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BURCKHARDT
Abstract: Our goal is to discuss the notions of history and tradition as legitimators of
Burckhardt's and Nietzsche's behaviors, which are, on the one hand, conservative and, on
the other, transgressive. And for this we will rely on the reading of commentators and,
mainly, on the analysis of the historiographical discourse of history theorist Hayden
White, who will guide us in this endeavor.
Introdução
A moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que a obediência a
costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional
de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe
moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é
o círculo da moralidade. O homem livre é não moral (unsittlich), porque em
tudo quer depender de si, não de uma tradição (...). Cada ação individual, cada
modo de pensar individual provoca horror; é impossível calcular o que
justamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais da história
devem ter sofrido pelo fato de serem percebidos como maus e perigosos, por
perceberem a si próprios assim (NIETZSCHE, Aurora, aforismo 9).
1
epistemológicas, que identificam, nas palavras de Jörn Rüsen, a consciência histórica de
um período que, resumidamente, podemos considerar a soma das intenções de seus
agentes sob a pressão da experiência temporal. E cada tradição, independente do setor
social ou científico que engendra, pode carregar consigo uma moral. Diz Rüsen: “A
experiência histórica, apreendida e apropriada por meio da pesquisa, é antes de mais nada
tradição (antes de qualquer ciência) [...] A destradicionalização do passado, é que o torna
resíduo pesquisável” (2007, p. 137). Nessa passagem, Rüsen esclarece que o campo da
história, onde o historiador se lança, está inundado em tradição, e somente uma análise
crítica pode drenar isso que envolve o seu objeto, para poder avaliá-lo considerando todo
um leque de perspectivas que a tradição ofusca. Um passo muito grande no sentido de
“destradicionalizar” ou “desmoralizar” os discursos que permeiam o passado, a gênese
da sociedade, foi dado por Friedrich Nietzsche, influenciando vários cientistas e
pensadores subsequentes, inclusive da historiografia.
No entanto, veremos a seguir que, aparentemente, se nota em Nietzsche um duplo
movimento em relação ao passado: aquele, como n’A genealogia da moral, em que uma
espécie de arqueologia é posta em prática, revelando a história nefasta subjacente aos
valores morais cristãos, enfim, um esforço de “destradicionalização”; e outro, como em
Crepúsculo dos ídolos, onde se percebe “a vontade de tradição, de autoridade, de
responsabilidade por séculos além, de solidariedade pelas correntes das gerações tanto
para adiante quanto para trás” (§ 39). Talvez estudos como o aqui proposto, sobre a
relação de Nietzsche e Burckhardt sejam elucidativos quanto à definição de
conservadorismo, comumente traduzido como a manutenção das instituições tradicionais,
mas que carece de delimitação quanto à forma da retomada e zelo para com o passado.
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passou a ser aplicado desde o início do século XX, como é o caso de Ernst Cassirer, que,
embora historiador da filosofia e antropólogo, via na ciência o apogeu do gênero humano,
e o “papel hegemônico das ciências físicas entre as disciplinas eruditas” (WHITE, 1994,
p. 42), como a história. Porém, Nietzsche guardaria maior rancor à história enquanto
guardiã da memória e da moral humanas.
Mas de onde vem essa aversão à moral, ou melhor, à história que, sob a mão de
muitos, afigurou-se a guardiã daquela, deslegitimando o entusiasmo humano? Vem
justamente das aulas que frequentou de um historiador1. Nietzsche afirmou certa vez que
“somente ao ouvir Burckhardt falar sobre ‘Os grandes homens da história’ sentiu, pela
primeira vez na vida, prazer em assistir a uma aula” (BURKE, 2003, p. 4). Quando Jacob
Burckhardt tenta reproduzir, em sua narrativa histórica, uma obra de arte, tal como
aquelas que descrevia, ampliou-se os pontos de vista sobre os discursos, possibilitando a
mudança de postura diante deles: se antes representavam a manifestação de leis imutáveis,
agora são obras de arte, valendo-se de metáforas, figurações e retórica, das artimanhas do
convencimento. “Uma ciência da história concebida hermeneuticamente tem afinidade de
1
“Meu amigo Jakob Burckhardt de Basiléia, um homem digno de veneração: é a ele que Basiléia deve,
em primeiro lugar, sua proeminência no que concerne às humanidades” (Crepúsculo dos ídolos, § 5 – o
que falta aos alemães).
3
princípio com a arte” (RÜSEN, 2007, p. 137), atribuindo maior importância à
subjetividade e à cultura, intenções demasiadamente humanas, subjacente aos
documentos, durante a investigação histórica.
2
“O historiador, como o físico, vive em um mundo material. No entanto, o que ele encontra logo no início
de sua investigação não é um mundo de objetos físicos, mas um universo simbólico – um mundo de
símbolos” (CASSIRER apud PINHEIRO, 2019, p. 128).
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à ciência que fazia de seu tempo “o ponto culminante e a consumação de todas as nossas
atividades humanas, o último capítulo da história da humanidade e o tópico mais
importante de uma filosofia do homem” (WHITE, 1994, p. 42). Burkhardt, “distante tanto
do conservadorismo rankeano quanto da euforia nacionalista [era] incapaz de conceber a
história como associada à ideia de progresso, ou a qualquer tipo de concepção otimista a
respeito da natureza humana” (CUNHA, 2020, p. 199). Nosso historiador da arte, agora
livre da história positivista e “salvadora” do gênero humano, tentou desenvolver nela
técnicas artísticas de seu tempo. Sua obra, A Civilização da Renascença, “pode ser
considerada um exercício da historiografia impressionista” (WHITE, 1994, p. 56), pelo
fato de, tal como Cézanne, renunciar à tarefa de expressar toda a verdade sobre um
período histórico, ou de uma paisagem. Aprendeu com Schopenhauer que “toda tentativa
de dar forma ao mundo, toda afirmação humana, estava tragicamente fadada ao fracasso,
mas que a afirmação individual alcançava o seu valor quando conseguia impor ao caos
do mundo uma forma transitória” (WHITE, 1994, p. 57). A obra mencionada é
convencionalmente encarada como desprovida de “estória” ou de qualquer “linha
narrativa”, o que a enquadra no modo narrativo da ironia.
Além disso, White afirma que Burckhardt segue a linha contextualista, que
significa negar as leis universais de causa e efeito postuladas pelo mecanicista ou os
princípios teleológicos gerais postulados pelo organicista, implicando numa ação em um
campo de estudo “tão amplo como ‘a Revolução Francesa’ ou tão pequeno como um dia
na vida de uma determinada pessoa” (WHITE, 1994, p. 33). Peter Burke, em sua
introdução à obra A cultura do Renascimento na Itália, afirma que “Onde outros
pretenderam contar uma história, Burckhardt teve por objetivo pintar o retrato de uma
era” (2003, p.5). Burke lembra a grande importância de Artur Schopenhauer no trabalho
de Burckhardt.
Não seria fantasioso sugerir que A cultura do Renascimento na Itália deve algo
à filosofia de Schopenhauer – “nosso filósofo”, como Burckhardt costumava
chamá-lo em suas caminhadas com Nietzsche. Quando Burckhardt opôs o
caráter sistemático da ciência, que subordinava, ao caráter assistemático da
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história, que coordena, estava, na verdade, dando eco à obra de Schopenhauer
O mundo como vontade e representação (BURKE, 2003, p. 12).
Isso nos leva a uma mente cujo teor político é aristocrático; uma vez que, se ele é
contra o “industrialismo” – que tirou o poder econômico da Igreja e o entregou à classe
burguesa ascendente – e nutria antipatia por levantes populares, como a Revolução
Francesa e a “democracia de massas” – que são, respectivamente, levantes contra a
aristocracia e a burguesia já consolidada pela indústria – o que nos resta é um aristocrata
convicto. A aristocracia (nobreza) defendida por Nietzsche, por outro lado, diverge da de
Burckhardt em alguns aspectos.
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O equivalente filosófico do estado de espírito representado por Burckhardt na
historiografia é, está claro, Friedrich Nietzsche. Mas o esteticismo, o ceticismo,
o cinismo e o pessimismo que foram simplesmente adotados por Burckhardt
como as bases do seu tipo peculiar de “realismo” foram autoconscientemente
assumidos como problemas por Nietzsche. De mais em mais, foram
considerados manifestações de um estado de decadência espiritual que iria ser
superado em parte pela libertação da consciência histórica do ideal
impraticável de uma perspectiva transcendentalmente “realista” do mundo [...]
Em suas primeiras obras filosóficas Nietzsche tomou como seu problema a
consciência irônica de sua época [...] procurou dissolver essa ironia sem cair
nas ilusões de um romantismo ingênuo [...] porquanto, tentou assimilar o
pensamento histórico a uma noção de arte que toma o modo metafórico como
sua estratégia figurativa paradigmática (WHITE, 1994, p. 55).
Assumindo muitas vezes a metáfora como forma narrativa, Nietzsche pode ser
visto como antagonista – não só de Schopenhauer no que toca à “insensatez do exercício
público” ou da malfadada “afirmação humana” individual – da postura irônica, cética e
satírica da história, como praticava seu professor, para não desmerecer outro ponto da
obra de Burckhardt, tão importante para sua própria, que é a figura do indivíduo que se
molda como um artista que talha na pedra uma escultura, que em Nietzsche ganha ares
de soberania. Em várias ocasiões tal figura aparece na obra de Burckhardt, mas é no ofício
dos biógrafos da Renascença e na vida dos autobiografados – como jerônimo Cardam,
Benvenutto Celinni, Luigi Cornaro, entre outros – que se encontra o sujeito que toma as
rédeas de sua história.
Considerações finais
Por fim, podemos concluir, dentro dos limites deste trabalho e da bibliografia
consultada, que, se é entendida como conservadora a postura daqueles que defendem o
militarismo e o nacionalismo, não será compreendido o conservadorismo de Burckhardt,
tampouco o liberal-burguês, que preza pela propriedade privada, conforto e democracia,
entenderá o “tradicionalismo”4 de Nietzsche, dado que, baseando-se nos gregos antigos,
numa certa tradição, afirmou que “o homem não aspira à felicidade; somente o inglês o
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“O que Nietzsche compreende por democracia liberal é uma sociedade baseada, entre outras coisas, em
uma secularização de valores cristãos, inclusive uma igualdade niveladora, um culto da piedade e da
compaixão, uma ênfase no isolamento e uma desvalorização da política como arena de conflito” (ANSELL-
PEARSON, 1997, p. 165).
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“Somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco vem à fala o fato fundamental do
instinto helênico - sua ‘vontade de vida’. Que responsabilidade o heleno assumia com estes mistérios? A
vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro prometido e santificado no passado; o sim triunfante à vida
para além da morte e da mudança; a vida verdadeira enquanto o prosseguimento conjunto da vida através
da geração, através dos mistérios da sexualidade” (Crepúsculo dos ídolos, § 4 – o que devo aos antigos?).
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faz” (Crepúsculo dos ídolos, § 12 – sentenças e setas). Se considerarmos que Edmund
Burke, pai do pensamento conservador clássico, “não aprova alianças ou coalizões com
classes sociais emergentes em função de serem destituídas de tradições, heranças e ideais
de nobreza e cavalheirismo, tais como, à época, a nascente burguesia industrial e também
a mercantil” (SOUZA, 2016, p. 375), um conservadorismo liberal ou estatista não se
justifica. Nietzsche (devido a já mencionada aversão ao tipo de história que “solapou o
impulso heroico” em nome da crescente racionalização do mundo) e Burckhardt, nesse
sentido, podem ser considerados conservadores genuínos. Vale ressaltar que, para
Nietzsche, “a capacidade de construir um novo futuro depende de uma aptidão para ver
uma continuidade fundamental com as forças do passado na forma de tradições”
(ANSELL-PEARSON, 1997, p. 167). É preciso ter em mente, todavia, que Burckhardt,
mesmo contrário à modernidade como era entendida em seu tempo, se encontra,
justamente por seu conservadorismo, na vanguarda da historiografia atual, quando optou
por um relato impressionista, ao invés de tentar encontrar as “leis” da história em seu
objeto de estudo. Da mesma forma que Nietzsche se vale do passado, dos instintos
soterrados pela “objetividade moderna” – que é, aliás, de “mau gosto”5 – não para
justificar a conservação das instituições tradicionais, mas para, ao contrário, implodi-las.
Referências
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Crepúsculo dos ídolos, § 6 – o que falta aos alemães.
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_________Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_________Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. Trad. Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
_________Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
PINHEIRO, Wagner de Moraes. A Temporalidade na consciência histórica para Ernst
Cassirer. Revista historiador, n. 12, 2019, p. 121 - 130.
RÜSEN, Jörn. Reconstrução do Passado. Trad. Asta-Rose Alcaide. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2007.
SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação de. Edmund Burke e a gênese do
conservadorismo. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 126, 2016, p. 360-377.
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaio sobre a crítica da cultura. Trad. José
Laurêncio de melo. São Paulo: Edusp, 1994.
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