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PAULO GHIRARDELI

Religião, lavagem cerebral e educação


09/04/2011

Nossas universidades públicas, na seqüência do “modelo USP”,


possuem uma forte tradição de ensino laico.

A herança dos ideais positivistas dos primeiros republicanos vingou nesse meio
intelectual, quase todo ele afrancesado. A França viveu as grandes disputas entre
católicos e protestantes e criou um antídoto a essas discordâncias, algo diferente da
“tolerância” inglesa, na linha de John Locke. A França gerou, na esteira da fusão do
Iluminismo com o Romantismo, um pensamento fortemente não-religioso que seguiu de
Augusto Comte para Émile Durkheim, e que entrou para o campo pedagógico de modo
fecundo, vindo aportar no Brasil de uma maneira muito direta. Os próprios parentes de
Durkheim estiveram no Brasil, na linha da sociologia de educação, dando os passos
iniciais no campo das Humanidades uspianas. (1)

No Rio de Janeiro, Durkheim não teve o peso que ganhou em São Paulo. A
Universidade do Brasil, na capital carioca, ao menos no início da República, respirou
ares mais cosmopolitas. Por isso mesmo, na capital do país outras tendências se fizeram
sentir. O pensamento de John Dewey deu o tom para certos núcleos de investigação e,
durante um tempo, também atingiu a administração pública municipal. Ao invés do
positivismo francês, ou melhor, não só com o positivismo francês, a tradição carioca de
reflexão pedagógica se fez marcar pelo pragmatismo americano, não tão aguerridamente
laico, mas fortemente materialista.

Assim, se na Europa o positivismo francês entrava em concorrência com o pragmatismo


americano, aqui no Brasil essas tendências se agruparam, tendo como inimigo o
pensamento religioso, especialmente o da Igreja Católica.

A minha geração veio dessa tradição. Filósofos e professores aprenderam com a nossa
universidade pública (ou até mesmo com as PUCs, após os anos 60) os benefícios do
ensino laico. República laica, ensino laico. Este era o nosso lema. Este é o nosso lema
que está sendo desafiado desde os anos noventa.
O crescimento das igrejas evangélicas no Brasil tem sido enorme. O conservadorismo
delas tem sido assustador. E a Igreja Católica, tanto no Brasil quanto no mundo, tem
reagido a isso ampliando seu discurso mais conservador ou até mesmo retrógrado. Ao
invés de se diferenciar, resolveu competir na mesma faixa, todos em busca de almas e, é
claro, de dízimos ou “patrocínios”, como é na linguagem de alguns evangélicos, agora
já pagos em cartão.

Assim, nessa linha atual do novo samba de pastores e padres, o misticismo supera os
mitos, o dogmatismo abafa a teologia e a lavagem cerebral substitui o ensino religioso.
A religião deixa de ser um lugar de filósofos religiosos, pois ela se transforma no campo
do não-pensamento. As vítimas desse tipo de trabalho, pela conta do baixo nível de
nosso ensino médio, acabam conseguindo um diploma e, pelas vias mais diversas,
chegam à universidade. Ao invés de ficarem em universidades ou faculdades
confessionais de suas próprias religiões, adentram a universidade pública. Uma vez
nela, começam a desenvolver uma barreira contra a ação educativa universitária. Agem
como “quintas colunas”. De dentro da universidade, beneficiados pela “tolerância
religiosa” que é bem mais alta no interior da academia que na sociedade em geral,
alunos completamente robotizados pelo discurso igrejeiro tentam impor à escola laica o
não-pensamento. A sala de aula tornar-se um lugar de difícil desenvolvimento de
qualquer dialética de ensino.

Alguns professores acreditam que isso pode ser resolvido pelo diálogo. Mas eles estão
errados. O diálogo pressupõe pessoas racionais em conversação. Não é o caso. O que
estamos vivendo nesses tempos é que, de um lado, o lado dos professores laicos,
liberais, a disposição para o diálogo existe, mas do lado dos alunos religiosos que
sofreram a lavagem cerebral, nada é ouvido senão a voz do pastor – em geral alguém
completamente despreparado do ponto de vista intelectual (e moral) – dentro de seus
cérebros. Quando o discurso dos conteúdos universitários contraria ou se choca com a
voz do pastor, esses alunos “se desligam”, não escutam mais a aula. Outros saem da
sala. Outros, ainda, tentam criar confusão – iniciam uma fala decorada de trechos
bíblicos, expondo um repentino título de doutor em teologia do besteirol. Em nome da
democracia liberal e da tolerância religiosa, muitos professores permitem que esses
monstros da barbárie mental falem qualquer coisa e, ao final, para se livrarem deles, os
professores acabam os aprovando. Por essa irresponsabilidade nossa, essas pessoas
ganham diplomas de nossa universidade pública e, então, uma vez no ensino básico,
como professores (!) reproduzem a lavagem cerebral da qual foram vítimas – com os
nossos filhos e netos.

No passado, essas pessoas eram silenciosas. Elas sabiam que estavam num lugar de
conhecimento. Elas tinham a noção de que se o pastor era autoridade para elas, não era
autoridade nenhuma diante da universidade laica. Agora, a barbárie do ensino médio
conduziu-as à perda dessa dimensão. Elas querem, por todos os meios, impor aos
colegas e aos professores uma verdade que não é do feitio universitário, porque parte de
pressupostos não compartilhados pelo mundo do ensino. Ou seja: nada que é de fé, nada
que é do campo dogmático, pode ser levado a sério na universidade, a não ser como
dado histórico. O saber acadêmico pede sempre fundamentos e justificativas. Tudo
precisa ser argumentado racionalmente, empiricamente, hermeneuticamente, mas nada
pode ser mágico. A Bíblia Sagrada é um livro muito importante para a universidade,
mas como documento histórico de uma filosofia moral poderosa, que deve ser lido sob
múltiplas facetas e perspectivas. Mas isso não é possível diante dos que foram
submetidos à lavagem cerebral da ignorância pastoral. O resultado, em curto prazo,
pode ser a barbárie. Nosso país pode, rapidamente, ficar mais burro do que já está.

Caso os professores, diretores e reitores não atacarem esse problema de frente, criando
estratégias no sentido de reiterar a autoridade dos professores enquanto agentes laicos,
nós poderemos, em pouco tempo, inviabilizar nossa pesquisa, principalmente no campo
das Humanidades. Pois o princípio da academia, contra qualquer igreja, é a descrença, o
ceticismo, a investigação livre e, principalmente, a inteligência e não a mentalidade
fechada. É preciso lançar mão de um novo slogan, algo do tipo: “não é preciso ser burro
para ser religioso”. As pessoas podem ter suas religiões, mas elas precisam aprender que
o caráter sagrado de suas crenças religiosas pertence à vida privada, e que no campo
público, a regra é laica e liberal (2).

A tolerância religiosa do Estado laico não implica em permitir que as doutrinas


religiosas ou, no caso, pseudo-religiosas, retire da universidade o seu prêmio maior para
a sociedade, o de ser o lugar onde os jovens entram com uma opinião e podem sair com
algo mais que ter opiniões, podem sair com justificativas racionais para suas novas
opiniões. As religiões de lavagem cerebral que dominam o Brasil atual são, nesse
sentido, um foco de barbárie que, se não tomarmos atitudes agora, poderá vir a  destruir
nossas cátedras universitárias. Acreditem, sei do que estou falando. O Brasil corre
perigo.

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