTANQUE, 2015).

226
as instituições segundo seus valores e interesses. De modo que o po-
der é exercido pela coerção e também pela construção de significados
na mente das pessoas, por meio de mecanismos de manipulação sim-
bólica, os quais constituem-se em uma fonte de poder mais decisiva e
estável. “[...] Poucos sistemas institucionais podem perdurar baseados
unicamente na coerção. Torturar corpos é menos eficaz que moldar
mentalidades. [...] É por isso que a luta fundamental pelo poder é a
batalha pela construção de significado na mente das pessoas” (CAS-
TELLS, 2013, p. 11).
Considerar que as relações de poder são constitutivas das institui-
ções da sociedade significa dizer que os aparelhos privados de hege-
monia10 elaboram consensos necessários para a condução do bloco
histórico. E que, uma vez que as sociedades são conflitivas e contra-
ditórias, onde há poder há também a possibilidade de enfrentamento,
da correlação de forças e de elaboração de novas hegemonias.
Destaca-se a espontaneidade11 de formação desses movimentos
como um elemento importante a ser analisado. Gramsci tratou a
respeito do espontaneismo e da direção consciente dos movimentos
populares e identificou a pulsão espontânea como um componen-
te que confere às massas populares um potencial criador de valores

10.  “Privados” porque localizados na sociedade civil, mas que desempenham funções es-
tatais no processo de dominação de classes. Em uma acepção gramsciana de hegemonia, a
sociedade civil é o lócus de elaboração do consenso necessário para a dominação. “Hegemo-
nia”, desse modo, é a categoria explicativa da direção intelectual e moral: “ [...] pressupõe
indubitavelmente que sejam levadas em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre
os quais a hegemonia será exercida; que se forme certo equilíbrio de compromisso, isto é,
que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa, mas também é indu-
bitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a
hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de
ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da
atividade econômica (GRAMSCI, 2016, p. 48).
11.  “‘Espontâneos’ no sentido de que não se devem a uma atividade educadora sistemática
por parte de um grupo dirigente já consciente, mas que se formaram através da experiên-
cia cotidiana iluminada pelo ‘senso comum’, ou seja, pela concepção tradicional popular do
mundo, aquilo que muito pedestremente se chama de ‘instinto’ e que, ele próprio, é somente
uma conquista histórica primitiva e elementar” (GRAMSCI, 2007, p. 197).

227
históricos e institucionais. Em suas palavras, “[...] tornam possível o
advento ao poder da classe subalterna mais avançada em razão do
enfraquecimento objetivo do Estado” (GRAMSCI, 2007, p. 198). O
autor ressalta que, negligenciar esses movimentos, renunciar dar-lhes
uma direção consciente e inseri-los na política pode ter consequências
graves. A respeito de prováveis consequências da negação (ou da falta
de capacidade) de direção consciente de movimentos “espontâneos”,
ilustra:

Ocorre quase sempre que um movimento ‘espontâneo’ das classes subal-


ternas seja acompanhado por um movimento reacionário da ala direita
da classe dominante, por motivos concomitantes: por exemplo, uma crise
econômica determina, por um lado, descontentamento nas classes subal-
ternas e movimentos espontâneos de massa, e, por outro, determina com-
plôs de grupos reacionários que exploram o enfraquecimento objetivo do
Governo para tentar golpes de Estado (GRAMSCI, 2007, p. 197).

Contudo, não existe na história a espontaneidade “pura”, mas há,


nesses movimentos, uma multiplicidade de elementos e de direção
consciente, embora nenhum deles seja predominante ou ultrapasse o
nível do “senso comum”, da “concepção de mundo tradicional deste
determinado estrato”. Por isso a crítica à “espontaneidade como mé-
todo político”, ao “espontaneísmo” e “voluntarismo”, e a defesa de
que as forças populares dispersas e localizadas sejam unificadas, com
vistas à elaboração de “hegemonia política e cultural” e construção
de uma nova forma de Estado dirigido democraticamente por elas
(GRAMSCI, 2007, p. 194 e 225).
Nesta perspectiva, a análise de Nogueira (2014, p. 24) é de que as
ruas brasileiras tiveram baixo poder de agenda, mas seu efeito posi-
tivo não pode ser menosprezado. “As vozes da revolta verbalizaram
demandas reais, mas também muita intolerância e incompreensão.
Disseram muitas coisas, mas também não forneceram soluções.

228
Despertaram consciências e tiraram a política da letargia, mas não
anunciaram uma revolução”.
Para o autor, tarefas políticas decisivas se colocam a esses proces-
sos mobilizatórios: estabelecimento de uma agenda de lutas, formas
de fazer com que essa agenda chegue ao Estado, organização dos
manifestantes, relacionamento com os poderes constitucionais, etc.
A questão está em saber se, no futuro, surgirão formas de encontro
entre as vozes das ruas e o poder institucionalizado. Os protestos
produzem manifestações horizontais, multicêntricas, com muitas
lideranças, sem organização sustentável, cheios de entusiasmo e
contundência crítica. Mas também trazem consigo o problema re-
ferente à duração no tempo e à capacidade de estruturação de uma
agenda.
Para Lima (2018), em análise desenvolvida a partir do pensamen-
to gramsciano, o espontaneísmo na organização e na unidade dos
trabalhadores revela entusiasmos passageiros de gestos isolados, de
rebeldia, da “cega vontade de potência”. A perspectiva gramsciana é
de que a revolta e o protesto precisam ser articulados a um projeto
radicalmente democrático de mundo e de sociedade,

[...] no qual a ‘paixão’ política e o ‘ímpeto’ de se contrapor sejam educa-


dos pela razão, tornando-se ‘vontade operosa’ que ultrapassa a simples
rebelião e o ‘subversivismo esporádico, elementar, inorgânico’, porque
toda vez que agimos para desconstruir algo (material e simbólico), preci-
samos empreender esforços iguais para reconstrução (também material
e simbólica) capazes de ampliar os espaços da participação coletiva que
se concretizem, política e economicamente, em uma consquista a favor
das classes populares (LIMA, 2018, p. 149).

A presença de um sentimento antipartidário e igualitarista, re-


sistente ao desigual jogo político parlamentar manifesta-se como
elemento que (após algum distanciamento temporal e a partir dos

229
desdobramentos conjunturais) não foi suficientemente elaborado, re-
fletido e assimilado pelas forças coletivas, partidárias ou não.
Na análise de Lima (2018, p. 165), a posterior derrocada das ações
coletivas e sua cooptação pela direita, nos desdobramentos de 2014 e
2015, ocorreu em virtude do fato de que os protestos ficaram presos
a uma fase político-organizativa de início de crítica ao senso comum,
mas sem conseguir projetar-se para além dela; ao que se soma a não
realização de ações inovadoras capazes de transformar o exercício do
poder, no sentido de saber dosar e empregar os aspectos da “força e
do consenso, da autoridade e da hegemonia”.
Da dispua pela narrativa do que ocorria marcado pelo esponta-
neísmo emergia a necessidade de produção de conteúdos contra-he-
gemônicos, tanto com relação à forma de organização e comunica-
ção, quanto com relação ao conteúdo das decisões tomadas (no que
a esquerda falhou em muitos aspectos, vide os desdobramentos que
culminam nas eleições de 2018). No processo de disputa pela “perso-
nalidade do amorfo”, foi desperdiçado um potencial progressista pas-
sível de germinar possibilidades de elaboração de uma nova cultura
participativa.
Do ponto de vista das classes subalternas, houve a perda de opor-
tunidades pela falta de capacidade para disputar determinações no
seio da sociedade civil e também na sociedade política. Falha que é,
evidentemente gradual, mas altamente corrosiva para as formas pro-
gressistas que haviam sido liberadas e não encontraram “trincheiras/
retaguardas na sociedade civil, nos aparelhos privados de hegemonia
capazes de potencializá-las e organizá-las em um almejado e necessá-
rio projeto ‘nacional-popular’” (LIMA, 2018, p. 166).
Outro elemento importante a se considerar na análise das expres-
sões da sociedade civil na contemporaneidade é a função da mídia
enquanto peça fundamental da engrenagem da globalização econô-
mica e cultural, palco e objeto privilegiado das disputas pelo poder
político.

230
A mídia em seu conjunto desempenha funções eminentemente
políticas nas sociedades contemporâneas. Para Ianni (1999), opera-se
um processo de substituição das instituições “clássicas” da política –
partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, correntes de opi-
nião pública, etc – por novas tecnologias da comunicação, informa-
ção e propaganda, portadoras de inegável potência política.
Instituições “clássicas” da política são instrumentalizadas, transfor-
madas, marginalizadas e, o expressivo fortalecimento da mídia – espe-
cialmente a partir da disseminação dos meios de comunicação eletrô-
nicos –, fez com que os veículos de comunicação passassem a ocupar
um lugar de extraordinária relevância nos processos de construção de
hegemonia. Nas palavras de Nogueira (2014, p. 183):

A mídia substitui os tradicionais agentes da hegemonia, os partidos po-


líticos, na mediação entre candidatos e eleitores, na definição da agenda
do debate público, na transmissão de informações políticas, na canaliza-
ção das demandas sociais e na crítica das políticas públicas. Tornou-se,
assim, o principal ‘aparelho privado de hegemonia’ (Gramsci), tendendo
a ocupar o centro mesmo do processo político.

Trata-se de uma poderosa técnica social de manipulação das cons-


ciências nas sociedades contemporâneas. E essa capacidade de agen-
damento público dos veículos de comunicação social não se expressa
somente no Brasil, mas é um dado universal. A função política da mí-
dia é identificada por Ianni (1999) com a função de intelectual coleti-
vo e orgânico dos blocos de poder predominantes em escala regional,
nacional e mundial, habitualmente articulados.
Um intelectual orgânico12 coletivo, já que sintetiza as formulações
de várias categorias de intelectuais: jornalistas e sociólogos, locutores

12.  Em Gramsci, a noção de intelectuais como “categoria orgânica” remete à noção de


que todo grupo social, “por nascer na base originária de uma função essencial no mundo
da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de

231
e atores, escritores e animadores, âncoras e debatedores, psicólogos e
publicitários; todos mobilizando tecnologias eletrônicas, informáticas
e cibernéticas como técnicas sociais de alcance local, nacional, regio-
nal e mundial. Organizadas em empresas, corporações ou conglome-
rados, o que faz com que manifestem tanto objetivos democráticos
quanto, e não raras vezes, objetivos autoritários.
Para Ianni (1999), o que singulariza a corporação da mídia é sua
capacidade de realizar a metamorfose da mercadoria em ideologia,
do mercado em democracia, do consumo em cidadania. Esta opera
decisivamente na dominação hegemônica, em escala global, ao com-
binar produção e reprodução cultural com produção e reprodução do
capital.
Seu funcionamento como força política explícita faz com que a
exposição midiática de governantes, parlamentares, intelectuais e ci-
dadãos seja cada vez mais estratégica e indispensável à democracia.
No contexto brasileiro, a pouca diversidade de opinião, o processo de
ideologização das notícias, a atuação de oligopólios que reduzem os
espaços de atuação de uma “mídia alternativa”, a própria imprensa
oficial (estatal) que tende a ser direcionada pelos oligopólios midiáti-
cos são elementos listados por Nogueira (2014) como sintomáticos do
caráter pouco democrático do atual sistema midiático, bem como da
sociedade brasileira.
Mas, o autor também ressalta que a potência de padronização da
mídia é limitada. Ainda que seja uma efetiva força normatizadora,
indutora e integradora, não conduz as massas exclusivamente, es-
pecialmente se considerada a comunicação em rede, cuja dinâmica
desorganiza os processos de controle sobre a informação, abrindo-a

intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência da sua função no campo eco-
nômico, de modo que o empresário capitalista cria junto consigo o economista, o cientista
da economia política” (VOZA, 2017, p. 426). As funções “organizativas” dos intelectuais se
desenvolvem de maneiras peculiares e historicamente determinadas nos processos de produ-
ção da hegemonia e não são imediatas, o que quer dizer que são mediadas pelo conjunto de
organizações privadas da sociedade (civil e política).

232
a todos. “Achar que todo mundo se deixa conduzir pelo que falam
os oligopólios midiáticos é desrespeitar os cidadãos e ignorar a vida,
que é bem mais complexa. Governos democráticos precisam saber in-
terpelar a mídia, dialogar com ela e enfrentá-la” (NOGUEIRA, 2014,
p. 201).
A formação de consensos exercida pela indústria cultural impreg-
na amplamente a política, a atividade e o imaginário de indivíduos e
coletividades, grupos, classes sociais e nações em todo o mundo. Em
diferentes escalas, conforme as peculiaridades institucionais e cultu-
rais da política em cada sociedade, influencia, subordina, transforma
ou mesmo apaga partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais,
correntes de opinião, legislativo, executivo e judiciário (IANNI, 1999).
No Brasil, o caráter oligopolizado da mídia acaba por limitar o
potencial de democratização da sociedade. Contudo, a diversificação
dos meios de comunicação, principalmente por meio da comunica-
ção em rede, agrega novos elementos analíticos ao papel da mídia na
contemporaneidade.
As “jornadas” de junho são exemplificadoras dessa constatação, ao
se organizarem nas redes e de forma não-hierarquizada, possibilita-
ram visualizar no Brasil um fenômeno que se multiplica pelo mundo,
possibilitado pela comunicação em rede – espaço interativo na inter-
net que se configura como uma das “trincheiras da sociedade civil”,
podendo servir às lutas organizadas, seja dos subalternos, seja dos do-
minantes.
As redes sociais foram incorporadas nesse processo como recursos
que permitiram expandir o raio de alcance das forças mobilizatórias,
eliminando, em um primeiro momento, agentes intermediários na
comunicação de experiências e conteúdos, e servindo à convocação e
mobilização por causas específicas. Para Singer (2013), além de servir
como senha de modernidade em contraposição a um Estado antiqua-
do, a internet seria a maneira de permitir a participação social que
combateria as práticas políticas correntes.

233
Constituíram-se em ferramenta essencial para alteração dos mode-
los de produção de conteúdos informativos, estimulando a produção
de informações de maneira cooperativa e comunitária, fortalecendo
mídias independentes e gerando fundamentais contrapontos de pers-
pectiva com relação a fatos relacionados aos protestos, evidenciados
parcial e tendenciosamente pela mídia hegemônica (LIMA, 2018).
Contudo, à medida que esse recurso passa a ser manipulado pelo
vasto uso de “bots” de coletivos neoconservadores os quais, somados
ao patrocínio da mídia tradicional/burguesa, operacionalizaram uma
instrumentalização que inflou os protestos antipetistas, alimentando
a virulência e as polarizações (LIMA, 2018).

Considerações Finais
É necessário pontuar que, se em 2013 as multidões foram às ruas em
uma perspectiva coletiva e apartidária, agudizada pela demanda por
oferta de serviços e colocando em questão a legitimidade das institui-
ções democráticas, essa caracterização não pode ser transposta para
as manifestações que se seguiram nos anos posteriores. Nos limites
desse texto, o que se procurou destacar foi a retomada do protesto
de rua como instrumento de pressão política, sendo incorporado ao
repertório de ação da sociedade civil de forma mais expressiva, assi-
milado ideologicamente tanto à direita, quanto à esquerda.
O resultado da redemocratização do país na década de 1980, ainda
que tenha instituído uma forma democrática de organização societá-
ria, é limitado em seu conteúdo político, consequência do processo
de correlações de forças estabelecido ao longo da década de 199013,
período em que a sociedade civil brasileira fragmenta-se e é fragiliza-
da em um contexto de hegemonia neoliberal.

13.  A década de 1990 foi avassaladora: neoliberalismo, reestruturação produtiva, financeiri-


zação, desregulamentação, privatização e desmonte. “Foi o que denominamos como sendo a
era da desertificação neoliberal no Brasil” (ANTUNES; BRAGA, 2014, p. 43).

234
De 1990 a 2010 vivencia-se um ciclo de vinte anos de expectativa
da proposta de democracia pactuada na Constituição Federal de 1988,
que tem sua efetividade limitada pelo projeto neoliberal. A retração
do Estado e o não cumprimento do projeto democrático constitucio-
nal coloca-se como base para a instalação de um cenário de crise de
hegemonia e de volta das manifestações das multidões nas ruas como
forma de expressão política da sociedade civil.
Passadas três décadas, a sociedade civil brasileira se debate entre
diferentes formas e conteúdos: as resistências populares em defesa de
uma democracia de significado substantivo e de um projeto societá-
rio popular; e a sociedade civil que assume a função designada pela
direção do projeto político hegemônico neoliberal, desempenhando
papel fundamental para sua manutenção.
O argumento de Luiz (2011, p. 82) é o de que “[...] é necessário
criar uma nova cultura sobre o entendimento de sociedade civil, a
qual represente maiores possibilidades de consolidação do proces-
so democrático a partir de suas potencialidades”. Diante do qual
se evidencia ainda um longo caminho a percorrer na luta pela am-
pliação da socialização da política no Brasil e pela consolidação de
segmentos subalternizados da sociedade civil como protagonistas
desse processo – e o destino deste depende dos desdobramentos
dessa luta.
Em síntese, a retomada de protestos massificados de rua e a gui-
nada conjuntural após junho de 2013 explicitam experiências, frus-
trações e dificuldades concretas dos subalternizados em uma socie-
dade em crise de legitimidade política e institucional. A análise é de
que ainda se faz necessária a elaboração de uma “direção consciente”,
capaz de perceber e potencializar os movimentos das classes subal-
ternas, a partir de sua capacidade de resistir e se opor à ‘cultura he-
gemônica’” – cultura apreendida em interface com a economia e a
política, como espaço de preparação e elevação da consciência crítica
das massas (LIMA, 2018, p. 150).

235
Apesar da “perda” na disputa pela narrativa e pela condução, a partir
da retomada dessa forma de manifestação no repertório de atuação da
sociedade civil, continuam ali elementos que podem remeter a movi-
mentos orgânicos, potencialmente capazes de catalisar novos impulsos
nas dinâmicas de resistências cotidianas das classes subalternas.
Reflexão que refuta análises mecanicistas que apenas enfatizam
negativamente o caráter espontâneo dos protestos desencadeados em
junho de 2013. Se não houveram ganhos radicias, as ações coletivas
de confronto político possibilitaram, ainda que minimamente, dar vi-
sibilidade a coletivos e frentes populares ativos nas periferias. Quer
dizer, mesmo em face dos desafios e contradições inerentes aos cole-
tivos populares, a capacidade de mobilização demonstrou que há um
interesse concreto, por vezes latente, da população em romper com a
passividade político-organizativa (LIMA, 2018).
De modo que se torna imperativo “contaminar-se com a impure-
sa das massas”, captar suas formas de expressão e comunicação para
elaborar mecanismos que superem o espontaneísmo e que sejam
capazes de, organicamente, disputar poder. Essa tarefa de formação
de “trincheiras e retaguardas” na sociedade civil, que organizem as
explosões momentâneas em projeto ético-político consistente e du-
radouro, permanece em aberto. Por isso a necessidade de reconhe-
cimento e fortalecimento de condições reais capazes de permitir aos
subalternos ultrapassar o momento oposicionista e avançar à etapa
construtiva, de um fazer realista embasado em condições ojetivas e
subjetivas presentes no cotidiano de resistências e enfrentamentos,
ainda que muitas vezes imperceptíveis (LIMA, 2018, p. 163).

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237
Atualização do Debate sobre Raça
e Classe sob a ótica do Ativismo do
Movimento Negro Universitário
Marcelo Barbosa Santos

“As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e


ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante.
É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa
a classe [...] A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções en-
tre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem
relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a
primazia de uma categoria sobre as outras.” (Angela Davis, Discurso feito em
Conferência realizada em São Luís/MA em 1997 In DAVIS, 2016).

Introdução.
Este artigo tem o objetivo de contribuir para o debate sobre raça e
classe, tendo como referência a luta do movimento negro universitá-
rio no contexto de implementação das ações afirmativas nas institui-
ções de ensino superior brasileiras.
Para essa tarefa, inicialmente, entendemos importante situar o
movimento social negro brasileiro diante do debate teórico sobre os
novos movimentos sociais. Em seguida, foi feito breve resgate históri-
co do movimento social negro brasileiro, demonstrando não somen-
te a sua longevidade como seu caráter atual no combate ao racismo

238
no Brasil. Adiante, ressaltamos também o papel do movimento negro
universitário na luta pelo direito de estudar nas comunidades univer-
sitárias brasileiras. Finalmente, desenvolvemos a partir das contribui-
ções teóricas de Florestan Fernandes; Carlos Hasenbalg e Nelson do
Valle Silva; e Clovis Moura, uma síntese a respeito da importância da
utilização da raça e a classe como categorias analíticas para os estudos
que têm como objeto as desigualdades no Brasil.
Com o entendimento de que o método de pesquisa “representa
mais do que uma descrição formal dos métodos e técnicas e indica a
leitura operacional que o pesquisador fez do quadro teórico” (LAVIL-
LE, 1999), este trabalho busca refletir a respeito das formulações re-
lacionadas ao campo de estudo dos movimentos sociais, em especial,
sobre a pertinência da utilização das categorias “universal/diferença”,
“raça”, “classe”, “novos” e “identitários” para análises direcionadas ao
movimento social negro brasileiro.
A análise foi calcada a partir levantamento bibliográfico feito no
campo das ciências sociais, com destaque aos estudos sobre os mo-
vimentos sociais e a questão racial brasileira. Para eficiência da re-
flexão, foram utilizados como fonte os registros do ativismo negro
universitário na esfera pública (HABERMAS, 2003): jornais, revistas,
páginas eletrônicas e redes sociais - documentos de domínio público
‘não-arquivado’ (CELLARD, 2010).

Movimento social negro no contexto dos movimentos sociais.


Os variados contextos em que os movimentos sociais se encontram no
mundo globalizado contemporâneo têm contribuído, de forma con-
tundente, para que eles canalizem as demandas e lutas sociais por mais
cidadania e ampliação de direitos. Esse processo que independe de um
Estado democrático de direito, tem permitido, a partir da sociedade ci-
vil organizada, o engajamento pela inclusão social e o reconhecimento
de diferenças socioculturais. Entretanto, essa transformação não tem se

239
dado sem conflito, no que diz respeito aos caminhos e rumos estratégi-
cos que os movimentos sociais devem seguir. No centro das controvér-
sias temos a questão da universalidade e da diferença.
O debate sobre a universalidade e a diferença tem provocado, in-
clusive, o desejo de reconceituação no campo da política dos direitos
humanos. O anseio é para que a universalidade deixe de ser tratada
de forma abstrata e ganhe novos sentidos a partir das interações dos
movimentos sociais. Em suma, a demanda é para que a universalida-
de passe a ser pensada a partir da diferença (SCHERER-WARREN,
2012). É dentro desse contexto que se insere a iniciativa sobre a classi-
ficação do movimento social negro brasileiro, ou seja, como ele deve
ser entendido dentro do campo teórico. Contudo, indagações sobre
seu perfil de “novo”, se é de caráter “identitário”, ou mesmo, como
se situa sobre a dicotomia universal/diferença, só ganham sentido se
forem consideradas a variedade e amplitude das demandas históricas
e lutas sociais por direitos no Brasil.
Diante desse quadro, se faz necessário, no primeiro momento, si-
tuar este estudo nas elaborações teóricas sobre os movimentos so-
ciais. Para essa tarefa, resgatamos duas propostas. A primeira é a ela-
borada por Gohn e Bringel:

Pensamos que os movimentos sociais continuam sendo atores centrais


(ainda que logicamente não exclusivos nem portadores da “melhor” ou
“única” mensagem transformadora) dos processos e dinâmicas de pro-
testos e lutas de mudanças e justiça social no mundo contemporâneo
(GOHN & BRINGEL, 2014, p.11).

A segunda proposta tem origem na reflexão de Scherer-Warren,


que caracteriza o movimento social como um,

grupo mais ou menos organizado, sob uma liderança determinada ou


não; possuindo programa, objetivos ou plano comum; baseando-se

240
numa mesma doutrina, princípios valorativos ou ideologia; visando um
fim específico ou uma mudança social (SHERER-WARREN, 1987, p. 13).

O entendimento sobre as reflexões acima é de complementarieda-


de, pois enfatizam o aspecto da mudança como uma das característi-
cas importantes na conceituação dos movimentos sociais.
Em seguida, registramos ser importante a conceituação do que
chamamos de movimento negro brasileiro. Para dar conta dessa ta-
refa, destacamos duas formulações. A primeira é aquela atribuída por
Joel Rufino dos Santos, compreendendo como,

[...] todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qual-


quer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefe-
sa física e cultural do negro], fundadas e promovidas por pretos e negros
[...]. Entidades religiosas [como terreiros de candomblé, por exemplo],
assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas [como “clubes de
negros”], artísticas [como os inúmeros grupos de dança, capoeira, tea-
tro, poesia], culturais [como os diversos “centros de pesquisa”] e políti-
cas [como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização po-
lítica, de protesto anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia
armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda essa
complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidia-
na, constitui movimento negro (SANTOS, 1999, p. 157).

Com perspectiva concentrada na atuação política, a segunda defi-


nição de movimento negro tem origem nas reflexões de Regina Pah-
im Pinto:

[...] é a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na so-


ciedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das
discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no
sistema educacional, político, social e cultural (PINTO, 2013, p. 94).

241
Como se observa, as duas definições sobre movimento negro são
atuais, sendo a primeira com uma visão mais geral e outra mais foca-
da no movimento político de mobilização racial (negro). Destacamos
que, as duas demonstram-se férteis para esse estudo.
Movimento social negro e os novos movimentos sociais.
A expressão “novos” no debate teórico sobre os movimentos sociais
suscita diversas polêmicas e indagações: uma delas, é a que inclui os mo-
vimentos negros nessa configuração, ou seja, seria adequado enquadrar
o movimento social negro brasileiro entre os novos movimentos sociais?
Sem a intenção dedicar o aprofundamento com a amplitude que esse
debate merece, entendemos fundamental nos posicionarmos diante
dele com base nas formulações teóricas sobre movimentos sociais.
As formulações sobre novos movimentos sociais indicam seus sur-
gimentos no contexto do final do século XX. A expressão “novos mo-
vimentos sociais” supõe diferenças em relação aos movimentos sociais
tradicionais, ou “velhos”. Entre as principais diferenças se destaca o fato
dos movimentos sociais tidos como tradicionais se constituírem a par-
tir da identidade de classe social, enfim, movimentos operário-sindicais,
organizados a partir do mundo do trabalho. Seriam aqueles movimen-
tos que entendem as desigualdades estruturadas no capitalismo so-
mente a partir da noção de classe social. No que diz respeito aos novos
movimentos sociais, a principal característica reside na tese da perda
da estabilidade das posições de classe, na medida em que os sujeitos
ganham mais autonomia, assumindo diferentes identidades, para além
daquelas decorrentes das relações de produção capitalistas.
De maneira sintética, poderíamos afirmar que nos movimentos so-
ciais tradicionais os principais protagonistas eram trabalhadores pobres
e assalariados. Diferentemente, os considerados novos movimentos so-
ciais, se constituem com bases mais ampliadas, incorporando tanto seto-
res médios quanto segmentos fora do mercado de trabalho formal.
Ainda sobre os novos movimentos sociais, conforme Montãno e
Duriguetto (2011), essas organizações poderiam ser entendidas a partir

242
em três perspectivas: “acionalista”, “esquerda pós-moderna”, “marxis-
tas e comunistas”. De acordo com os autores, a primeira tem na he-
terogeneidade um dado importante, visto que, incorpora identidades
diversas, assume um caráter não classista e não visam em suas lutas à
transformação social. A segunda perspectiva é tida como inspirada na
anterior, ou seja, nacionalista, e também nega as bases teóricas funda-
mentadas somente na divisão da sociedade de classes. Nesse sentido,
considera as organizações clássicas (partido e sindicato) superadas fren-
te às demandas colocadas pela sociedade e consequentemente, pelos
novos movimentos sociais. Enfim, circunscrevem a sua atuação, prin-
cipalmente, no universo da cultura e da reprodução social. A última e
terceira perspectiva se concretiza entre aqueles que mesmo vinculados,
fundamentalmente, nas questões de classe se esforçam em incorporar
as demandas dos novos movimentos sociais. Seria uma forma de ade-
quação das novas lutas sociais à luta política revolucionária.
Voltamos ao debate proposto neste artigo, ou seja, onde se enqua-
draria o movimento social negro brasileiro diante dessas configura-
ções dos novos movimentos sociais, destacadas acima? A resposta não
é simples, mas poderíamos indicar alguns caminhos para refletir so-
bre essa questão.
O primeiro pressuposto importante se situa na pluralidade dos
movimentos negros brasileiros, o que nos sinaliza que, dependen-
do do foco de atuação, eles podem ser mais próximos de qualquer
uma das três perspectivas, sem perder a sua essência de combater o
racismo.
Outro dado importante e que deve ser considerado para o “enqua-
dramento”, se articula com reconhecimento do racismo como estru-
turante da desigualdade brasileira, ou seja, qual o “status” de priorida-
de que a luta pela superação da desigualdade racial tem na estratégia
mudança social. Diante desse critério, o movimento social negro
pode, até mesmo, estar situado fora do enquadramento dos “novos”,
assumindo uma especificidade diferente das descritas anteriormente.

243
Nesse sentido, fica indicado que a visão teórica sobre as causas das as-
simetrias sociais brasileiras devem perpassar pelas leituras produzidas
pelo movimento social negro brasileiro.
No que diz respeito à temporalidade, caso considerarmos o período
do surgimento das primeiras entidades negras no Brasil, como veremos
adiante, constataremos que a expressão “novos” não é adequada. Estudos
de fundo histórico datam que desde os anos 30 do século XX a população
negra brasileira se organizava em instituições de combate ao racismo.
De forma sintética e apontando numa direção que pretende ultra-
passar as contraposições entre “novos” movimentos sociais – nuclea-
dos em torno de questões identitárias, tais como, sexo, etnia, raça,
faixa etária etc. – aos “velhos” movimentos dos trabalhadores, con-
cordamos com a formulação de Gohn e Bringel:

Trata-se, em suma, de reconhecer a diversidade de movimentos e ações


civis coletivas, suas articulações e os marcos interpretativos que têm lhes
atribuído sentidos, significado e os têm trazido à luz no campo da inves-
tigação sociológica (GOHN & BRINGEL, 2014, p.12).

Enfim, entendemos necessário superar as armadilhas proporcio-


nadas pela simples contraposição e acentuação das dicotomias dos
paradigmas interpretativos, movimentos ou ações coletivas. A fertili-
dade se configura na coexistência de todos nas arenas de disputas pela
ampliação de direitos. É nessa perspectiva que a reivindicação pela
construção da universalidade a partir da diferença ganha sentido.

Breve histórico do movimento social negro brasileiro.


A trajetória histórica da população negra no Brasil é repleta de pro-
cessos de resistências e lutas pela igualdade. Contudo, nem sempre
o protagonismo das organizações negras é contemplado na historio-
grafia. De uma forma geral, a atuação dos movimentos sociais negros

244
é invisibilizada, proporcionando que, falsas visões de “passividade” e
“acomodação” dos africanos e seus descendentes no Brasil prevale-
çam. Não é sem motivo que revoltas, protestos, quilombos e demais
enfrentamentos ainda são poucos conhecidos pela maioria da socie-
dade brasileira.
De acordo com Domingues, a trajetória histórica do movimento
social negro é dividida em quatro fases: Primeira fase vai da Primei-
ra República ao Estado Novo (1889-1937). Com atuações visando
reverter o quadro de marginalização no pós-abolição e alvorecer da
República, os libertos, ex-escravos e seus descendentes instituíram os
movimentos de mobilização racial negra em vários territórios do Bra-
sil, criando dezenas de grupos (grêmios, clubes ou associações). “De
cunho eminentemente assistencialista, recreativo e/ou cultural, as as-
sociações negras conseguiam agregar um número não desprezível de
“homens de cor”, como se dizia na época” (DOMINGUES, 2017, p.
103). Ainda nesse período destacamos o surgimento da imprensa ne-
gra que tinha como principal atividade tratar das questões da comu-
nidade negra da época. Finalizando essa fase, ressaltamos a fundação,
em 1931, em São Paulo, da Frente Negra Brasileira - FNB. Em 1936,
a FNB transformou-se em partido político e pretendia participar das
próximas eleições, a fim de capitalizar o voto da “população de cor”.
Com a instituição do Estado Novo pelo Presidente Getúlio Vargas,
em 1937, todas as organizações políticas foram proibidas, inclusive a
Frente Negra Brasileira.
A próxima fase tem início na segunda república e vai até o inicio
ditadura militar (1945-1964). Com fim da ditadura de Vargas a mobi-
lização da comunidade negra é retomada. Dessa época, um dos prin-
cipais agrupamentos foi a União dos Homens de Cor, fundada em
Porto Alegre, em 1943, que de sua dissidência deu na carioca União
Cultural dos Homens de Cor – UCHC e na União Catarinense dos
Homens de Cor - UCHC, de Blumenau, fundada em 1962. Outro
agrupamento importante foi o Teatro Experimental do Negro - TEN,

245
fundado no Rio de Janeiro, em 1944, e que tinha Abdias do Nascimen-
to como sua principal liderança.
A terceira fase começa no final da ditadura militar, atravessando
todo o processo de redemocratização, encerrando-se na virada de
século (1978-2000). Diante do período autoritário, os movimentos
negros tiveram grande retrocesso, o ativismo negro foi bastante re-
duzido, resumindo, principalmente, em ações de cunho cultural e
acadêmicas. O Instituto de Pesquisa das Culturas Negras – IPCN, em
1976, é fruto desse processo. Contudo, no final dos anos 70 a mobili-
zação é retomada com mais força. Em 1978 ocorreu a criação do Mo-
vimento Negro Unificado – MNU, uma organização política forte de
influência trotskista. Com a redemocratização destacamos a atuação
política de Abdias Nascimento alcançando espaço no Senado Federal
em 1997, com o Partido Democrático Trabalhista – PDT. Em 1995,
ano do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares tivemos a Mar-
cha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida,
realizada no mês de novembro, em Brasília. A Marcha é considera-
da importante, visto que, possibilitou que fossem apresentados do-
cumentos com as propostas de implementação de políticas de ações
afirmativas e de inclusão nos programas curriculares do ensino da
Cultura e história de África nas escolas.
A quarta e última fase se inicia com o novo século e segue até os
dias atuais. Em 2001, na África em Durban ocorreu a 3ª Conferên-
cia Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das
Nações Unidas - ONU, considerada um marco histórico para o movi-
mento social negro em relação à questão racial no campo da educa-
ção, em especial, no que diz respeito às política públicas de ações afir-
mativas. Como consequência, o crescimento da luta pela adoção das
cotas nas universidades no Brasil. Ainda no campo da educação, as
entidades negras protagonizaram também a luta vitoriosa pela apro-
vação da Lei 10.639/2003 que institui a obrigatoriedade do ensino da

246
História da África e cultura afro-brasileira para o ensino básico. Nes-
sa fase, também temos a ampliação do movimento hip hop em nível
nacional, que mesmo sem uma unidade estratégica no combate ao
racismo proporcionou organização e garantiu canal de voz para a ju-
ventude negra periférica das grandes cidades.
Encerramos esse breve resgate histórico, enfatizando que o movi-
mento social negro brasileiro forjou sua organização no pós-abolição
por intermédio das múltiplas modalidades de protesto e mobilização.
A expressão de suas lutas faz com que na atualidade, não se possa
mais ser negligenciado pela historiografia e, especialmente, pelas pes-
quisas especializadas em entender os movimentos sociais.

Movimento negro universitário e a políticas de cotas


Para tratar do movimento negro universitário ou movimento negro
acadêmico, entendemos imprescindível resgatar, brevemente, o pro-
cesso de adoção das ações afirmativas nas universidades públicas.
A iniciativa pioneira de adoção de ações afirmativas ocorreu na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ em 2002, quando
a universidade autorizou em seu vestibular que pretos, pardos e in-
dígenas autodeclarados solicitassem suas vagas por meio do sistema
cotas. No ano de 2004 a Universidade de Brasília - UnB inaugura a
adesão política de ações afirmativas em âmbito federal, adotando co-
tas raciais para ingresso em seus cursos de graduação. Após as inicia-
tivas da UERJ e UnB, várias outras universidades públicas aprovaram
algum tipo de ação afirmativa em seus respectivos Conselhos Univer-
sitários. Com a pressão realizada por militantes de vários segmentos
organizados da sociedade civil brasileira foi se constituindo um movi-
mento nacional em defesa das cotas. Foram as ações articuladas des-
se grande movimento, que de certa forma, proporcionaram o con-
vencimento de parte da opinião pública e impulsionaram a adesão
por algum tipo de ação afirmativa nas instituições de ensino superior.

247
Adiante, em 2012, o governo federal reagrupou as iniciativas das co-
tas em um único modelo com a aprovação da Lei nº 12.711.
Como afirmamos anteriormente, o movimento negro universitá-
rio surge no contexto das ações afirmativas. São grupos e coletivos
que se estabelecem nas instituições de ensino superior brasileiras no
cenário de tensão de implementação da política de cotas para aces-
so aos cursos, ou seja, surgiram em decorrência da auto-organização
dos/das estudantes negros/as de diversos cursos mobilizados em tor-
no de alguma demanda relativa à população negra na universidade.
De acordo com Miranda (2006) o movimento negro acadêmico
se constitui como o deslocamento de sujeitos e/ou coletivos fixados
pela subalternização e provocados pelo desejo sobrante, pela busca de
sua humanização. Deve ser examinado com base numa perspectiva
intercultural implicando, sobremaneira, a ressignificação do espaço
de produção de saberes.
A partir dos estudos sobre a implementação das cotas na Universi-
dade de Brasília, Caixeta conclui:

A conjuntura sociopolítica de grande tensão em relação à seguridade dos


direitos, da população negra, de acesso à educação superior por meio
das políticas de ações afirmativas, as tensões típicas da práxis acadêmi-
ca de embate com os/as docentes, a necessidade de um espaço de inte-
gração, interação e acolhimento, a busca por empoderamento e estudos
sobre racialidade e as dinâmicas do racismo e das relações raciais são al-
gumas das motivações que mobilizam e suscitam a criação dos grupos/
coletivos negros na Universidade de Brasília (CAIXETA, 2016, p. 42).

É nesse contexto que os grupos/coletivos vão se estruturando.


Eles aos poucos vão crescendo na medida em que ganham reconhe-
cimento entre os cotistas. Alguns conquistam espaço físico nas Insti-
tuições, chegando até mesmo, disputar prestígio com o movimento
estudantil tradicional.

248
Destacamos os Coletivos Enegre-ser e Afroatitude (UnB), Dene-
grir (UERJ), Guerreiro Ramos (UFRJ), Coletivo de Estudantes Negrxs
da UFF – CENUFF (UFF), Ceafro Maria Firmina (UFMA), Negração
(UFRGS), Coletivo Luiza Bairros (UFBA), diante de tantos outros que
na luta, estudantil, têm feito o enfrentamento ao racismo por dentro
das comunidades universitárias em todo Brasil.
Movimento negro universitário e os conflitos com administração
universitária.
Antes mesmo da adoção das cotas pelas universidades públicas,
o debate sobre possíveis conflitos de cunho raciais eram levantados
como hipóteses. Controvérsias a parte, o cenário de tensão estava
previsto, diante do histórico de confinamento racial das universidades
(CARVALHO, 2005-2006).
Um dos segmentos de conflitos que nos interessa, particularmen-
te, para esse artigo é aquele que se manifesta voltado para administra-
ção universitária. São conflitos que se constituem, principalmente, a
respeito das possíveis fraudes na implementação institucional da polí-
tica de cotas ou de sua modificação, sem o devido processo de debate
democrático com a comunidade universitária.
Alguns desses casos têm sido registrados na esfera pública e dessa
forma, melhor alcançados para análise. A seguir, destacaremos alguns
casos que mais nos chamaram a atenção.
Casos de fraudes no acesso à universidade estariam ocorrendo
na UFF, onde as denúncias são protagonizadas pelo Coletivo de
Estudantes Negrxs da UFF - CENUFF em parceria com Coletivo
Nacional de Estudantes Negrxs da Medicina. Para os militantes,
parte das cotas reservadas para negros está sendo ocupada por es-
tudantes brancos que se autodeclaram negros, com conivência da
instituição (CENUFF, 12/04/2016). O constrangimento ganhou
dimensões ao ponto da reitoria se pronunciar através de docu-
mento institucional, dando a sua versão dos fatos. (PROGRAD,
26/03/2017).

249
Outro caso semelhante tem sido denunciado na Universidade de
Pernambuco - UFPE, onde estudantes negros se queixam de que
brancos ingressaram na universidade usando vagas reservadas no sis-
tema de cotas (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 20/02/2018). Também
na Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, que, após denúncias
protagonizadas por estudantes e movimento social negro, implanta
sistema para avaliar fraudes no seu processo de ingresso por meio de
cotas raciais (G1 GLOBO, 23/02/2018).
Com destaque, trazemos o episódio sucedido na Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde depois várias denúncias
sobre sua implementação do sistema de cotas e verificação de suas
procedências, altera seu processo de identificação dos candidatos.
Sem detrimento das iniciativas contra as fraudes, tal mudança é in-
terpretada como retrocesso pelos estudantes cotistas e movimento
social negro que em contraposição promoveram ocupação da reitoria
da universidade (SUL 21, 08/02/2018).
Conforme pesquisado, em todos os conflitos selecionados acima, o
movimento negro universitário, através de seus grupos/coletivos estu-
dantis, estava presente demonstrando sua força para que as denúncias
fossem apuradas e não mais silenciadas, facilmente, como de costume,
dentro das estruturas universitárias. Como estratégia, determinadas or-
ganizações negras chegam, até mesmo, a construírem mecanismos de
denuncia em redes sociais para identificar aqueles estudantes que ingres-
saram “indevidamente” por meio de fraudes do sistema. Dessa forma,
entendem estar exigindo o cumprimento correto da política pública.

Reflexão sobre raça e classe.


Temos convicção de que as polêmicas sobre raça e classe no âmbi-
to dos movimentos sociais ainda estão longe de serem encerradas,
contudo, gostaríamos de contribuir para o debate, a partir das expe-
riências geradas pelos movimentos negros universitários. Para essa

250
tarefa, tramitaremos pelas contribuições críticas do sociólogo Flo-
restan Fernandes, passando pelos economistas Carlos Hasenbalg e
Nelson do Valle Silva, terminando com as contribuições do pensador
Clovis Moura.
Florestan Fernandes, nos anos 50 do século passado, foi um dos
primeiros pensadores brasileiros a formular uma crítica social a ideia
da existência de uma democracia racial no Brasil, assumindo uma
contraposição direta ao pensamento de Gilberto Freire. O sociólogo,
sem abrir mão de sua reflexão de fundo marxista, ou seja, analisando
a sociedade através da luta de classes, chega à conclusão que o racis-
mo ainda ocupa um espaço grande nas relações sociais no Brasil, e
que, portanto, as questões referentes à raça deveriam ser tratadas em
outro patamar e não desprezadas nos estudos sobre as assimetrias da
sociedade brasileira.
De forma sintética, poderíamos dizer que a interpretação dada
pelo sociólogo paulista sobre as causas das desigualdades raciais no
Brasil estariam ligadas ao fato do negro brasileiro no pós-abolição
não ter sido absorvido ao mundo do trabalho “moderno” – relações
competitivas e capitalistas, da mesma forma que os demais trabalha-
dores. De acordo com Florestan Fernandes:

[...] a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitan-


do sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar- se e de transfor-
mar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados
pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e capitalista (FER-
NANDES, 1978, p.20).

Assim, indica Florestan Fernandes que, a exclusão do negro do


cenário social deve ser compreendida como consequência direta do
processo de abolição da escravidão. De outra maneira, a inserção do
negro aconteceu de forma lenta com a ocupação dos setores mais su-
balternos na sociedade.

251
Fernandes, como marxista, mesmo enxergando a dimensão do ra-
cismo, privilegia a luta de classes em sua análise. Para o sociólogo, as
desigualdades raciais estariam condicionadas pela sobrevivência de res-
quícios da sociedade escravista na realidade socioeconômica nacional.
Dessa forma, Florestan Fernandes dá vazão à compreensão de que a
expansão capitalista possibilitaria a adequação das relações raciais à es-
trutura de classes da sociedade brasileira. Enfim, apresenta uma pers-
pectiva otimista quanto à inserção dos negros na estrutura de classes da
economia competitiva. Isto equivaleria a dizer que as relações raciais
pautadas pela subordinação do negro, paulatinamente, seriam supera-
das enquanto se ampliasse o espectro da economia capitalista.
Para dar continuidade a visão que situa o racismo e o capitalismo
como estruturantes da desigualdade brasileira, resgatamos as refle-
xões de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1988). Esses dois
pensadores se debruçando sobre dados estatísticos, fizeram descober-
tas importantes para os estudos sobre as relações raciais no Brasil, a
partir das ciências econômicas.
Hasenbalg e Valle, desconfiados da visão de parte da intelectualidade
brasileira defensora do “mito da democracia racial”, vão a fundo reve-
lar como a discriminação racial, junto das questões de classe, é um dos
grandes vetores da desigualdade brasileira. Focados na situação do negro
brasileiro, Hasenbalg e Valle vão a partir da PNAD de 1976, em especial
nos dados sobre educação, fluxo migratório, ocupação no mercado de
trabalho, se dedicar em estudar sobre as causas da desigualdade no Brasil.

Trata-se do intento de reduzir a questão racial a um problema de classe


ou estratificação social, no qual o preconceito contra o negro é esvazia-
do de implicações raciais e atribuído à posição sócio-econômica inferior
que ocupa. Esta abordagem não tem conseguido da conta da estrutura
de classes, à qual concede primazia, nem explicar por que a população
de cor se autoperpetua em posições sociais inferiores (HASENBALG e
VALLE, 1988, p. 116).

252
Os dois pensadores enfatizam a funcionalidade da discriminação
racial como instrumento para o alijamento competitivo de certos
grupos sociais no processo de distribuição de benefícios materiais
e simbólicos, resultando certamente em vantagens para o grupo
branco sobre os grupos não brancos na disputa por esses benefí-
cios. Ou seja, procura-se ressaltar como o preconceito e a discrimi-
nação são fatores intimamente ligados à competição por posição na
estrutura social e, portanto, necessariamente refletindo-se em assi-
metrias entre grupos raciais ao nível do próprio processo de mobi-
lidade social.
Detectou-se a existência de duas estruturas: a estrutura de desi-
gualdades de classe e a estrutura de desigualdades raciais, que em
muitas vezes se fundem, mesmo possuindo motivadores e dinâmicas
diferentes. Assim, não existe nenhuma incompatibilidade entre o ra-
cismo e industrialização. A raça, como atributo adscrito socialmente
elaborado, continua a operar como um dos critérios mais importan-
tes no recrutamento às posições da hierarquia social.
Finalizando, resgatamos o pensamento do sociólogo e historiador
piauiense Clovis Moura, que enfatiza que para entendermos as desi-
gualdades no Brasil se faz necessário sustentar a ponte entre o “pro-
blema do negro” e os estruturais da sociedade brasileira.

O problema do negro tem especificidades, particularidades e um nível de


problemática muito mais profundo do que o trabalhador branco. Mas,
por outro lado, está a ele ligado porque não se poderá resolver o proble-
ma do negro, a sua discriminação, o preconceito contra ele, finalmente
o racismo brasileiro, sem atentarmos que esse racismo não é epifenomê-
nico, mas tem causas econômicas, sociais, históricas e ideológicas que
alimentam o seu dinamismo atual (MOURA, 1988, p.12).

Continua Moura (1988) sobre os obstáculos encontrados pela po-


pulação negra,

253
Bloqueios estratégicos que começam na própria família, passam pela
educação primaria, a escola e grau médio até a universidade; passam
pela restrição no mercado de trabalho, na discriminação velada (ou ma-
nifesta) em certos espaços profissionais; passam também nos contatos
entre sexos opostos nas barreiras aos casamentos interetnicos e também
pelas restrições múltiplas durante todos os dias, meses e anos que repre-
sentam a vida de um negro (Ibid, 1988, p. 9).

Nesse sentido, fica evidente o caminho indicado por Moura para


que as análises sobre a sociedade brasileira sejam feitas, necessaria-
mente, considerando a questão da raça e classe no mesmo bojo, caso
contrário, serão sempre insuficientes.

Considerações finais.
Ao longo do artigo, sinalizamos importância de serem consideradas
como categorias analíticas tanto a raça como a classe quando forem
tratadas questões estruturais da sociedade brasileira.
A respeito dos movimentos sociais, concordamos com a tese de
Gohn e Bringel, que o debate sobre lutas prioritárias é um equívo-
co. Reiteremos que os movimentos sociais não são exclusivos “nem
portadores da melhor ou única mensagem transformadora” (Gohn
e Bringel, 2014, p.11). Enfim, insistimos na posição de que todos os
movimentos sociais são atores centrais e atuais dos processos e di-
nâmicas de protestos e luta por mudanças e justiça social no mundo
contemporâneo.
No mundo globalizado contemporâneo, confundir a luta pela
emancipação humana com a luta exclusiva ou prioritária contra o ca-
pitalismo é não vislumbrar a variedade e complexidade de opressões
que as sociedades humanas são capazes de produzir.
Com foco no movimento social negro brasileiro, tentamos de-
monstrar que seu o enquadramento entre os “novos” através da

254
proposta de luta “identitária” seria reduzir a experiência desses mo-
vimentos somente a uma de faces, ou seja, dessa forma, estaríamos
omitindo a sua perspectiva de mudança estrutural da sociedade bra-
sileira.
Indicamos que classificar o movimento social negro como identi-
tário seria uma forma de resumi-lo em um de seus aspectos, a chama-
da identidade. Essa perspectiva omite as características sociais, histó-
ricas, políticas e todas as outras que constituem o seu vinculo com a
realidade e a vida prática das pessoas.
Usar o termo identitário para os movimentos negros, diferen-
ciando-os dos movimentos sociais motivados pelo corte de classe e
hierarquizando-os por prioridade, dificulta a valoração das lutas por
moradia digna dos favelados, por terra dos quilombolas, contra o ge-
nocídio dos negros pela polícia, pelas ações afirmativas e todas aque-
las reivindicações que tem origem na maioria da população brasileira.
Finalmente, destacamos o papel importante do movimento negro
universitário no enfrentamento ao racismo estrutural brasileiro pelo
viés da educação. Entendemos que essa luta, transcende a questão
identitária nas universidades, na medida em que, busca garantir a
educação como direito, numa sociedade que utiliza também mecanis-
mos de viés meritocrático para excluir a população negra.

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257
Movimento Lésbico Brasileiro. A luta
pelo reconhecimento da identidade
Nathaliê Cristo Ribeiro dos Santos

Introdução
O processo de compreensão acerca do funcionamento dos movimen-
tos sociais é algo complexo e que demanda sempre profundas reflexões.
Isso porque os movimentos sociais não operam de maneira linear e
homogênea, ao contrário, estes “demonstram muita variedade e mu-
tabilidade” (GUNDER & FUENTES, 1989, p. 19) e “transitam, fluem
e acontecem”. (GOHN, 2014, p. 21) Essa variedade e mutabilidade
dos movimentos sociais se expressa no fato de que eles dividem-se em
diversas categorias, ou seja, os movimentos sociais podem ser ofensi-
vos, defensivos, progressivos, regressivos ou escapistas. (GUNDER &
FUENTES, 1989) Entretanto, o que todos os movimentos sociais apre-
sentam como traço comum é o fato de compartilharem “um sentido de
(in) justiça social no desenvolvimento de sua força social.” (idem, p. 25)
Este artigo pretende realizar uma análise teórica acerca dos fatores
que levaram à construção do movimento lésbico no Brasil, suas princi-
pais reivindicações, bandeiras e lutas. Além disso, a ideia é compreen-
der como o movimento lésbico se insere no bojo do que tem sido deno-
minado de “novos movimentos sociais” e no rol de movimentos sociais
que lutam pelo reconhecimento da identidade e da diferença.
Outra questão a ser trabalhada é o processo de construção e afir-
mação da identidade lésbica. Essa é uma questão crucial na constru-
ção do trabalho, pois parte-se do pressuposto de que “a identidade é

258
um importante elemento a ser considerado na análise de um movi-
mento social.” (ALMEIDA & HEILBORN, 2008, p. 230).
Para ilustrar e destacar com mais precisão as principais reivindi-
cações deste movimento, pretende-se realizar uma análise documen-
tal dos Anais do VI Seminário Nacional de Lésbicas, ocorrido no ano
de 2006, em Recife - PE. Nessa análise, a ideia é perceber o que o
movimento lésbico tem pleiteado em termos de direitos e políticas
públicas e qual a relação deste movimento com outros movimentos
que possuem demandas semelhantes, como o movimento feminista,
o movimento gay e o movimento negro.
A primeira parte deste artigo traz uma breve análise sobre a inser-
ção do movimento lésbico no que tem sido denominado pela literatu-
ra científica como “novos movimentos sociais” e uma análise teórica
sobre a questão das identidades. A segunda parte destaca o processo
de construção do movimento lésbico no cenário brasileiro, e por fim,
segue-se uma análise das falas contidas no Relatório do VI Seminário
Nacional de Lésbicas, realizado no ano de 2006, em Recife.

Os novos movimentos sociais e a luta pelo reconhecimento


da identidade e da diferença
As teorias acerca dos movimentos sociais foram se multiplicando des-
de a institucionalização acadêmica sobre o tema, partindo desde as
abordagens clássicas até os estudos e pesquisas sobre os “novos movi-
mentos sociais”. (GOHN & BRINGEL, 2014) Antes de abordar espe-
cificamente o movimento lésbico cabe destacar alguns aspectos refe-
rentes a estes “novos movimentos sociais”.
Gunder & Fuentes (1989, p. 20) problematizam a ideia de que
existem movimentos totalmente novos e argumentam que estes na
verdade constituem-se em novas formas de movimentos sociais que
existiram através dos tempos. Ou seja, esses movimentos apenas apre-
sentariam algumas características novas. Apesar de concordar com o

259
fato de que alguns movimentos sociais, como o movimento feminis-
ta, não possam ser denominados de novos, acredito que o movimento
lésbico especificamente possa carregar essa designação. Isso porque
se trata de um movimento em prol de uma identidade específica cuja
visibilidade política começou a se desenvolver em um período relati-
vamente recente, a década de 1970.
Como destaca Falquet (2004, p. 23):

Tanto no contexto internacional quanto no nacional, o movimento lés-


bico se afirma como um dos “novos” movimentos sociais – ainda que
tenha sido menos estudado que outros grupos ativistas, como o negro, o
estudantil e o de mulheres – que, em certa medida, superam as organiza-
ções de feição classista que dominavam até então.

Ou seja, o movimento lésbico pode ser inserido no rol dos “novos


movimentos sociais”, na medida em que difere dos movimentos mais
tradicionais de cunho eminentemente classista. Além de ser conside-
rado um movimento social mais contemporâneo, a base ideológica
deste movimento se relaciona com um contexto mais amplo de luta
pelo reconhecimento de identidades específicas, como é o caso da
identidade lésbica. Como explica Taylor (1993, p. 43):

“Um certo número de correntes da política contemporânea gira em


torno da necessidade e, às vezes, exigência de reconhecimento. Pode-se
argumentar que tal necessidade é uma das forças que impelem os movi-
mentos nacionalistas na política. E esta exigência aparece, sob várias for-
mas, no primeiro plano da política atual, formulada em nome de grupos
minoritários ou ‘subalternos’, em algumas formas de feminismo e no
que hoje se denomina de política do ‘multiculturalismo’”.

Esse processo está relacionado às demandas trazidas pelo desen-


volvimento do Estado Democrático de Direito que tem como uma

260
de suas premissas uma maior liberdade de expressão e de voz para a
sociedade civil. Diante disso, ocorre um processo de inclusão da di-
versidade sócio-cultural na área dos direitos humanos, sendo as rei-
vindicações por direitos culturais uma das expressões dessa inclusão.
(SCHERER-WARREN; 2012)
GOHN (2014) destaca que na primeira década do novo século
alguns pesquisadores dos movimentos sociais passaram a recorrer
à teoria crítica, por exemplo, às teorias sobre o reconhecimento de
Axel Honnet e às teorias de autoras feministas como Nancy Fraser.
Esses autores abordam o processo de reconhecimento das identida-
des e das diferenças e analisam as reivindicações de determinados
grupos sociais por direitos e justiça social através principalmente dos
movimentos sociais, como é o caso dos movimentos de mulheres e
do movimento LGBT. Nas últimas décadas é possível notar uma série
de movimentos sociais compostos por sujeitos diversos, exigindo do
Estado e da sociedade um reconhecimento de que as desigualdades
não são naturais, mas frutos de uma sociedade hierárquica e baseada
em relações de poder. Como uma forma de ampliar seus direitos, in-
divíduos que possuem características e interesses em comum tem se
organizado politicamente e colocado em pauta as demandas relativas
às especificidades de suas identidades.

As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias possibilida-


des de viver prazeres e desejos corporais são sempre sugeridas, anun-
ciadas, promovidas socialmente (e hoje possivelmente de formas mais
explícitas do que antes). Elas são também, renovadamente, reguladas,
condenadas ou negadas. Na verdade, desde os anos sessenta, o debate
sobre as identidades e as práticas sexuais e de gênero vem se tornando
cada vez mais acalorado, especialmente provocado pelo movimento fe-
minista, pelos movimentos de gays e de lésbicas e sustentado, também,
por todos aqueles e aquelas que se sentem ameaçados por essas manifes-
tações. Novas identidades sociais tornaram-se visíveis, provocando, em

261
seu processo de afirmação e diferenciação, novas divisões sociais e o nas-
cimento do que passou a ser conhecido como “política de identidades”
(LOURO, 2000, p.4).

É nesse contexto que avançam os movimentos feministas, o mo-


vimento negro, o movimento LGBT, dentre inúmeros outros movi-
mentos que possuem como bandeira uma determinada identidade
em comum. Essa discussão coloca em pauta o conceito de políticas de
identidade. Há um questionamento no senso comum se seria realmen-
te necessária a construção de leis e políticas específicas para cada um
desses grupos, se já existem as políticas universais. Uma das respostas
para essa questão reside no fato de que a sociedade é construída com
base em diversas hierarquias, sociais, sexuais, de gênero, profissionais.
Nesse sentido, Fraser (2007) destaca que:

É injusto que, a alguns indivíduos e grupos, seja negada a condição de


parceiros integrais na interação social, simplesmente em virtude de pa-
drões institucionalizados de valoração cultural, de cujas construções eles
não participaram em condições de igualdade, e os quais depreciam as
suas características distintivas ou as características distintivas que lhes
são atribuídas. Deve-se dizer, então, que o não reconhecimento é errado
porque constitui uma forma de subordinação institucionalizada – e, por-
tanto, uma séria violação da justiça. (FRASER, 2007; p. 112)

A sociedade ocidental historicamente tem naturalizado a violência


de gênero, a homofobia, o racismo, a lesbofobia. Ou seja, atitudes
discriminatórias são praticadas todos os dias e dirigidas às chamadas
“minorias”. No entanto, tem sido grande o desafio de desconstruir
essas violências que são tidas como naturais. E é nesse sentido que
as reivindicações por políticas de identidade são legítimas e buscam a
ampliação da cidadania e dos direitos humanos para todos os sujeitos
sociais, independente de raça, cor, sexo e orientação sexual.

262
Castells (1999) chama atenção para o fato de que a construção das
identidades é sempre marcada por um contexto de relações de poder,
e disserta acerca de diversos tipos de identidade coletiva na contem-
poraneidade. Ele cita o feminismo, por exemplo, como uma forma-
ção de identidade de projeto, que ocorre quando os atores sociais,
utilizando-se de qualquer material cultural ao seu alcance, constroem
uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e,
ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social. (CAS-
TELLS, 1999; p. 22). O feminismo e o movimento lésbico podem ser
considerados, ainda, a afirmação de uma “identidade de resistência”.
Esta seria

Criada por atores que encontram-se em posições/condições desvalori-


zadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo assim,
trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios dife-
rentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opos-
tos a esses últimos. (CASTELLS, 1999; p.24)

Ou seja, a construção de identidades na contemporaneidade pode


ser entendida como estratégias políticas de resistência e sobrevivência.
A questão da importância da identidade no processo de compreensão
do funcionamento interno dos movimentos sociais vem sendo objeto
de estudo no Brasil e no mundo. (FACHINNI, 1990; MCRAE, 1985;
PONTES, 1986) Tanto o movimento LGBT quanto o movimento fe-
minista possuem em seu interior sujeitos pertencentes à múltiplas ca-
tegorias identitárias, e por isso, surgem movimentos específicos como
o movimento lésbico, o movimento transexual, o feminismo negro,
o feminismo lésbico, dentre outros. Ou seja, ainda que os integrantes
do movimento LGBT possuam bandeiras em comum, muitas vezes
há uma fragmentação das reivindicações, na medida em que “essa
construção da igualdade não se faz senão à custa de algum nível de
supressão das diferenças entre os “iguais”. (FACHINNI, 1990, p. 28)

263
É nesse sentido, que surge então um movimento específico forjado
no interior do movimento LGBT, no qual falaremos de forma mais
específica no próximo tópico: o movimento lésbico.

A construção do movimento lésbico brasileiro


Nos anos 1970 os estudos acerca da questão da lesbianidade ganham
força no cenário internacional quando diversos autores passam a rea-
lizar estudos acerca do lesbianismo político (ALMEIDA, 2005). Já no
contexto brasileiro o movimento lésbico começa a ganhar visibilida-
de com a criação de ONG’s lésbicas e também através de entidades
organizadas como a Associação Brasileira de Lésbicas (ABL) e a Liga
Brasileira de Lésbicas (LBL). A afirmação da identidade lésbica ocorre
então “no interior de organizações mistas do movimento homosse-
xual brasileiro (formadas por gays e travestis, principalmente), de or-
ganizações feministas e do movimento negro.” (ALMEIDA & HEIL-
BORN, 2008, p. 226)
O processo de construção do movimento lésbico tem como um
dos objetivos a busca por proteção social e pela garanta de direitos
para uma população socialmente discriminada. Nesse processo,
“criam-se vínculos e as ações são fruto de processos de reflexividade,
os sujeitos participantes constroem sentidos e significados para suas
ações a partir do próprio agir coletivo” (GOHN, 2014, p. 26)
Pode-se dizer que um passo importante na trajetória de busca por
reconhecimento e visibilidade para o movimento lésbico se deu com
a criação do Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que teve sua
primeira edição no ano de 1996. O SENALE se tornou um marco
na medida em que se trata de um evento de grande relevância no
cenário político com uma temática especificamente ligada à questão
lésbica. É entendendo a importância dos SENALEs na trajetória do
movimento lésbico brasileiro que este artigo traz uma breve análise
documental do Relatório do VI Seminário Nacional de Lésbicas, que

264
ocorreu na cidade do Recife (PE) em 2006 e marcou os 10 anos de
realização deste evento.

Uma análise do Relatório do VI Seminário Nacional de Lésbi-


cas (SENALE)
O Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE) teve sua primeira edi-
ção no ano de 1996, e surgiu a partir da necessidade de se construir
um espaço onde pudessem ser debatidas questões específicas das mu-
lheres lésbicas, e servisse como um momento de fortalecimento das
lésbicas enquanto sujeitos políticos. O I SENALE ocorreu no Rio de
Janeiro, e foi extremamente importante para o movimento na medida
em que o dia 29 de agosto foi oficializado como o dia nacional da vi-
sibilidade lésbica. Posteriormente ocorreram o II SENALE (1997), III
SENALE (1998), IV SENALE (2001), V SENALE (2003), VI SENALE
(2006). Após o VI SENALE ocorreram ainda o VII SENALE (2010)
e o VII SENALE (2014). Apesar de terem ocorrido Seminários mais
recentes, optei por analisar a 6º edição por marcar os 10 anos de reali-
zação do evento.
O VI SENALE ocorre no ano de 2006, período de Governo do
Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Neste período, já havia sido
criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que promo-
veu esforços para incluir os direitos das mulheres como uma pauta
bastante presente na agenda política do governo e na construção de
políticas sociais. É interessante notar, então, que a Secretaria Especial
de políticas para as mulheres, aparece como uma participante efetiva
na construção do Relatório do VI SENALE, como fica destacado no
trecho a seguir:

Grupo Curumim agradece à Coordenação Política Executiva do VI SE-


NALE pela confiança e respeito com que foi construída a relação de tra-
balho e pela oportunidade de maior aproximação com o movimento de

265
mulheres lésbicas do Brasil e à equipe da Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres, da Presidência da República, por ter acreditado na pro-
posta apresentada. (Relatório do VI SENALE; 2006, p.6, grifos meus)

O fato da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da


Presidência da República (SEPM-PR) ter apoiado a construção do
VI SENALE e do Relatório indica uma preocupação e um engaja-
mento do Governo vigente na época com a questão das mulheres
e com a questão da Diversidade Sexual. Durante o Governo do Ex-
-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram criadas algumas iniciati-
vas que demonstram esse engajamento na garantia de direitos para
a população LGBT, por exemplo, a criação do “Brasil Sem Homo-
fobia (BSH) – Programa de Combate à Violência e à Discriminação
contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual”, em 2004;
a realização da I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bisse-
xuais, Travestis e Transexuais, em 2008; o lançamento do Plano Na-
cional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – PNDCDH-LGBT, 2009;
a criação da Coordenadoria Nacional de Promoção dos Direitos de
LGBT, no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos, 2010; dentre
outros. (MELLO, BRITO & MAROJA, 2012, p. 409). Isso demonstra
como o movimento lésbico buscou uma estratégia de aproximação
com o poder Executivo para alcançar reconhecimento e visibilida-
de. Esta aproximação representa uma das estratégias de Advocacy1
empregadas pelo movimento lésbico brasileiro.
No Relatório também encontramos trechos que evidenciam o por-
quê de se construir um movimento eminentemente lésbico, e o por-
quê da separação em certa medida do movimento gay:

1.  De acordo com Scherer-Warren (2011, p.69) o termo Advocacy tem sido utilizado nos es-
tudos sobre movimentos sociais para se referir “às ações de defesa e argumentação em favor
de uma causa social ou de uma demanda para a efetivação ou criação de direitos humanos”.

266
A organização lésbica marca os idos dos anos 1979, quando lésbicas,
predominantemente feministas, começam a marcar presença e visibili-
dade no primeiro grupo de afirmação homossexual do país, o Somos,
em São Paulo. A organização lésbica no Somos se desenvolve através
da formação de um subgrupo que agregou várias denominações: fac-
ção lésbica-feminista, subgrupo lésbico-feminista, ação lésbica-femi-
nista. Em maio de 1980, em resposta ao machismo e ao patriarcado
presentes no movimento gay, surge o primeiro grupo só de lésbicas,
denominado Grupo Lésbico-Feminista, ou simplesmente LF. (Relató-
rio do VI SENALE; 2006, p.9)

Ao analisarmos esse trecho do documento, é possível perceber um


dos motivos para a criação de um movimento social formado exclusi-
vamente para as mulheres lésbicas. Apesar de o movimento homos-
sexual surgir na mesma época, com reivindicações que abrangiam
tanto as demandas gays quanto às lésbicas, foi necessário criar um
movimento formado apenas por mulheres.
Como destaca SWAIN (1999, p. 109):

De uma forma muito geral e com a pertinência que podem conter as


generalizações, o lesbianismo aparece no movimento feminista como
a radicalização extrema na recusa de um mundo patriarcal, propondo
o separatismo na vida social, a criação de espaços de onde os valores
masculinos seriam extirpados, uma utopia moderna onde a violência e o
poder não teriam lugar de existência ou expansão.

Cabe destacar o objetivo geral do VI SENALE, que pretendeu:

Ampliar, fortalecer e visibilizar o movimento de lésbicas e sua organi-


zação enquanto sujeito político (ativistas inseridas em grupos, fóruns,
redes, articulação dentre outras formas de organização coletiva, bem

267
como lésbicas autônomas/independentes) para o enfrentamento da les-
bofobia social e institucional. (Relatório do VI SENALE; 2006, p. 42)

Analisando o objetivo geral do evento fica claro que um dos fun-


damentos do movimento é a afirmação da identidade lésbica e o de-
senvolvimento desta categoria enquanto sujeito político, além disso,
o enfrentamento da violência lesbofóbica também aparece como um
dos pilares do movimento.
Com relação aos temas que foram trabalhados de forma mais
aprofundada no VI SENALE é importante destacar a atenção dada
ao tema da saúde das mulheres lésbicas, como podemos perceber no
trecho a seguir:

O SENALE surgiu da necessidade de se ter um espaço onde as especifi-


cidades das lésbicas pudessem ser discutidas de uma forma mais ampla
e democrática, já que nos encontros mistos esse espaço era e continua
sendo insuficiente. O evento contou com a participação de, aproxima-
damente, 100 lésbicas e teve como tema central “Saúde, Visibilidade e
Organização”. (Relatório do VI SENALE; 2006, p.10)

Existem uma série de questões que vão fazer com que as mu-
lheres lésbicas possuam uma cidadania fragilizada devido à dis-
criminação, na saúde essa questão não é diferente. A homofobia
invade todos os espaços e instituições, demandando uma atenção
mais específica no que se refere a saúde de grupos historicamen-
te discriminados. A epidemia do HIV/AIDS tem atingido inúme-
ras mulheres, independente da cor, raça ou orientação sexual. A
ausência de informações claras sobre a prevenção da doença entre
as lésbicas coloca esse grupo em um risco ainda maior do que as
demais mulheres. Moraes e Esteves (2011) realizaram um estudo
acerca desse desencontro entre as lésbicas e a prevenção quantos
aos riscos de DST e HIV/AIDS. A pesquisa, realizada em espaços

268
de sociabilidade LGBT na cidade do Rio de Janeiro com mulhe-
res lésbicas, revela que “[...] 90% não utilizou nenhum tipo de pro-
teção durante essas relações, 18% compartilhou acessórios com
a parceira sem camisinha e 16% com a mesma camisinha” (MO-
RAES; ESTEVES, 2011, p.1). Isso demonstra a desinformação de
muitas lésbicas sobre proteção e prevenção de DST e HIV/AIDS e
afirma a necessidade de atenção especial à saúde dessa população.
As autoras destacam ainda que

Quando se fala em homossexuais, DST e Aids, novamente as lésbicas


são «esquecidas»: a grande maioria dos artigos, campanhas e estudos
no Brasil estão relacionados ao universo homossexual masculino, sendo
raríssimo encontrar algo a respeito de lésbicas e bissexuais (MORAES;
ESTEVES, 2011, p. 2).

Outro tema que aparece com bastante centralidade no evento foi a


questão da violência. No tópico do Relatório que apresenta as propo-
sições gerais para Políticas Públicas o tema da violência aparece com
destaque, como no trecho a seguir:

Produzir material específico sobre violência contra mulheres lésbicas


dirigido às áreas: de saúde, educação, direitos humanos, segurança pú-
blica, igualdade racial e ação social com a participação do movimento
de mulheres lésbicas. (Relatório do VI SENALE; 2006, p.18, grifos meus)
 
Incluir em todas as políticas de enfrentamento à violência contra a mu-
lher, à atenção à saúde e à educação um recorte de atenção às mulheres
lésbicas, com a participação do movimento de mulheres lésbicas. (Rela-
tório do VI SENALE; 2006, p. 18, grifos meus)

No caso das lésbicas vítimas de violência, as intersecções entre


gênero e orientação sexual podem gerar uma intensificação dessa

269
violência, pelo fato da orientação sexual lésbica não ser respeitada e
aceita como legítima por diversas instituições, pelo próprio Estado
e pela sociedade. Nesse sentido, “acrescem fatores especificamente
associados à condição lésbica num contexto heteronormativo e les-
bofóbico dominante.” (SANTOS, 2012, p.6). Além disso, as mulheres
lésbicas muitas vezes acabam enfrentando outro tipo de violência: a
institucional. Nesse sentido, é de extrema importância uma das pro-
posições trazidas no Relatório do VI SENALE:

Propor a criação e efetivação, onde já exista, de leis orgânicas estaduais e


municipais, através da Assembléia Legislativa e Câmara de Vereadores,
que garantam medidas administrativas e sanções aos (às) profissionais
de serviços públicos que cometam qualquer forma de violência contra
as mulheres lésbicas. (Relatório do VI SENALE; 2006, p.20, grifos meus)

Outro ponto importante a ser destacado, é como a relação entre


o movimento lésbico e outros movimentos, como o movimento gay,
aparece no relatório:

Pela primeira vez, também em mesa central, o VI SENALE pautou a


relação movimento de mulheres lésbicas com outros sujeitos políticos,
como feministas, transexuais, prostitutas, pessoas com deficiência e
gays. (Relatório do VI SENALE; 2006, P.44)

Historicamente, o movimento lésbico possui certo distanciamento


do movimento gay. Almeida (2005, p. 85) explica essa questão desta-
cando que:

A grande questão de dissenso das lésbicas em relação aos gays é a de-


núncia de que a homossexualidade não suprime dentro do movimento
homossexual, a assimetria de poder entre homens e mulheres caracte-
rística da sociedade em geral, da mesma forma que a identidade racial

270
não suprime esta assimetria (entre homens e mulheres) dentro do mo-
vimento negro.

Portanto, o fato de pela primeira vez no SENALE o movimento


de mulheres lésbicas colocar em pauta sua relação com o movimen-
to gay trata-se de um avanço histórico, e uma nova configuração na
relação entre esses dois movimentos. Na relação entre o movimento
lésbico e o movimento gay há ainda lutas em comum, na medida em
que em sua base compartilham valores, concepções e demandas se-
melhantes. No entanto, o que explica a busca por independência por
parte do movimento lésbico é que existem reivindicações cada vez
mais específicas à realidade das mulheres lésbicas.
A questão do racismo também apareceu com destaque, o que re-
presenta um avanço histórico, na medida em que sempre houve certo
distanciamento entre o movimento lésbico e o movimento negro. Ve-
jamos o trecho a seguir:

“Racismo, Discriminação Racial e Lesbianidade”, tema que deixou de


ocupar apenas o lugar de oficinas/grupos de trabalho e foi incorporado,
pela primeira vez, em mesa central, a partir da demanda do movimento de
lésbicas negras. E ainda as mesas: “Mídia e Visibilidade Lésbica” e “Saúde
para Lésbicas e Controle Social”. (Relatório do VI SENALE; 2006, p.46)

A interlocução entre o movimento de lésbicas e o movimento ne-


gro é importante na medida em que as mulheres lésbicas negras não
enfrentam somente a lesbofobia, mas também sofrem com a discrimi-
nação racial. Nesse sentido, “Identificar-se como uma mulher negra e
lésbica é saber que sua identidade significa o enfrentamento de uma
opressão que envolve ao menos dois estigmas: a negritude e a lesbia-
nidade.” (MARCELINO, 2017, p.115)
Em suma, ao analisar as falas contidas no relatório do VI SENA-
LE é possível notar que as principais reivindicações do movimento

271
lésbico estão relacionadas à garantia de uma atenção integral à saú-
de das mulheres lésbicas e a proteção contra a violência lesbofóbi-
ca. Os SENALEs representam um marco na história do movimento
lésbico, pois trata-se de um evento onde questões específicas que
atingem a população lésbica são colocadas em debate e são traçadas
estratégias para enfrentamento dessas questões. Trata-se também
de um evento fértil para a discussão acerca de políticas públicas vol-
tadas para as lésbicas. Também é válido destacar que de acordo com
o que consta no relatório, o movimento lésbico tem buscado um
processo de coalisão com outros movimentos, indicando um esfor-
ço da categoria contra a fragmentação total das reivindicações por
direitos.

Considerações finais
Compreender a dinâmica interna de um movimento social é um
desafio complexo. Dentro de um mesmo movimento social convi-
vem categorias sociais distintas e grupos identitários com demandas
próprias, como é o caso do movimento lésbico em relação ao mo-
vimento LGBT. Isso nos traz a constatação de que nenhum movi-
mento social é homogêneo. Ao contrário, os movimentos sociais
refletem a sociedade em que estão inseridos, que por sua vez é cada
vez mais plural.
A partir deste artigo a intenção é trazer à tona o fato de que ape-
sar de o movimento lésbico e o movimento gay possuírem bandei-
ras comuns, a autonomização do primeiro com relação ao segundo
se faz necessária, principalmente porque existem demandas que re-
querem uma atenção específica como é o caso da saúde das mulhe-
res lésbicas.
Em suma, mais do que contrapor novos e velhos movimento so-
ciais é necessário compreender que os movimentos sociais estão em
constante mudança, são dinâmicos e não estáticos.

272
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274
A atuação e a Mobilização de
Movimentos Sociais para a
Implementação das Políticas
Públicas de Comunicação no Brasil
Anderson Antonio Andreata

Introdução
A Pesquisa Brasileira de Mídia 2016, empreendida pela Secretaria de
Comunicação Social da Presidência da República, traz informações
sobre hábitos de consumo de mídia pela população brasileira e mos-
tra que 89% dos entrevistados afirmam ver TV e consideram esse o
meio de comunicação mais utilizado, como primeira e segunda men-
ções entre as possibilidades apresentadas. Considerando apenas a pri-
meira menção, 63% afirmam ser a TV o meio de comunicação prefe-
rido, seguidos pela internet (26%), o rádio (7%), entre outros.
Dados sobre esse veículo de maior consumo mostram informa-
ções sobre frequência e intensidade de uso, além dos canais, pro-
gramas e telejornais mais citados e sobre a posse e acesso a equipa-
mentos relacionados, se faz uso de TV aberta ou por assinatura, por
exemplo. Essas informações ajudam a compreender como o sistema
de radiodifusão faz parte e influencia o cotidiano das pessoas, que são
impactadas, sem perceber, pela hegemonia dos meios de comunica-
ção preponderantemente comerciais.
Martín-Barbero (2004, p. 300-301) compara os meios de comuni-
cação de massa, em especial a televisão, à antiga ágora, considerada

275
cenário da coisa pública na Grécia Antiga. Para o autor, “à medida em
que se reduz a assistência aos eventos culturais, a cultura a domicílio
cresce e se multiplica desde a televisão hertziana (vista por mais de
90%, em média do público da América Latina)”, o que nos faz com-
preender que toda essa influência é parte de uma cultura construída e
bem consolidada em grande parte nos países latino-americanos.
No Brasil, a lei que rege o tema é o Código Brasileiro de Teleco-
municações1, instituído em 1962, e desde então há urgente necessi-
dade de regulamentar o setor. Algumas lutas têm sido travadas por
grupos e coletivos que buscam se articular para manter na agenda
política a democratização dos meios de comunicação no país. A regu-
lamentação torna-se necessária, ainda levando-se em conta de que de-
cisões sobre esse tema sempre estiveram fora do alcance da sociedade
civil, que teve poucas chances de participar de debates dessa natureza.
Com esse artigo, busca-se compreender que os cidadãos possam
ser protagonistas do processo para a regulamentação da mídia e que
o empenho e trabalho contínuo desses são importantes para garantir
que novos espaços sejam alcançados em termos de participação no
espaço de radiodifusão, possibilitando a ocupação de uma lacuna que
as grandes empresas de mídia comercial não conseguem chegar, por
não atender aos anseios desse público. É justamente nesse meio mar-
cado por resistências que os movimentos sociais em prol da democra-
tização da comunicação têm mostrado importante atuação.
O objetivo, aqui, é discutir questões relacionadas à comunicação
pública e identificar a importância de movimentos sociais, tendo
como exemplo o Fórum Nacional pela Democratização da Comuni-
cação (FNDC) e demais entidades com a mesma finalidade atuando
no Brasil, assim como retratar como eles têm se articulado para atin-
gir, entre seus propósitos, o de lutar para a implementação de políti-
cas públicas na área de comunicação.

1. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4117compilada.htm

276
O artigo traz como base referências bibliográficas e documentais,
a partir do aporte de conceitos e autores que possam dialogar com o
tema, nas áreas de Movimentos Sociais, Políticas Públicas e Econo-
mia Política da Comunicação. Traz, também, entrevistas realizadas
no ano de 2020 com a presidente do FNDC, Renata Mielli, além do
pesquisador em gestão pública em comunicação, Octavio Pieranti,
participações que integram uma pesquisa de mestrado do Programa
de Pós-Graduação Mídia e Cotidiano, realizada na Universidade Fede-
ral Fluminense entre os anos de 2018 e 2020.

A comunicação, a esfera pública e as relações de poder


Tratar de comunicação é também perceber a possibilidade de cons-
trução de relações de poder entre as partes no contexto da esfe-
ra pública. Thompson (2012) nos ajuda a compreender a respeito
da esfera pública burguesa tão discutida na obra de Habermas, ao
argumentar que o desenvolvimento do capitalismo mercantil no
século XVI, junto com as transformações institucionais do poder
público, criaram as condições para a emergência de um novo tipo
de esfera pública nas origens da Europa moderna. Nesse contexto,
o surgimento da imprensa periódica apoiou o desenvolvimento de
um fórum de debate público e estimulou a discussão crítica, geran-
do impacto transformador sobre as formas institucionais dos esta-
dos modernos.
Ao analisar o crescimento das indústrias da mídia, Thompson
(2012) destaca que uma de suas tendências é a transformação das ins-
tituições da mídia em interesses comerciais de grande escala, e faz
uma crítica quando afirma que o ambiente de mídia que nos foi le-
gado pelos desenvolvimentos dos séculos 19 e 20 ainda sofre, hoje,
contínuas transformações, resultando no crescimento dos conglome-
rados da comunicação e atividades predatórias, em muitos contextos
facilitados pelo relaxamento nos controles de governo.

277
Sodré (2002), quando aborda a respeito da visibilidade pública, diz
que as tecnologias de som e imagem permitiram uma outra modali-
dade de representação ou um novo modo de representação social. O
autor atesta a presença, no atual regime de visibilidade, de um verda-
deiro paradigma analógico-digital, que introduz novas variáveis téc-
nicas, econômicas e políticas. Sobre as variáveis econômicas, Sodré
(2002) reforça a tendência de fusão de indústrias setoriais, gerando
conglomerados poderosos e que apesar dos discursos sobre o acesso
universal, o consumo desses produtos é cada vez mais privatizado e
socialmente diferenciado. Em relação às variáveis políticas, o autor
atesta que:

Na medida em que as indústrias de telefonia e de computação avançam


sobre o território tradicionalmente ocupado pela radiodifusão em cir-
cuito aberto, abrem-se as vias para redesenho do controle político dos
meios de comunicação; tais vias, entretanto, dentro do atual modelo
neoliberal para a mídia, favorecem quase exclusivamente apenas o setor
privado das comunicações (SODRÉ, 2002, p. 18).

A comunicação pública busca espaço para que possa acontecer


em sua essência, com base no princípio de complementariedade, que
prevê espaço, na concepção da Constituição brasileira, ao lado da co-
municação estatal e privada. Lima (2011, p. 98) recorda que embora
os três sistemas tenham em comum a prioridade de atendimento ao
interesse público, eles são controlados pelo Estado, pela iniciativa pri-
vada ou pelo público.
Há um movimento constante relacionado à garantia e à observa-
ção de distinção desses três sistemas com discussões que vêm sendo
acompanhadas, no Brasil, mesmo antes da Assembleia Constituin-
te, em 1988. Algumas iniciativas foram sendo desenvolvidas ao lon-
go do tempo, na forma de compensação quanto à falta de efetivi-
dade de comunicação pública, como a criação da Empresa Brasil de

278
Comunicação (EBC)2, cuja lei foi sancionada em 2008. Porém, com
a ascensão do governo neoliberal, em 2016, o Conselho Curador (ór-
gão que garantia a representação da sociedade civil na tomada das
principais decisões editoriais) foi destituído pelo presidente Michel
Temer logo após assumir a Presidência da República, contrariando as
normas regimentares daquela empresa pública.
Pensar a comunicação pública é refletir sobre a necessidade de po-
líticas públicas para o setor. Para Moraes (2016), a pluralização da co-
municação depende, entre outros requisitos, do convencimento social
sobre a necessidade de espaços mais livres de informação e opinião e,
principalmente, de políticas públicas que promovam a diversificação
de fontes emissoras e a multiplicação dos pontos de vista.
No que diz respeito a esse tema, Guareschi (2013, p. 50) comple-
menta a ideia reforçando que os serviços de rádio e televisão não exis-
tem para satisfação dos interesses próprios dos que o desempenham,
mas sim para o interesse do público, para o bem comum, atentando
para o artigo 2213 da Constituição Federal, que sugere alguns princí-
pios para a programação desses meios, como a preferência a finali-
dades educativas, artísticas, culturais e informativas; a promoção da
cultura nacional e regional; e a regionalização da produção cultural.
Matos (2012) aponta outro fator, levando em conta de que a co-
municação pública exige a participação da sociedade e de seus seg-
mentos. Para a autora, além do governo, há outros atores que devem
atuar como produtores ativos do processo de comunicação, de forma
com que grande parte da população se sinta representada, tornando-
-se um pensamento que vem corroborar para a importância da parti-
cipação da sociedade civil nesse contexto.
Para evitar o conflito de conceitos quando se fala de comu-
nicação, Duarte (2012) explica que a comunicação pública não é

2.  Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/


l11652.htm
3.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

279
governamental e diz respeito ao Estado e não ao Governo. Por isso
as políticas, quando regulamentadas, poderão determinar e garantir
que haja continuidade de pensamento, independente do viés ideoló-
gico do perfil de governo que esteja no comando em determinado
momento, porque passará a funcionar como uma política de Estado,
com objetivo de atuar com foco no interesse público.
Martín-Barbero (2004) complementa esse pensamento, reforçan-
do a ideia de que o estatal e o público se diferem porque o primei-
ro se constitui pela coesão de propósitos e consensos, enquanto o
espaço público é plural, heterogêneo, diverso e conflitivo, como a
sociedade. Por conseguinte, o espaço público não pode ser conce-
bido como “o espaço dos interesses comuns; tem que ser conflitivo
porque os comuns são muito diferentes e têm interesses diversos,
nunca são um só” (MARTÍN-BARBERO, 2004, APUD MORAES,
2011, p. 56).
Na obra Ofício de Cartógrafo, Martín-Barbero (2004) tratou das
peculiares experiências que a América Latina tem travado para a re-
gulamentação de meios de comunicação e luta pela democracia, em
especial entre os anos de 1970 e 1980, marcado por períodos ditato-
riais. Ele aponta que naquele período havia grande contradição entre
o desejo de defesa de direitos dos cidadãos e um sistema de meios
controlado, em sua essência, por interesses privados. Por outro lado,
o fortalecimento da esfera pública também fez criar uma confusão
entre o que é público e o que é estatal, tendo em vista que os gover-
nos procuraram ampliar a sua presença no espaço midiático no meio
do discurso do que seria público:

Mais que uma questão referida à forma da sociedade – da qual fazem


parte o Estado e o mercado, partidos e movimentos, instituições e vida
cotidiana –, a comunicação que recorta e focaliza essas políticas esgotou-
-se no âmbito do democratizável unicamente desde o Estado, desde a
institucionalidade estatal (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 306).

280
Apoiando-se em conceitos que diferenciam os atores envolvidos,
Bucci (2013, p. 7) esclarece a respeito de independência das redes pú-
blicas em relação ao Estado para que possa ter condições próprias,
afirmando que “independência não é isolamento, mas autonomia de
critérios de decisão e de procedimentos. É o distanciamento crítico em
relação ao poder político ou estatal em relação ao mercado”. Confor-
me mencionado anteriormente, a EBC passa por momento de grande
preocupação dos movimentos sociais em função da luta por indepen-
dência do seu propósito de fazer uma comunicação pública e sem inter-
ferência de ação do governo, num cenário atual de política neoliberal.

3. Políticas públicas para o setor: entre o desejo e a necessidade


Difícil pensar em políticas púbicas para comunicação do mesmo jeito
que para habitação, segurança alimentar, trabalho, saúde e outros di-
reitos que parecem ser mais fáceis de serem percebidos pelo cidadão.
Ao mesmo tempo, não tem como ignorar a importância e a necessi-
dade de políticas públicas de comunicação para garantir justamente o
direito inerente ao cidadão, previsto na Constituição Federal, o qual
Ramos (2005) denomina ser de quarta geração – o autor leva em con-
sideração de que os direitos civis são de primeira; os direitos políticos
de segunda; os direitos sociais de terceira geração – no qual ele consi-
dera o direito à comunicação como um novo direito humano funda-
mental, mais adequado para amparar, nas sociedades da informação e
da comunicação, as inesgotáveis expectativas de avanço crescente da
democracia da igualdade em todo o mundo.
Porém, para fazer políticas sociais é necessário alinhar anseios e lu-
tas que tenham legitimidade no seio da sociedade e por isso a impor-
tância de tratar a sociedade civil como elemento decisivo que possa
contribuir para as conquistas da área. Nasce, então, no espaço públi-
co, a percepção dos atores sociais que reivindicam possibilidades de
mudança.

281
E a sociedade civil pode exercer um maior protagonismo quando
a comunicação pública passa a não ser o foco principal de interesse
dos demais atores sociais, muitas vezes porque eles preferem que
o tema permaneça adormecido, não colocando-o como prioridade
na pauta. Se o setor privado e o estatal não se antecipam ou não se
esforçam para colocar o tema na agenda pública – fato que pode ser
percebido frente às poucas mudanças que ocorrem na área, a não
ser que toque nos interesses econômicos e políticos desses setores
– possivelmente não haverá alteração no cotidiano das pessoas en-
volvidas.
Para Frank e Fuentes (1989), uma das 10 teses dos Movimentos
Sociais diz respeito a uma nova democracia civil. Passando pelo ce-
nário em que a democracia era definida principalmente em termos
de participação política e/ou econômica nos assuntos do Estado, há a
tendência atual da sociedade civil de poder contribuir, de forma efeti-
va, para que ela possa reescrever regras institucionais e democráticas
que a represente. Para esses autores “cresce o processo de democra-
cia civil participatória e autônoma na sociedade civil. Além disso, os
movimentos sociais participatórios e autogeradores de poder partici-
pam de maneira importante nesse processo de transformação social”
(FRANK; FUENTES, 1989, p. 48).
Dagnino (2004) afirma que o Brasil passa por um processo de alar-
gamento da democracia, que se expressa na criação de espaços pú-
blicos e na crescente participação da sociedade civil nos processos de
discussão e de tomada de decisões relacionados com a questão de po-
líticas públicas, o que corrobora para a luta dos movimentos sociais.
Já no contexto da temática do chamado de “novos movimentos so-
ciais”, Duriguetto e Montaño (2011) reforçam que o aperfeiçoamento
da democracia e as novas dimensões da cidadania permitiriam pensar
uma transformação da sociedade a partir da escolha e da tematização
pública de questões que os diferentes sujeitos sociais acham relevan-
tes para o bem-estar coletivo.

282
Para Gohn (2011), os movimentos sociais progressistas atuam
segundo uma agenda emancipatória, realizam diagnósticos sobre a
realidade social e constroem propostas, além de trabalharem redes,
onde atuam de forma a promover a inclusão. Com objetivo de pro-
jetar o sentimento de pertencimento social, os movimentos sociais
trabalham sob a perspectiva da autonomia, algo que para a autora
remete à:

Não é ser contra tudo e todos, estar isolado ou de costas para o Estado,
atuando à margem do instituído; ter autonomia é, fundamentalmen-
te, ter projetos e pensar os interesses dos grupos envolvidos com au-
todeterminação; é ter planejamento estratégico em termos de metas e
programas; é ter a crítica, mas também a proposta de resolução para o
conflito que estão envolvidos; é ser flexível para incorporar os que ainda
não participam, mas têm o desejo de participar, de mudar as coisas e os
acontecimentos da forma como estão; é tentar sempre dar universali-
dade às demandas particulares, fazer política vencendo os desafios dos
localismos; ter autonomia é priorizar a cidadania: construindo-a onde
não existe, resgatando-a onde foi corrompida (GOHN, 2011, p. 16-17).

Nesse sentido, pode-se pensar que autonomia de um movimen-


to social é também a possibilidade de questionar o sistema conforme
ele é colocado, o que no caso específico deste tema em análise diz
respeito às regras inerentes ao espaço que os grupos ocupam o cená-
rio da radiodifusão brasileira. Podemos entender que a comunicação
é disputa de poder, podendo ser tratada, portanto, como conquistas
políticas e fruto de movimentos de resistência na luta contra forças
hegemônicas.
No âmbito da emergência do poder das esquerdas na América
Latina e da questão da hegemonia, a partir da constatação de que o
continente vem se transformando num laboratório privilegiado das
experiências neoliberais no mundo e a esquerda se reinventando com

283
o símbolo de resistência, Sader (2007) reforça que o sistema, para se
perpetuar, necessita de um triplo apoio das camadas privilegiadas
economicamente. O autor aponta ainda que a mídia, ao lado do di-
nheiro e das armas, se constitui como um dos três eixos dominantes
do mundo de hoje.
A questão da mídia, no Brasil, tem o déficit social por não ter con-
seguido avançar no que diz respeito à regulamentação do setor, con-
trapondo outros países da América Latina, como Argentina, Uruguai
e Equador, que tomaram a iniciativa de discutir o tema com ampla
participação da sociedade civil. Sader alerta também que os partidos
de esquerda que assumiram governos não romperam nem com os
modelos neoliberais, tampouco com seus valores. “Não demonstra-
ram firmeza ideológica para pôr em prática políticas com valores dis-
tintos e que discordem dos que norteiam o ideário neoliberal” (SA-
DER, 2007, p. 23)
Pinto (2012) complementa essa ideia pontuando que a sociedade
civil mobilizada e que ocupou os espaços públicos durante o período
de pressão contra os governos não se mostrou autônoma para man-
ter-se como força após a redemocratização. Pode-se pensar que au-
tonomia de um movimento social dá a possibilidade de questionar o
sistema conforme ele foi colocado. O debate da comunicação favore-
ce a uma consciência cidadã dos envolvidos, que miram a essa nova
realidade no lugar de ser apenas espectadores (URANGA, 2005).

A ação de movimentos sociais para a democratização dos


meios no Brasil
Umas das principais oportunidades que os movimentos sociais ti-
veram durante o governo progressistas de Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) foi a realização da I Confe-
rência Nacional de Comunicação (Confecom), em 2009, a única desse
gênero no Brasil. De acordo com Demarchi e Kerbauy (2018), com a

284
Confecom existia um quadro propício ao debate, com espaços de diá-
logo dentro do Governo Federal, realidade que se estendeu até 2015.
Porém, nos últimos anos de governo progressista no país, houve claro
retrocesso das discussões de políticas púbicas no setor, premeditan-
do o desmonte da comunicação pública. A respeito disso, os autores
apontam que:

Naquele período, a principal pauta dos grupos em defesa da democra-


tização dos meios de comunicação era o estabelecimento de um novo
marco regulatório para a mídia, ou seja, a atualização regulatória das
leis do campo da radiodifusão. Havia um maior conjunto de atividades
do movimento social em torno de demandas pela atualização legal (DE-
MARCHI; KERBAUY: 2018, p. 87).

Houve essa janela aberta para a possibilidade de debater o siste-


ma brasileiro de comunicação, criando perspectivas de implementar
uma possível política pública para o setor, que fosse democrática e
inclusiva, contrapondo-se ao cenário que até então se mostrava, de
predominância do setor privado sobre os demais. Para Bolaño e Brit-
tos (2008), a concepção de uma TV pública no Brasil trazia consigo
características herdadas desde o regime militar, advindas do sistema
público estatal de televisão educativa – que compreendia emissoras
ligadas às redes estaduais, além das universidades – favorecendo o sis-
tema comercial privado e a concentração dos meios na mão de um
grupo reduzido e com alto poder de concentração do espaço midiáti-
co nacional. Discutir políticas públicas para essa área era um grande
anseio dos grupos que pleiteavam uma lei de meios mais autônoma,
que pudesse contrapor à influência do mercado e do governo.
Há articulação de movimentos sociais em todo o território nacio-
nal, por meio de eventos, mobilizações, instrumentalização, produ-
ção de pesquisa e outras atividades em prol do objetivo comum que
é promover a democratização da comunicação. Exemplo disso é o

285
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, um coletivo
ativista que se identifica como movimento social e que nasceu nos
anos 80, organizado em quase todo o país, atualmente composto por
20 comitês regionais.
Os esforços para a democratização da comunicação tiveram início
naquela época, e o movimento, no decorrer dos anos, teve status de
associação civil até alcançar a atual estrutura, a partir de 1995. Ao lon-
go do tempo, especialmente com a retomada das atividades em 2001,
o FNDC passou a desempenhar importante atuação frente a momen-
tos políticos do país, trabalhando entre campanhas e temáticas rela-
cionadas à área de comunicação.
Outro coletivo de forte atuação no Brasil é o Intervozes (Co-
letivo Brasil de Comunicação), criado em 2003. Em sua Carta de
Princípios4, assume o compromisso de lutar para transformar a
comunicação em bem público; e para efetivá-la como um direito
humano, sem o qual não há realização plena da cidadania e da de-
mocracia. Esse e outros coletivos como o Barão de Itararé, no Bra-
sil, se articulam como movimento para tratar a demanda de cons-
trução de um sistema público de comunicação como uma de suas
reivindicações principais.
Na época da realização da Confecom, em 2009, o FNDC lançou,
em parceria com demais entidades de movimentos sociais, a Plata-
forma para o Marco Regulatório das Comunicações, propondo uma
articulação entre a sociedade civil organizada e o Estado, na busca de
proporcionar condições para tratar o tema diante do Estado e do se-
tor privado. Em documento emitido pela entidade com o título “Pro-
postas para a Confecom”, constava a revisão dos conceitos dos siste-
mas de comunicação privado, público e estatal, na qual via esta como
uma medida vital para viabilizar a participação pública em todas as
instâncias, guardadas as suas especificidades.

4.  Disponível em: https://intervozes.org.br/quem-somos/carta-de-principios/

286
O FNDC, dentro da proposta de reestruturação do sistema de comu-
nicação no Brasil, à época levava em consideração a necessidade de um
novo marco regulatório para as comunicações, com a participação de
movimentos sociais na discussão e implementação de um novo modelo:

O Fórum considera que essa medida reclama a elaboração de um Plano


Nacional de Diretrizes e Metas, bem como o enquadramento das teleco-
municações em uma ampla política de comunicações. Esse Plano deve
contemplar o conceito de controle público. Tal controle deve ser exercido
em três níveis: adoção de um marco regulatório; implantação de uma rede
de mecanismos de controle; e articulação de uma rede de movimentos
sociais capacitados para compreender a comunicação contemporânea,
opinando e formulando sobre o seu processo. O novo Marco Regulatório
para as Comunicações no país deverá ser construído dentro da ideia de
controle público, a partir dos interesses da maioria da sociedade e com
base na articulação das leis, regras e estatutos. O FNDC reivindica que este
Marco Regulatório leve efetivamente à regulação da mídia, e contenha,
também, mecanismos de controle, pela sociedade, do seu conteúdo e da
extrapolação de audiência que facilita a existência dos oligopólios da co-
municação que desrespeitam a pluralidade e diversidade cultural5.

O documento que reivindica o Novo Marco Regulatório foi assi-


nado em 2009 pela Coordenação Executiva do FNDC, que integrava
naquele momento, entre outras entidades, a Associação Brasileira de
Radiodifusão Comunitária (Abraço) e a Federação Nacional dos Jor-
nalistas (Fenaj). Nesse mesmo documento, enviado aos responsáveis
da Confecom, o FNDC reafirmava “a busca de mobilização social em
favor de teses que signifiquem um avanço na formulação de políticas
públicas de comunicação marcadas pelo interesse social”.

5.  Disponível em: http://www.fndc.org.br/documentos/conferencia-nacional-de-comu-


nicacao/

287
O regimento interno para a 1ª Confecom, com o tema “Comu-
nicação: meios para construção de direitos e de cidadania na era
digital6” apresentava a Conferência como um instrumento de con-
tribuição, tendo como objetivo geral a formulação de propostas
orientadoras de uma Política Nacional de Comunicação. De acor-
do com o documento, a Conferência visava a promover o debate
amplo, democrático e plural com a sociedade brasileira, garan-
tindo-se a participação social em todas as suas etapas. Para isso,
foi definida a participação de 1539 delegados, entre os eleitos em
seus estados de origem, compondo um conjunto que representa-
va a sociedade civil (40%), os escolhidos dentre os representantes
da sociedade civil empresarial (40%) e os representantes do poder
público (20%).
Ao final da realização da Confecom, foi gerado o documento inti-
tulado Caderno de Propostas Aprovadas7 que contemplava vários tó-
picos debatidos durante a Conferência com a participação dos setores
envolvidos. Naquela ocasião foram formados 14 Grupos de Trabalho
entre os participantes, que deliberaram várias propostas em assem-
bleia, dentre elas a que determina o texto abaixo:

Criação de Conselhos de Comunicação nos âmbitos federal, estaduais e


municipais de caráter paritário com membros eleitos e estrutura de fun-
cionamento para que possa acompanhar a execução das políticas públi-
cas, que garantam o exercício pleno do direito humano à comunicação.
Entre suas atribuições, devem constar a regulação de conteúdo, políticas
de concessões, mecanismos de distribuição, entre outras8.

6.  Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/pfdc/informacao-e-comunicacao/eventos/comu-


nicacao/1a-conferencia-nacional-de-comunicacao-confecom/RegimentoInterno_Confecom.pdf
7.  Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/
comunicacao/caderno-propostas-1a-confecom
8.  Disponível em: http://www.fndc.org.br/documentos/conferencia-nacional-de-comu-
nicacao/

288
Porém, as discussões após o evento não avançaram conforme os
movimentos sociais desejavam. Demarchi e Kerbauy (2018) avaliam
que a discussão pública em torno da democratização da mídia ficou
restrita a ações da sociedade civil e a encontros dos movimentos so-
ciais, mas teve os canais de diálogo reduzidos junto ao Governo Fede-
ral, principalmente após assumir o novo governo de tendência neoli-
beral, a partir de 2016.
Em entrevista, Renata Mielli, que preside o FNDC, diz que a co-
municação nunca foi assumida como tema de debate público no
Brasil como um direito social, tanto por movimentos sociais e por
partidos políticos, resumindo o debate, nos anos 1980, a grupos de
acadêmicos e pesquisadores com visão mais progressista, que esta-
vam mais antenados com o debate internacional sobre comunicação
desenvolvido no âmbito dos organismos internacionais. Octavio Pie-
ranti, pesquisador e também gestor público da área de telecomuni-
cações no Brasil, em entrevista, disse que era possível ter feito mais,
porém “considerando a realidade política que a gente tinha e a con-
juntura de forças dos diversos momentos, acho que se fez muito, mui-
to além do que talvez fosse justo esperar, olhando para trás” (PIE-
RANTI, entrevista realizada em 2020).
Renata Mielli (2020) diz que os movimentos sociais passaram a
ampliar o debate a partir das investigações do Mensalão: “foi a de-
terioração da conjuntura política e do papel da mídia como orga-
nizadora do pensamento e mobilizadora da oposição ao governo
Lula que fez com que os movimentos sociais percebessem o papel
da comunicação na sociedade contemporânea” (MIELLI, entrevis-
ta realizada em 2020). Porém, lamenta que o desenrolar dos acon-
tecimentos não tenha conseguido fazer com que esse discurso se
transformasse numa prática política que reunisse os movimentos
para efetivamente lutar pela democratização da comunicação.
E, assim, fez um balanço da atuação dos movimentos sociais no
Brasil:

289
Você tem o FNDC, tem o Barão de Itararé, continua tendo as entida-
des mais voltadas no debate da comunicação atuando mais na linha de
frente, mas não se conseguiu fazer com que isso se transformasse num
amplo movimento, que fizesse uma manifestação pela democratização
da comunicação. Então, por mais que você tem no discurso, não conse-
gue ter na prática. Então há um limite, eu acho que é esse limite que a
gente vê que, infelizmente, não se consegue ter uma maior participação
(MIELLI, entrevista realizada em 2020).

Para Pieranti (2020), a comunidade que se juntou para partici-


par da Confecom não conseguiu avançar e grande parte se perdeu.
Uma das justificativas que ele dá para isso ter acontecido é que o
ano seguinte à Conferência, em 2010, ter sido ano eleitoral, que ele
entende ter sido momento de engajamento, no qual os debates na-
cionais saem um pouco de foco, onde as pessoas começam a deba-
ter as questões e a eleição local, gerando uma perda de mobilização.
E complementa:

Várias entidades da sociedade civil que participaram desse debate da


Confecom não conseguiram amalgamar e manter pessoas que come-
çaram a entrar nesse debate. O Intervozes fez um bom trabalho nesse
sentido, a Abraço conseguiu ampliar um pouco a base (...) eu acho que
muito acabou se perdendo e não se aproveitou grande parte daquela
massa crítica que foi construída no âmbito da sociedade civil (PIERAN-
TI, entrevista realizada em 2020).

Renata Mielli complementa o pensamento analisando que por


mais que ainda haja mobilização, a partir das discussões sobre o Men-
salão e o papel da mídia comercial como organizadora do pensamen-
to e mobilizadora da oposição ao governo Lula, a atuação dos movi-
mentos é frágil, que conseguiu apenas manter o discurso, mas não a
prática, e que o pensamento que persiste é “como fazer para engajar

290
mais outras entidades no cotidiano da luta pela democratização da
comunicação” (MIELLI, entrevista realizada em 2020).
Diz também que mesmo não tendo mais comunicação pública,
o movimento não ficou de todo parado: “a gente continua incomo-
dando eles lá (...) faz um pedido, entra no Ministério Público, lança
uma nota, dá visibilidade para as denúncias dos funcionários que es-
tão sendo pressionados, constrangidos, mas é isso, hoje é o que tem“
(MIELLI, entrevista realizada em 2020). Porém, sobre o poder de re-
verter esse quadro, ela mostra que ainda há uma boa perspectiva:

No final da década de 80, no começo da década de 90, se a gente fosse ter


um evento para discutir democratização da comunicação, a gente conse-
guiria reunir nesse evento no máximo 100 pessoas. Hoje, se a gente faz
um evento pela democratização da comunicação, a gente consegue reu-
nir mil pessoas, como fizemos em Belo Horizonte. Hoje é um tema que
ganhou mais robustez, ganhou simpatizantes, mas ainda muito aquém
do que a gente precisaria para enfrentar esse monopólio poderoso dos
meios de comunicação (MIELLI, entrevista realizada em 2020).

Para Renata Mielli, mesmo que o FNDC não tenha conseguido se


envolver em todas as ações de defesa da comunicação pública, tendo
como exemplo a EBC, ela justifica a situação: “são contradições e li-
mitações do movimento, porque na agenda é matar um leão por dia.
Então cada um tem que lidar com um milhão de coisas (...), mas eu
penso que nós estamos evoluindo, não involuindo” (MIELLI, entre-
vista realizada em 2020).

Possíveis conclusões de um tema ainda inconclusivo


As lutas e batalhas para a democratização dos meios em busca de um
conceito pleno de comunicação pública ainda devem gerar futuras
discussões e entendimentos com todas as partes, que são urgentes

291
e necessários para os setores envolvidos. Porém, a participação dos
movimentos sociais nesse contexto é imprescindível para promover
o questionamento de mudanças em um cenário de regulamentação
que ainda não tem prazo ou perspectiva concreta para acontecer.
Há modelos de comunicação pública que são mundialmente co-
nhecidos, como é o caso da Inglaterra, além de outros que são inci-
pientes em países da América Latina, como nos casos da Argentina,
do Uruguai e do Equador. No Brasil, a experiência até então segue
privilegiando a face perversa do capitalismo, com as decisões a respei-
to de concessões públicas na área de radiodifusão de responsabilidade
do Congresso Nacional, muitas vezes atuando em jogo onde há dis-
puta de interesses. Por outro lado, há a fragilidade do meio público,
especialmente em boa parte dos países da América Latina, da confu-
são que é gerada entre o que é público e o que é estatal.
Em participação no IV Encontro do grupo de pesquisa Centro de
Pesquisa e Produção em Comunicação e Emergência (Emerge), em
outubro de 2018, no Rio de Janeiro, Maria Soledad Segura apresentou
resultados de pesquisa sobre o impacto de políticas de comunicação
no continente latino-americano e analisou o papel que os cidadãos or-
ganizados tiveram nos processos de formulação de políticas de comu-
nicação, quando os movimentos sociais conseguiram fazer diferenças
nas políticas em vários países, sob a perspectiva de que o direito à
comunicação é essencial para pensar a cidadania e também para sus-
tentar processos democráticos.
Baseando-se na percepção de todos os processos que recentemen-
te ocorreram no continente, ela conclui a apresentação dizendo que
“se não há participação social no processo de formulação de políticas
de comunicação, dificilmente chega-se a ter políticas democráticas”
(SEGURA, 2018, informação verbal)9.

9.  Comunicação feita por Maria Soledad Segura durante o Encontro Emerge, na Fundação
Casa de Rui Barbosa, em Outubro de 2018.

292
A pesquisadora também reforça que, quando se trata de sociedade
civil, implica em um conjunto amplo de organizações que incluem ali
as progressistas como também as conservadoras. Ela reforça isso por-
que a história tenderia a levar à construção de organizações sociais de
resistência frente aos governos e para isso é necessário desenvolver
estratégias para levar adiante suas demandas.
Maria Soledad Segura sustenta que a primeira e principal delas é a
criação de redes, alianças, de coalizões entre distintas entidades da so-
ciedade civil para reunir forças para lutar pelos seus direitos, pela pro-
moção de debates públicos, pela produção de informação e de docu-
mentos em que expressem seus posicionamentos de maneira pública.
E contribui com essa análise quando sugere que a resistência é impor-
tante para evitar a regressividade de avanços: “Quando os governos
passam, quando as políticas passam, a organização permanece e não
só a organização social é a que pode por barreiras de contenção e
também oferecer alternativas” (SEGURA, 2018, informação verbal)10.
Se com toda a pressão dos movimentos sociais que buscam alternati-
vas como a comunicação comunitária e tentam promover debates para
a promoção de uma comunicação mais participativa e cidadã ainda há
ameaças de interesses que atuam para o monopólio da mídia, a não par-
ticipação e o engajamento desses movimentos sociais tenderia, sem dú-
vida, a representar um grande prejuízo para a democracia do país.
Somente com a percepção de que o tema é urgente e que deve ser
tratado com o devido valor que merece é que o Brasil poderá, enfim,
garantir um universo comunicacional que possa representar toda a
diversidade e as múltiplas vozes que fazem este país ser tão plural.
Esse é um tema que ainda exige muito debate e conscientização por
parte de toda a sociedade civil para que a comunicação pública de
fato aconteça.

10.  Comunicação feita por Maria Soledad Segura durante o Encontro Emerge, na Fundação
Casa de Rui Barbosa, em Outubro de 2018.

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Este livro foi composto em Dante
MT pela Editora Autografia.

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