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v. 1, n.

2, 2022
Editorial Corpo Editorial Coruja | Alyne Bittencourt, Ana
Carolina Spalla, Ana Clara Barreiros (bolsista), Anna
Carolina Pimentel, Beatriz Costa (bolsista), Bruna
“A gente quer ter voz ativa Felsmann (bolsista), Emilia Sandrinelli, Fabiana
No nosso destino mandar Prieto (bolsista), Liciane Corrêa (bolsista) e Ticiane
Mas eis que chega a roda-viva Sousa (bolsista)
E carrega o destino pra lá” Ilustradora de capa | Fabiana Prieto
(“Roda Viva”, Chico Buarque) Diagramadora | Liciane Corrêa
Revisoras |Fabiana Prieto, Mariana Pais e
Ninguém esperava que um alerta de duas se- Ticiane Sousa
manas de quarentena se tornaria seis meses, que se Agradecimentos especiais | Profa. Adriana Jordão e
tornaria um ano, que se tornaria um eterno período Rafaela Lomba
de adaptação. Seguimos sem saber quando vai ser
totalmente seguro andar sem máscara na rua.
Em momentos de insegurança e angústia, a es-
crita se torna ferramenta essencial para respirar.
Foi a partir daí que surgiram os textos que foram
apresentados por alunos da comunidade interna da
Uerj na IV Sappli (Semana Acadêmica de Pesquisa
e Produção Literária de Graduação em Letras) e
que deram origem a esta edição do folhetim Coruja.
Em um momento tão marcante ao redor do mun-
do, e cujos impactos na arte só serão mensuráveis
daqui a muitos anos, nós nos propomos a trazer uma
pequena amostra da marca que esse evento causou
em nossa comunidade acadêmica.
Dentre as produções desta edição, temos textos
em prosa, poesia e estilo misto, que abordam de
diferentes maneiras o tema da pandemia. Com um
olhar bem-humorado, Emilia Amoedo conta sobre
suas desventuras na cozinha durante a pandemia
em “Pandemia gastronômica”, enquanto Eduarda
Cabral descreve com saudosismo, em “Quando outro
dia passa”, os dias pré-pandemia. Alessandra Santos
nos apresenta um panorama de diferentes impres-
sões sentimentais que foram mudando ao longo da
pandemia em “Escritos breves de uma mente ansio-
sa: poesia, melancolia e insubordinação”. Com três
poemas publicados nesta edição, Glaucio Cardoso
mostra diferentes abordagens do tema: em “Cansaço”,
explora a sensação de estagnação e exposição da
vida pandêmica, enquanto o poema “Fragmento
encontrado em 3076” faz uma esperançosa projeção
de um futuro pós-Covid 19; em “Versos na quaren-
tena”, dialoga com sua prática poética e como ela foi
afetada pela quarentena. No fim, em “Viver e sonhar
em tempos de pandemia”, de Ronaldo Dória Júnior,
temos flashes reflexivos sobre seus dias em casa, à
espera do recomeçar.

Boa leitura!

Bruna Felsmann (bolsista)


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Chapa 54: Uma
Coruja, com uma
Segunda ao Longe
Comendo um Coelho,
c. 1575-1580, de
Joris Hoefnagel

Pandemia gastronômica
Emilia Amoedo

Escrevo para desabafar. Sim, desabafar. Declarar


profunda revolta e desprezo por esta malfadada
pandemia que me atirou num compartimento da
casa que até então só conhecia pelo nome — cozi-
nha. Nunca me aproximei e nunca fomos amigas
e depois deste desventurado vírus tenho certeza
de que jamais conviveremos de forma civilizada,
porque ela tira de dentro de mim o que há de pior.
Minha coordenação.
Nem sei mais em qual dia me encontro nesta
desditosa quarentena, só sei que esta foi a sétima
fornada de torradas vergonhosamente queimadas
que surgiu do meu presídio particular.
Também assumo, com vago desconforto, que
começo a ser tratada como incapaz, com alguma
razão, por minha filha desde que me flagrou parali-
sada assistindo blasé à morte da torradeira em meio
a labaredas durante o café numa manhã de segunda
feira. Isso mesmo, para além dos pães (vítimas diá-
rias), consegui esturricar minha própria torradeira
desde que assumi o comando desta especializada.

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Quem me conhece sabe que adoto postura ques- dentro desta penitenciária, minhas mãos ganham
tionável quanto aos assuntos das prendas do lar e uma força demoníaca, e se transformam num potente
que não me relaciono bem com qualquer coisa que ventilador que sai atirando comidas e utensílios
exija mais do que meia hora de atenção. Como co- para todos os lados criando um ciclone particular
zinhar exige entrega total, sinto-me na obrigação onde viro uma espécie de mulher elástico que, com
de reconhecer que minhas peripécias gastronômicas a mão direita refoga a comida, e com a outra pega
vão do terror absoluto ao completo desalento. Sem do chão tudo o que lhe foi atirado transformando
falar nas perdas financeiras. essa penitência gastronômica numa alquimia veloz
Nas raríssimas ocasiões em que me aventurei e complicada onde todos saem envenenados.
a pilotar um fogão, fui do ovo com açúcar até um Regressando às comidas rápidas, fui tentar fazer
macarrão - que no afã de ser incrementado - foi uma tal de carne assada na cerveja que deveria ser
jogado às pressas no liquidificador com salsichas e feita na controversa panela de pressão (que possuo
temperos verdes que viriam a se transformar numa há mais de dois anos sem nunca ter utilizado) e que
pasta al vômito num Domingo de Páscoa para nada levaria apenas trinta minutos para ficar pronta,
menos que dezesseis convidados. suculenta e deliciosa.
Voltando às tormentas diárias na masmorra, Mentira.
lembro-me da lenda urbana que surgiu no início Fiquei esperando pelo apito daquela maldita até
da pandemia de que incautos e desvalidos do fogão que, uma hora e vinte minutos depois, desconfiada,
aprenderiam como fazer o mais francês dos quitu- minha filha determinou sua abertura. Seguindo as
tes abandonando de vez os restaurantes, porque se instruções, abri a tampa de Guantánamo só para
transformariam em competentes mestres-cucas. constatar que deveria fazer o funeral da iguaria.
Tudo balela. Muito pelo contrário. Ainda detesto Em minha defesa, devo dizer que não ouvi o
cozinhar e confesso que medir ingredientes para tal apito antes da destruição total do meu assado.
mais de duas pessoas me dá dor de cabeça. Nunca Também tentei fazer um ensopado vegano, igual
entendi a lógica da culinária. Sempre desconfiei de ao da experiente cozinheira da TV, num dia em que
um trabalho que - de fato - dá trabalho e digo isso o calmante foi suprimido pela bebida. Levemente
porque já perdi as contas de quantas vezes comi atordoada descobri, no último minuto, que faltava
sobras de comida, assim mesmo, no estado, só para um componente importante. Possuída e tomada por
não ter que voltar para o calabouço. uma espécie de encosto proativo, resolvi ousar e trocar
Nem preciso dizer que o tal Chef Gourmet, ta- os ingredientes atirando na panela farinha de milho
lentoso, organizado, com noção de tempo invejável no lugar do grão de bico e, em meio a pensamentos
e que sai incólume da cozinha mesmo depois de ter embotados pelo álcool, coloquei a quantidade que
feito uma rabada com agrião, me ofende, pior, consi- minha consciência inspirou e acabei por transfor-
dero uma afronta já que por óbvio toda essa virtuose mar o tal ensopado numa espécie de mingau de
não me representa. Não, não sou organizada, estou Cremogema salgado.
sempre esquecendo algum ingrediente importante e Deixo para sua imaginação a hora da prova do
sou totalmente descoordenada neste ambiente hostil alimento...
e digo isso porque, apesar de vigiar a comida como O arroz faço empapado mesmo. Arroz soltinho
um falcão, meus pratos variam entre o totalmente cru é preciosismo.
ou o completamente queimado e sempre — sempre O feijão (quando não queimo) sai com os grãos
— transformo minhas roupas numa praça de guerra totalmente apartados da cebola e do alho que cos-
com marcas de sangue, gordura e fumaça, terminando tumam boiar na água barrenta, os legumes são in-
num fracasso total de bilheteria. digestos e o frango... bom, o frango é um capítulo
Retornando à sala de detenção, vi minha vidinha à parte.
virar do avesso no momento em que, repentinamen- Até agora não entendi o apelo da coxa e da sobre-
te, fui aprisionada entre arrozes e feijões e toda sorte coxa de frango. Não sei o que está causando tantas
de carne que antes, em liberdade, só sabia chamar desavenças entre nós, mas o fato é que nunca consigo
pelo nome completo: frango a passarinho, galinha aquele tal de dourado por fora e tenro por dentro,
cabidela, bife a cavalo, filé de peixe ou gratin e por muito pelo contrário, essa desgraça fica parecendo
aí vai. que foi assassinada dentro da panela dado ao seu
Como não dá para decretar o fim da pande- aspecto de filme de terror. Se a vigilância sanitária
mia aleatoriamente, quando volto para a cela tenho bater aqui em casa, saio algemada.
tendência a optar por pratos que em tese seriam Bife nunca tentei. Imagina o resultado. Certa­
de fácil preparação, o que nunca acontece, porque, mente seria preciso chamar os Bombeiros.

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Também não sou fã de verduras e legumes. preferíamos aparelhos eletrônicos em excesso
Odeio. Odeio mesmo e odeio ainda mais toda aque- e ter laços familiares sendo fragilizados.
la baboseira de que faz bem para saúde e mata a Então isso nos faz refletir,
fome; francamente, desde quando brócolis é gos- até mesmo colocar no lugar o que estava fora do
toso? Alguém pode jurar sobre a Bíblia? Na minha lugar.
casa só vão para panela quando já estão no estágio Agora, querendo ou não,
conhecido como putrefato. a única forma de comunicação era online,
Cozinha é perversão. e as diversas e inusitadas questões da vida cotidiana
Quando o cumprimento da minha pena acabar agora eram resolvidas assim.
vou me jogar de cabeça no Angu do Gomes. Então tudo é lição.
Em tempos assim
acabamos nos conectando mais com crenças,
com nós mesmos e com a família.
Quando outro dia passa Em tempos assim
fizemos coisas que nem lembrávamos que gostá-
Eduarda Cabral vamos.
Em tempos em que nos confinamos,
Quem diria que sentiríamos evidentemente já antes
falta da nossa rotina. haviam tantas pessoas
Se tornou um lindo sonho que viviam em seus próprios confinamentos inte-
que gosto de olhar da janela, riores.
imaginando meus dias lá fora,
esperando que o dia seguinte Os dias passavam,
de incertezas e possibilidades chegasse. se estendiam
Porque a vida é assim, e o outro dia já chegava e era tudo igual.
mesmo algo não saindo como planejávamos Tudo se repetia
tudo nos leva até onde estamos. assim como a rotina que reclamávamos.
A dor tem muito o que nos ensinar. Ao mesmo tempo que os dias passavam rápidos
Em tempos assim para uns,
valorizamos pequenos momentos, os dias para outros também eram devagar.
pois estes momentos movem o ser humano. Uns estavam doentes,
Os dias com céu azul e sol aberto outros ricos,
em que não podíamos desfrutar outros trabalhavam,
eram como aquela imagem de uma pessoa de costas outros estudavam em casa,
indo embora vista pelos meus olhos. outros tinham festas sem pessoas.
Ah! Saudades de colocar meus fones Ao mesmo tempo em que uma nação estava separada,
e ouvir dentro do ônibus na agitação do dia a dia. na verdade nunca tínhamos ficados tão unidos
pelo sentimento de ansiar pela liberdade
Não era questão de um querer ou não, e muitos, possivelmente, a solidariedade.
nossos corações procuravam no mesmo momento Não sabíamos o que esperar do outro dia.
a liberdade. Entretanto, em nossos corações tínhamos a certeza
Em tempos assim da esperança de que dias melhores viriam.
queríamos sentir o sol, Não me desesperei diante de tudo,
abraçar apertado o dia, apenas confiei de que tudo passaria.
beijar o tempo, A hora de tirar a máscara e o pijama chegaria.
sentir cheiro de asfalto molhado,
ouvir e dar risada com os amigos.
O que dirá a nós?
Um povo caloroso saber que um dia
iríamos ser privados disso.
Por outro lado,
quando podíamos fazer tudo isso
ainda assim optamos por continuar distante das
pessoas,

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Escritos breves de 8 de julho de 2020 (114º dia de quarentena)
Gente
uma mente ansiosa Na praia
na pandemia: poesia, Na feira
No bar
melancolia e Gente
No calçadão
insubordinação No shopping
Na rua
Alessandra Santos Gente que faz festa
Gente que vai à festa
22 de abril de 2020 (37º dia de quarentena) O presidente pegou a gripezinha
Transmissão descontrolada Que se dane, eu me preocupo é com a moça da pa-
Aumentam os mortos daria
Diminuem os leitos E com o cara do aplicativo exposto desde sempre
Ainda por cima a risco
O Bolsonaro e os bolsonaristas Porque disseram que o trabalho precarizado dele
Criaram um pandemônio era empreendedorismo e serviço essencial
No meio da pandemia Tão falando em voltar às aulas...
Tem dias que não tem como. Voltar como, num país tão desigual?
Aqui, quem morre e quem vive
30 de abril de 2020 (45º dia de quarentena) É pela classe social
Olha lá, mais um dia se vai. Tô achando que esses Peraí, mas não foi sempre assim?
dias têm corrido demais. Tenho sentido medo, muito Foi, mas agora escancarou tudo de vez
medo. E angústia também. Quase sempre me sinto Tem um rasgo enorme, imenso, escandaloso
cansada e parece que sono nenhum dá jeito. Fora a Tem um rasgo no tecido social
ansiedade, que voltou bagunçando tudo aqui no peito. Um rasgo no céu, um rasgo no véu
Todo dia é o fim do mundo. Quarenta e cinco dias Mas, calma lá, o que que essa gente
se passaram e parece que muitos outros ainda virão. Tá fazendo alegremente nas ruas
Não sei se você consegue ver da tua casa o sol Nas praças
se pôr. Daqui da minha, tenho visto quase todos os Nos bares
dias. Assistir a mais um dia se despedir é bonito e No mar?
melancólico. O entardecer no outono é especialmen- Que que essa gente tá fazendo lá?
te lindo, fico do terraço admirando aquelas cores É negação? É vazio existencial?
vibrantes lá no céu. Tenho tentado me convencer É falta de solidariedade ou de pensamento coletivo?
de que está tudo bem eu me sentir assim e de que Eu não sei, não sei
logo isso tudo vai passar. Não tem sido nada fácil. Só sei que os dias passam, correm,
Eu hoje só queria uma boa dose de esperança às vezes, quase nunca, eles passeiam
pra mandar de uma só vez pra dentro. E eu aqui
Já quase enlouqueci
29 de maio de 2020 (74º dia de quarentena) Entre uma crise e outra
Hoje me bateu uma saudade danada de bar. De Taquicardia
chamar o garçom pelo nome, de pedir mais umas E me falta ar
e só depois a(s) saideira(s). Saudade de filosofia e Entre noites insones e tardes improdutivas
de sociologia de bar e de resolver todos os proble- Estou aqui
mas da educação, da pesquisa, da vida, numa mesa Permaneço aqui
com copos de cerveja. Saudade de ouvir música ao Hoje tá fazendo um dia lindo de sol e céu azul
vivo e de cantar junto. De virar, instantaneamen- E eu o vi passar pela janela
te, a fã número 1 da banda que nem sei o nome. Não quero fazer parte do mal pior que se revela,
Hoje me bateu uma saudade danada de gente. De gen- É o mal da apatia.
te que fala alto, que se enrola na divisão da conta, que
não sabe fazer a conta e que se abraça, devagar e quente. Inspirado em @vivianeroux, com o gatilho de
Hoje me bateu saudade de uma proximidade social, nossas sensíveis trocas.
porque de distanciamento eu já tô cheia.

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Cansaço Mesmo quando as presenças se sucedem.
Quando tudo isso for passado,
Talvez entendamos
Glaucio Cardoso (08/04/2020) Que tudo que passou
Não passou de presente,
É duro esse constante reinventar, Chance, oportunidade,
Esse recriar dia a dia, Chamado...
Esse resistir pela mudança eterna. Quando tudo isso for passado,
É que tudo em torno O futuro, que nunca chega,
Convida ao estagnar, Não será mais utopia
Ao permanente, Ou nostalgia em construção.
Ao acovardar-se. Quando tudo isso for passado,
E nesses dias Que sejamos todos gratos
De portas cerradas, Por tudo que temos passado.
De sonhos adormecidos,
De medo e angústia,
Em que o simples abrir
De uma janela Versos na quarentena
Nos põe em vista do mundo,
A dureza da permanência Glaucio Cardoso (15/05/2020)
Nos choca,
E chocados, Tenho inveja dos poetas
Espantados, Que no isolamento encontram
Assombrados, Motivação para seus versos.
Ainda assim nos levantamos É que a solidão, dizem eles,
Uma vez mais Trouxe o silêncio,
E, punho erguido, Trouxe a retidão,
Bradamos: A quietude que inspira.
NÃO! E para mim, não...
É que poesia sempre foi
Minha forma de estar em contato,
De comunicar,
Fragmento De “arreunir”,
encontrado em 3076 De dialogar.
Poesia sempre foi
Meu maior estar no mundo,
Glaucio Cardoso (13/05/2020) Por isso escrevo pouco nestes dias.
E agora repenso o que disse no início...
E quando tudo isso for passado, Tenho ainda um pouco
Haveremos de olhar De inveja dos poetas
Mais nos olhos que nas telas. Que no isolamento encontram
Buscaremos mais abraços verdadeiros, Motivação para seus versos...
Sorriremos mais francamente, Mas, acima de tudo,
E aprenderemos a beleza Também tenho pena.
De estarmos realmente lado a lado,
Assim, sem nem precisar dizer nada,
Mas sem nos distrair na virtualidade.
Quando tudo isso for passado,
Acho que o mundo estará
Um pouco mais silêncio,
Muitos rostos não serão mais,
E talvez nem o meu ainda seja.
Entenderemos finalmente
Que ausências não se substituem,

6
Viver e sonhar em — Meu pai? Chorando? A senhora respeite o
meu pai, por favor!
tempos de pandemia Ela riu novamente. Eu saí menos triste, por ter
arrancado dela algumas gargalhadas. Por outro lado,
Ronaldo Dória Júnior me vi pensando no quanto o isolamento social, o
medo de uma possível contaminação e as perspec-
O ano até que começou bem. Em janeiro, co- tivas sombrias em relação ao sistema de saúde têm
mecei a estudar inglês e dei prosseguimento no afetado a todos nós.
curso de espanhol. As aulas de alemão na univer- Eu tenho lido muito. Às vezes pego o violão e
sidade recomeçariam em março. Terminado o se- faço algum barulho, tento aprender alguma coisa
mestre, eu emendaria um intercâmbio: um mês de nova no teclado. Procuro combater a sensação de
curso em Berlim. Tudo preparado, estadia reser- improdutividade que insiste em tomar conta de mim.
vada. Além dos pontos turísticos principais — os Uma sensação ruim de que esse será um ano perdido.
Hauptsehenwürdigkeiten, adoro essa palavra —, eu Sem contar a saudade grande das pessoas queridas.
já tinha preparado um tour musical, que incluía visi- Hoje cedo, uma conhecida me mandou imagens
tas às casas de Schumann, em Leipzig, e Beethoven, de bolo de casamento e perguntou o que eu achava.
em Bonn. Tinha combinado encontros com amigos Eram todos muito bonitos, eu respondi. Em seguida,
na Itália, Dinamarca, Sérvia… enviou fotos de um casarão na serra, cujos donos,
As águas de março levaram embora todos os amigos dela, alugavam para festas. Fez comparações
planos de viagem, de estudo, de lazer. De repente, sobre valores, falou sobre custos de fotógrafos e
o caos que víamos apenas na tevê estava batendo à bufê. Um amigo seu, pianista, ficaria encarregado
nossa porta, alterando drasticamente toda a nossa das músicas.
rotina. Tudo fica muito mais intenso quando as coisas À tarde, entrou novamente no assunto, dizendo
que ouvimos e lemos começam a acontecer perto de que o casarão não pertencia mais aos amigos, mas que
nós; quando um vizinho depende de caridade para se já estava de olho em outro local. Eu estava curioso
alimentar; quando nos damos conta de que o pouco desde o início, porque não sabia que ela era noiva, ou
que temos pode ser considerado um privilégio por se tinha namorado. Resolvi perguntar.
muitos milhões de pessoas; quando amigos e conhe- — O que o seu namorado achou desse novo
cidos começam a adoecer e morrer. Infelizmente, espaço?
não é só uma gripezinha. Tenho uma vizinha, avó — Olha, eu não tenho namorado, não tenho
dos meus primos, que sempre me pede ajuda quando pretendente, não tenho previsão de casamento nem
precisa fazer algo no celular e não consegue. Semana nada. Mas num custa nada a gente sonhar, imaginar
passada, ela teve dificuldades com o aplicativo do como poderia ser...
banco. Enviou mensagem no Whatsapp pergun- Realmente, não custa nada. Acho até que é uma
tando se eu conseguiria resolver. “Eu posso tentar, saída boa. Tantas coisas que eu quero fazer quando
dona Rose. Me dá um minuto, já passo aí”. Ela me essa tempestade passar! Algumas quase ao alcance
recebeu de longe, me entregou o telefone pela fresta das mãos, outras, nem tanto. A dona dos meus versos
do portão. Então, começou a chorar. está longe. A nos separar, quilômetros de distância
— Esse negócio de não poder sair de casa é e um isolamento que durará por tempo indefinido.
muito ruim... — ela disse, entre soluços. Que os meus devaneios, então, voem leves, aparen-
Não podia chegar mais perto, abraçá-la. Tentei temente sem destino, e encontrem aconchego nos
dizer algumas palavras de conforto. braços do meu amor.
— Você também chora com isso tudo? — dona
Rose me perguntou.
— Nós homens não temos aquela glândula que
produz lágrimas, né. Então não, não choro nunca.
Respondi tão seriamente que, por uma breve
fração de segundo, ela hesitou. Depois, soltou uma
risada.
— Você é muito bobo! Que bobeira essa história
de que homem não chora.
— Se chora, não é homem.
— Pois eu vi seu pai chorar, quando sua vó
morreu.

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https://folhetimcorujauerj.blogspot.com

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