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CADERNOS DE TEXTOS DA ESCOLA DE CINEMA DARCY RIBEIRO

TEXTOS PARA USO EM SALA DE AULA PELOS ALUNOS DO PRIMEIRO MÓDULO DOS NÚCLEOS DE ROTEIRO, MONTAGEM E DIREÇÃO

natural. Vale lembrar o que diz Engels: o que primeiro


Um filme desenhado chama a atenção é o movimento, e só depois aquilo que
se move”.
como um sarape No México, passeando tanto pela pintura mural mexica-
Eisenstein e ¡Que viva México! na – Rivera, Orozco e Siqueiros – quanto pelas formas
José Carlos Avellar de arte popular mexicana, “os instrumentos primitivos,
a ornamentação dos utensílios” e as gravuras de José
Em dois textos escritos entre 1945 e 1946 (Como apren- Guadalupe Posada, que conta “ter percorrido avidamen-
di a desenhar e Como me tornei um diretor de cine- te com as mãos e os olhos”; influenciado tanto pela “es-
ma, reunidos no primeiro volume das Memórias edita- trutura linear, surpreendentemente pura, da paisagem”,
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das em francês em pela Union Générale d‘Éditions em quanto pelo “contorno arredondado dos sombreros dos
associação com a revista Cahiers du Cinéma na coleção peões, pelo branco chapado e pelo retangular de suas
10/18, Paris 1978) Sergei Eisenstein se refere ao Méxi- roupas, que, por sua cor e por suas linhas retas, parecem
co como o espaço e o tempo em que surgiu sua paixão ser o primeiro passo, a tabula rasa, de todas as roupas”,
pelo quadro, seu interesse pela forma interna do plano. no México Eisenstein redescobre o desenho assim como
Conta que em seus primeiros filmes se encontrava espe- redescobre o plano.
cialmente interessado nos movimentos puramente mate-
máticos da idéia de montagem e que por isto dava menor Desenha muito e desenha muito rapidamente – algo pró-
atenção às linhas de composição de cada um dos planos, ximo de uma escrita automática, comenta o pintor Jean
concebidos então como partes que só ganhariam sentido Charlot (que em 1931 viu Eisenstein desenhando em
quando o todo que ajudavam a formar fosse percebido. diversas ocasiões), num depoimento o livro Sergei M.
Eisenstein, a biography de Marie Seton (The Bodley
“Minha paixão pelo quadro veio mais tarde, e embora Head, Londres, 1952): “Ele desenhava tão rapidamente
possa parecer estranho isto é absolutamente lógico e quanto necessário para não deixar escapar os elemen-
tos subconscientes. Planejava o número de desenhos de Os desenhos, portanto, eram desenhados para serem vis-
cada série e a ordem em que eles seriam feitos; consi- tos pelo desenhista, para tornar consciente o seu proces-
derava cada um deles como um fotograma de uma ima- so de criação, para esclarecer para si mesmo como era o
ginária tira de um filme ou uma anotação visual de seu filme que estava fazendo.
pensamento. Costumava dizer que depois iria analisar os
desenhos para descobrir o que estava pensando e como Quinze anos mais tarde, ao escrever sobre os desenhos
estava pensando”. feitos México, Eisenstein disse que eles eram “linhas
para serem vistas como rastros de uma dança. O dese-
nho e a dança nascem, é claro, da mesma fonte e não
passam de duas corporificações do mesmo impulso”;
disse que eles refletem a busca “por um estágio de pu-
rificação interior, a busca de uma linha mais pura, mais
matematicamente abstrata” – um efeito “particularmen-
te vigoroso quando relacionamentos extremamente sen-
suais entre figuras humanas, em geral em situações es-
tranhas e extravagantes, são desenhadas por meio dessa
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linha abstrata, intelectualizada”; disse que os desenhos


eram um modo de perguntar se ele já não dedicara um
longo tempo e espaço de seu trabalho às questões de
montagem e se não deveria, então, “consagrar toda uma
obra (do ponto de vista da pesquisa formal) à questão da
natureza da composição do quadro”.

Desta preocupação, entre outras, mas desta muito espe-


cialmente, nasceu ¡Que viva México!, projeto imagina-
do e parcialmente filmado em 1931 para discutir a ques-
tão do plano e que, por amarga ironia, sobrevive como
um conjunto de planos. Interrompido ao meio da filma-
gem, o filme não pode ser montado por Eisenstein: “Co-
mo uma espécie de punição por não ter deixado quase tores, Eduard Tissé como fotógrafo, Alexandrov como
nenhum lugar para a montagem neste projeto”, disse em roteirista, Eisenstein como diretor. O mesmo ocorre em
1945, “ele apareceu diversas vezes em montagens que S. M. Eisenstein in Mexico, 1933, 50 minutos de pro-
interpretam diferentemente os planos, montagens feitas jeção, produção de Sol Lesser, montagem de Don Hayes
pelos mais diversos montadores. Estas versões suportam e Harry Chandlee. E ainda em Death Day, 1934, 17 mi-
o olhar sem dúvida porque o filme foi, antes de mais nutos de projeção, produção de Lesser e montagem de
nada, pensado do ponto de vista do plano”. Don Hayes. Veio em seguida o filme de Marie Seton,
Time in the Sun, de 1939, 55 minutos de projeção, com
Ele jamais teve em mãos os copiões de ¡Que viva Méxi- montagem de Paul Burnfold; e Mexican Symphony, sé-
co!, que viu uma única vez, em Nova Iorque, depois da rie de seis documentários didáticos de curta-metragem
interrupção do projeto, numa escala da viagem de volta produzidos pela Bell & Howell em 1942, com monta-
para Moscou. As imagens foram utilizados em diferen- gem de William Kruse: Mexico Marches, Conquering
tes filmes nos Estados Unidos – alguns até assinados Cross, Idol of Hope, Land and Freedom, Spaniard and
em seu nome sem que ele tivesse sido sequer consultado Indian e Zapotec Village. Finalmente, em 1957, a produ-
sobre a montagem, como Thunder over México, 1933, ção da Film Library Museum of Modern Art New York,
72 minutos de projeção, produzido por Sol Lesser. Nos 1959, com cerca de três horas de projeção, Eisenstein’s
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créditos, Harry Chandlee aparece como Editorial Su- Mexican Film: Episodes for Study (a few fragmenta-
pervisor; Donn Hayes e Carl Himm como montadores; ry sequences, adverte um letreiro depois do título), de
Kate Gartz, S. Hillkowitz, Otto Kahn, Hunter Kimbrou- Jay Leyda, com os planos que puderam ser preservados
gh, Mary Craig Sinlair e Upton Sinclair como produ- tal como filmados.
Além destas versões americanas (não as únicas, mas as do México na época” – escreveu Eisenstein em suas
mais conhecidas), pelo menos duas montagens foram Memórias; “as referências a problemas sociais entre fa-
feitas na então União Soviética depois da cessão, pelo zendeiros e peões, repressões e revoltas, geravam des-
MoMa de New York, dos negativos originais a Moscou: contentamento”.
¡Que viva México! (Zdravstuyer Meksika), 1978, 90
minutos de projeção, com supervisão de Grigori Ale- Não existem anotações precisas sobre como deveria ser
xandrov e de Nikita Orlov; e Mexican Fantasy (Sergei montado o material, mas diversas observações feitas an-
Eisenstein Meksikanskaya fantasiya) 1998, 99 minu- tes e depois da filmagem, a visão dos desenhos feitos no
tos de projeção, com supervisão de Oleg Kovalov. México e o conhecimento do material assim como orde-

A montagem de Jay Leyda reúne os planos colados na


ordem da filmagem, respeitando-se o tempo original
de cada tomada, sem qualquer tentativa de edição ou
acompanhamento sonoro, separados apenas por letrei-
ros indicativos das seqüências a que pertencem. Todas
as outras edições buscam interpretar os planos a partir
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dos modelos de narrativa da indústria audiovisual então


dominantes ou a partir dos modelos de montagem dos
filmes mudos de Eisenstein – duas soluções igualmen-
te distantes do que ele pretendia. Ele não deixou uma
anotação para orientar como deveria ser a montagem de
¡Que viva México!, nem mesmo um roteiro detalhado
que pudesse servir de guia. Um primeiro esboço de ro-
teiro, datado de 15 de abril de 1931, e o tratamento mais
detalhado enviado pouco depois a Upton Sinclair (publi-
cado na revista Experimental Cinema, número 5, Nova
Iorque, 1934) são “intencionalmente suavizados, porque
se dirigiam ao grupo que, em torno de Sinclair, deveria
financiar o projeto” e também porque era preciso pas-
sar pelo “olhar desconfiado da censura governamental
nado por Jay Leyda, sugerem uma solução mais próxi- universidades alemãs, inglesas e francesas, e encontra-
ma de Ivan, o terrível – a montagem feita para o plano se com artistas e intelectuais europeus (Käthe Kollwitz,
– que dos filmes mudos de Eisenstein – o plano feito Paul Éluard, Blaise Cendrars, Albert Einstein, John
para a montagem. Grierson, James Joyce, Bernard Shaw, Le Corbusier) e
em abril de 1930, negada a autorização para permanecer
A montagem em função do plano: entre o final do cine- na França, assina um contrato com a Paramount e segue
ma mudo e o começo do sonoro, ¡Que viva México! co- para os Estados Unidos.
meça a desenhar o plano cinematográfico não só como
elemento do conflito a ser obtido pela montagem mas Em Hollywood, Eisenstein tem seu contrato com a Pa-
também como um espaço dotado de um conflito interno, ramount rompido em outubro, depois de propor e ver
como um espaço a ser dramaturgicamente explorado em recusado uma série de projetos (entre eles: Ouro de
profundidade, feito para se entrar nele, jogar-se dentro Sutter/ Sutter’s Gold, baseado em Blaise Cendrars, e
dele, ou saltar para trás, sair dele, ampliar o campo de Uma tragédia americana / An American Tragedy, ba-
visão. O plano em função da montagem: Greve (19224), seado em Theodore Dreiser, escritos com a colaboração
O encouraçado Potenkin (1925) e Outubro (1928) de Grigori Alexandrov e Ivor Montagu, e publicados no
eram já bastante conhecidos e admirados na Europa e livro With Eisenstein in Hollywood, de Ivor Montagu,
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nos Estados Unidos quando Eisenstein deixa a União International Publishers, Nova Iorque, 1969). Dois me-
Soviética, em agosto de 1929, pouco antes da estréia de ses depois, em primeiro de dezembro, assina um contra-
A linha geral ou O velho e o novo, filme que ele come- to com o escritor Upton Sinclair para a produção de um
çara a filmar dois anos antes e interrompera para reali- “filme de tema não político” sobre o México.
zar Outubro. Viaja em companhia do fotógrafo, Eduard
Tissé, e do assistente de direção, Grigori Alexandrov. Os Ao lado de um estudante mexicano, Agustín Aragón
três (mais o diretor Vsevolod Pudovkin) tinham divul- Leiva, como guia e tradutor, e do cunhado de Sinclair,
gado em julho de 1928 um texto a favor do cinema so- Hunter Kimbrough, como produtor, Eisenstein, Tissé e
noro e das novas possibilidades de montar contrapontos Alexandrov chegam ao México no dia 9 de dezembro
audiovisuais. (com uma carta de recomendação assinada pelos dire-
Na Europa (na Suiça, Alemanha, Inglaterra e França, pe- tores Robert Flaherty e Dudley Murphy). Começam a
ríodo atribulado pelas freqüentes proibições e pedidos filmar no dia 13 (a festa de Nossa Senhora de Guadalupe
de expulsões do país) Eisenstein participa do primeiro e uma tourada), mas são detidos pela polícia: filmavam
congresso de cinema de La Sarraz, faz conferências em sem autorização oficial. Liberados depois da indicação
de um supervisor mexicano que deveria acompanhar a
filmagem, o crítico de arte Adolfo Best Maugard, Ei-
senstein retoma o trabalho em janeiro de 1931: viajam
para Oaxaca (no dia 14 Kimbrogh envia um telegrama
para Sinclair: “Eisenstein and boys leaving immediately
aeroplane for Oaxaca. Earthquake”) e realizam um do-
cumentário de dez minutos que uma semana mais tarde,
no dia 22 de janeiro, é exibido nos cinemas da Cidade do
México: Terremoto em Oaxaca. Entre janeiro e abril
viaja muito, da Cidade do México para Tehuantepec,
para o Norte e para o Sul do país até chegar à fazenda
Tetlapayac. Neste período é que surge a idéia de ¡Que
viva México!

Antes de começar a filmar, e mesmo durante as filma-


gens, desenha muito. A lápis, em folhas do papel de car-
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ta do Imperial Hotel da Cidade do México, no papel de


carta de Julio Saldivar, o proprietário da fazenda Tetla-
payac, por trás de uma página datilografada com idéias
para o filme, em qualquer pedaço de papel disponível:
observações soltas – os peões de Merida, Xochimilco,
Tehuantepec ou de Tetlapayac; retratos de amigos – o
pintor Gabriel Fernández Ledesma; e, principalmente,
séries dedicadas a um mesmo tema: O destino do peão
revoltado, O beijo de Judas, Salomé e São João Ba-
tista, David e Golias, O suicídio de Werther, O barro-
co mexicano, José e a mulher de Potifar, A morte do
touro, Verônica, O Cristo crucificado. Algumas destas
séries – Sansão e Dalila e A morte do rei Duncan, por
exemplo – contam com mais de cem desenhos. Pelo mo-
vimento da linha no papel, pela angulação e dinamismo nários, ou gestos dos intérpretes. São um outro modo de
das figuras desenhadas, pela sugestão de uma possível dar forma ao tema. São, ao mesmo tempo, inteiramente
seqüência ou montagem entre eles, os desenhos pare- independentes e intimamente ligados ao filme que teria
cem cinema. De um certo modo, são parte integrante do quatro histórias, Sandunga, Maguey, Fiesta e Solda-
projeto ¡Que viva México!, cinema no papel, imagens dera, um prólogo, um epílogo e três canções populares,
tão cinematográficas quanto aquelas que registrou em Sandunga, El Alabado e Adelita (no filme, “nem tanto
película mas não pode montar. como músicas, mas como expressões dotadas de signifi-
cado próprio na cultura mexicana”).
Eisenstein desenhara antes e voltará a desenhar depois
do México. Como nota em suas Memórias: “Deixe-me Os desenhos são independentes e simultaneamente fru-
começar por dizer que jamais aprendi a desenhar. É por tos deste projeto de discutir (do ponto de vista formal)
isso que desenho e é assim que desenho”, guiado pela o plano e (do ponto de vista temático) o rompimento do
lembrança do engenheiro Afrosimov, amigo de seu pai, plano, como “o homem vai além do limite imposto pela
que costumava fazer surgir, “diante dos olhos de espec- morte ao se realizar enquanto um ser social, coletivo”.
tador deliciado” do menino Eisenstein, toda a sorte de bi-
chos - cachorros, gatos e, ele se lembra em especial, uma Embora tenha realizado filmagens entre janeiro e março,
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rã rechonchuda de pernas arqueadas – desenhados com a idéia do filme parece ter-se concretizado apenas em
uma linha que pula e se move para traçar o contorno do abril, depois da chegada a Tetlapayac, de acordo com
objeto e, magicamente, torná-lo visível em traços de giz a carta (15 de abril de 1931) enviada a Upton Sinclair.
branco sobre o fundo azul escuro. Eisenstein desenhara O texto que define a estrutura de ¡Que viva México!
antes, movido pela lembrança da linha como um rastro começa com uma pergunta, “Sabe o que é um sarape?”,
do movimento, para por meio do desenho pensar o filme para logo explicar: “poderia ser o símbolo do México”
que estava fazendo. Mas o que dá um caráter especial porque as culturas mexicanas coexistem tal como as lis-
aos desenhos feitos sob o impulso de ¡Que viva México! tras do sarape, próximas umas das outras e formando
é o fato de que, mesmo quando se referem a cenas do fil- contrastes violentos. E explicar que “nenhum argumento
me (as notas gráficas para a filmagem da festa de Corpus ou história única poderia ser imposta a este sarape sem
Christi ou para a filmagem da morte de Sebastián, enter- ser falsificadora ou artificial” – daí a decisão de “to-
rado vivo, de pé, até os ombros, a cabeça descoberta para mar a constrastante independência de suas cores como
ser pisoteada por cavalos), tais esboços não são registros motivo para a construção de um filme em seis partes”
utilitários para a composição dos planos, figurinos, ce- de diferentes características, personagens e paisagens.
Diferentes, mas “reunidas pela unidade do tecido”, uma
construção rítmica e musical que envolve a idéia do cír-
culo eterno tal como desenhado pela cultura mexicana:

“A morte. Crânios humanos. Crânios de pedra.


Deuses astecas e terríveis divindades de Yucatan.
Imensas ruínas. Pirâmides. Um mundo que foi e
não é mais. Seqüências intermináveis de pedras e
de coluna. E rostos. Rostos de pedra. E rostos de
carne e osso. O homem de Yucatan de hoje. O mes-
mo que viveu há milhares de anos. Imutável. Idên-
tico. Eterno. E a grande sabedoria do México com
respeito à morte. A unidade entre a vida e a morte.
O desaparecimento de um e o nascimento do se-
guinte. O círculo eterno. A sabedoria ainda maior
do México que consiste em festejar este círculo
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eterno. O dia dos Mortos no México. Dia de festa e


de alegria. Dia em que o México provoca a morte
e ri - a morte é apenas uma etapa em direção a um
outro ciclo de vida”.

Os fatos em torno do cancelamento do projeto, em ja-


neiro de 1932, são razoavelmente conhecidos mas não
explicam muito: Upton Sinclair teria interrompido o tra-
balho antes da filmagem do episódio Soldadera porque
o filme teria ultrapassado o orçamento (50 mil dólares)
e o tempo de filmagem (quatro meses) previstos; ou
porque considerava absurda a repetição de tomadas de
um mesmo plano; ou porque recebeu um telegrama de
Stalin com a informação de que Eisenstein perdera “a co, considerados pornográficos, degenerados. “Os fun-
confiança de seus camaradas na União Soviética” e pas- cionários da alfândega abriram as malas para inspecio-
sara a ser considerado “um desertor”: “as pessoas não nar o que elas continham e descobriram as coisas mais
se interessam mais por ele”. Por um destes motivos, ou sujas e degradantes que já tinham visto”, conta Sinclair
pela soma de todos eles e a presença de alguns outros em carta citada por Marie Seton em Sergei M. Eisens-
mal-entendidos, ¡Que viva México! foi interrompido. tein, a biography. Só três meses depois de interrompidas
Eisenstein não filmou em demasia comenta Ivor Mon- as filmagens o diretor conseguiu um visto de trânsito
tagu em With Eisenstein in Hollywood, “nem gastou para viajar para a União Soviética via Nova Iorque e
demais; na realidade trabalhou economicamente, como uma promessa, jamais efetivada, de envio dos copiões
demonstram as imagens que puderam ser recuperadas”; para que ele pudesse concluir o filme.
mas como nem Eisenstein nem Sinclair sabiam prever
com exatidão o necessário para a realização de um filme
no México, a previsão inicial revelou-se insuficiente. E
mais, prossegue Montagu, Sinclair errou ao dar a seu
cunhado, Hunter Kimbrough, uma função que ele des-
conhecia por completo, a de produtor executivo. No Mé-
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xico para controlar a produção, Hunter não compreende


porque cada ação tem de ser filmada mais de uma vez. O
material, enviado para revelar em laboratórios nos Esta-
dos Unidos, começou a parecer repetitivo e desordenado
para Sinclair, que começa a se perguntar se Eisenstein
tinha enlouquecido (“Is the mand mad?”). Na verdade,
diz Montagu, Eisenstein filmou bem menos, por exem-
plo, do que Robert Flaherty para O homem de Aran /
Man of Aran, feito quase ao mesmo tempo.

O desentendimento se agravou no período em que Ei-


senstein ficou retido no México à espera de um visto
para entrar nos Estados Unidos e com a apreensão pela
alfândega norte-americana dos desenhos feitos no Méxi-
Eisenstein viu o material filmado uma única vez, numa O prado de Bejin, em 1935. Somente seis anos mais
projeção em Nova Iorque, em maio de 1932, pouco antes tarde, em 1938, pode concluir um outro projeto, Ale-
de seguir viagem para Moscou (em companhia de Ber- xandre Nevsky.
tolt Brecht, convidado por ele para mostrar o filme que
realizara na Alemanha com Slatan Dudow, Kuhle Wam- Inacabado, ¡Que viva México! – bem precisamente o
pe / Barrigas frias). Os “pornográficos e degradantes” conjunto de imagens filmadas e desenhadas que Eisens-
desenhos mexicanos ficaram retidos na alfândega. O tein produziu no México – é provavelmente uma de
material filmado foi vendido em lotes pelos produtores suas criações mais originais. Os desenhos são como um
para a montagem de documentários sobre o México. De fotograma, como pedaço de uma imagem em movimen-
retorno à União Soviética, Eisenstein desenvolveu um to. Os planos de cinema são como uma pintura mural.
sem número de projetos que não se concretizaram (entre O filme como coisa acabada não existe, mas é possível
eles, uma adaptação de Ulysses, de James Joyce) e teve apanhar cada uma das imagens que iriam construir o fil-
um filme censurado depois de concluídas as filmagens, me como expressão independente. Os desenhos existem
acabados no papel, mas parecem feitos como parte de
um movimento que não se esgota neles: como anotações
de uma composição que examina e desmonta a natureza
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para depois remontá-la numa ordem de dinâmica e ex-


pressividade própria. Na tela e no papel estão registros
do movimento no instante em que o observador se dá
conta do que se movimenta.

A estrutura de ¡Que viva México! parece ter nascido de


idéias esboçadas na Declaração sobre o futuro do ci-
nema sonoro, texto de 1928, e no ensaio Dramaturgia
da forma do filme, originalmente escrito em alemão,
em 1929, revisto, ampliado e traduzido para russo nes-
te mesmo ano, publicado em inglês em 1930 na revista
Close Up, e mais tarde incluído em A forma do filme.
Nos textos, se esboça uma fusão de idéia de montagem
com a de uma mixagem em que o som não está em sin-
cronismo com a imagem e uma imagem não está em
sincronismo com outra.

Primeiro, não-sincronizar as imagens visuais as imagens


sonoras. Apenas um uso polifônico do som com relação a
cada peça de montagem poderá levar o cinema à criação
de um contraponto orquestral das imagens visuais e so-
noras. “Este novo descobrimento técnico não é um mo-
mento acidental na história do cinema, mas um caminho
orgânico livre para por fim a uma série de impasses que
pareciam não ter solução”, como as legendas dos filmes
mudos e os diversos planos de detalhes explicativos da
ação que retardavam o ritmo do filme. O som, portanto,
não como um apêndice do que se vê no plano mas como
um elemento constitutivo dele. Depois, compor o plano,
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“o fragmento de montagem cuja essência reside em sua


falta de existência como unidade singular”, como, simul-
taneamente, algo dotado de existência singular ou pelo
menos de uma natureza singular. O conhecimento dessa
singularidade é essencial para o trabalho de montagem,
para a colisão (para pensar o plano não como elemento
mas como célula de montagem) e para a superposição
(os planos são percebidos não um depois do outro, mas
um em cima do outro: a ilusão de movimento nasce do
processo de superposição do sinal da posição atual do
objeto sobre aquele outro, conservado na memória, da
posição anterior do mesmo objeto). Colisão, superposi-
ção, não-sincronização, criam o sentido do filme.
Imaginemos os desenhos e as imagens filmadas no Mé- Sugestões de leituras:
xico, os ensaios escritos antes delas e lembrados acima, Sergei Eisenstein: O sentido do filme e “Dramatur-
e os ensaios escritos pouco depois do projeto mexicano gia da forma do filme”, em A forma do filme, Jorge
e reunidos em O sentido do filme (“Palavra e imagem”, Zahar Editor, Rio de Janeiro.
“Sincronização dos sentidos”, “Cor e significado” e Sergei Einsenstein: Memórias imorais, uma auto-
“Forma e conteúdo: prática”) como células de monta- biografia, Companhia das Letras, São Paulo.
gem de um contraponto orquestral de imagens visuais e Eduardo de la Vega Alfaro: Eisenstein e a pintura
sonoras. Imaginemos que o que não pode se concretizar mural mexicana, Fundação Memorial da América
em ¡Que viva México! tenha alimentado não só textos Latina, São Paulo, Editora Aeroplano, Rio de Janei-
teóricos como a construção de Alexandre Nevsky e ro.
Ivan, o terrível. François Albera, Eisenstein e o construtivismo rus-
so, Cosac& Naify, São Paulo.
Vejamos ¡Que viva México! não apenas como a histó-
ria trágica de um filme não terminado, o que ele efeti-
vamente é, mas, também, e principalmente, como uma
aventura da criação, como a realização de uma vontade
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artística, o que ele também é: idéia que se afirma apesar


de impedida de expressar por inteiro.

Ver assim, a invenção como ela se inventou, torna pos-


sível perceber estes desenhos feitos com a câmera ou
com o lápis como um roteiro ou expressão antecipada
do audiovisual que se produz hoje, especialmente des-
de que a incorporação de técnicas digitais ampliaram as
possibilidades de, no audiovisual, filmar e gravar sons
com liberdade e simplicidade semelhantes às das linhas
dos desenhos do engenheiro Afrosimov, que ao traçar
as pernas arqueadas de uma rã rechonchuda ensinou ao
cineasta que o desenho e a dança nascem da mesma fon-
te.

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