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Milho de pipoca ou piruá?

Zeneide Silva

E você, o que é? Uma pipoca estourada ou um piruá?

Ao iniciar este artigo, lembrei de uma belíssima analogia do milho, escrita pelo grande filósofo
e educador Rubem Alves. Resolvi, então, repassá-la para vocês, como mais uma forma de
reflexão para este momento (tão longo) que estamos vivendo.

A metáfora relata que “Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de
pipoca para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem
quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira”.

A vida machuca — e como machuca. O nosso desejo é amplo, mas, a todo momento,
deparamos-nos com limites. Nesta pandemia, fomos obrigados a ter limites para sobreviver. É
muito difícil imaginar que nossa vida é estimada a cada 14 dias (tempo de encubação do
vírus…). Sabemos que limites são maneiras de dizer “sim” e “não” ao mesmo tempo. Não
gostamos deles, mas limites são absolutamente necessários para nos dar parâmetros que
nos ajudem a crescer. É importante aprender a lidar com os limites porque, embora possam
nos machucar, eles mostram a direção para um crescimento saudável.

Milho de pipoca – Rubem Alves

A culinária me fascina. De vez em quando, eu até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou
mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso, tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter
o nome de “culinária literária”. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da
cozinha: cebolas, ora-pro-nóbis, picadinho de carne com tomate, feijão e arroz, bacalhoada,
suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o


filme A Festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor
das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo,
poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do
pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia
em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem,
brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás,
conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente
aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação
metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca
que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao
pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das
pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem
sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo,
a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho
devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé
baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé…

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se, no meio dos meus milhos graúdos, aparecessem aquelas
espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto
de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não
sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as
espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem
e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme


barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes
se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro
das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa,
brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido
ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro em
pipoca macia é símbolo da grande transformação por que devem passar os homens para que
eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser
aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes,
impróprios para comer; porém, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar
em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo
fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma
mesmice e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é
o melhor jeito de ser.
Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca
imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder
um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro: pânico, medo, ansiedade, depressão —
sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem
fogo o sofrimento diminui. E, com isso, a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais
quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si
mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que
está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso-prévio,
pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF! — E ela aparece como outra
coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante
e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã, o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e
ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser
de um jeito para ser de outro.

“Morre e transforma-te!” — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas,
descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha,
que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o
meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em
milhos e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem
uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas
não valem.

Por exemplo: em Minas, piruá é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar.
Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: “Fiquei piruá!”. Mas acho que o poder
metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas
acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito de elas serem.

Ignoram o dito de Jesus: “Quem preservar a sua vida perdê-la-á”. A sua presunção e o seu
medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a
vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém.
Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem
para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que
a vida é uma grande brincadeira…

“Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi
precisamente isso que aconteceu.”

Desejo que a leitura do texto Milho de pipoca faça uma ligação com o limite que fomos
obrigados a ter, e que, nesta pandemia, diante de todo o sofrimento e das incertezas, dê-nos
força para acreditar em dias melhores, para nos deliciar assistindo um belo filme comendo
pipocas.

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