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HISTÓRIA, CONSERVADORISMO E POLÍTICA EM NIETZSCHE E

BURCKHARDT

Resumo: Temos por objetivo discutir as noções de história e tradição enquanto


legitimadoras das posturas, por um lado, conservadoras e, por outro, transgressoras de
Burckhardt e Nietzsche. E para isso contaremos com a leitura de comentadores e,
principalmente, com a análise do discurso historiográfico do teórico da história Hayden
White, que nos guiará nessa empreitada.

Palavras-chave: Conservadorismo; Jacob Burckhardt; Friedrich Nietzsche.

HISTORY, CONSERVATISM AND POLITICS IN NIETZSCHE AND


BURCKHARDT

Abstract: Our goal is to discuss the notions of history and tradition as legitimators of
Burckhardt's and Nietzsche's behaviors, which are, on the one hand, conservative and, on
the other, transgressive. And for this we will rely on the reading of commentators and,
mainly, on the analysis of the historiographical discourse of history theorist Hayden
White, who will guide us in this endeavor.

Keywords: Conservatism; Jacob Burckhardt; Friedrich Nietzsche

Introdução

A moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que a obediência a
costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional
de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe
moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é
o círculo da moralidade. O homem livre é não moral (unsittlich), porque em
tudo quer depender de si, não de uma tradição (...). Cada ação individual, cada
modo de pensar individual provoca horror; é impossível calcular o que
justamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais da história
devem ter sofrido pelo fato de serem percebidos como maus e perigosos, por
perceberem a si próprios assim (NIETZSCHE, Aurora, aforismo 9).

Primeiramente, precisamos ter em mente que a historiografia sempre lida com


tradições. Não somente no sentido comum da palavra, que nos remete a uma postura
conservadora, mas também trabalha com tradições filosóficas, científicas,

1
epistemológicas, que identificam, nas palavras de Jörn Rüsen, a consciência histórica de
um período que, resumidamente, podemos considerar a soma das intenções de seus
agentes sob a pressão da experiência temporal. E cada tradição, independente do setor
social ou científico que engendra, pode carregar consigo uma moral. Diz Rüsen: “A
experiência histórica, apreendida e apropriada por meio da pesquisa, é antes de mais nada
tradição (antes de qualquer ciência) [...] A destradicionalização do passado, é que o torna
resíduo pesquisável” (2007, p. 137). Nessa passagem, Rüsen esclarece que o campo da
história, onde o historiador se lança, está inundado em tradição, e somente uma análise
crítica pode drenar isso que envolve o seu objeto, para poder avaliá-lo considerando todo
um leque de perspectivas que a tradição ofusca. Um passo muito grande no sentido de
“destradicionalizar” ou “desmoralizar” os discursos que permeiam o passado, a gênese
da sociedade, foi dado por Friedrich Nietzsche, influenciando vários cientistas e
pensadores subsequentes, inclusive da historiografia.
No entanto, veremos a seguir que, aparentemente, se nota em Nietzsche um duplo
movimento em relação ao passado: aquele, como n’A genealogia da moral, em que uma
espécie de arqueologia é posta em prática, revelando a história nefasta subjacente aos
valores morais cristãos, enfim, um esforço de “destradicionalização”; e outro, como em
Crepúsculo dos ídolos, onde se percebe “a vontade de tradição, de autoridade, de
responsabilidade por séculos além, de solidariedade pelas correntes das gerações tanto
para adiante quanto para trás” (§ 39). Talvez estudos como o aqui proposto, sobre a
relação de Nietzsche e Burckhardt sejam elucidativos quanto à definição de
conservadorismo, comumente traduzido como a manutenção das instituições tradicionais,
mas que carece de delimitação quanto à forma da retomada e zelo para com o passado.

Posicionamentos em relação à História

Hayden White afirma que “a história é talvez a disciplina conservadora por


excelência” (1994, p. 40). Com essa frase White define a concepção de história para parte
dos pensadores e cientistas da segunda metade do século XIX, o que desencadeou um
movimento anti-histórico em quase todas as atividades humanas, científicas ou não,
durante a primeira metade do século XX. E isso se deve, dentre outros fatores, à influência
de Nietzsche. Nas artes, na ciência e na política do século XX, a presença de Nietzsche –
fruto de interpretações acertadas e equivocadas de sua obra – é inegável. Mas também se
observa a ressalva à história devido sua inadequação ao pensamento científico como

2
passou a ser aplicado desde o início do século XX, como é o caso de Ernst Cassirer, que,
embora historiador da filosofia e antropólogo, via na ciência o apogeu do gênero humano,
e o “papel hegemônico das ciências físicas entre as disciplinas eruditas” (WHITE, 1994,
p. 42), como a história. Porém, Nietzsche guardaria maior rancor à história enquanto
guardiã da memória e da moral humanas.

Em O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche opôs a arte a todas as formas


de inteligência abstrativa assim como opôs a vida à morte pela humanidade.
Ele incluía a história entre as muitas perversões possíveis das faculdades
apolíneas do homem e em particular a acusava de ter contribuído para a
destruição dos fundamentos míticos tanto da personalidade individual quanto
da personalidade comunal. Dois anos depois, em O Uso e o Abuso da História
(1874), Nietzsche aprimorou sua concepção da oposição entre a imaginação
artística e a imaginação histórica e afirmou que, sempre que floresciam os
“eunucos” no “harém da história”, a arte devia necessariamente perecer. “O
senso histórico exagerado”, escreveu ele, “levado ao seu extremo lógico,
erradica o futuro porque destrói as ilusões e priva as coisas existentes da única
atmosfera em que podem viver”. Nietzsche odiava a história ainda mais do
que a religião. A história promoveu nos homens um voyeurismo debilitante,
fê-los sentir que eram forasteiros num mundo onde todas as coisas dignas de
fazer já haviam sido feitas e desse modo solapou aos poucos aquele impulso
ao esforço heroico que poderia conferir um sentido peculiarmente humano,
ainda que transitório, a um mundo absurdo. O senso da história era o produto
de uma faculdade que distinguia o homem do animal, ou seja, a memória,
também fonte da consciência. A história devia ser “seriamente odiada”,
concluía Nietzsche, “como um luxo caro e supérfluo do entendimento”, para
que a própria vida humana não perecesse no culto insensato daqueles vícios
que uma falsa moralidade, baseada na memória, induz nos homens. Não
importa o que, por bem ou por mal, a geração seguinte aprendeu de Nietzsche,
ela absorveu a sua hostilidade à história na maneira como foi violentamente
posta em prática pelos historiadores acadêmicos no final do século XIX
(WHITE, 1994, p. 44).

Mas de onde vem essa aversão à moral, ou melhor, à história que, sob a mão de
muitos, afigurou-se a guardiã daquela, deslegitimando o entusiasmo humano? Vem
justamente das aulas que frequentou de um historiador1. Nietzsche afirmou certa vez que
“somente ao ouvir Burckhardt falar sobre ‘Os grandes homens da história’ sentiu, pela
primeira vez na vida, prazer em assistir a uma aula” (BURKE, 2003, p. 4). Quando Jacob
Burckhardt tenta reproduzir, em sua narrativa histórica, uma obra de arte, tal como
aquelas que descrevia, ampliou-se os pontos de vista sobre os discursos, possibilitando a
mudança de postura diante deles: se antes representavam a manifestação de leis imutáveis,
agora são obras de arte, valendo-se de metáforas, figurações e retórica, das artimanhas do
convencimento. “Uma ciência da história concebida hermeneuticamente tem afinidade de

1
“Meu amigo Jakob Burckhardt de Basiléia, um homem digno de veneração: é a ele que Basiléia deve,
em primeiro lugar, sua proeminência no que concerne às humanidades” (Crepúsculo dos ídolos, § 5 – o
que falta aos alemães).

3
princípio com a arte” (RÜSEN, 2007, p. 137), atribuindo maior importância à
subjetividade e à cultura, intenções demasiadamente humanas, subjacente aos
documentos, durante a investigação histórica.

Antes mesmo que o século XIX terminasse, um grande historiador, Jacob


Burckhardt, previra a morte da cultura europeia e sua reação foi abandonar a
história como era praticada nas academias, proclamando abertamente a
necessidade de transformá-la em arte, porém recusando-se a entrar nas listas
públicas em defesa de sua heresia. Schopenhauer lhe ensinara não apenas a
inutilidade da investigação histórica do tipo convencional mas igualmente a
insensatez do exercício público (WHITE, 1994, p. 48).

Se, de um lado, temos Cassirer, que, mesmo reconhecendo que o ofício do


historiador difere daquele do físico2, assume que as ciências físicas estão
hierarquicamente acima das do espírito, por outro, temos Burckhardt que abandona a
historiografia praticada em seu tempo justamente por motivos opostos aos de Cassirer: o
crescente cientificismo aplicado à história (também alvo de críticas por parte de Cassirer),
que nos interdita o acesso não à moralidade paralisante, mas às “ilusões” ou “fundamentos
míticos”, como aponta Nietzsche, que impulsionavam os homens de outrora. A resposta
de Burckhardt àquela historiografia o situa, assim parece, como um dos precursores do
momento do qual participa Hayden White, em que o estudo do aspecto discursivo, até
mesmo retórico, da verdade, ao trazer para o ofício do historiador a tarefa de reproduzir
as mesmas sensações que experimenta diante de obras de arte, arrefece a postura do
cientista que se pretendia neutra.

O antagonismo burckhardtiano em relação à ciência histórica alemã e ao seu


“culto estatista” se evidenciava no conteúdo das inúmeras aulas que proferiu
como professor de história e de história da arte pela Universidade da Basileia,
cargo que ocupou entre os anos de 1858 e 1893. Em seus cursos e palestras,
publicados postumamente sob o título de Reflexões sobre a história,
Burkchardt expunha suas ressalvas em relação à soberba de historiadores e
filósofos que acreditavam habitar uma época mais “avançada”, rejeitando a
legitimação científica de seus postulados e enaltecendo, em contrapartida, o
elemento artístico da contemplação histórica (CUNHA, 2020, p. 200).

As observações de Burckhardt em relação ao “culto estatista” da historiografia


alemã do final do século XIX, representada principalmente por Leopold Von Ranke,
podem ser transferidas, exceto pelo estatismo, a Cassirer, por sua postura otimista quanto

2
“O historiador, como o físico, vive em um mundo material. No entanto, o que ele encontra logo no início
de sua investigação não é um mundo de objetos físicos, mas um universo simbólico – um mundo de
símbolos” (CASSIRER apud PINHEIRO, 2019, p. 128).

4
à ciência que fazia de seu tempo “o ponto culminante e a consumação de todas as nossas
atividades humanas, o último capítulo da história da humanidade e o tópico mais
importante de uma filosofia do homem” (WHITE, 1994, p. 42). Burkhardt, “distante tanto
do conservadorismo rankeano quanto da euforia nacionalista [era] incapaz de conceber a
história como associada à ideia de progresso, ou a qualquer tipo de concepção otimista a
respeito da natureza humana” (CUNHA, 2020, p. 199). Nosso historiador da arte, agora
livre da história positivista e “salvadora” do gênero humano, tentou desenvolver nela
técnicas artísticas de seu tempo. Sua obra, A Civilização da Renascença, “pode ser
considerada um exercício da historiografia impressionista” (WHITE, 1994, p. 56), pelo
fato de, tal como Cézanne, renunciar à tarefa de expressar toda a verdade sobre um
período histórico, ou de uma paisagem. Aprendeu com Schopenhauer que “toda tentativa
de dar forma ao mundo, toda afirmação humana, estava tragicamente fadada ao fracasso,
mas que a afirmação individual alcançava o seu valor quando conseguia impor ao caos
do mundo uma forma transitória” (WHITE, 1994, p. 57). A obra mencionada é
convencionalmente encarada como desprovida de “estória” ou de qualquer “linha
narrativa”, o que a enquadra no modo narrativo da ironia.

O modo satírico forneceu os princípios formais pelos quais a historiografia


supostamente “não-narrativa” de Burckhardt pode ser identificada como uma
“estória” de tipo especial. Pois, [...] as histórias vazadas no modo irônico, do
qual a sátira é a forma ficcional, alcançam seus efeitos precisamente ao frustrar
as expectativas normais acerca dos tipos de resoluções proporcionados por
estórias vazadas em outros modos (WHITE, 1994, p. 23).

Além disso, White afirma que Burckhardt segue a linha contextualista, que
significa negar as leis universais de causa e efeito postuladas pelo mecanicista ou os
princípios teleológicos gerais postulados pelo organicista, implicando numa ação em um
campo de estudo “tão amplo como ‘a Revolução Francesa’ ou tão pequeno como um dia
na vida de uma determinada pessoa” (WHITE, 1994, p. 33). Peter Burke, em sua
introdução à obra A cultura do Renascimento na Itália, afirma que “Onde outros
pretenderam contar uma história, Burckhardt teve por objetivo pintar o retrato de uma
era” (2003, p.5). Burke lembra a grande importância de Artur Schopenhauer no trabalho
de Burckhardt.

Não seria fantasioso sugerir que A cultura do Renascimento na Itália deve algo
à filosofia de Schopenhauer – “nosso filósofo”, como Burckhardt costumava
chamá-lo em suas caminhadas com Nietzsche. Quando Burckhardt opôs o
caráter sistemático da ciência, que subordinava, ao caráter assistemático da

5
história, que coordena, estava, na verdade, dando eco à obra de Schopenhauer
O mundo como vontade e representação (BURKE, 2003, p. 12).

Avesso à modernidade, Burckhardt era um tipo de conservador que preferiu se


recolher à uma narrativa histórica que pouco poderia contribuir para as ideologias, como
as burguesas ou nacionalistas, por não possuir teor explicativo ou teleológico que ligasse
seus temas às expectativas de seus contemporâneos. Um conservador, portanto, contrário
ao militarismo, ao nacionalismo, ao capitalismo e à burguesia (que figuram por trás da
crença otimista no progresso humano por meio do avanço da indústria, do comércio e da
ciência). Um espécime que pode parecer estranho aos conservadores de hoje. Um
conservadorismo aparentemente inofensivo, fruto de uma abordagem da história que
ressalta os valores de outro período, que não toma o passado como estágio anterior, e, por
isso mesmo, inferior em relação ao presente; possibilitado pelo pessimismo de
Schopenhauer somado à ironia.

Essa forma narrativa, que é o correspondente estético de uma concepção


especificamente cética do conhecimento e suas possibilidades, apresenta-se
como o tipo de todas as concepção supostamente anti-ideológicas da história
[...] Mas o tom ou o clima em que molda uma narrativa satírica tem implicações
ideológicas específicas, “liberais” se vazada num tom otimista,
“conservadoras” se vazada num tom resignado [...] a concepção
burckhardtiana do campo histórico como uma “textura” de entidades
individuais, combinada com seu ceticismo formal, é destruidora de qualquer
esforço por parte de seu público de usar a história como meio de compreender
o mundo atual em termos outros que não os conservadores (WHITE, 1994, p.
43).

Outra citação de Burke nos esclarece esse ponto:

Burckhardt alimentava uma genuína antipatia pela Revolução Francesa, pelos


Estados Unidos (que jamais visitou), pela democracia de massas, pela
uniformidade, pelo industrialismo, militarismo, nacionalismo, “toda balbúrdia
do poder e do dinheiro” [...] Burckhardt preferia ser um bom cidadão e um bom
europeu (BURKE, 2003, p. 4).

Isso nos leva a uma mente cujo teor político é aristocrático; uma vez que, se ele é
contra o “industrialismo” – que tirou o poder econômico da Igreja e o entregou à classe
burguesa ascendente – e nutria antipatia por levantes populares, como a Revolução
Francesa e a “democracia de massas” – que são, respectivamente, levantes contra a
aristocracia e a burguesia já consolidada pela indústria – o que nos resta é um aristocrata
convicto. A aristocracia (nobreza) defendida por Nietzsche, por outro lado, diverge da de
Burckhardt em alguns aspectos.

6
O equivalente filosófico do estado de espírito representado por Burckhardt na
historiografia é, está claro, Friedrich Nietzsche. Mas o esteticismo, o ceticismo,
o cinismo e o pessimismo que foram simplesmente adotados por Burckhardt
como as bases do seu tipo peculiar de “realismo” foram autoconscientemente
assumidos como problemas por Nietzsche. De mais em mais, foram
considerados manifestações de um estado de decadência espiritual que iria ser
superado em parte pela libertação da consciência histórica do ideal
impraticável de uma perspectiva transcendentalmente “realista” do mundo [...]
Em suas primeiras obras filosóficas Nietzsche tomou como seu problema a
consciência irônica de sua época [...] procurou dissolver essa ironia sem cair
nas ilusões de um romantismo ingênuo [...] porquanto, tentou assimilar o
pensamento histórico a uma noção de arte que toma o modo metafórico como
sua estratégia figurativa paradigmática (WHITE, 1994, p. 55).

Assumindo muitas vezes a metáfora como forma narrativa, Nietzsche pode ser
visto como antagonista – não só de Schopenhauer no que toca à “insensatez do exercício
público” ou da malfadada “afirmação humana” individual – da postura irônica, cética e
satírica da história, como praticava seu professor, para não desmerecer outro ponto da
obra de Burckhardt, tão importante para sua própria, que é a figura do indivíduo que se
molda como um artista que talha na pedra uma escultura, que em Nietzsche ganha ares
de soberania. Em várias ocasiões tal figura aparece na obra de Burckhardt, mas é no ofício
dos biógrafos da Renascença e na vida dos autobiografados – como jerônimo Cardam,
Benvenutto Celinni, Luigi Cornaro, entre outros – que se encontra o sujeito que toma as
rédeas de sua história.

Entre os italianos, a busca dos traços característicos de homens ilustres torna-


se, então, uma tendência predominante, e é isso que os diferencia dos demais
ocidentais, em meio aos quais essa tendência manifesta-se acidentalmente e
somente em casos extraordinários. Um senso tão desenvolvido para a
individualidade, só pode possuí-lo aquele que se destacou ele próprio de sua
coletividade, tornando-se assim um indivíduo (BURCKHARDT, 2003, p.
200).

Apesar da continuidade com o passado apreciada por Burckhardt e pelas


personagens resgatadas por ele, o que prevalece é a subjetividade que surge no
Renascimento, enquanto na Idade Média o homem se via apenas como “membro de uma
raça, de um povo, de um partido, de uma família ou corporação [...] Foi na Itália que este
véu se desfez primeiro [...] o homem se tornava um indivíduo espiritual, e se reconhecia
como tal” (BURCKHARDT, 2003, p. 81). De fato, notamos em Nietzsche uma aversão
à história em passagem como a seguinte: “A convicção prevalece de que a comunidade
subsiste apenas graças aos sacrifícios e às realizações dos antepassados – e de que é
preciso lhes pagar isso com sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida”
7
(NIETZSCHE, 2006, p. 77). A comunidade tradicional, entretanto, passou a contar com
um elemento indiferente quanto à moral ou dívida perpetuada pelos costumes: o
indivíduo, cujo valor se mostra no seu egoísmo.
Não se deve enquadrar Nietzsche “nos limites tão estreitos do sectarismo político
ou filosófico” (LAFAYETTE, 2016, p. 81), denominá-lo conservador ou progressista3.
Ele “via com medo o liberalismo parlamentar invadir o Velho Mundo [...] A ideia de uma
hierarquia política fundamentada na hierarquia intelectual é um dos princípios basilares
da filosofia nietzschiana. Como se vê, ele não pode ser considerado um esquerdista”
(LAFAYETTE, 2016, p. 82). Contudo, Burckhardt lhe incentivou o apreço pelos grandes
homens de outrora, cuja “alma nobre tem reverência por si mesma” (Além do bem e do
mal, § 287). Nietzsche não é contrário à tradição, mas a uma forma de abordagem do
passado que condena como “maus e perigosos” os “espíritos mais raros, mais seletos,
mais originais da história”. “Todo o ocidente não possui mais aqueles instintos, a partir
dos quais crescem as instituições, a partir dos quais cresce o futuro” (Crepúsculo dos
ídolos, § 39). Ao pessimismo de Burckhardt, Nietzsche responde com a
“destradicionalização” do passado que pode lançar luz à “vontade de tradição” que não
condena o homem a um “voyerismo debilitante”, mas que o impele à ação, ao futuro, à
“responsabilidade por séculos além”, à uma abertura à descontinuidade e à tragédia, que,
junto ao caos e à ruptura, são o nosso destino (WHITE, 1994, p. 63).

Considerações finais

Por fim, podemos concluir, dentro dos limites deste trabalho e da bibliografia
consultada, que, se é entendida como conservadora a postura daqueles que defendem o
militarismo e o nacionalismo, não será compreendido o conservadorismo de Burckhardt,
tampouco o liberal-burguês, que preza pela propriedade privada, conforto e democracia,
entenderá o “tradicionalismo”4 de Nietzsche, dado que, baseando-se nos gregos antigos,
numa certa tradição, afirmou que “o homem não aspira à felicidade; somente o inglês o

3
“O que Nietzsche compreende por democracia liberal é uma sociedade baseada, entre outras coisas, em
uma secularização de valores cristãos, inclusive uma igualdade niveladora, um culto da piedade e da
compaixão, uma ênfase no isolamento e uma desvalorização da política como arena de conflito” (ANSELL-
PEARSON, 1997, p. 165).
4
“Somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco vem à fala o fato fundamental do
instinto helênico - sua ‘vontade de vida’. Que responsabilidade o heleno assumia com estes mistérios? A
vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro prometido e santificado no passado; o sim triunfante à vida
para além da morte e da mudança; a vida verdadeira enquanto o prosseguimento conjunto da vida através
da geração, através dos mistérios da sexualidade” (Crepúsculo dos ídolos, § 4 – o que devo aos antigos?).

8
faz” (Crepúsculo dos ídolos, § 12 – sentenças e setas). Se considerarmos que Edmund
Burke, pai do pensamento conservador clássico, “não aprova alianças ou coalizões com
classes sociais emergentes em função de serem destituídas de tradições, heranças e ideais
de nobreza e cavalheirismo, tais como, à época, a nascente burguesia industrial e também
a mercantil” (SOUZA, 2016, p. 375), um conservadorismo liberal ou estatista não se
justifica. Nietzsche (devido a já mencionada aversão ao tipo de história que “solapou o
impulso heroico” em nome da crescente racionalização do mundo) e Burckhardt, nesse
sentido, podem ser considerados conservadores genuínos. Vale ressaltar que, para
Nietzsche, “a capacidade de construir um novo futuro depende de uma aptidão para ver
uma continuidade fundamental com as forças do passado na forma de tradições”
(ANSELL-PEARSON, 1997, p. 167). É preciso ter em mente, todavia, que Burckhardt,
mesmo contrário à modernidade como era entendida em seu tempo, se encontra,
justamente por seu conservadorismo, na vanguarda da historiografia atual, quando optou
por um relato impressionista, ao invés de tentar encontrar as “leis” da história em seu
objeto de estudo. Da mesma forma que Nietzsche se vale do passado, dos instintos
soterrados pela “objetividade moderna” – que é, aliás, de “mau gosto”5 – não para
justificar a conservação das instituições tradicionais, mas para, ao contrário, implodi-las.

Referências

ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Trad.


Mauro Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1997.
BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. Trad. Sérgio
Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CUNHA, Marcelo Durão Rodrigues da. Crise da religião e crítica à modernidade: as
reflexões de Jacob Burckhardt sobre a história. Locus: Revista de História, Juiz de Fora,
v. 26, n. 1, 2020, p. 189 – 210.
LAFAYETTE, Pedro. As tendências políticas de Nietzsche. Cad. Nietzsche,
Guarulhos/Porto Seguro, v.37, n.3, 2016, p. 80 – 83.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

5
Crepúsculo dos ídolos, § 6 – o que falta aos alemães.

9
_________Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_________Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. Trad. Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
_________Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
PINHEIRO, Wagner de Moraes. A Temporalidade na consciência histórica para Ernst
Cassirer. Revista historiador, n. 12, 2019, p. 121 - 130.
RÜSEN, Jörn. Reconstrução do Passado. Trad. Asta-Rose Alcaide. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2007.
SOUZA, Jamerson Murillo Anunciação de. Edmund Burke e a gênese do
conservadorismo. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 126, 2016, p. 360-377.
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaio sobre a crítica da cultura. Trad. José
Laurêncio de melo. São Paulo: Edusp, 1994.

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