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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF), na linha
de pesquisa Produção e Recepção do Texto Literário, e bolsista do Acervo Literário Josué Guimarães
(ALJOG/UPF). E-mail: luanaandretta15@hotmail.com
embezzlement of the literary creation and the formation of the writer from the
analysis of writing manuals, the collection “Guias do Escritor” published by
Gutenberg. This is a bibliographical research under an analytical-descriptive
methodological approach. According to the readings and investigations the
production of a literary text is accomplished through a process of reading,
production, analysis, self-evaluation, reflection, revision and rewriting. In
addition, the formation of a writer is also consolidated through the attainment
of abilities intrinsic to the act of writing itself. Finally, the manuals have a very
simple part in the preparation of a text or development of a writer, since there
is no fair recipe, tips or techniques that support the creation of a work of art.
Keywords: Literature. Writer’s Formation. Literacy Creation. Writing
Manuals.
encontra-se recluso em sua oficina, e a pro- Nesse contexto, a crítica genética apre-
dução de seu texto é um processo cercado senta sólidas provas de todo o processamento
de penumbra e mistério. É evidente, e isso anterior à escrita e esta propriamente dita.
a crítica genética vem mostrando há vários Os esboços, notas, pesquisas, rascunhos e
anos, que tal gesto é um processo complexo, versões comprovam que o movimento criador
multiforme e pouco sistematizado. ocorre paulatina e dialeticamente. Paulati-
Desconhecê-lo é cair no erro, na namente porque se dá em fases, que são, às
suposição e, consequentemente, numa rede vezes, mais facilmente observáveis, outras
de mitos. Vale ressaltar que existem diferen- vezes se dão de forma obscura; e dialetica-
tes pontos de vista sobre um mesmo fenô- mente porque não seguem uma linha bem
definida, progredindo e regredindo confor-
meno. Da mesma forma, existem diversas
me a vontade do escritor. Assim, as rasuras,
imprecisões no que toca à compreensão do
acréscimos, eliminações, substituições – ou
fenômeno literário, porém, neste trabalho,
seja, as descontinuidades apresentadas por
serão elencados e abordados três mitos que,
Pino; Zular (2009) – também corroboram
segundo nossas concepções, são os maiores,
para a noção de que o texto se constrói em
mais comuns e mais disseminados.
vez de surgir pronto por forças divinas ou
Dessa maneira, o primeiro mito que cos- fantásticas.
tumamos ouvir e reproduzir é de que os es-
O primeiro mito condiciona outro sobre a
critores têm o dom ou a vocação de escrever.
escrita literária: escrever é evento inconscien-
Garcez (2008, p. 2) afirma que essa noção é te, intuitivo e que, por conseguinte, não exige
bastante polêmica e questionável, visto que esforço. Mesmo considerando a possibilidade
até os chamados “gênios da literatura” só se da produção textual se tornar mais fácil para
constituem como tal “depois de um proces- profissionais que escrevem com mais fre-
so de aprendizagem e do convívio intenso quência, o que verificamos, na verdade, são
com a língua escrita”. Assim, partilhamos a escritores afirmando que, mesmo depois de
mesma concepção apresentada pela autora anos, o trabalho exige, cansa e pode ser frus-
anterior ao compreendermos que ninguém trante. Na realidade, o que ocorre na criação
nasce escritor. literária é o inverso do que esse mito prega.
O fato é que não percebemos que a pro- O processo de construção de um texto, seja li-
dução de um texto, em especial, o literário, terário ou não, mobiliza conhecimentos sobre
só é possível depois de um longo processo o tema, estrutura do gênero que se pretende
de leitura, aprendizagem, experienciação, escrever, organização de ideias, reescrita etc.
compromisso, reescritura etc. Em outras O seguinte depoimento do escritor José J.
palavras, é a partir da assiduidade, da re- Veiga (1998, apud GARCEZ, 2008, p. 2-3)
gularidade do exercício da palavra que um aproxima-se bastante de nosso ponto de vista:
bom escritor surge. Esse fato é confirmado
pelo escritor paulista Valêncio Xavier (apud ― Como começou a escrever? ― Foi
BRITO, 2007, p.198) ao afirmar que “um um processo demorado, que amadureceu
fator que me ajudou nisto foi quando eu, ain- devagar. Quando resolvi experimentar
da menino, estudava no Colégio São Bento, escrever, não consegui da primeira vez
em São Paulo, e tinha que fazer redações de [...] Voltei a tentar, apanhei, caí, levantei
25 linhas. Os padres exigiam histórias de 25 – até que um dia escrevi uma história que
linhas, nem mais nem menos. Isto me ajudou quando li de cabeça fria, achei que não
estava ruim, com uns consertos aqui e ali
a disciplinar o hábito de escrever”.
ela ficaria apresentável. Consertei, e gostei os elementos constituintes dos gêneros à sua
do resultado. Animado, escrevi outras e proposta criativa e subjetiva.
outras histórias, nessa batalha permanente. Como já mencionado, a leitura apresenta-
Mas é uma batalha curiosa: as derrotas que -se como ponto central na trajetória de um
a gente sofre nela não são derrotas, são
escritor. Fato que muitos de nós não observa-
lições para o futuro.
mos. O bom escritor é, na maioria das vezes,
Pelo registro, podemos perceber que o bom leitor ou passou a ser a partir da leitura
escritor compara o ato da escrita com uma que o enveredou na escrita. Moacyr Scliar,
batalha, pela dificuldade em construir uma escritor gaúcho, comenta que a conexão
obra que atenda às suas exigências. Dessa mantida entre ele e a leitura de literatura foi
forma, podemos compreender que sua escrita responsável por sua trajetória como escri-
foi se dando a partir de várias tentativas, do tor: “assim, quando comecei a escrever foi
empenho e da reescritura, não de eventos porque lia” (apud BRITO, 2007, p. 170).
espontâneos e simples, como muitos pensam. É, também, a partir do arcabouço oferecido
A escritora Nélida Piñon, em entrevista a pela leitura que esse escritor estará não só se
Clarice Lispector (apud WILLIANS, 2015, apropriando das estruturas da língua, mas,
s/p), afirma: também, aumentará seu léxico, buscará ins-
piração ou referência, enriquecerá sua obra
Tenho horror à palavra inspiração, que com intertextualidade e produzirá, muito
me recorda indolência, adiamento, olhar provavelmente, literatura. Em relação a esse
fechado, um corpo emprestado onde a aspecto, Jean-Paul Sartre menciona: “porque
consciência foi expulsa. Acredito profun- a criação só pode encontrar acabamento na
damente na disciplina como prática que leitura” (apud BRITO, 2007, p. 112).
permite desaguar no trabalho, mesmo É nesse ponto que a biblioteca do escritor,
o que exista de imponderável e dificil- também estudada pela Crítica Genética,
mente explicável na criação [...] Talvez oferece respostas a este mito: as marginálias,
pudéssemos estabelecer o princípio de
sublinhados e comentários em livros físicos
que o esforço e o produto da colheita são
ou digitais direcionam o olhar do geneticista
resultantes da disciplina.
para a compreensão da construção do texto
Salles (1998, p. 13) compartilha a mesma literário do autor. Todos os textos possuem
visão ao afirmar que “um artefato artístico intertextos e nada mais natural para um escri-
surge ao longo de um processo complexo de tor do que buscar, na leitura de sua biblioteca
apropriações, transformações e ajustes”. De particular, fontes para sua criação. Portanto,
modo complementar, para Garcez (2008), a partindo do pressuposto de que a escrita lite-
escrita é uma das mais difíceis ações que o rária é fruto de leitura, empenho, exercício e
homem pode realizar, pois nela há ativação da reescritura, fatos esses que demandam anos
memória, do raciocínio, exigência de agilida- de caminhada como escritor, parece parado-
de mental e capacidade de harmonizar conhe- xal conceber que, a partir de determinado
cimentos linguísticos, de mundo, fatores de número de dicas ou técnicas, possa se formar
textualidade e, de acordo com nossas leituras, um bom escritor.
conhecimentos de teoria literária. Afinal, só Nesse contexto, Salles (1998, p.12) acres-
escreve bem quem se apropria de estruturas centa que explicações simplistas transformam
dos gêneros literários utilizados, seja para a criação literária em uma “trajetória linear,
segui-los ou recriá-los, e consegue adequar que não apresenta nem sequer pequenas cur-
vas [...] distorcendo a complexa lógica do ato Segundo informações coletadas no site
criador”, e alerta para a impossibilidade de se da editora, a coleção oferece guias práticos
reduzir a criação artística a uma fórmula ou destinados a ajudar e apoiar todos aqueles
receita justa. Porém, é, justamente, essa ideia que desejam dominar a arte da escrita. Com
que dá corpo a mais esse mito, quiçá o maior diversos exemplos e orientações fundamen-
de todos, sobre a escrita literária. tais, cada volume aborda um tema crucial
Nos últimos anos, manuais de escrita que da criação literária. Trata-se, portanto, de
prometem transformar ideias em livros, for- uma coleção imprescindível para jovens
mar escritores ou oferecer dicas para produzir escritores, redatores, editores, professores e
um romance multiplicam-se nas prateleiras estudantes em geral.
das livrarias e, até, em bibliotecas. O sucesso Os livros são: Como encontrar seu estilo
desses manuais pode ter relação com o novo de escrever, de autoria de Francisco Castro;
perfil do mercado editorial do Brasil: as edito- Como escrever textos técnicos e profissionais,
ras estão procurando propícios escritores que de Felipe Dintel; Como melhorar um texto
já possuam um público consagrado para que literário, de Felipe Dintel e Lola Sabarich;
as vendas sejam garantidas, num simples jogo Como narrar uma história, Escrever para
comercial. Dessa forma, a internet virou uma crianças, Os segredos da criatividade e
mina de ouro para tais editoras. Youtubers, Como escrever diálogos, de Sílvia Adela
atores e atrizes, escritores de plataformas Kohan.
digitais etc. estão assinando contratos. Quanto aos escritores, segundo as infor-
É com base nesse cenário que muitos mações dos próprios manuais, Francisco
jovens estão tentando se lançar no mundo Castro é escritor espanhol e diretor de ofici-
da escrita e, consequentemente, veem nos nas literárias. Por seus trabalhos, já recebeu
manuais uma forma de simplificar todo diversos prêmios literários e jornalísticos.
o processo de formação de um escritor. Felipe Dintel é escritor espanhol, tradutor,
Esse panorama deveria ser desconfortável editor de textos e coordenador de projetos.
para os brasileiros e, de uma maneira mais Atuou em oficinas de escrita criativa. Lola
específica, para as próprias editoras, pois a Sabarich é pseudônimo de Maria Dolores
grande preocupação delas, durante produção Millar Llusà. Escritora, poeta e professora
e recepção desses livros, deveria ser a espanhola. Foi a criadora do primeiro curso
qualidade. Até que ponto esses livros podem de escritores da Catalunha, que se converteu
ser chamados de literatura? Até que ponto na Escola de Escrita do Ateneu Barcelonês.
eles propiciam e estimulam a participação Sílvia Adela é filóloga argentina e autora de
do leitor e não oferecem histórias prontas, diversos livros sobre técnicas literárias. No
fechadas em si mesmas? ano de 1975, criou a Oficina de Escrita e
Essas e outras questões condicionam-nos fundou a revista Escrita e Edição.
à necessidade de analisar o que esses manuais Vale ressaltar que os livros “Como escre-
pregam e como concebem a produção de um ver textos técnicos e profissionais” e “Escre-
texto literário. Para tal análise, selecionamos ver para crianças” não serão analisados neste
a coleção “Guias do escritor”, da editora Gu- trabalho. O primeiro por não pertencer ao
tenberg. Tal série é composta por sete livros. campo de produção dos textos literários, e o
Uma entre tantas séries, mas que instigou segundo pelas especificidades que a criação
nossa curiosidade pelos títulos atrativos e literária infantil possui e por não termos apro-
pelo enunciado propagandístico de garantia fundado conhecimentos em nossa formação
da formação de escritores. acadêmica, uma vez que a habilitação se volta
para as séries finais do ensino fundamental e modo, uma preocupação evidente com a
ensino médio. organização, com a unidade do texto, com o
processo anterior à escrita propriamente dita
e com a reflexão sobre as razões do escrever
Análise dos manuais de escrita: e objetivos que o autor procura alcançar, num
atalho para a formação do processo permeado pela autoavaliação, o que
escritor? é extremamente válido em se tratando do ato
de criar textos. Exemplos e argumentações
A primeira obra, “Como narrar uma baseados nas falas de autores renomados,
história”, de autoria de Sílvia Adela Kohan tais como Mario Vargas Llosa, Italo Calvi-
(2015), possui 84 páginas, divididas em sete no, Fiódor Dostoiévski, Honoré de Balzac,
capítulos e conclusão. Em sua completude, Gustave Flaubert, entre outros, sustentam
o texto apresenta uma linguagem acessível entendimento e as ideias apresentadas.
e bastante clara. De forma geral, o livro se A escritora esmiúça todos os elementos
detém à estruturação de uma narrativa, apre- narrativos, apontando para as especificidades
sentando e pontuando todos os elementos de cada um e o efeito de sentido que podem
que a constituem, além de reservar algumas gerar, além da necessidade que a escolha de
páginas para o estudo da descrição presente um em detrimento de outro deve ser acom-
no texto narrativo. O manual também traz panhada de uma coerência interna da obra.
hesitações e medos dos escritores sobre o Exemplificando, a coerência interna pode
processo de escrita; o fato de a literatura ocorrer quando o autor escolhe um narrador
transcender o real, possibilitando ao leitor em terceira pessoa e onisciente para seu tex-
uma experiência estética única devido ao to, pois seu personagem caracterizado como
estilo empregado pelo autor. tímido e reservado não conseguiria contar a
Algumas concepções adotadas pela autora própria história.
são relevantes o suficiente para serem expli- A presença do modo imperativo nas su-
citadas. A primeira refere-se à forma dada à gestões propostas e dicas são bastante sutis,
história: a importância concedida não só ao num tom que parece oferecer ao escritor con-
fato narrado, mas também a como esse fato é selhos vindos de outro escritor mais experien-
narrado. A segunda ideia é a necessidade de o te e não uma restrição ou ordem expressa do
escritor conhecer as condições que determi- que deve ou não ser feito na criação literária.
nam o processo criativo, para compreendê- Os exercícios focam muito mais no encontro
-lo e superar dificuldades que possam surgir ou aprimoramento de ideias principais ou
durante a produção do texto. Já a terceira é secundárias do que na gramática e correção
a defesa da ideia de que a criação não é um vocabular, fato muito comum em diversos
processo mágico e que pode surgir de várias manuais de escrita. Neste livro, apenas três
fontes: episódios vividos, imprensa, frases, exercícios são sugeridos e eles se voltam a
sensações e de forma inesperada, isto é, por um ponto bastante valorizado pela crítica
acaso. É nesse ponto que a autora se aproxi- genética: os rascunhos.
ma das concepções defendidas pela crítica Os rascunhos, além de armazenarem
genética. ideias e evidenciarem a rota de pensamento
Todo o livro é baseado em listas de etapas, do escritor, funcionam como um laboratório
mandamentos e roteiros sobre os mais varia- de lapidação da escrita. O texto literário não
dos tópicos relacionados à estrutura narrativa está pronto em sua primeira escritura, precisa
de um conto ou romance. Existe, do mesmo de revisões, cortes e preenchimentos. Esses
fatos vão ocorrendo de forma observável nos ria, responde: “planejo, mas nunca obedeço
rascunhos de escritores. Também por isso, rigorosamente ao plano traçado. Os romances
a autora do livro defende a ideia de que o (você sabe disso melhor do que eu) são artes
escritor deve levar consigo um caderninho do inconsciente. Por outro lado, estou quase
de anotações e possa buscar num jornal, por a dizer que me considero mais um artesão
exemplo, notícias que chamem sua atenção. que um artista”.
Dessa forma, o escritor constrói um arcabou- A falta de referências passivas, ou seja,
ço de ideias que, com o tempo, vão sendo teorias que sustentam a opinião da autora,
associadas a outras, incrementadas, e podem tornam-se um pequeno espinho para aqueles
servir para compor a ideia principal de um
que gostariam de aprofundar concepções e
conto ou romance.
conferir os pontos de vista adotados pela es-
A presença dos exemplos deixa claro o critora. Esse fato se repete nos outros livros
caminho que o leitor-escritor deve seguir e analisados. Mesmo que seja evidente que a
como a literatura pode utilizar a realidade proposta desse manual de escrita embase-se
como base de sua escrita, sem se esquecer do em concepções de teoria literária e crítica
princípio da verossimilhança, mas agregando literária, não podemos afirmar que a autora
algo a mais. A verossimilhança é entendida adota a crítica genética como mote de sua es-
como a capacidade de o escritor desenvolver crita, apenas ressaltar que, em vários pontos,
uma história que se torne aceita e passível de suas ideias e a própria construção sintática
verdadeira dentro do mundo em que o leitor
das frases se assemelham às ideias do livro
está inserido.
de Salles (1998).
Ao final do livro, é possível perceber a im-
A segunda obra, “Como melhorar seu tex-
portância creditada à reescritura e à revisão,
to literário”, de Lola Sabarich e Felipe Dintel
mas a autora alerta: “Lembre-se de que não
(2014), possui 92 páginas, subdivididas em
há nada para corrigir quando não se escreveu
introdução, cinco capítulos e conclusão. Seu
nada”. (p. 80). Isto é, o escritor precisa se
objetivo, explicitado logo no início do livro,
preocupar, primeiro, em ter um bom mate-
rial em mãos e, quando este estiver pronto, é o de acelerar o processo de aprendizagem
poderá revisar a gramática. Nesse ponto, o de escritores iniciantes. As concepções desses
livro difere de muitos manuais que apenas autores diferem de algumas apresentadas nos
propõem dicas gramaticais. livros de Sílvia Adela Kohan e das defendidas
pela autora deste artigo.
Uma ressalva precisa ser feita em relação
à metodologia empregada pela autora na obra A primeira delas é a ideia de que escrever
em análise. Por mais que ela confirme a exis- é um talento. Os autores do guia afirmam:
tência de diversos pontos de partida para se “ninguém pode dar talento a ninguém, mas
iniciar a escrita, ela monta uma sequência de é possível explicar as técnicas, decifrar os
passos que pode não se encaixar com o ritmo segredos ou – no melhor sentido da palavra
de todos os escritores. A criação literária não – os truques que os escritores usam quando
se apresenta de forma tão organizada e siste- precisam elaborar um texto” (p.10). Como já
mática e cada escritor possui estratégias mui- afirmado anteriormente, consideramos que a
to íntimas para transformar a ideia em algo escrita é produto de um processo de leitura,
escrito. Erico Verissimo, por exemplo, ao prática, dedicação e revisão que pode levar
ser questionado por Clarice Lispector (apud anos da vida de quem se dispõe ao ofício
WILLIANS, 2015, s/p), em uma entrevista, de escrever. Nesse ponto, questionamos a
sobre o planejamento prévio de uma histó- validade do estudo dos truques dos grandes
de palavras, entre outros, aparecem, mas es- Tal processo precisa ser permeado pela auto-
tão contextualizados e voltados unicamente avaliação dos escritos e do papel do próprio
para o campo literário e não para a correção escritor. E, assim, caso necessário, em nome
vocabular. da literatura, nenhuma regra preconizada
O terceiro guia, “Como encontrar o seu por mitos, sociedade ou escritores deve ser
estilo de escrever”, de Francisco Castro seguida.
(2015), possui 94 páginas, subdivididas em As listas e mandamentos de Castro (2015)
introdução, seis capítulos, conclusão e notas. são mais flexíveis do que as de Kohan (2015),
Na introdução, o autor explicita a impossibi- que, como já citamos, uma vez que sistemati-
lidade de existirem escritores que produzam zam o caminho de produção literária, podem
obras do mesmo jeito por, simplesmente, se- não contemplar as diversas formas que os
rem pessoas diferentes. Ou seja, o que sempre escritores possuem para iniciar e desenvolver
os diferencia são seus modos de expressão sua produção.
individual, seus estilos. Um fato interessante a ser ressaltado em
Para Castro (2015, p.13), o estilo se define relação à obra é a valorização que o autor
por ser “a música das palavras [...] o modo dá à leitura dos clássicos e à inspiração que
como você decidiu unir as letras para pro- o escritor iniciante deve buscar no estilo de
duzir beleza, explicar o mundo, penetrar em seus escritores favoritos. Mesmo que, vez ou
nossos corações [...]”. O mesmo autor credita outra, saliente que o mais correto é escrever
ao estilo o sucesso de um escritor e a devoção com seu próprio estilo, a linha entre diluição/
de seus leitores. Tendo isso em vista que o li- plágio e inspiração de um ou mais estilos é
vro tem por objetivo auxiliar o jovem escritor bastante tênue. Esse cenário pode gerar um
a encontrar uma forma de expressão pessoal jovem escritor que não referencia ou se ins-
na escrita, trazendo, inúmeras vezes, listas, pira no estilo de vários escritores, mas um
dicas e mandamentos sobre como alcançá-la. escritor que absorve diferentes formas de
Nesse ponto, cremos ser válido ressaltar escrita sem marcar a sua expressão pessoal.
os “Dez mandamentos que você terá de se- Um dos pontos positivos do livro é a
guir para se realizar como escritor/escritora”. preocupação com a literariedade do texto e
(CASTRO, 2015, p. 16). As ideias do escritor, os elementos que concorrem para sua concre-
em algumas circunstâncias, se assemelham tização. Entre eles, destacamos a exploração
a concepções de Sílvia Adela Kohan. Uma da função poética e a beleza que isso pode
delas é a importância de o autor se dedicar gerar nas leituras praticadas; a busca de uma
à procura, anotação de ideias, produção e verdade literária por meio da ressignificação
lapidação do texto e deixar a correção para do real e do cuidado com a verossimilhança.
depois. A ideia enraizada de que um bom Outro ponto interessante do guia é a
texto literário é aquele sem quaisquer erros afirmação de que a literatura de qualidade
que ofendam a norma culta pode, diversas tem “conexão com os grandes assuntos da
vezes, bloquear a produção textual. humanidade, com grandes temas que desde o
Outras concepções interessantes são a início dos tempos vêm preocupando a nossa
busca da produção de literatura visando à espécie” (CASTRO, 2015, p. 58). Nessa tra-
beleza da escrita e profundidade/veracidade ma, a possibilidade de evocar sentimentos e
dos personagens para que o próprio escritor, sensações em seus leitores, por meio de temas
primeiro leitor de sua produção, se encante humanos e universais, causa leituras intensas
e goste do que produziu e que, consequente- e profundas e a literatura passa a cumprir sua
mente, referenciará alguma obra já existente. verdadeira função: ressignificar a realidade,
proporcionando a reflexão sobre si e sobre o possíveis causas para tal evento e aponta,
mundo através de uma linguagem estética e para o leitor-escritor, saídas diante do ocor-
bem pensada. Esses princípios, quando vistos rido. Para Kohan (2013a), o escritor precisa
em obras literárias, corroboram para que o entender que o bloqueio faz parte do processo
livro se reinvente em épocas diferentes e para de criação e que precisa buscar estratégias
leitores distintos. que explore e torne aquilo que inicialmente
Ao final, o autor salienta que um texto parecia o fim do processo em um aliado à
escrito com bom estilo é capaz de propor- continuidade da escrita. Dessa maneira, a
cionar deleite ao leitor e ao próprio escritor; autora apresenta diversas listas com dicas
é capaz de evocar sentimentos e sensações para que os leitores pratiquem mecanismos
profundas em quem lê; é capaz de demonstrar que superem tal paralisia criativa, entre eles:
sua força pelas palavras. De maneira geral, estabelecer relações entre palavras dentro de
as concepções de Castro (2015) se aproxi- um campo semântico, praticar o pensamento
mam e corroboram as noções apresentadas divergente, recuperar histórias orais, iniciar
por Proença Filho (1987) no que toca aos o texto falando sobre seu bloqueio ou difi-
elementos que transformam um texto em culdade de escrever etc. A autora ressalta
literatura. Entretanto, como já salientado, o a importância de definir as condições de
livro não traz a bibliografia que embase suas trabalho, sugerindo que o escritor encontre
concepções teóricas. o melhor ambiente e horário para escrever.
Uma noção interessante postulada por Ainda, segundo ela, a criação literária
Castro (2015) é a transgressão da gramática, floresce a partir de duas etapas: a intuitiva e
caso o escritor julgue necessário. Essa ideia a de configuração. A primeira define o tema
reforça a concepção de que um manual de a ser abordado, e a segunda, estrutura-o den-
escrita vai muito além de regras de uso de tro da modalidade escrita. Por fim, Kohan é
tempos verbais, preposições ou frases curtas, categórica: inspiração não é algo que brota
que, ao final da leitura do livro, pouco ajudam inconscientemente na mente de um escritor
no desenvolvimento concreto da obra, a não e, sim, o resultado de algo que estava sendo
ser pelo receio do escritor “errar” o emprego procurado e havia passado por um processo
de um dos dogmas apresentados no guia. de lapidação. De modo enfático, a autora
O guia “Os segredos da criatividade”, (2013a, p. 46) finaliza: “você não precisa ser
de Kohan (2013a), possui 101 páginas, um predestinado para começar a escrever. A
subdivididas em onze capítulos e notas. As única condição necessária [...] é dedicar-se
ideias assemelham-se às de Salles (1998), todos os dias à tarefa, não permitindo que
tanto nos outros livros escritos pela autora essa ideia de predestinação venha atrapalhar”.
como neste. No manual em questão, a autora As concepções de Kohan sobre o processo
discorre sobre a preparação para a criação criativo admitem sua divisão nas seguintes
literária, apontando a realidade como mote etapas: preparação, incubação, descoberta e
inicial para a produção de um texto de ficção. escrita. Na primeira, enquadra-se o proces-
Além disso, a chave do processo criativo so de observação e pesquisa pelo tema. Na
está em estar preparado para ele, pesquisar, segunda, há a incubação dos elementos cap-
prestar atenção no mundo e registrar o que tados. Na terceira, a incubação transforma-se
se visualiza, estabelecer metas e valorizar as na ideia, no fio condutor da ideia, e na quarta
anotações já feitas.
etapa, obviamente, o escritor está apto para
Outra questão importante se volta à colocar no papel todo o processo anterior.
resolução de bloqueios. A autora elenca as
A autora admite que o processo criativo se erência entre esses dois elementos possibilita
dá por intermédio de imagens e sentimentos. o exercício da verossimilhança, tornando o
Esse ponto do livro lembra muito a teoria personagem real e sua existência plausível.
de Salles (1998) ao afirmar que a produção Para tanto, a autora alerta que o uso da lin-
artística ocorre por meio de imagens gerado- guagem coloquial para personagens simples
ras. O último aspecto teórico ressaltado no ou em situações interacionais informais e o
livro é a importância que Kohan dá à leitura. uso de elementos que marquem o sotaque
Nas palavras dela (2013a, p. 62): “a leitura é ou classe social de onde provém o falante
uma fonte inesgotável de recursos e a melhor contribuem para criar cenas originais, críveis
oficina de criação literária”. e dinâmicas.
O último guia da série, “Como escrever Dessa forma, o diálogo permite definir
diálogos”, de Kohan (2013b), possui 90 pági- a personalidade e as intenções dos persona-
nas, divididas em introdução, nove capítulos gens, diferenciar um personagem de outro
e notas. Na introdução, a autora versa sobre e dar a seres fictícios a possibilidade de
a sensação que o escritor possui de poder serem reconhecidos assim como são na vida
dar voz a outras pessoas, mas alerta para real, pelo timbre de voz, pela entonação e a
a necessidade de essa voz ser adequada e forma como são articuladas as sentenças na
equilibrada. Para ela, o diálogo, como parte vida real.
da trama do conto ou do romance, é suficien-
temente revelador.
Conclusão
Dessa maneira, para produzir um bom
diálogo, o escritor precisa compreender o que
Tradicionalmente, quase todos os livros
é e qual é sua intenção, variações, recursos,
intitulados como guias ou manuais de escrita
funções e erros mais recorrentes. Quando
trazem, em suas páginas, regras gramaticais
isso ocorre, o objetivo de saber quando e
tais como: o uso de períodos curtos, o cui-
como utilizar as falas de modo eficaz será
dado com os artigos definidos e indefinidos
alcançado. Durante o livro, a autora busca
ou advérbios terminados em “mente”, a
apresentar ao leitor-escritor os requisitos
utilização de uma sintaxe variada e a não
para se elaborarem boas falas. Consoante
colocação da vírgula no lugar errado, entre
suas ideias, o diálogo precisa ser verídico e
outros aspectos. Essa busca excessiva pela
fiel, pois é a partir dele que o personagem se correção gramatical tem raízes históricas e
define, aproxima-se do leitor e credita à obra ideológicas. O próprio preciosismo que é
um maior dinamismo. creditado à literatura canônica corrobora para
Nesse guia, não há nenhum exercício de tal fenômeno.
escrita. Kohan apenas traz listas e dicas de A literatura foi e ainda é, infelizmente,
como bem usar o diálogo. Entre elas, des- associada às belas letras, à escrita correta e
tacam-se as das condições necessárias, das culta, ao modelo que todos os falantes e escri-
funções e a dos objetivos. A autora também tores deveriam seguir. Essa visão distorcida
se serve de exemplos de diálogos, segundo influenciou e influencia diversos campos da
ela, bem elaborados, comentando-os e res- produção humana e não seria diferente com
saltando suas características. os manuais. Com essas concepções enraiza-
Um dos aspectos positivos do livro vai ao das por anos, criaram-se dogmas, os quais são
encontro da necessidade que o escritor tem reescritos e repassados a cada nova tiragem
em adequar a fala ao seu personagem. A co- de manuais.
Escrever não é apenas dominar regras concretizada na maior parte dos exercícios,
gramaticais, usar menos advérbios, mais pois eles visam à busca de material para
pontos, menos períodos longos e mais figuras criação, à pesquisa, à leitura, à lapidação da
de linguagem. Afinal, diversos exemplos de linguagem e à criatividade. Ademais, neles
escritores que rompem com aquilo que temos há a valorização da descoberta de si mesmo
como sagrado dentro da língua portuguesa como escritor e do texto como objetivo estéti-
apresentaram-se ou apresentam-se diante co, num trajeto permeado pela autoavaliação
do público e permanecem como sinônimo e autorreflexão.
de literatura, entre eles Stanislaw Ponte Pre- Cremos que esses manuais são o primeiro
ta, Guimarães Rosa, José Saramago, entre passo rumo a uma nova visão da literatura
outros. e do processo criativo. Contudo, um longo
É evidente que algumas orientações são caminho ainda precisa ser percorrido, pois
coerentes e necessárias, mas, mesmo assim, ainda trazem a velha e desgastada ideia de
quando copiadas de forma mecânica e sem que guias formam escritores, que a produção
prévia reflexão de seu uso, não colaboram, literária pode ser enquadrada dentro de recei-
de maneira significativa, para a produção de tas, passos, listas ou dicas, que a imitação,
um conto ou romance. Ademais, essa busca sem reflexão e questionamento, dos chama-
incessante pela correção pode se tornar fator dos grandes escritores é caminho acertado
precípuo para o surgimento do bloqueio. para sua própria construção como escritor.
Sabendo das exigências de uma escrita Portanto, a partir das leituras sistemáticas
impecável, o autor sente sua liberdade de e análises, concluímos que, como bem escla-
criação podada pelo receio de não escrever rece Salles (1998), não existe uma fórmula
corretamente. para escrever um conto ou romance. Assim
É válido ressaltar que os manuais da sendo, não há como garantir que, partindo
coleção “Guias do escritor”, que aqui foram desse ou daquele ponto, seguindo regras de
analisados, não valorizam em demasia os forma exemplar e praticando todas as dicas e
tópicos citados acima. Pelo contrário, a exercícios propostos em manuais de escrita,
proposta apresentada por todos os escritores seja formado um escritor criativo e competen-
é bastante original e rompe com o simulacro te. O processo criativo não é algo sistemático
apresentado pelos guias antecessores. Essa e passível de enquadramento em noventa
coleção, de forma geral, apresenta pontos ou cem páginas de um guia. Além disso,
positivos, tais como: a exploração do conceito aquele que não possui uma ampla bagagem
de literatura e a busca pela literariedade, o leitora, não pratica a produção textual com
fato de a criação literária ser compreendida assiduidade, não reescreve e não dedica sua
como um processo mais aberto e dinâmico vida à escrita não será escritor e, em hipótese
que não deve ser guiado exclusivamente pela alguma, produzirá literatura de qualidade.
correção gramatical e revisão. Essa visão é
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