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Eliska Altmann
Resumo
Em um contexto denominado, por muitos, como “pós-moderno” desponta um
movimento artístico imbuído de aspectos “modernistas”. Em resposta direta à arte “
burguesa” e individualista, um grupo de cineastas dinamarqueses decidem escrever o
Manifesto Dogma 95. O presente artigo discute seu anacronismo voluntário – presente
não apenas em seu nome, mas em sua releitura do conceito de “avant-garde” – assim
como a possibilidade do “novo” e da “ruptura” através de uma arte pura exercida em
um mundo onde o marketing é inescapável.
Palavras-chave: movimento cultural, vanguarda, cinema.
O desejo pervertido
O ocaso cíclico
O embate entre arte e mercado é certamente avivado por Pierre Bourdieu, dentro da
esfera da autenticidade e da união entre arte e vida, através de uma vertente que conceitualiza
a noção de “campo” dentro de uma luta entre dois princípios artísticos de hierarquização, o
princípio heterônomo, representado pela “arte burguesa”, ou “arte comercial”, favorável aos
que dominam o campo econômico e político – que, referente ao princípio de hierarquização
externa, é medido pelos índices de sucesso comercial,
pela notoriedade social e pelo reconhecimento do grande público; e o princípio autônomo,
representado através da “arte pela arte”, ou “arte pura”– que, referente ao princípio de
hierarquização interna, mede seu êxito a partir do reconhecimento perante apenas seu pares.
Essas lutas internas entre os defensores da “arte pura” e os defensores da “arte burguesa”
teriam como objetivo o monopólio da legitimidade artística.
Esse debate fornece meios para a reflexão de tais questões relativas diretamente ao
movimento dinamarquês. Nesse caso, qual o lugar do Dogma 95 nesse contexto apresentado
por Bourdieu? Quais as possibilidades de um manifesto contemporâneo ser percebido como
“arte pela arte” e não como uma “jogada de marketing”? Será que o movimento dinamarquês
cabe num dos pólos, ou busca modificar a polarização?
No campo bipolar desenhado por Bourdieu, onde se encontram os representantes do
dinheiro, os artistas defensores da arte pela arte e os partidários da arte burguesa, existe
uma relação e quase interdependência entre o poder econômico e a obra de arte. Em ambos
os pólos desse campo de poder as forças sociais têm um desempenho significativo, o que
mostra que a relação de “apropriação recíproca” entre bens materiais e culturais, sociais e
simbólicos, é transmitida por gerações. Nessa medida, a construção do campo deveria ser
vista como condição para a compreensão e a edificação da própria trajetória social e
cultural.
Campo de poder seria o espaço das relações de força onde se estabelecem lutas
internas e externas entre agentes ou instituições que têm em comum a posse do capital –
econômico ou simbólico – necessária para ocupar posições dominantes nos diferentes
campos. Campo artístico constituiria um mundo econômico invertido, pois aqueles que nele
entram possuem “interesse no desinteresse”. Isso significa que esse campo não proporciona
remuneração, pelo menos a curto ou médio prazos, quando o capital simbólico pode ser
convertido em capital econômico. O campo de produção cultural, com interesse no capital
econômico, luta com o campo artístico, com “desinteresse” ou interesse apenas no capital
simbólico. É através dessas definições que o campo de poder, fundado na estrutura geral da
sociedade, subordina os outros campos, ou melhor, o campo de poder faz parte, ou é
inerente tanto ao campo artístico quanto ao de produção cultural.
Bourdieu define o campo como uma rede de relações objetivas entre “posições” ou
gêneros que dependem da estrutura de distribuição dos tipos de capital que comandam a
obtenção dos lucros específicos, econômicos ou simbólicos, em jogo. Essas variadas
posições possuem correspondentes homólogos. As “tomadas de posição” são obras
artísticas, discursos e manifestos, que criam uma união da leitura interna da obra com as
condições sociais de sua produção ou consumo. As transformações radicais dessas tomadas
de posição seriam as revoluções artísticas resultantes de uma transformação das relações
entre o campo intelectual e o campo do poder. Elas representariam um encontro entre as
intenções subversivas de uma parte dos produtores e as expectativas de uma parte do
público. Tais tomadas de posição, por se definirem, em sua maioria, negativamente na
relação com outras, já que têm como objetivo o desafio, a recusa, a ruptura, representam o
auge da vontade de distinção nascida do processo de autoconscientização. Nesse processo
de autonomia do campo, os manifestos são criados enquanto manifestações da diferença.
Toda iniciativa de mudança ocorrida no espaço das posições se deve, segundo
Bourdieu, aos recém-chegados, ou aos literalmente mais jovens, que, desprovidos de capital
específico, afirmam sua identidade ou diferença conferindo modos de pensamento e de
expressão novos em ruptura com aqueles em vigor. Nesse universo onde existir é diferir, o
novo grupo ou movimento artístico se impõe no campo e as produções até então
dominantes correm o risco de incorporar a condição de produto desclassificado ou clássico.
É nesse momento que se inscreve o “espaço dos possíveis” – como os “ismos”, por
exemplo – apresentado por Bourdieu através de categorias de percepção constitutivas de
certos hábitos, como “movimentos” a lançar, adversários a combater, tomadas de posição
estabelecidas a “superar”. Em tais espaços, as determinações externas passam a se exercer
por intermédio das forças internas do campo, o que quer dizer que quanto mais autônomo,
mais o campo impõe sua lógica, a qual pode acabar transformando a obra de arte em
fetiche.
Essa tese de Bourdieu se encaixa perfeitamente na conjuntura dogmática,
especialmente no momento contemporâneo em que o embate entre arte e mercado, estética
e “cosmética”, essência e aparência está na pauta do debate, que parece acompanhar a arte
desde sua versão moderna. Tal versão viu a obra de arte abdicada de sua função ritual,
desmerecida de seu valor aurático de objeto cultural em proveito de um valor como
realidade reprodutível a expor. Uma vez que este último valor se expressa em um formato
disciplinado, como o próprio cinema das vulgaridades, ou mesmo o drama socrático, ele
não corre riscos nem externa angústias e se subjuga a um poder que encobre o verdadeiro
papel da arte. É justamente contra este valor, que se tornou norma e se exerceu
autoritariamente dentro de padrões automatizados, que o Dogma 95, com sua inquietude,
realiza a função contestatória da obra de arte.
Tal função contestatória, como parte da discussão sobre o confronto entre arte de
vanguarda versus arte institucionalizada, para Bauman é impossível atualmente, porque “o
mercado rapidamente farejou o enorme potencial estratificante que as ‘artes
incompreensíveis’ levaram consigo” (Bauman, 1998:126). Segundo o teórico, “o limite
das artes vivido como uma permanente revolução foi a autodestruição. Chegou
um momento em que não havia nenhum lugar para ir. (...) Pode-se dizer que as artes
de vanguarda demonstraram ser modernas em sua intenção, mas pós-modernas em
suas conseqüências” (Bauman, 1998:127). Depois do sucesso comercial ter desferido o
golpe mortal na arte de vanguarda, desde então “encaixada” no mundo artístico, o
reconhecimento que a vanguarda desejava e temia concomitantemente não tardou, porém,
como um resultado inesperado da busca por símbolos portáveis e compráveis. Nesse caso,
para Bauman, as artes revolucionárias suicidaram-se e a expressão “vanguarda
pós-moderna” parece indicar uma contradição de sentidos, pois, se vanguardas artísticas
incorporavam atividades revolucionárias, as artes de hoje não têm mais o poder da grandeza
da criação, mas apenas a eficiência das máquinas reprodutoras.
No entanto, tomando o próprio movimento Dogma 95 como exemplo, é possível
verificar que a arte ainda pode se mostrar competente a apresentar um antagonismo perante
um poder midiático hegemônico, ao expor-se como exaltação subjetiva. Mesmo que não se
valha mais do termo vanguarda em seu sentido moderno e político, ela não está impedida de
se colocar na oposição do debate. Dessa forma, pode até ser que atualmente não caiba
mais uma arte revolucionária no sentido clássico, mas negar tal oposição no âmbito da arte
seria o mesmo que negar os valores de esquerda e de direita que não perderam sua
institucionalização política. Assim, uma vez que as principais estruturas do capitalismo ainda
que pulverizadas permanecem vigentes, uma possível pergunta do movimento dogmático
seria: como fazer uma arte “política” num mundo plural a partir de narrativas plurais?
Nesse sentido, a presente análise concorda com Adreas Huyssen, quando profere
que revisitar a problemática entre cultura de massa, ou baixa cultura, e alta cultura num
contexto global serviria para repensar a historicamente alterada relação entre estética e
política, discutida pelos movimentos vanguardistas. Essa dicotomia, hoje, teria sido
minimizada por uma nova lógica de circulação cultural trazida pelas novas tecnologias
midiáticas, sem ter sido, porém, morta. Tal discussão pretende expandir a noção de “
modernidades alternativas” e “modernismos do passado” de forma a esclarecer como a
condição de globalização pode produzir diferentes formas culturais e novas misturas de
tradições locais com operações globais, sem perder o eixo estético-político ou
estético-social. Basta ver o movimento dogmático que articula uma estética social local a
uma ética política global, não apenas por ser um movimento local que atua globalmente, mas
também por tematizar, através do indivíduo micro, o macro.
Na sociedade global de consumo onde tudo teria assumido uma dimensão “cosmética”
, Fredric Jameson propõe uma revisão da oposição alta cultura/cultura de massa por serem
dois fenômenos objetivamente relacionados e dialeticamente interdependentes, como formas
gêmeas e inseparáveis da fissão da produção estética sob o capitalismo. O capitalismo tardio
teria exercido sobre esses dois grupos o efeito histórico de dissolvê-los e
fragmentá-los em princípios ao mesmo tempo isolados e equivalentes graças à
mercantilização universal. Na medida em que a cultura dos modernistas era oferecida não
como valor de troca, mas como linguagem estética incapaz de oferecer satisfação mercantil,
resistente à instrumentalização, a cultura dos dogmáticos, por desejar ressurgir tal ideário,
mostra-se realocada temporalmente, insinuando-se recriadora de uma vontade moderna por
excelência.
Teóricos como Jameson, constatam que os “dogmas” atuais foram edificados na
potencialização de um indivíduo espetacularizado e submetido às garras de um poder
midiatizado e tecnologizado. Neste universo, a cultura foi tornada produto, e a inter-relação
do cultural com o econômico estabeleceu-se numa contínua e recíproca alimentação. Em
tempos como estes em que “o indivíduo ousa individualizar-se”, em que a forma última da
reificação mercantil na sociedade de consumo contemporânea é precisamente a própria
imagem, o Dogma 95 apresenta a proposta de um cinema “humanitário”, um cinema que
quer buscar uma verdade para além da narração ou da estética, verdade de vontade urgente
e explícita que simboliza uma tendência avessa.
Nesse sentido, o movimento dinamarquês põe o marketing em xeque-mate, joga o
jogo do sistema sem precisar se prostituir, imacula a cultura – e não a indústria – audiovisual
com sua promessa casta do Voto, representando uma contracorrente ao cumprir um cinema
disforme, “concebido para trazer o frescor, para recuperar uma inocência perdida” em
um mundo onde a pureza parece já ter se esgotado na liquidação a varejo. Contrários aos
dogmas “imperialistas”, os irmãos dogmáticos confessam romper suas regras da mesma
forma como se rompem os dogmas religiosos, porém, sem corromperem suas crenças mais
intimamente autênticas e artísticas. Foi desencantando os dogmas industriais e secularizando
os dogmas sociais que o Dogma 95 fez surtir um reencantamento da obra, que (“
re-auratizada”) tenta desbanalizar a condição humana provocando sua função pura de
manifestar para diferir, sua função coletiva de implodir no público que a escolhe (não que é
por ela subordinado) uma outra possibilidade de sensação, tanto de arte quanto de mundo.
Seria exatamente essa liberdade a responsável por fazer a arte pertencer ao estado
dos objetos estritamente sem utilidade, não intercambiáveis e únicos, ao estado “das coisas
que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser
um lugar seguro para todos os homens” (Arendt, 1989:180). Um estado que confere à
arte uma estabilidade superior a de outros produtos humanos devido a sua permanência
representada pelo próprio vir-a-ser humano. A arte é então capaz de imortalizar a memória
do mortal, fazendo com que o homem também se imortalize através de suas próprias mãos e
imaginação. Essa faculdade de permanência que pressente uma imortalidade é a mesma do “
autor de si” que, com autenticidade, eternaliza uma obra constantemente vista, lida, ouvida e
experimentada.
Referências Bibliográficas