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Considerações Acerca Da Definição de Filosofia
Considerações Acerca Da Definição de Filosofia
Alguns registros históricos indicam que o termo teria começado a ser usado no séc VI.a.C. pelo
matemático Pitágoras de Samos, que evitava ser designado como ‘sábio’ (sophos), preferindo,
antes, chamar-se ‘amante do saber’ (philosophos) – no sentido de ser alguém que aspirava à
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posse da sabedoria, mas ainda não a tinha atingido.
Será que um tal exame etimológico basta, no entanto? Encontramos alguma definição
satisfatória da Filosofia enquanto campo de conhecimento apenas no que a definimos enquanto
palavra? É manifesto que não. Dizer apenas que a Filosofia é algo como um ‘amor’ ou ‘uma
amizade pelo saber’ não nos move adiante – não nos informa sobre os problemas aos quais ela
se volta, como ela os aborda, como esses problemas se agregam em campos específicos da
investigação filosófica. A etimologia não nos oferece nenhuma imagem geral do que seja
Filosofia.
Uma forma de contornarmos essa dificuldade consiste em lançar um olhar aos diferentes
campos de investigação filosófica, consolidados na extensa tradição que se desenvolveu entre os
gregos e nós. Bem entendido, temos uma tradição de mais de dois mil e quinhentos anos aí e ela
se desenvolveu de diversos modos, legando-nos uma quantidade ampla e riquíssima de textos,
ideias, teorias e argumentos. Podemos simplesmente nos valer dessa tradição para ver, em linhas
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Entre grandes nomes da tradição filosófica, podemos encontrar para isso exemplos tão antigos quanto a
Metafísica α , de Aristóteles, e tão recentes quanto a preleção O que é isto – a Filosofia? (1955), de
Martin Heidegger e o livro O que é a Filosofia? (1991), Gilles Deleuze e Félix Guattari.
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Cf. verbetes ‘Philia’, ‘ Philosophia, Philosophos’, ‘Sophos, sophoi, sophia’ , em Preus, 2007, pp. 200,
202, 243-245, e ‘Philia’ e ‘Sophia’ , em Bunnin & Yu, 2004, pp. 518 e 650. Cf. também Morente, 2004,
pp. 15-16.
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Preuss, 2007, pp. 1, 88, 244.
gerais, o que fez quem fez Filosofia, de modo a começarmos a compor a imagem geral que nos
falta.
Quando buscamos uma tal aproximação inicial, vemos que uma parte relevante das
investigações filosóficas recaiu em um dos campos a seguir.
(i) Metafísica. Trata-se de um campo filosófico de grande importância, sobre o qual temos
também uma pista ao olharmos para a sua etimologia: o prefixo μετά (metá) significa ‘além de’
e φύσις (phýsis), como já sabemos, ‘natureza’. A metafísica, deste modo, é o estudo daquilo
que se encontra ‘além do natural’, ‘além do físico’ – i.e., do que é ‘sobre’ ou ‘supranatural’, não
podendo ser reduzido à ordem mundana concreta, factual, deste plano em que habitamos. A
metafísica se coloca as perguntas mais gerais e abstratas de toda a Filosofia, tais como ‘o que é
Ser?’, ‘o que é Não-Ser’, ‘o que é existência?’, ‘o que é não-existência?’, ‘o que é o real?’, ‘o
que é o irreal?’, ‘qual é a estrutura fundamental da realidade?’, ‘como ela se organiza?’, ‘por
que ela apresenta esse aspecto e não outro?’, ‘por que ela obedece a essas leis e não a outras?’,
‘há um ente supremo como Deus?’, ‘há uma ordem e uma harmonia intrínsecas ao universo?’,
‘há um fim ou um propósito para as coisas que são?’, entre diversas outras de mesmo peso. São
perguntas a tal ponto fundamentais, que parece razoável admitir que toda tentativa de responder
a elas resultará em consequências relevantes para tudo o mais que se possa fazer em Filosofia.
(iii) Lógica. Aqui temos um campo de conhecimento um pouco mais difundido. Fala-se em
lógica com frequência em outras ciências, sobretudo nas matemáticas, e, ainda que de maneira
superficial, as pessoas sabem reconhecer hoje em dia que lógica tem alguma coisa a ver com
conhecimento, raciocínio, pensamento acertado. Em linhas bem gerais, é nesse sentido que
segue o interesse da lógica: ela busca compreender as leis ou regras necessárias que possibilitam
o raciocínio válido, marcado por conclusões verdadeiras. A rigor, muitas foram as definições de
lógica com as quais a Filosofia trabalhou ao longo dos séculos: ‘ciência’ ou ‘arte do raciocínio’,
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Cf. verbetes ‘Metaphysics, Ta Meta Ta Physica’, em Preus, 2007, pp. 169-170; ‘Metaphysics’ , em Audi,
1999, pp. 563 ff.; ‘Métaphysique’ e ‘Philosophie’ , subseção ‘Philosophie Première’, em Lalande, 1997a,
p. 612 ff. Cf. também Morente, 2004, pp. 69-70.
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Cf. verbetes ‘Gnō s is’ em Preus, 2007, p. 123; ‘Théorie’ , subseção ‘Théorie de la Connaissance’, em
Lalande, 1997b, p. 1129. Cf. também Morente, 2004, p. 24.
‘do julgar’, ‘do concluir’, ‘do conhecimento’, do pensamento’, ‘da argumentação’, ‘da
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evidência’, ‘da verdade’ etc.
Estável em todas essas variações, no entanto, é que a lógica se interessa por conhecer leis ou
regras que nos permitem examinar alguns juízos e o modo como eles se relacionam uns aos
outros e extrair daí conclusões que nos parecem inteiramente necessárias. O exemplo mais
conhecido de silogismo pode nos oferecer um exemplo disso:
(iv) Ética e Moral: quando falamos em ética e moral, lidamos com reflexões filosóficas acerca
da ação humana e de uma série de temas que têm a ver com ela: caráter, hábitos, valores,
virtudes, escolhas, liberdade etc. Em linhas gerais, ética e moral lidam com a ação individual em
um determinado contexto valorativo que nos permite qualificar se essa ação é positiva ou
negativa – i.e., se é boa ou má, desejável ou indesejável, justa ou injusta etc. Tal contexto ou
ordenamento tende a ser cultural, histórico.
Ética e moral nos oferecem, no entanto, um caso especial. Em Filosofia, alguns assumem que os
dois termos significam a mesma coisa, ao passo que outros buscam especificar sentidos
individuais para cada qual. Os partidários da primeira posição tendem a se valer, novamente, da
etimologia: ἠθική (ēthikē) deriva de ἦθος (ēt hos), que significa ‘caráter’. O termo é aparentado
a ἔ θος (éthos), que significa ‘hábito’, ‘costume’. Esse último termo é traduzido em latim por
mos, que é a base para a palavra ‘moral’. Deste modo, temos uma proximidade etimológica
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clara entre a origem linguística das palavras ‘ética’ e ‘moral’, uma sendo a tradução da outra.
Isso parece bastar para que muitos afirmem que ética e moral são, a rigor, um só campo de
conhecimento. Há discussões relevantes nesse sentido, mas, nesses primeiros passos que damos
agora, elas não são relevantes. Podemos acompanhar provisoriamente a ideia de que os campos
não se distinguem de modo relevante para voltarmos ao ponto apenas mais tarde.
(v) Filosofia Social e Política. Trata-se da reflexão filosófica acerca das dimensões coletiva,
social, histórica, cultural e política da vida humana. Se ética e moral se dedicam à compreensão
da vida prática ao nível individual, as filosofias social e política se dedicam à compreensão da
mesma vida prática, mas ao nível geral, das massas, i.e., dos grupamentos humanos que
coabitam e geram uma realidade peculiar no que estabelecem modos concretos de se
inter-relacionarem. Relevantes para elas são perguntas como ‘o que é a vida social?’, ‘o que são
relações sociais?’, ‘como se dá a relação entre sociedade e individualidade?’, ‘como uma
sociedade produz história e cultura?’, ‘qual é o modelo social mais desejável?’, ‘o que é
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poder?’, ‘o que é o Estado?’ etc.
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Cf. verbetes ‘Logiké’ , e m Preus, 2007, pp. 157-158; ‘Logique’ em Lalande, 1997a, p. 572 ff. Cf.
também Husserl, 2014, pp. 20 ff., 47 ff., 133 ff.
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Cf. verbetes ‘Ethics’ e ‘Ēthos’ , em Preus, 2007, pp. 108-109; ‘Ethics’ em Audi, 1999, pp. 284-287;
‘Éthique’, em Lalande, 1997a, p. 305 ff. Cf. também Morente, 2004, p. 24 e Singer, 2019, p. 1.
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Cf. verbete ‘Social Philosophy’ em Audi, 1999, pp. 856-858.
(vi) Estética. Trata-se, por fim, da reflexão filosófica acerca da beleza e da experiência que
temos quando a contemplamos e somos por ela tocados – i.e., de nossos gostos, nossa
capacidade de reconhecer valor ou sublimidade em algo etc. Etimologicamente, a palavra
‘estética’ vem de α ἴσθησις (aísthēsis) , que significa ‘sensibilidade’, ‘percepção’. A estética se
complexifica quando reconhecemos que ela não tem apenas a ver com a beleza das formas
naturais – i.e., de paisagens, árvores, corpos humanos etc. –, mas também das formas artificiais,
produzidas pela atividade humana. Com isso, a estética se vincula à arte em suas diferentes
possibilidades. Ela se complexifica ainda além, quando consideramos que ela não tem de lidar
apenas com sentimentos positivos ou prazerosos derivados da contemplação do belo, podendo
também lidar com o feio, o grotesco e o repulsivo na medida em que eles nos tocam
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afetivamente de modo tão intenso quanto o belo.
Se nos dedicamos a ver, portanto, o que faz quem faz Filosofia, deparamo-nos com
investigações as mais diversas em campos como esses introduzidos acima. Em que eles podem
nos ajudar a encontrar uma resposta inicial para o que é Filosofia? Duas são as principais
contribuições desse exame preliminar:
(i) Por meio dele, constatamos que a Filosofia é marcada por uma pluralidade de objetos de
estudo e não apenas por um só. Não se trata de dizer que a Filosofia se dedica a apenas um tema
de investigação, mas, antes, de reconhecer que esses temas são extremamente variados e, em
certos casos, bastante distintos entre si. Encontramos que o filósofo estuda a estrutura do real;
processos cognitivos diversos; regras para a direção da razão; valores e princípios para a
conduta individual; relações intersubjetivas organizadas; beleza, arte... há, de fato, um leque
amplo de possibilidades.
(ii) A partir dessas possibilidades, constatamos que a Filosofia também parece ser instada a ter
diferentes olhares para esses diferentes objetos – i.e., diferentes modos de acesso a eles. Não
parece plausível, afinal, acreditar que os métodos empregados para se analisar beleza e arte
sejam os mesmos empregados na reflexão abstrata sobre os princípios da razão. No primeiro
caso, devo examinar concretamente como a beleza se manifesta, bem como os critérios
expressivos gerais que definem certo tipo de arte. No segundo caso, devo meramente refletir
sobre cadeias racionais de explicação e fundamentação. Igualmente, não parece plausível
acreditar que a reflexão sobre valores sociais que orientam a ação individual ocorre do mesmo
modo que a reflexão sobre o que pode querer dizer ‘existência’ em geral. No primeiro caso,
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Cf. verbete ‘Aesthetics’ em Audi, 1999, pp. 10-13; ‘Esthétique’, em Lalande, 1997a, p. 302. Cf. também
Morente, 2004, p. 24.
devo me haver com uma cultura e os valores concretos que ela definiu. No outro, devo mais
uma vez me dedicar à reflexão conceitual abstrata, afastada de fatos ou deste mundo natural. No
que fazemos contrastes desse tipo, portanto, percebemos que a pluralidade de objetos da
filosofia implica uma pluralidade de métodos.
A Filosofia, deste modo, é algo como um tipo de discurso ou área de conhecimento que pode
lidar, por princípio, com uma ampla diversidade de objetos e facultar a eles uma ampla
diversidade de tratamentos. Aristóteles, em sua obra Metafísica α, definiu a Filosofia em
termos tão gerais quanto esses, que começam a se insinuar em nosso percurso. De acordo com
ele, a Filosofia seria uma atividade reflexiva originada no ‘espanto’, na ‘admiração’, na
‘perplexidade’ perante o que é:
“[...] de fato, os homens, tanto agora como no início, começaram a filosofar devido ao
admirar-se (thaumatzein) , admirando inicialmente, entre as coisas surpreendentes,
aquelas que estavam à mão, em seguida, paulatinamente progredindo e formulando
impasses sobre problemas maiores, por exemplo, sobre as afecções da lua, do sol e dos
astros, e sobre a geração do todo.” (Aristóteles, Met. 982b 11 – Tradução de Lucas
Angioni)
A Filosofia, deste modo, poder ser feita acerca de tudo o que venha a nos despertar essa
inquietude fundamental, esse estranhamento que nos move a perguntar ‘por que’ acerca de algo
– no sentido de compreender os seus fundamentos – ou mesmo, ‘o que’ – no sentido de
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compreender a sua natureza ou caráter próprios.
Uma última pergunta parece ter de ser respondida, no entanto – e uma pergunta que, se mal
respondida, pode colocar a perder todo o esforço de se definir Filosofia como um campo de
conhecimento. Trata-se da seguinte pergunta: se a Filosofia pode ser feita acerca de qualquer
coisa e por uma diversidade de modos, que pareçam convenientes às coisas que se pretende
tematizar, então tudo pode ser filosofia? Em outras palavras: qualquer perspectiva ou opinião
minimamente organizada acerca de um assunto pode ser filosofia? Basta identificar um assunto,
ver como se aproximar dele e ter algo a dizer sobre?
Naturalmente, a resposta é não. Não se trata disso. E a razão para tanto, que será logo
fundamentada historicamente, é que a Filosofia consiste essencialmente em uma atividade
racional, argumentativa. A rigor, a Filosofia é uma expressão direta da ideia grega de λόγος
(logos), que já vimos querer dizer ‘ciência’, ‘estudo’, mas cujo campo semântico amplíssimo
também compreende ‘razão’, ‘conhecimento’ e ‘linguagem’. A Filosofia, portanto, não pode ser
de modo algum reduzida ao mero âmbito das opiniões, predileções, dogmas ou quaisquer visões
parciais de mundo – não importa o quão organizadas, polidas e apresentáveis elas possam ser.
Em vez disso, ela é um projeto de conhecimento, de compreensão efetiva do que é. E isso
implica não apenas identificar um objeto de estudos, examiná-lo e dizer algo acerca dele, mas
também ser capaz de fundamentar o que se diz:
(i) tanto no que se refere à coerência argumentativa e ao poder racional do que se diz;
(ii) quanto à possibilidade de se reconduzir o que se diz ao que o objeto examinado mostra ser.
A filosofia, portanto, exige não apenas rigor racional e argumentação, mas também reflexões,
como diziam os medievais, cum fundamento in re – i.e., ‘com fundamento na coisa’, que digam
algo sobre a realidade do objeto estudado e verdadeiramente nos informem sobre ele. Deste
10
Morente, 2004, pp. 27-30.
modo, podemos, enfim, oferecer uma resposta à nossa pergunta de partida. A imagem geral ou a
definição de Filosofia com a qual lidaremos nos próximos passos de nosso estudo pode ser
esboçada nos seguintes termos:
Referências Bibliográficas:
Bunnin, N. & Yu, J The Blackwell Dictionary of Western Philosophy, Oxford: Blackwell
Publishing, 2004.
Husserl, E. Investigações Lógicas. Primeiro Volume. Prolegômenos à Lógica Pura. Editado por
Elmar Holenstein. Tradução de Diogo Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
Preus, A. Historical Dictionary of Ancient Greek Philosophy. Plymouth: Scarecrow Press, 2007