Você está na página 1de 16

A COMUNICAÇÃO ENTRE HÁBITO E CONSCIÊNCA (1)

Lucrécia D´Alessio Ferrara ( 2)

Resumo
No âmbito de pesquisa mais ampla que se encontra em desenvolvimento, mobilizam-se os seguintes
conceitos: homeostase, mediação, meios tecnológico e comunicativo, epistemologia como
conhecimento do conhecimento, habito, campo científico, equilíbrio, entropia e interação. Da
reflexão sobre esses conceitos, esse trabalho evolui para o estudo da epistemologia que escreve a
narrativa histórica e ontológica que vai da mediação à interação onde se superam as técnicas e
tecnologias como instrumentos para alcançar suas transformações em meio comunicativo. Nessa
análise, observa-se que a comunicação é inerente ao exercício contínuo das relações humanas e das
práticas científicas que constituem a emergência da sua consciência e, distantes de qualquer
polaridade moral, abrem dimensões evolutivas de ordem estética e ética.

Palavras-chave : epistemologia, comunicação, homeostase, habito, mediação, entropia, ação


interativa

1.Comunicação como ciência aplicada

Esse texto é dedicado ao estudo de duas questões: 1. como a tecnologia se transforma


em meio comunicativo, 2. como se processa a evolução que vai da mediação à interação
ou da comunicação como entretenimento ao comunicar como ação, entendendo-se que
entre eles não há dicotomia, mas continuidade em transformação. Ou seja, tem algum
sentido trabalhar no reverso do sentido comum e propor que a tecnologia é apenas
suporte para a comunicação? É sensato indagar como a comunicação ultrapassa a
mensagem que transmite, para se transformar no vínculo inoculador da ação? É possível
supor que o eixo da epistemologia da comunicação se encontra, não nos efeitos do
discurso transmissivo, mas nas possibilidades de saber como se dá o processo que nos
leva da mediação à interação?
Antes de tentar apreender os estímulos dessa continuidade ou de saber como a
tecnologia interfere na construção de um meio comunicativo, é necessário entender
dois contextos importantes que nos remeterão às últimas décadas do século XIX e às
primeiras, do século XX.

1
Trabalho apresentado ao GT de Epistemologia da Comunicação por ocasião da realização da XXI
Compós – Junho/2012
2
Lucrécia D´Alessio Ferrara- Professor doutor junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica da Pucsp ldferrara@hotmail.com
Se os sistemas de transporte fluvial, marítimo e terrestre propiciaram facilidades
e rapidez de contatos, o desenvolvimento da imprensa permitiu a divulgação do
jornal e a democratização da informação sinalizando que a era da comunicação
não só chegara, como se expandia e se espalhava com rapidez e eficiência na
massa social que substitui a romântica multidão do início do século XIX e das
mudanças patrocinadas pela Revolução Industrial Mecânica. Oficializava-se a
emergência do contexto histórico que submeteu a comunicação à técnica e suas
consequências sociais que levaram os homens à concentração populacional em
cidades e a outras maneiras de produzir, ganhar a vida e se relacionar.
Aderindo à ideologia do moderno apoiado na crença de um progresso
inalienável, certeiro e inquestionável como meta a ser atingida, a comunicação se
perfila, sem hesitação, à necessidade de planejar, divulgar e disseminar as
diretrizes de uma sociedade cada vez mais articulada e organizada em um plano
de objetivos centralizados que devem ser propagados, comunicados. Na base
dessa origem e na eficiência desse programa é necessário convir que a
comunicação é uma ciência moderna que atua como dispositivo estratégico (
AGAMBEN, 2009, p. 26) de um plano que a identifica com os interesses do
Estado Nação e com a persuasão política voltada para a manutenção do poder
quase eterno, conquistado pelo capital industrial ( FOUCAULT, 1966). Nesse
sentido, a comunicação surge como ciência aplicada em um duplo sentido: de um
lado aplica-se como dócil instrumento a serviço de interesses que a ultrapassam;
de outro lado, essa aplicação a transforma em ciência que se submete às normas
que lhe dão base científica e identificam sua epistemologia.
Assim como as características de sobrevivência e de relacionamento gerados
pela concentração nos grandes centros urbanos tornou impossível a vida do
cotidiano rural, as bases das relações sensíveis foram substituídas pelo
intelectualismo que, como suposta proteção, procurava racionalizar a
instrumentalização técnica do cotidiano e dar origem àquilo que se conhece
como supra-individualismo e constitui uma das matrizes fundamentais da grande
narrativa modernista:

Là où les produits de la vie spécifiquement moderne sont interrogés sur leur


réalité intérieure, pour ainsi dire le corps de la culture est interrogé sur son
âme ...... La réponse devra rechercher l´equation, qui fonde une telle
formation entre les contenus individuals de la vie et ses contenus
supraindividuels et rechercher les adaptations de la personnalité grâce
auxquelles elle s´accommode des forces que lui sont extérieures”
(SIMMEL, 2004, 170) 3

Nesse contexto circula um programa tácito que se resume a escolher o que se


deve ser e a comunicação se adapta à performance técnica que superestima sua
dimensão veiculativa em detrimento da possibilidade vinculativa. A
comunicação é tanto mais aplicada quanto mais instrumental for a sua ação
prática e seu desenho científico faz eco à sua própria essência aplicativa. Uma
ciência moderna submissa à sua aplicação instrumental e pouco disponível à
epistemologia que contempla invenção e autonomia. Enquanto ciência aplicada,
a comunicação é simples veículo tecnológico, fora do qual é impossível
apreender outra evolução.

2. A epistemologia das mediações

Entender as circunstâncias históricas da definição da comunicação como área


científica não são suficientes para perceber a natureza da sua importância
cultural e, sobretudo, como ela interfere socialmente na história humana, assim
como são insuficientes para saber a natureza epistemológica que delas se
originaram. Qual a tônica dos conhecimentos que decorreram daquelas raízes
históricas? Ou o que quer dizer comunicação de base mediativa?

No uso comum observa-se uma tendência para estabelecer certa sinonímia entre
os termos mediação e interação, entendendo que , entre eles, só há lugar para
uma unidade comunicativa sem ponderáveis diferenças lógicas. A emergência
dos meios técnicos permitiu que se evidenciasse, não só a eficiência da
comunicação como instrumento de divulgação de interesses políticos e
produtivos, mas sobretudo, permitiu perceber a diferença que se pode
estabelecer entre a comunicação direta ou face a face em contextos de co-
presença, e aquela outra, impropriamente considerada de massa, mas mais
corretamente entendida como mediada através de meios técnicos que superam a

3
Assim como os produtos da vida especificamente modernos são interrogados sobre a sua realidade
interior, o corpo da cultura é interrogado sobre sua alma.... A resposta deverá considerar a equação que
corresponde à relação entre os conteúdos individuais da vida e seus conteúdos supra-individuais e
procurar as adaptações da personalidade graças às quais ela se acomoda às forças que lhe são
exteriores.” (SIMMEL, 2004, p170)
citada co-presença, substituindo-a pela, sempre crescente, reorganização da
relação espaço-tempo:

:“ o que importa na comunicação de massa não está na quantidade de


indivíduos que recebe os produtos, mas no fato de que estes produtos estão
disponíveis em princípio para uma grande pluralidade de destinatários.....O
advento da telecomunicação trouxe uma disjunção entre o espaço e o
tempo no sentido de que o distanciamento espacial não mais implicava o
distanciamento temporal” (THOMPSON, 2002, ps.30 e 36)

Porém, para o interesse epistemológico desse trabalho, o que mais interessa não
é, apenas, essa diferença, mas ponderar que ela chama a atenção para duas
instâncias fundamentais dos processos de comunicação que se referem às
delimitações entre emissor e receptor de mensagens.
Nesse território transmissivo, os meios técnicos passaram a conferir ao emissor
um poder que lhe confere clara dimensão de superioridade em relação ao
receptor, entendido erroneamente como passivo e inerte ante os estímulos
emissivos. Expandindo a reflexão, observa-se que a equação adaptativa, que se
estabelece entre o poder do emissor e a resposta do receptor, reproduz a relação
que o Iluminismo científico estabeleceu entre o sujeito do conhecimento em
relação à necessidade explicativa de um objeto submisso à hegemonia do
conhecimento cuja hegemonia cabe ao primeiro. Nesse sentido e mais uma vez,
observa-se como a comunicação se afirma enquanto ciência moderna que
reproduz, na sua essência epistemológica, a própria equação cognitiva instaurada
pelo Iluminismo onde o movimento moderno fincou suas raízes.
Nessa relação de poder entre emissor e receptor, pode-se encontrar algumas
matrizes do que estamos propondo entender como epistemologia das mediações.
Se as relações de comunicação garantem ao emissor um definitivo poder sobre o
receptor; esse poder não se refere à força física, política ou produtiva, mas é
assegurado por uma ênfase simbólica ( THOMPSON, 2002, p 24), acrescida
quando passamos da relação de co-presença aos emprego dos meios técnicos
que, além de comunicar, distinguem-se pela capacidade reprodutiva e
conservativa, se comparados à fragilidade e fugacidade das relações de co-
presença das comunicações face a face.
Nesse sentido, é necessário frisar que, ao lado da analogia que se estabelece entre
emissor/receptor e sujeito/objeto do conhecimento como domínios
epistemológicos, é preciso confirmar a distância que se processa entre
comunicações de co-presença e comunicações técnicas. Entre elas, se insinua a
característica básica de uma epistemologia das mediações que, simbolicamente,
traduz o poder do emissor ou do sujeito em uma espécie de tutela mediática ou
cognitiva que indica os caminhos da recepção e as diretrizes da produção de
conhecimento.
Se a tutela mediática é assegurada pelo caráter transmissivo da comunicação
apoiada na mensagem ou no significado daquilo que se comunica, a tutela
cognitiva se apóia no método que, oriundo da competência estratégica do sujeito
do conhecimento na manipulação de observação do objeto ou na descrição dos
dados que o constituem, assegura um desenho que modela o objeto conforme os
interesses de análise pré-constituídos no próprio método, gerado pelo sujeito do
conhecimento. Um irrefutável plano vicioso unificador que reproduz, na
recepção, a mensagem emitida e transmitida e, no objeto, os objetivos do
conhecimento estabelecido e já consagrado.
Nesse programa reiterativo e redundante, se identificam tendências que
marcaram a cultura do século XIX e das primeiras décadas do século XX que,
apoiadas na simetria entre emissor e receptor mediáticos ou entre sujeito e objeto
do conhecimento, deixam-se balizar pela necessidade de homeostase, ordem e
equilíbrio com características monocórdicas e centralizadoras nas suas
dimensões mediáticas e epistemológicas. Ao mesmo tempo, essa centralização
procura simplificar o processo comunicativo reduzindo-o a uma via de mão
única e naturalizar o percurso cognitivo, banalizando e unificando o processo do
conhecimento submisso ao método pré-constituído pela teoria.

3. A fortuna crítica das mediações

A ciência matemática da informação ( SHANNON e WEAVER, 1949) procurou


planejar a comunicação como algo que poderia controlar meios técnicos,
transmissões e, no limite, a própria mensagem sob o regime de ordem e
equilíbrio estabelecido pelo emissor que poderia ser um canal maquínico ou
humano mas, de todo modo, capaz de rever desvios de rota, desequilíbrios de
engrenagem ou estratégias, desordens naturais, biológicas ou sensíveis. Essa
perfeita ordem homeostática era responsável por unificar e jamais unir poderes,
políticas, instituições, cultura e sociedade. Nesse equilíbrio, procura-se
transformar a realidade em ficção, criando uma narrativa que mais deveria
convencer do que comunicar. Um programa para forjar uma atuação confiável
enquanto técnica, mas instável ou precária enquanto comunicação. Nessa
ambiguidade se reconhece as distâncias que limitam a informação, a
comunicação e a própria fortuna crítica das mediações.
Esse percurso das mediações enfrenta diversas matrizes que, paradoxalmente, ao
mesmo tempo em que procuram entender sua base homeostática, traduzem-na
criticamente para procurar distanciá-la da técnica e aproximá-la dos homens e da
cultura. É longa a lista dessa fortuna crítica.
Jesus Martin BARBERO no célebre prefácio à quinta edição espanhola do seu
não menos conhecido Dos Meios às Mediações (1987) trata de, criticamente,
estabelecer um limite capaz de relativizar a transmissibilidade das mensagens
como única possibilidade das mediações enquanto submissa à ação hegemônica
dos meios:

“Pervertendo o sentido das demandas políticas e culturais que encontram de


algum modo expressão nos meios, deslegitima qualquer questionamento da
ordem social à qual somente o mercado e as tecnologias permitiriam dar
forma. Este último é o projeto hegemônico que nos faz submergir numa
crescente onda de fatalismo tecnológico, e frente ao qual resulta, mais
necessário do que nunca, manter a estratégica tensão, epistemológica e
política, entre as mediações históricas que dotam os meios de sentido e
alcance social e o papel de mediadores que eles possam estar
desempenhando hoje. Sem esse mínimo de distanciamento – ou
negatividade, diriam os frankfurtianos - nos é impossível o pensamento
crítico. ( BARBERO, 1987. p. 12)

Se os meios são reduzidos à dimensão de simples canais mediadores,


relativizando-se sua capacidade mediática, verifica-se que a relação
emissor/receptor analisada anteriormente perde sua característica básica, pois se
coloca em questão a indispensável simetria entre emissor e receptor,
indispensável para que a homeostase e o equilíbrio entre ambos se identifique e
seja mantida a hegemonia dos meios. Na observação de BARBERO, fica claro
que se coloca em questão a anterior hegemonia dos meios que constituía padrão
da relação comunicante na epistemologia das mediações. Submetida à crítica,
observa-se que se coloca em questão o conceito de comunicação como
decorrência do domínio das tecnologias e suas técnicas.
Essa tendência passa a ser constante na fortuna crítica das mediações à medida
em a técnica progride da mecânica, para a elétrica e eletrônica. Altera-se o
conceito de comunicação, pois se passa a observar que ela não é consequência
automática da tecnologia ou das técnicas ou do equilíbrio estocástico planejado
pela necessidade de ordem de um sistema fechado e linear. Rompe-se a simetria
homeostática entre emissor e receptor e a comunicação emerge como realidade
característica das relações humanas motivada pela necessidade de subsistência
física e das relações que marcam o convívio com a natureza e entre os homens.
Distinguem-se o meio tecnológico e o meio comunicativo que, embora atingido
pela técnica, dela se distingue, ao ultrapassá-la para construir a cultura e
transformar as relações sociais.
Porém, aquela exigência homeostática é forte o bastante para não só atingir a
relação entre emissão e recepção na transmissão de mensagens, mas também
para manter um sistema de ordem, aparentemente indispensável para a
orientação dos comportamentos e valores que atuam como estratégias da
organização social:

“O habitus manifesta-se..... no aspecto físico, um porte, uma postura, que é


a sua transcrição mais diretamente visível, e a recepção social dada a esses
sinais visíveis reenvia à pessoa em causa uma imagem de si mesma que faz
com que se sinta ou não autorizada e encorajada nas suas disposições, que,
em outros, poderiam ser desencorajadas ou interditas.” ( BOURDIEU,
2001, p 66)

O famoso conceito de BOURDIEU assinala o hábito como tradução daquela


necessidade de equilíbrio social, assim como se espelha a homeostase científica
que regrou a epistemologia que entende a comunicação como decorrência dos
meios técnicos que, hegemônicos como aponta BARBERO nas primeiras
edições do seu Dos Meios às Mediações, atuaria como parâmetro das
mediações, subjugadas às tendências homeostáticas que interessam a uma
estratégia de poder dos meios, mas muito distante da complexidade da
comunicação como necessidade humana; reduz-se a comunicação à informação,
confundindo-as e tudo transformando em realidades planejadas para atender a
necessidades de um programa interessado na manutenção de poder atendido
pelos meios técnicos. Do ponto de vista epistemológico, o habitus social se
traduz em escolástica:
“ A noção de habitus é, talvez, particularmente útil quando se trata de
compreender a lógica de um campo como o campo científico em que a
ilusão escolástica se impõe como uma força particular. Tal como a ilusão
do lector levava a apreender a obra de arte como opus operatum , numa
“leitura” que ignora a arte ( no sentido de Durkheim) como “prática pura
sem história”, a visão escolástica que parece impor-se muito especialmente
em matéria de ciência impede que se conheça e se reconheça a verdade da
prática científica como produto de um habitus científico, de um sentido
prático (de tipo muito particular). ( BOURDIEU, 2001, p. 58)

Esse “sentido prático de tipo muito particular” coloca em questão não só a


homeostase do habitus social mas, sobretudo, promete uma revisão das
mediações, inscrevendo outra dimensão à sua fortuna crítica pois assinala que,
do ponto de vista epistemológico, a própria necessidade de controle e equilíbrio
daquilo que se repete para que não se degenere não tem sentido, mas exige a
revisão constante dos seus conceitos, métodos, verdades e axiologias: a
construção de um campo científico da comunicação exigiria a revisão das
dimensões homeostáticas das mediações, para inseri-lo na aventura heurística do
conhecimento que passaria do equilíbrio de uma ação como “modus operatum”
para atingir a prática científica de um “modus operandi”:

“Um cientista é a materialização de um campo científico e as suas


estruturas cognitivas são homólogas à estrutura do campo e, por isso,
constantemente ajustadas às expectativas inscritas no campo.......Esta visão
escolástica está na origem da visão logicista, uma das manifestações mais
conseguida do scholastic bias : exatamente como a teoria iconológica ia
buscar seus princípios de interpretação à opus operatum , à obra de arte
consumada, em vez de se fixar na obra que se faz e no modus operandi ,
uma certa epistemologia logicista constitui em verdade da prática científica
uma norma desta prática retirada ex post da prática científica consumada.(
BOURDEIU, 2001, ps 62 e 58 )

Do pondo de vista da teoria da comunicação como da sua epistemologia, a


fortuna crítica das mediações aponta para a necessidade de dissociar informação
e comunicação e, sobretudo, para a relativização da homeostase das mediações
que se insurgem contra os meios e se instauram no território menos equilibrado e
mais movediço das interações: as mediações confluem e se transformam em
interações gerando uma comunicação menos controlada e mais complexa.
Indo além da área das ciências sociais e caminhando em direção às ciências
humanas, observa-se análoga atuação de ruptura dos bloqueios homeostáticos do
conhecimento ou da ação. A mistura entre o simples e o complexo, entre a ordem
e o caos para gerar uma realidade mais complexa feita de cruzamentos de pares
antes distintos dá lugar a um terceiro que a filosofia contemporânea procura
estudar a fim de recuperar aquele terceiro excluído que, desde Aristóteles, inibia
a lógica e a percepção das identidades feitas de complexidades cruzadas,
misturadas. É nessa base que se entende as distinções que DELEUZE E
GUATTARI propõem entre espaço liso e estriado:

“ Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os dois tipos de
espaço. Outras vezes devemos indicar uma diferença muito mais complexa,
que faz com que os termos sucessivos das oposições consideradas não
coincidam inteiramente. Outras vezes ainda devemos lembrar que os dois
espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não
para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é
constantemente revertido, devolvido a um espaço liso.” DELEUZE E
GUATTARI, 1997, ps.179-180)

Considerando a fortuna crítica das mediações é possível verificar a tentativa de


superar uma lógica de identidade exclusiva ao observar a ilusão epistemológica
que se desenvolve quando se acredita que, no campo científico, é possível
considerar a dicotomia que, em pares, oporia comunicação a informação,
homeostase, mediadores, hábito ou espaço estriado nas suas linearidades
codificadas. Ao contrário, aquela ilusão se desvenda quando se percebe que não
é possível operar epistemologicamente com as mediações técnicas, se não
considerarmos as possibilidades que, muito além das técnicas e das tecnologias,
superam os códigos estocásticos e lineares e sugerem uma comunicação com
desenho menos homogêneo, a fim de salvá-la da própria morte encerrada na
incomunicabilidade que subjaz àquela linearidade equilibrada porque submissa
ao código, (FLUSSER, 2007, p. 88 e segs) à repetição, ao equilíbrio e à
descrição para repetir o conhecimento instituído e monológico de teorias e
métodos consagrados.
A fortuna crítica das mediações aponta para a possibilidade de superar a
epistemologia que se confina nos meios técnicos e obriga a reconhecer que o
cotidiano exercício comunicante é constituído por fissuras que vão além da
técnica para propor-se como relação imprescindível à vida e às relações sociais:
não é dado ao homem deixar de comunicar-se, se quiser subsistir e dialogar com
a complexidade dos demais organismos vivos presentes na natureza.
Nesse âmbito, não se trata de naturalizar a comunicação, mas de entendê-la
como qualidade que permite ao homem ir além de si mesmo na medida em que
se torna senhor das suas invenções e ações comunicantes. A própria crítica das
mediações sugere evoluções interativas que a colocam em outro patamar das
relações sociais e cognitivas: a comunicação não se reduz ao emprego ou às
próteses dos meios técnicos mas, sem os dispensar, vai além para insinuar-se
como necessidade humana na construção de ambientes vitais.

4. A epistemologia das interações

Se as manifestações que ultrapassam as mediações para atingir a complexidade


interativa são mais amplas e não são determinadas pelos meios técnicos,
igualmente, no momento contemporâneo, não é possível considerar que as
interações sejam exclusivas das decorrências das tecnologias digitais.
Entretanto, é necessário considerar que as tecnologias da inteligência, em suas
expansões comunicativas, estimularam aquelas manifestações e chamaram a
atenção da ciência da comunicação para as diferenças lógicas que constroem
outra comunicação.
A emissão difusa que se processa de “muitos para muitos” impõe a rarefação do
foco emissor, a imponderabilidade da recepção e a definitiva compressão espaço-
tempo que altera distâncias e durações, porque o espaço planetário é aqui e o
tempo é agora, real. Porém, se essa compressão decorre das características da
tecnologia digital, os organismos, instituições e sociedade desenvolvem
conseqüências que não foram diretamente planejadas por ela, ao contrário são
decorrências do uso que se faz daquelas possibilidades tecnológicas.
Nesse sentido expandem-se as jornadas de trabalho; as relações interpessoais
decorrem da estranha presença tecnológica que esconde a ausência real; normas,
valores, crenças e ações são definidos e desenvolvidos pela moda que atende aos
interesses do mercado; o cotidiano perdeu sua dimensão de cada coisa ao seu
tempo, pois agora tudo é simultâneo e agora, embora os rastros daquelas
decorrências sejam considerados “laços fracos” ( GRANOVETTER, 1973, ps
1360-1380).
Nesse clima, não nos comunicamos, mas estamos em comunicação com
tecnologias fixas e móveis aderentes ao corpo e, mais do que nunca, extensões
dos nossos sentidos, vontades e decisões. O digital nos faz estar em
comunicabilidade, embora ainda conservemos o hábito de imaginar e de perceber
que as tecnologias exerçam algum poder que nos é estranho. Ao contrário, esse
poder também se tornou difuso porque, agora, a comunicação somos nós: corpo,
mente e consciência interativos.
Entretanto, a tecnologia digital interfere, mas não determina nossa interação
cotidiana. Se procurarmos desenvolver uma epistemologia das interações,
veremos que elas são antigas, sofreram a influência das tecnologias anteriores ao
digital e sempre apresentaram características cognitivas distintas. Embora nos
restrinjamos a algumas manifestações da pós-segunda grande guerra, é longa a
lista das raízes interativas que marcam a História das Teorias da Comunicação e
estão presentes desde o início oficial daquela história.
Quase simultâneas às pesquisas empíricas de natureza pragmática desenvolvidas
pela Escola de Colúmbia, em 1940, as manifestações da Escola de Palo Alto
recuperaram o modelo retroativo ( feed back) proposto por WIENER no âmbito
da Teoria Matemática da Informação e, sob a liderança de BATESON,
propuseram a célebre teoria do “duplo vínculo” (1972) que envolve a decisão do
receptor na escolha interativa para a interpretação de mensagens de sentido
dúbio e indeciso e acabam por não só criar o termo interação, mas também, as
bases do sentido que será desenvolvido posteriormente.
Desde MACLUHN (2005, p. 268) as comunicações poli-sensíveis atraíram a
atenção para um ambiente convergente onde todas as comunicações eram
simultâneas e, através dos sentidos, faziam entender que a comunicação vai além
de um simples contrato discursivo e, ao contrário, envolve nosso cotidiano
transformado em uma galáxia, semelhante àquela instaurada pela invenção da
imprensa.
Sob o domínio da eletrônica, da televisão em particular, observa-se uma atuação
inesperada e interativa do receptor que, pelo exercício da ação que produz o
efeito “zapping”, pretende ser senhor do seu entretenimento e BAUDRILLARD
(1985, p.22) insiste em observar a expansão inusitada daquele efeito quando as
massas atuam como maioria silenciosa e se transforma em categoria de análise
das interações ao rejeitar o próprio contrato comunicativo que lhe é imposto pela
mídia programada.
No acúmulo de informação do mundo contemporâneo, a comunicação se
expande para além dos meios, torna-se ambiental e sua ciência amplia seu
território epistemológico, tornando-o mais complexo, enquanto se distancia
daquela necessidade homeostática que dominava a epistemologia das mediações.
Agora, mediações e interações são convergentes, à medida em que se distanciam
da programação e, sem serem caóticas, são sobretudo muito mais complexas. A
comunicação é ambiental e sua epistemologia deve ir além dos contratos
discursivos para perceber os processos de alteridade que, na união de corpo e
mente, transforma a comunicação em uma ação essencial e exageradamente
humana.

6. A epistemologia como consciência da comunicação

A clara e, agora, parece definitiva emergência da interação sobre qualquer


pretensão mediativa de mão única, impõe que se considere o comunicar como
ação que, mais do que nunca, evidencia um ambiente natural e biológico(
SODRÉ, 2005, p. 21) onde a comunicação envolve o cotidiano e participa de
todas as ações humanas que passam a ser de natureza comunicativa. Se o antigo
contrato discursivo dominado pelo enunciador não desaparece, é superado pela
circular alteridade, porque urge ter consciência da ação comunicante para
encontrar um lugar planetário “on line”, definidor de escala e competência de
inserção social e cultural.
O comunicar estabelece uma fenomenologia que atravessa as ações cotidianas e
parece dissolver os antigos significados que, antes alicerçados em mensagens
passíveis de transmissão, agora são substituídos pelos sentidos que, submissos à
aceleração do digital e à compressão espaço/tempo que o caracteriza, agora são
fugazes, cabendo apenas deixar traços de experiências rarefeitas, mas
conservadas pela aprendizagem constante, transformada em memória não de
significados, mas do modo como aqueles sentidos se constroem através de
múltiplos meios convergentes. Exige-se um alerta constante e “on line”.
Nessa atmosfera, a alteridade surge como imposição do comunicar, visto que o
que importa não é o que se comunica, mas estar em relação comunicante.
Consciente ou não de identidades que podem ser livremente substituídas por
pseudônimos ou avatares, desaparece a dicotomia emissor/receptor, pois todos
são sujeitos circulares do modo como comunicam. O que importa é estar em
comunicação e as redes sociais são o novo cenário que substitui o isolamento e a
simetria das instâncias de poder dos processos de emissão. Agora, todos se
sabem em relação comunicativa, nela interferem e são por ela interferidos.
A comunicação se transformou em definitivo processo de experiência humana e
caracteriza a possível maturidade da consciência, mesmo que essa experiência
seja manipulada pelo capital, pelo mercado ou pelo consumo descontrolado dos
objetos tecnológicos. Sem ingênuo otimismo consagrador da nova tecnologia,
mas também sem pessimismo pela aparente perda da segurança anterior e,
embora continuemos marcados por programas produzidos sem controle e mais
ou menos impostos; há que ponderar que estamos vivendo outra realidade
cotidiana e outras relações sociais e culturais, definitivamente comunicantes.
As ciências cognitivas contemporâneas oferecem outra interface disciplinar
quando apontam a experiência da linguagem como patamar básico para a
evolução da espécie humana e da memória como condição da consciência como
registro do que comunicamos. A evolução entendida como O Maior Espetáculo
da Terra ( DAWKINS, 2009) atinge a comunicação quando observamos entre
mediação e interação um processo de transformação que não as opõe, ao
contrário, as unifica em uma corrente que vai do simples, simétrico e
unidirecional, para aquilo que se manifesta complexo, assimétrico e passível de
ser conferido nas narrativas que o constituem e onde se constata o percurso
daquela evolução. Ao contrário de padrões morais marcados por antigas
polaridades abre-se para a epistemologia da comunicação a necessidade de
considerar suas conseqüências evolutivas com bases éticas e estéticas.
Entre mediação e interação se desenvolve um processo neural complexo onde a
segunda pode deixar perceber as bases da primeira, embora o inverso não
aconteça. A dinâmica de construção dessa consciência se evidencia através da
linguagem que vai do verbal aos recursos poli-sensíveis extremamente
expandidos pela comunicação contemporânea (DONALD, 1987, ps. 272 -273)
e, em todos, se observa a necessidade de fixar registros que denunciam o modo
e o como são conservados pela memória. Esse registro e essa memória são
caracterizados pela fabulação que define e comunica aquela consciência que
biológica e comunicante, nada tem de moral e nada conserva de possíveis
relações dualistas, próprias a uma epistemologia positivista:
“ Podemos supor que essa descoberta sistemática do drama da existência
humana e suas possíveis compensações só foi possível depois do
desenvolvimento de uma consciência completa – uma mente com um self
autobiográfico capaz de guiar a deliberação reflexiva e reunir
conhecimentos..... O bem-estar imaginado, sonhado e esperado tornou-se
uma ativa motivação das ações humanas. A homeostase sociocultural
adicionou-se como uma nova camada funcional de gestão da vida, mas a
homeostase biológica permaneceu.....Nessa idéia de que existem duas
amplas classes de homeostase, a básica e a socio-cultural, não se deve
interpretar que esta última é uma construção puramente “cultural”, enquanto
a primeira é “biológica”. Biologia e cultura são totalmente interativas. Se a
necessidade de gerir a vida foi uma das razões do surgimento da música,
dança, pintura e escultura, então a capacidade de melhorar a comunicação e
organizar a vida social foram duas outras fortes razões e deram às artes um
poder adicional de permanência. (DAMÁSIO, 2011, ps 354,356, 357, 358)

A interface disciplinar que as ciências cognitivas oferecem á comunicação exige


observar que, mais do nunca, as interações apelam para o modo como aparecem
e se fazem notar, desenvolvendo um intenso domínio da linguagem a ser
considerada epistemológica e analiticamente nas manifestações interativas.
Desse modo, os meios tecnológicos se expandem e passam da dimensão de
simples suporte de transmissão para atingir um nível comunicativo onde o modo
de aparecer e se concretizar comunica muito mais do que aquilo que se
transmite. Se essa característica não se reporta exclusivamente aos meios
digitais, é possível considerar que sua emergência e expansão tornaram evidente
aquele modo de presença, atingindo até mesmo os anteriores meios de massa,
notadamente a televisão o rádio e a antiga mídia impressa:

“ Cada vez mais, as pessoas estão organizadas não simplesmente em redes


sociais, mas em redes sociais mediadas por computador. Assim, não é a
internet que cria um padrão de individualismo em rede, mas seu
desenvolvimento que fornece um suporte material apropriado para a difusão
do individualismo em rede como a forma dominante de sociabilidade.
O individualismo em rede é um padrão social, não um acúmulo de
indivíduos isolados” ( CASTELLS,’2003, p. 109)

A evolução das mediações para as interações exige que se reflita sobre a


necessidade ontológica da comunicação que caracteriza a sobrevivência
sistêmica de todas as espécies vivas e encontra sua base epistemológica na
evolução do corpo, da mente, da consciência como unidades que se apresentam
integralmente ao manifestar-se, expressar-se e tornar-se comunicação:
“Também os seres vivos trazem a história escrita em todo o corpo. São
repletos de equivalentes biológicos das estradas, muralhas, monumentos,
cacos de cerâmica e até inscrições antigas romanas, tudo esculpido no DNA
vivo, pronto para ser decifrado por estudiosos.” (DAWKINS, 2009 p. 317)

Acompanhando uma reflexão de ZIELINSKI ( 2006. p.282) e observando a


interface com as ciências cognitivas, parece urgente uma reflexão epistemológica
disposta a uma arqueologia dos processos comunicativos, entretanto, não se trata
de uma procura de raízes genéticas dos processos mediativos ou interativos, ao
contrário, trata-se de apreender uma arqueologia disposta a perceber, nas
relações comunicativas de ontem e de hoje, suas possibilidades evolutivas que
nos fazem encontrar, nos programas mediativos, os rastros que apontam para a
capacidade evolutiva da comunicação que, à revelia das instâncias dicotômicas
de emissão e de recepção, surpreendem a narrativa das contemporâneas
interações escritas nas fissuras das mediações.

7. Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009


BARBERO, Jesus Martin- Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2006 (4° ed)
BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Chandler: San Francisco, 1972
BAUDRILLARD , Jean. à sombra das MAIORIAS SILENCIOSAS. São Paulo: Brasiliense, 1985
BOURDIEU, Pierre. Para uma Sociologia da Ciência. Lisboa: Ed. 70, 2001
CASTELLS, Manuel. A Galáxia da INTERNET REFLEXÕES SOBRE A INTERNET, OS NEGÓCIOS E A
SOCIEDADE. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
DAMÁSIO, Antonio. E O CÉREBRO CRIOU O HOMEM. São Paulo: companhia das Letras, 2011
DAWKINS, Richard. O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA. São Paulo: companhia das Letras, 2009
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix, MIL PLATÔS CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA. São Paulo:
Ed. 34, 1997
DONALD, Merlin. Origins of the Modern Mind Three stages in the evolution of culture and
cognition. Cambridge Massachusetts e London England: Estados Unidos, 1987
FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado. São Paulo: Casac Naify, 2007
FOUCAULT, Michel. Les Mots et les choses. Une archeologie des sciences humaines. Paris:
Gallimard, 1966
GRANOVETTER, Mark. The Strenght of Weak Ties. University Chicago Press: The American
Journal of Sociology. 1973
MACLUHAN, Marshall. Macluhan por Macluhan. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005
SHANNON , Claude e WEAVER, Warren. The Mathematical Theory of Communication.
Urbana: Un. of Illinois Press, 1949
SIMMEL, Gerog. Philosophie de la Modernité. Paris: Payot, e Rivages, 2004
THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade Uma teoria social da mídia. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2002 (4º Ed)
ZIELINSKI,Siegfried. Arqueologia da mídia: em busca do tempo remoto das técnicas do ver e
do ouvir. São Paulo: Annablume, 2006

Você também pode gostar