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Entre a Ordem e o Medo: A utilização da Guarda Nacional no

policiamento do Rio de Janeiro oitocentista (1831-1835)

Laura Oliveira Motta

Dossiê de Qualificação do Programa de Pós-Graduação


em História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em História.

Orientadora: Prof. Dra. Adriana Barreto de Souza

Seropédica
Abril de 2018
Entre a Ordem e o Medo: A utilização da Guarda Nacional no policiamento do Rio de Janeiro
oitocentista (1831-1835)

Laura Oliveira Motta

Orientadora: Prof. Dra. Adriana Barreto de Souza

Dossiê de Qualificação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História.

Aprovado por:

___________________________________________
Presidente, Profa. Dra. Adriana Barreto de Souza

___________________________________________
Prof. Dr. Marcello Otávio Neri de Campos Basille

___________________________________________
Prof. Dr. José Iran Ribeiro

Seropédica
Abril de 2018
Entre a Ordem e o Medo: A utilização da Guarda Nacional no policiamento do Rio de Janeiro
oitocentista (1831-1835)

Laura Oliveira Motta

Orientadora: Prof. Dra. Adriana Barreto de Souza

Resumo da Dissertação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História.

A presente pesquisa tem por objetivo analisar a atuação da Guarda Nacional na


manutenção da ordem, isto é, seu caráter de agência repressiva no cotidiano da província do
Rio de Janeiro, entre os anos de 1831 a 1835. Período compreendido pelo rompimento e
insatisfação com a política do primeiro reinado e instabilidade dos confrontos políticos da
fase inicial da Regência do Império do Brasil. Essa nova instituição revela um traço
importante da direção política que ascende no período (liberal moderada) ao designar para
defesa da nação, cidadãos interessados em preservar o patrimônio e ordem pública.
Discutiremos assim a conjuntura de formação da instituição, com a transferência da política
do cenário palaciano para o espaço público, fomentada pela participação de diversos atores
sociais. Interessa-nos também entender a dinâmica existente entre o exercício da força física,
ação policial cotidiana da Guarda Nacional, e a ação normativa estabelecida pela Regência
moderada. Busco problematizar a prática da coerção cotidiana em uma sociedade marcada
por desníveis sociais.

Palavras-chave: Guarda Nacional, cidadania, cotidiano, violência.

Seropédica
Abril de 2018
Between Order and Fear: The use of the National Guard in the policing of the eighteenth
century in Rio de Janeiro (1831-1835)

Laura Oliveira Motta


Orientadora: Prof. Dra. Adriana Barreto de Souza

Abstract da Dissertação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História.

The present research aims to analyze the National Guard's role in maintaining order, that is, its
character as a repressive agency in the daily life of the province of Rio de Janeiro, between the
years 1831 to 1835. Period comprised of the disruption and dissatisfaction with the politics of
the first reign and instability of the political confrontations of the initial phase of the Regency
of the Empire of Brazil. This new institution reveals an important trait of political leadership
that rises in the (liberal moderate) period when designating for the defense of the nation,
citizens interested in preserving patrimony and public order. We will discuss the institutional
setting, with the transfer of politics from the palatial scenario to the public space, fostered by
the participation of various social actors. We are also interested in understanding the dynamics
between the exercise of physical force, the daily police action of the National Guard, and the
normative action established by the moderate government. I try to problematize the practice of
daily coercion in a society marked by social differences.

Keywords: National Guard, citizenship, daily, violence.

Seropédica
Abril de 2018
SUMÁRIO
1.Projeto de Pesquisa ............................................................................................................ 6
1.1. Delimitação do tema e problema da pesquisa .................................................................. 6
1.2.Debate historiográfico ...................................................................................................... 10
1.3.Objetivos .......................................................................................................................... 14
1.4.Referenciais teóricos ........................................................................................................ 14
1.5.Fontes ............................................................................................................................... 15
1.6.Metodologia ...................................................................................................................... 16
1.7. Bibliografia ..................................................................................................................... 17

2.Plano de Redação .............................................................................................................. 26


2.1.Introdução ........................................................................................................................ 27
2.2. Capítulo 1:O estabelecimento da Regência e a reestruturação dos aparelhos
repressivos .............................................................................................................................. 27
2.3 Capítulo 2: Um perfil dos Guardas Nacionais .................................................................. 28
2.4 Capítulo 3: A Guarda Nacional como força policial na Corte ......................................... 29
2.5 Conclusão ......................................................................................................................... 30

3. Capítulo 1: O estabelecimento da Regência e a reestrururação dos aparelhos


repressivos ............................................................................................................................. 31
3.1.O 7 de abril: a abdicação de d. Pedro I ............................................................................ 31
3.2. Debates políticos na Corte ............................................................................................... 34
3.3. Reforma das forças militares e a criação da Guarda Nacional ....................................... 40
3.4. Referencial bibliográfico ................................................................................................. 50
1. Projeto de Pesquisa
Entre a Ordem e o Medo: a utilização da Guarda Nacional no policiamento do Rio de
Janeiro oitocentista (1831-1840)

1.1.Delimitação do tema e problema de pesquisa:


Este projeto pretende analisar a atuação da Guarda Nacional na manutenção da
ordem, isto é, seu caráter de agência repressiva no cotidiano da província do Rio de
Janeiro, entre os anos de 1831 a 1840. A escolha do período entre 1831 e 1840 deve-se
ao fato deste ter sido um momento decisivo de estabelecimento de novas instituições e
mecanismos de dominação e repressão no Brasil oitocentista, o que resulta na
montagem de aparatos para garantia de manutenção da ordem. Em um período marcado
por instabilidade e confrontos políticos da fase regencial do Império do Brasil.
No momento de rompimento e insatisfação com a política do primeiro reinado,
boa parte dos políticos brasileiros que emergia naqueles anos começaram a se opor a d.
Pedro I, “que, por sua vez, isolava-se num círculo palaciano estreito e conservador,
identificado ao campo político chamado de ‘português’”.1 Marco Morel mostra a
abdicação como resultado de um processo marcado por posicionamentos e ações do
imperador que acabaram desagradando parcela significativa da elite da época, que
influenciada por ideias liberais, acreditava na possibilidade de reação contra um
governo que – na sua avaliação – tornara-se tirano. Progressivamente, o sentimento
antilusitano e a desconfiança face às arbitrariedades de d. Pedro I ocasionaram uma
convergência de interesses entre diferentes grupos político e segmentos sociais
brasileiros que pensavam os rumos da nação. A abdicação de d. Pedro ocorreu em 7 de
abril de 1831, com status de revolução, dirigida por duas vertentes políticas do
liberalismo brasileiro, uma com marca conservadora (moderados)2 e outra radical

1
MOREL, Marco. O Período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.18.
2
Sobre uma designação ao grupo político moderados, temos a concepção de Marcello Basile que os
definiu como seguidores dos clássicos liberais, como Locke e Montesquieu, buscando promover reformas
políticos-institucionais para reduzir os poderes do imperador, conferir maiores prerrogativas à Câmara
dos Deputados e autonomia ao Judiciário, e garantir a observância dos direitos (civis, sobretudo) de
cidadania previstos na Constituição. Instaurando uma liberdade “moderna” que não ameaçasse a ordem
imperial. Expressavam os interesses político dos plantadores de café e dos comerciantes de Minas Gerais,
de São Paulo e do Rio de Janeiro, defendendo um Estado forte e centralizado. Ver: BASILE, Marcello.
“O laboratório da nação: a era regencial (1831 – 1840)”. In GRINBERG, Keila; SALLES Ricardo. O
Brasil Imperial, volume II: 1831 – 1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.p. 61.

6
(exaltados).3 A dinâmica imputada por estes dois grupos em busca de um ideal comum,
a abdicação, teve diferentes significados. Os exaltados dirigiam o movimento nas ruas e
aos moderados cabia mobilizar o parlamento e a alta oficialidade. Tão logo passado
esse momento, as divergências entre exaltados e moderados, fizeram o clima político da
Regência mostrar-se de grande instabilidade. Principalmente com a falta de participação
política dos exaltados na Regência.
Adriana Barreto de Souza, ao tratar da experiência da Regência aponta que o
grupo político moderado, ao assumir a condução do poder, fincou as bases de uma
“política de congraçamento”.4 Porém, manter esse espírito conciliatório não era tarefa
fácil. Esta política era paradoxalmente operada sob dura repressão à oposição. Os
exaltados excluídos do governo e dos principais cargos administrativos da corte
inquietavam-se com a falta de disposição da Regência conduzida por moderados em
promover as reformas constitucionais que julgavam necessárias. Sem expressão no
Parlamento, o grupo só podia exercer a oposição por meio da imprensa e de
manifestações de rua. Outro grupo de oposição ao governo moderado eram os
restauradores que defendiam a volta de d. Pedro I, exaltavam os feitos de seu governo e
se manifestavam contrários à conjuntura instaurada depois do 7 de abril.5
Marcada por instabilidade, o estouro do menor incidente era um ponto de
fragilidade que poderia resultar na destituição da Regência. Souza pontua que “essas
ocorrências, ainda que limitadas, foram suficientes para mobilizar diversas pessoas, com
trajetórias políticas distintas, para a necessidade de uma atuação mais firme em defesa
do congraçamento.”6
Uma das propostas liberais para manutenção da ordem consistia em utilizar o forte
sentimento de insegurança, difuso na população como meio de legitimar a ação de

3
Ao grupo dos exaltados Marcelo Basile designa como “adeptos de radical liberalismo de feições
jacobinistas, matizadas pelo modelo de governo americano (...) que, inspirados, sobretudo em Rousseau,
Montesquieu e Paine, buscavam conjugar princípios liberais clássicos com ideais democráticos;
pleiteavam profundas reformas políticas e sociais, como a instauração de uma república federativa, a
extensão da cidadania política e civil a todos os segmentos livres da sociedade, o fim gradual da
escravidão, relativa igualdade social e até uma espécie de reforma agrária. Apresentavam perfil social
mais heterogêneo, pertencendo, em geral, às camadas médias urbanas (em particular, profissionais
liberais e funcionários públicos civis, militares e eclesiásticos)” Ver: BASILE, 2009, p.61.
4
SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
5
Para Marco Morel, o grupo dos restauradores tinha tendência constitucional embora com matriz
antiliberal. Ligados à antiga nobreza burocrática e ao antigo grupo português, composto por comerciantes
e traficantes de escravos Acreditavam na soberania monárquica, eram adeptos do Estado forte e
centralizado e defendia a volta de d. Pedro I. Ainda, segundo o autor, com a morte de d. Pedro I em 1834
o grupo perde a sua força “e principal bandeira”. Ver: MOREL, 2003, p. 31.
6
SOUZA, 2008, p.188.

7
armar “cidadãos” para defender seus interesses. Desta forma, fundamenta-se a criação
de uma força civil, com o intuito de assegurar a ordem e intervir no controle de revoltas.
A criação da Guarda Municipal Civil em junho de 1831, trazia em seu critério de
alistamento as mesmas condições exigidas para eleitor, ou seja, a intenção do governo
era convocar cidadãos.7 “A ordem ameaçada era social e política. Por isso, era preciso
mobilizar todos os cidadãos na sua preservação.”8
Essa lógica de mobilizar cidadãos na preservação da ordem pública fundamentou
a criação, 2 meses depois em agosto de 1831, de outra instituição mais bem armada e de
caráter militar mais sólido, instruída por oficiais do Exército, a Guarda Nacional.
Essa nova instituição revela um traço importante da direção política liberal
moderada, baseada na condução da nação por homens brancos, livres, inteirados dos
conflitos regionais e conhecedores das particularidades da nação, ou seja, cidadãos
brasileiros, buscando dissolver por completo uma estrutura burocrática repressiva
anterior centralizada na ligação “com uma Coroa estrangeira e absolutista”, o Exército.
A instituição mesmo após a abdicação de d. Pedro continuou com número significativo
de oficiais portugueses, além de suas bases, formada por gente mal paga, insatisfeita e
propensa a aliar-se ao povo nas revoltas urbanas. Nesses novos moldes liberais,
defendia-se uma política militar pautada na negociação e equilíbrio. Ainda que na
prática este panorama tenha revelado claros limites para tal intuito.
As deliberações prescritas nas leis acerca da atuação da Guarda Nacional eram
de caráter amplo e diversificado, por vezes não caracterizava a complexidade das
diligências da segurança interna. O cotidiano de ação da Guarda Nacional mostrava a
necessidade de interpretar leis e a flexibilidade no serviço do policiamento. Desde a
primeira lei aprovada pelo governo regencial, em 6 de junho de 1831, é notório a
preocupação do poder central em manter a ordem pública. O conceito do que era
atividade criminosa foi ampliado. Reunião de três ou mais pessoas, por exemplo, devia
ser reprimida como ajuntamento ilícito.9
Nesse trabalho de prevenção, para prender quem estivesse para executar um
crime, o difícil era agir respeitando as desigualdades que atravessavam a sociedade,
“(..)a lei subentendia uma certa sensibilidade para o reconhecimento, na prática, de uma

7
“Renda anual mínima de 200$000, excluindo escravos e quem tivesse sido condenado por algum crime”
SOUZA, 2008, p. 192.
8
SOUZA, 2008, p.193.
9
SOUZA, 2008, p.191.

8
série de desníveis sociais(...)contribuía para consolidar práticas de repressão baseadas
em estereótipos.”10 Assim, o objetivo primordial deste projeto de pesquisa se constitui
em entender a dinâmica e a tensão existente entre o exercício da força física, a prática
da coerção cotidiana da Guarda Nacional, e a ação normativa estabelecida pela
Regência moderada. Para tanto, esta pesquisa se debruçará especialmente sobre o fundo
da Guarda Nacional, depositado em arquivos públicos e na análise de documentos
institucionais sobre a política do período da Regência, como leis e relatórios de
autoridades.11
A própria organização interna da Guarda Nacional, expressa a dificuldade de
ação da instituição na prática o que será também ponto de análise deste trabalho por
meio de auxílio historiográfico:
No Rio a renda mínima requerida de 200$000 situava-se num nível
suficientemente baixo da hierarquia econômica para poder incluir a
maioria dos artesãos, comerciantes e assalariados independentes, mas
excluía muitos membros das classes urbanas inferiores sem renda
monetária suficiente para o alistamento.12
Para Thomas Holloway, apesar do caráter distinto da Guarda, muitos dos cidadãos
que tinham interesse na manutenção do status quo acabavam por encontrar maneira de
evitar o serviço ativo, outra problemática se evidencia também no vínculo de pessoas
não pertencentes à vida militar. Empreendedores de outros ofícios tinham na obrigação
e despesa com a Guarda o desvio de seus trabalhos produtivos e um encargo
financeiro.13 Outra observação ocorre sobre “as diferenças existentes no interior da
própria categoria dos ditos cidadãos ativos, onde patentes diferentes sinalizam rendas
distintas.”14 Logo, podemos perceber que as demandas do serviço militar, mesmo numa
corporação de caráter distinto como a Guarda Nacional, evidenciava dinâmicas próprias,
com bônus, ônus, insubordinações e outras experiências tocantes ao exercício da função.
Assim, interessa-nos investigar, em meio aos experimentos organizacionais, isto
é, ações políticas do poder regencial para manter a ordem, a criação e atuação das forças
de policiamento, o caso da Guarda Nacional. Como determinados sujeitos sociais se

10
SOUZA, 2008, p.230.
11
Fundo da Guarda Nacional, depositado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) e
acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), especialmente no que se refere às atividades
cotidianas de policiamento e Colleção das Leis do Império e relatórios das autoridades provinciais do Rio
de Janeiro, presidente e vice-presidente. Disponível no site do Congresso Nacional Brasileiro e na web
site da Universidade de Chicago, nos EUA, disponibilizadas pelo Center for Research Libraries e Latin
American Microform Project, respectivamente.
12
HOLLOWAY, 1997, p.92.
13
HOLLOWAY, 1997, p. 23.
14
HOLLOWAY, 1997, p.23.

9
fizeram presentes no seio da sociedade fluminense, atuando na prática de agência
repressiva, isto é, em sua função policial.
1.2. Debate Historiográfico:
A amplitude do campo de atividade da Guarda Nacional, como o seu próprio
nome sugere, era em todo território nacional, devendo alcançar todas as províncias,
“mas, a sua atuação se concentrava mesmo era dentro do município – nas suas
freguesias e povoações.”15 Assim, no campo de investigação sobre a temática
apresentam-se trabalhos acadêmicos, que em sua grande maioria, abordam estudos de
caso sobre Guarda Nacional de uma determinada província em particular.
Considero para o enfoque aqui escolhido, alguns trabalhos que tratam da primeira
fase da Guarda Nacional, que se caracteriza, pelo período onde ocorria eleição de seus
oficiais, o que lhe conferia, ao menos legalmente, um caráter democrático e
representativo. Além de abordar o contexto político da época de criação da milícia,
trataremos de clássicos sobre a temática e algumas elaborações recentes que permeiam
novas estratégias de estudos sobre a Guarda Nacional.16
De caráter pioneiro encontra-se o trabalho de Jeanne Berrance de Castro, A milícia
cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. A autora é a primeira pesquisadora a
elaborar uma tese acadêmica sobre a milícia, ainda em 1968, publicada posteriormente,
em 1977.17 A pesquisa tem um caráter bem geral, de mapeamento da criação da Guarda,
focando em seguida no corpo de guardas paulista. O debate promovido por Castro sobre
a guarda centra-se na natureza democrática da milícia, pelo processo eletivo de
preenchimento dos cargos oficiais, questões que foram pontos de crítica posteriormente
pela historiografia, que a acusa de “minimizar possíveis manipulações nas eleições
internas por parte dos oficiais superiores ou mesmo de autoridades locais como o juiz de
paz.”18 A autora, conclui, que a Guarda Nacional está ligada ao esforço do governo
regencial de manter a integridade nacional e a manutenção da ordem. Menciona a perda

15
SILVA, 2003, p. 62.
16
O sistema eletivo e a forma de nomeação estavam previsto nos artigos 51 a 64 da Lei de 18 de Agosto
de 1831. Ver:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-
publicacaooriginal-88297-pl.html>. Acesso em: 20 set 2016.
17
COSTA, Lidiana Justo da. Cidadão do Império, Alerta! A Guarda Nacional na Paraíba Oitocentista
(1831-1850). 2013. 194 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, 2013. p. 36.
18
COSTA, 2013, p. 57.

10
de seu caráter democrático após sua reforma em 1850, destacando, assim, o que chama
de um processo de aristocratização dos guardas nacionais.19
Mais uma importante e clássica obra sobre a temática da Guarda é o livro O
Minotauro Imperial – A Burocratização do Estado Patrimonial Brasileiro no Século
XIX, do sociólogo colombiano Fernando Uricoechea publicado em 1978. Neste trabalho
o autor busca pensar o processo de burocratização do Estado brasileiro, na transição
entre uma ordem patrimonial e uma ordem burocrática. Assim como em Jeanne
Berrance de Castro a premissa de perceber a criação da Guarda Nacional como parte do
processo de manutenção da ordem, é mantido por Uricoechea: “(...)devia ela dar uma
ajuda poderosa à aniquilação de qualquer grupo, instituição ou facção contestatória das
novas autoridades imperiais(...)”.20 No entanto ocorre uma discordância em relação a
Castro. Ele não acredita no caráter democrático da Guarda, nem em seus primeiros anos.
Para o autor, a forma patrimonial e o serviço litúrgico da milícia a colocariam no
sistema de relações entre governo central e proprietários locais. Com este fim, o autor
analisou a documentação referente às províncias da Bahia, de Minas Gerais, do Rio de
Janeiro e do Rio Grande do Sul. Uricoechea, aponta que a milícia, não se constituía nem
como um aparelho estatal, nem como uma corporação autônoma, e sim uma alternativa
hibrida da relação de conservação e legitimação de poder dos setores dominantes na
sociedade imperial.
Recentes pesquisas trouxeram perspectivas diferenciadas que preencheram
lacunas importantes no estudo sobre a milícia.21 José Iran Ribeiro, na dissertação de
mestrado Quando o serviço os chamava: Milicianos e guardas nacionais no Rio
Grande do Sul de 2005, destaca a milícia gaúcha a partir de seus guardas, dos
indivíduos que formavam seu efetivo. No tratamento da questão, o período analisado
pelo autor é o de sua criação em 1831 até 1845, quando o autor aborda a atuação dos
guardas na Revolução Farroupilha. Assim, são discutidas demandas como qualificação,
alistamento, dificuldades de organização dos corpos, as funções desempenhadas por

19
Assim, com o advento da Lei de 19 de setembro de 1850, a Guarda Nacional foi reestruturada,
extinguindo-se o processo eletivo para preenchimento dos postos de oficiais. Ver:
<http://www.lexml.gov.br/urn/urn: lex: br: federal: lei: 1850-09-19; 602".> Acesso em: 22 out 2016.
20
SCHWARTZMAN, Simon. O Minotauro Imperial. Resenha. Revista de Ciências Sociais, vol. 23, n. 2,
1980, p. 259.
21
Com o declínio dos paradigmas estruturalistas e marxistas nos anos 1970, multiplicam-se os diálogos
interdisciplinares, abrindo novas perspectivas teóricas e temáticas ligadas ao campo da História Social e
da Nova História Cultural. Ver: BRETAS, Marcos Luiz ; ROSEMBERG, André. A história da polícia no
Brasil: balanço e perspectivas. Topoi, Rio de Janeiro. 2013, vol.14, n.26. Enfoco aqui alguns trabalhos
realizados a partir dos anos 2000.

11
estes e, de forma pertinente procura entender o que significava ser um guarda nacional
naquela época. Quais benefícios e dificuldades que o alistamento na guarda podia trazer
para os indivíduos, quais eram as condições enfrentadas durante sua atuação na
instituição. Por meio de uma documentação variada, que abrange legislação,
requerimentos expedidos por autoridades militares e presidentes de província e –o mais
significativo– a documentação da “autoridade civil que mais diretamente era
responsável pela organização e funcionamento da Guarda Nacional, os Juízes de Paz”.22
A dissertação de Ribeiro e os novos estudos dirigem outros olhares e abordagens à
milícia. Busco aqui, neste debate, me aproximar de tais perspectivas. Trata-se de um
avanço em relação aos primeiros estudos, que apenas trataram a Guarda Nacional sob
um olhar exclusivamente político/militar. Ribeiro avançou ao enfocar os cidadãos que
compuseram a guarda gaúcha e mostrando, por exemplo, as resistências e as estratégias
de muitos ao burlarem a lei e a ordem. Também não se esqueceu de enfocar o papel
exercido pelas autoridades provinciais e concluiu que elas promoveram ingerências e
manipularam a administração da milícia.
Na dissertação de Lidiana Justo da Costa, de 2013, Cidadão do Império, Alerta! A
Guarda Nacional na Paraíba Oitocentista (1831-1850), a autora procura perceber como
a Guarda Nacional foi sendo organizada na província da Paraíba, analisando a criação,
ações cotidianas dos guardas e lançando luz a questão da cidadania no século XIX.
Neste sentido, há um paralelo ao trabalho de Ribeiro, ao esboçar as contradições da
cidadania vivenciada pelos milicianos, isto é, o status que a atuação na milícia concedia
aos guardas, mas também o ônus, percebido através de estratégias e resistência na
instituição. O corpo documental utilizado por Costa é extenso, composto de
correspondências, ofícios e decretos, além de relatórios legislativos.
Ainda no âmbito deste debate, cabe incluir os principais estudos que refletem
sobre o processo de montagem das agências de policiamento no Brasil oitocentista, o
modo pelo qual operaram e a eficácia do desempenho de suas funções na direção de
formas mais modernas.
De maior expressão e referência no tratamento sobre o aparelho policial brasileiro
no século XIX, destaca-se o trabalho de Thomas Holloway. O historiador norte
americano em seu livro Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade

22
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: Milicianos e guardas nacionais no Rio Grande do
Sul (1825-1845). Santa Maria-RS: EDUFSM, 2005.

12
do século XIX, de 1997, faz uma análise da instituição em uma evolução gradativa e
histórica do controle da agência repressiva. Nas forças exercidas pelos grupos
dominantes da cidade e na atuação das instituições públicas, no ato de legislar e gerir o
policiamento. Sobre o recorte deste exame, ao tomar as agitações urbanas e o cotidiano
regencial, Holloway consegue ir além dos debates ideológicos e reformas legisladoras.
O autor faz uma análise do cotidiano e da prática dos mecanismos de controle, estes que
forneceram arcabouço para condução do poder por parte da elite, isto é, pelos liberais
moderados. Especialmente sobre a Guarda Nacional, Holloway acredita ser a Guarda
parte importante do aparato de repressão disponível, destacando sua atuação, a tensões
geradas pelo aparato quando sua criação e o despreparo de todas as forças que o
integravam no tratamento com as camadas inferiores.
Outro estudo importante, que permeia o debate sobre a atuação dos aparelhos
repressivos é o do historiador Wellington Barbosa da Silva. Suas pesquisas sobre polícia
e criminalidade no Brasil império são uma referência. Em sua tese, intitulada Entre a
liturgia e o salário: a formação dos aparatos policiais no Recife do século XIX (1830-
1850), o autor examina a construção da força policial pernambucana, de forma bem
ampla e completa. Cronologicamente, Silva delimita seu objeto no momento em “que
começou a ser estruturado, em moldes burocráticos, nos primeiros anos após a
abdicação de d. Pedro I”.23 Percorre a ação da Guarda Nacional, maior expressão do
domínio local até o momento que houve um esforço para o desarmamento da sociedade
e do progressivo armamento do Estado. Outro trabalho de grande elucidação de
Wellington Silva destaca – como é do nosso interesse fazer para o Rio de Janeiro– o
papel policial da Guarda Nacional. No artigo Sob o Império da necessidade: Guarda
Nacional e policiamento no Recife Oitocentista (1830-1850), o autor faz uma análise do
percurso da atuação pública da milícia nas ruas do Recife, abordando as dificuldades e
deficiências enfrentadas pela Guarda no exercício de tal função.
Os historiadores Marcos Bretas e André Rosemberg no artigo A história da
polícia no Brasil: balanço e perspectiva, publicado em 2013, analisam o campo
temático sobre militares, milicianos e forças policiais, destacando a importância do
mesmo para a compreensão da história brasileira. Segundo os autores, os grandes
esquemas explicativos e as abordagens mais simplificadoras, que tratavam as forças
repressivas “como agentes de dominação não problemática” já foram abandonados.

23
SILVA, 2010, p. 10.

13
Apesar de abordagens mais recentes focalizarem a ação policial da Guarda Nacional,
discutindo, a partir de sua composição e ação, a ideia de cidadania no século XIX, vale
destacar que não há pesquisas desse tipo para o Rio de Janeiro. Foi por meio da
identificação desta lacuna que se definiu os contornos deste projeto de pesquisa.
1.3. Objetivos
Objetivo Geral:
Compreender a atuação da Guarda Nacional como força policial nas ruas do Rio
de Janeiro no período regencial.
Específicos:
 Analisar – a partir de material bibliográfico e legislativo disponível – as ações
do governo regencial relacionadas à criação de órgãos repressivos.

 Examinar a organização e o sistema de recrutamento da Guarda Nacional, a


partir da noção de cidadania no Brasil oitocentista.
 Identificar e analisar as tensões geradas pela ação policial cotidiana da Guarda
Nacional nas ruas do Rio de Janeiro.

1.4 Referenciais Teóricos:


Na perspectiva de ideias e conceitos que possibilitem o embasamento teórico para
a construção da pesquisa, um primeiro deslocamento que se apresenta como ponto
necessário de elucidação refere-se à noção da ação social dos indivíduos, as vivências,
comportamentos e suas estratégias diárias. Nesse sentido pela clássica perspectiva
teórica de E. P Thompson, entender um processo histórico é buscar, por meio dos
percursos e evidências históricas, apreender como homens e mulheres agem e pensam
dentro de determinadas condições:
Estamos falando de homens e mulheres, em sua vida material, em suas
relações determinadas, em sua experiência dessas relações, e em sua
autoconsciência dessa experiência. Por “relações determinadas”
indicamos relações estruturadas em termos de classe, dentro de
formações sociais particulares.24
Desta forma, a produção da experiência se apresenta para o autor como categoria
importante de análise uma vez que “compreende a resposta mental e emocional, seja de
um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a

24
THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Zahar, 1981,p.111.

14
muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento”.25 Logo, é através da categoria
experiência, que os sujeitos sociais definem e redefinem suas práticas e pensamentos.
Entende-se assim a importância para além da análise das dinâmicas relacionais, ampliar
e considerar o meio social como um todo.
Por ser uma categoria de análise bastante usual nas elaborações históricas, a
categoria experiência encontra-se inserida em um debate importante, que reflete sua
metodologia e utilização nas recentes pesquisas. A autora Joan Scott em sua elaboração
sobre a noção de experiência aponta que é necessário ter cuidado com os usos que são
feitos desse conceito e nos permite refletir sobre formas de historicizar a categoria de
experiência.26
Desta forma, a autora critica a “forma fundamentalista, essencialista e
homogênea” em que a experiência se define. Essas formas são visto pela autora como
ações limitantes dentro do arcabouço teórico das pesquisas.
[...] quando a experiência é considerada como a origem do
conhecimento, a visão do sujeito individual (a pessoa que teve a
experiência ou o/a historiador/a) que a relata torna-se o alicerce da
evidência sobre o qual se ergue a explicação.27

A autora ainda aponta que esses estudos perdem a possibilidade de examinar


práticas e considerações acerca da diferença. Além de considerar, segundo ela, o ato de
tomar como evidentes as identidades daqueles cujas experiências estão sendo
documentadas e assim naturalizar suas diferenças. É interessante perceber justamente
para Scott, questões sobre a natureza construída da experiência, como os sujeitos são,
desde o início, constituídos de maneiras diferentes. E assim perceber como a visão de
um sujeito é estruturada, isto é, a atuação e história dos indivíduos em contínua
transformação a partir das relações na sociedade. Compreendendo-a partir da mudança
histórica, de como a experiência constrói os sujeitos.
A noção de experiência, a partir de Scott, permite pensar a subjetividade estando
relacionada a diversos marcadores sociais como gênero, raça, classe, etnia e os seus
movimentos na história. Experiência é, nessa abordagem, não a origem de nossa
explicação, mas aquilo que queremos explicar. Esse tipo de abordagem não desvaloriza
a política ao negar a existência de sujeitos; ao invés, interroga os processos pelos quais
25
THOMPSON, 1981, p.111.
26
SCOTT, Joan. “Experiência”. Tradução de Ana Cecília Adoli Lima. Falas de Gênero. Org. SILVA,
Alcione ;LAGO Mara; RAMOS, Tânia. Florianópolis. Editora Mulheres, 1999.
27
SCOTT, 1999, p.4.

15
sujeitos são criados, e, ao fazê-los, reconfigura a história e o papel do historiador e abre
novos caminhos para se pensar a mudança.
Outra questão pertinente na elaboração da pesquisa é entender o próprio conceito
de cidadania no Brasil Oitocentista. Segundo Hebe Mattos, a opção por uma monarquia
constitucional de base liberal teoricamente considerava todos os homens cidadãos livres
e iguais. No entanto, o Estado monárquico constitucional brasileiro baseou-se no
processo de mudança controlada. A marca mais salientar desse processo é a instituição
da escravidão que permaneceu inalterada, garantida pelo direito de propriedade
reconhecido na Constituição imperial de 1824 e inalterado nas reformas constitucionais
aprovadas no período regencial.
Frequentemente este modelo de liberalismo, tem sido apontada como distorção
típica do processo de emancipação política do Brasil. Em algumas interpretações mais
radicais, o liberalismo no Brasil monárquico seria considerado até mesmo como uma
simples importação artificial de ideias europeias que, para além da defesa do livre
comércio, pouco se adequavam à realidade brasileira. Mas, como a autora nos informa a
manutenção da escravidão e as contradições desse processo de cidadania não foi
específico do Brasil, outros lugares como o sul dos Estados Unidos, questões como
“cidadania, racialização e discriminação se mesclavam aos processos jurídicos."28
Devido a essas contradições, o Brasil comparativamente a outros países que
seguiam o ideário liberal no início dos oitocentos, formaria um modo particular de
pensar o liberalismo ao hierarquizar de maneira peculiar o alcance da cidadania. Onde o
debate sobre sentimentos de pertencimento a uma nação, ou mesmo a um Estado, estava
sendo ainda delimitado.
Uma elaboração pertinente ao conceito de cidadania foi produzida por José Murilo
de Carvalho em sua obra Cidadania no Brasil: o longo caminho. O autor aponta que o
conceito cidadania, é um fenômeno histórico. Ou seja, a luta pelos direitos e a conquista
da cidadania plena estaria relacionada à constituição dos Estados-nação, e a este como
produto histórico de condições modernas. Logo, segundo o autor, houve um percurso
para a cidadania plena. A combinação ideal, que entrelace liberdade, participação e

28
MATTOS, Hebe Maria, Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. 2ª Edição, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora, 2004. p.9-10.

16
igualdade para todos é um ideal desenvolvido no Ocidente, e resultaria em direitos civis,
políticos e sociais.29 O cidadão pleno seria aquele que possuísse os três direitos.
Ainda, segundo o autor, o modelo lógico de desdobramento da cidadania seria o
modelo inglês.30 Onde, desenvolveu-se, primeiro os direitos civis, isto é, os direitos
baseados na existência da justiça, da liberdade, propriedade e igualdade perante a lei. O
segundo seria a existência de direitos políticos, o que basicamente é o direito ao voto e
suas questões transversais como a capacidade de fazer demonstrações políticas, e de
organizar partidos. Sendo, portanto, a participação do indivíduo nas decisões do
governo de uma sociedade. E por último, o autor aponta para os direitos sociais, que
garantem a participação na riqueza coletiva de um Estado. Eles incluem o direito à
educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. “Os direitos sociais
permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade
produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos.”31
Esta evolução dos direitos é, segundo Carvalho, baseada no percurso
desenvolvido pela Inglaterra, como já apontamos. O Brasil seguiu um percurso próprio
com duas diferenças importantes. A primeira refere-se à alteração na sequencia em que
os direitos foram adquiridos. E a segunda relaciona-se aos critérios socioeconômicos
sobre quais esses direitos foram adquiridos.
O autor aponta que considerar a cidadania do período imperial é pensar em uma
sociedade plena de hierarquias e exclusões construídas durante os 300 anos de
colonização portuguesa no Brasil. Os donos dos latifúndios monocultores eram também
os que mais possuíam riqueza, o que os destacavam do restante da sociedade.
Estabelece-se assim um contexto de grande desigualdade econômica. Escravidão e
grandes propriedades como aponta Carvalho “não constituíam ambiente favorável à
formação de futuros cidadãos.”32

29
Consideramos aqui os modelos de cidadania, como apontado por José Murilo de Carvalho
desenvolvido na Europa (Inglaterra, França, Alemanha) e nos Estados Unidos. Cada um seguindo seu
percurso próprio em noções de tempo e lugar, porém objetivando a cidadania plena. Ver: CARVALHO,
José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v.
1. p.11.
30
O autor faz essas considerações a partir das perspectivas de Thomas Humprey Marshall, importante
sociólogo britânico, que analisou o desenvolvimento da cidadania como desenvolvimento dos direitos
civis, seguidos dos direitos políticos e dos direitos sociais, nos séculos XVIII, XIX e XX,
respectivamente. Introduziu o conceito de direitos sociais, sustentando que a cidadania só é plena se é
dotada de todos os três tipos de direito e esta condição está ligada à classe social. Ver: CARVALHO,
2001, p. 10.
31
CARVALHO, 2001, p.10.
32
CARVALHO, 2001, p.16.

17
A condução da nação brasileira era representada a partir da combinação de
condições sociais e matrizes raciais, que não apenas hierarquizava os grandes estratos
da sociedade imperial, como também ao privilegiar o atributo da propriedade, definia
papéis e estabelecia dependência no interior da sociedade. A consequência era a pouca
eficiência de um poder público, capaz de garantir a igualdade perante a lei. Logo, os
direitos civis beneficiavam apenas a poucos, os direitos políticos a uma parcela ainda
menor e os direitos sociais como aponta o autor, era designado como “assistência
social” e ficava a cargo “da Igreja e de particulares.”33
Para José Murilo de Carvalho, os direitos políticos saem na frente, uma vez que
com a outorgação da constituição de 1824 definiu-se quem teria direito de votar e ser
votado. Por meio do voto censitário, a participação política imperial, portanto, contava
com alguns graus de atuação.34 No primeiro segmento, estavam os cidadãos votantes,
todos os homens de 21 anos ou mais que comprovavam uma renda anual mínima de 100
mil réis. Estes estavam aptos para votar nos eleitores que, por sua vez, deveriam
comprovar uma renda anual mínima de 200 mil réis para votar nos candidatos a
deputado e senador.35
Na concepção do autor, para os padrões da época, a legislação brasileira era muito
liberal, por inúmeras razões. Os critérios de renda para votantes eram relativamente
baixo.36 A lei brasileira permitia ainda que os analfabetos votassem. Vale destacar que,
como aponta Pierre Rosanvallon, a igualdade política não fazia parte da pauta do
pensamento liberal e até mesmo os revolucionários franceses não tornaram os direitos
políticos acessíveis a todos.37 José Murilo de Carvalho assinala que talvez nenhum país
europeu da época tivesse legislação tão liberal como a do Brasil. Porém, tais traços
sugerem uma categoria formal de compreensão dos direitos políticos.

33
CARVALHO, 2001, p.17.
34
Voto censitário é a concessão do direito ao voto apenas a cidadãos que possuíam certos critérios, como
a comprovação de uma situação financeira estabelecida legalmente. Ver: Carvalho, 2001, p.31.
35
Os deputados e senadores deveriam comprovar uma renda anual mínima ainda mais elevada do que os
eleitores. Os candidatos a deputado deveriam ter renda mínima de 400 mil réis por ano e os candidatos ao
senado de 800 mil réis anuais. Dessa forma, vemos que os principais cargos legislativos do país eram
unicamente alcançados por pessoas que tinham um poder aquisitivo bastante elevado naquela época e
nunca poderiam contar com a participação das camadas populares. Ver: CARVALHO, 2001, p.31.
36
A maioria da população trabalhadora ganhava mais de 100 mil-réis por ano. O critério de renda não
excluía a população pobre do direito do voto. Dados de um município do interior da província de Minas
Gerais, de 1836, mostram que os proprietários rurais representavam apenas 24% dos votantes. O restante
era composto de trabalhadores rurais, artesãos, empregados públicos e alguns poucos profissionais
liberais. (CARVALHO, 2001, p.30.)
37
ROSANVALLON, 1990 apud CARVALHO, 2001, p.32.

18
Os laços de dependência e o aparelhamento entre poder público e privado de uma
herança colonial, ainda reforçado no período imperial, apontavam claramente para quem
comandava o cenário político. Muito votantes viviam em condições de influência dos
grandes proprietários ou eram funcionários públicos controlados pelo governo. A
grande quantidade de analfabetos incapacitava a instrução da população para demandas
importantes como a compreensão sobre decretos do governo, a leitura de jornais ou um
alvará de justiça.38
Podemos associar tais perspectivas com a Guarda Nacional. Da mesma forma, que
a condição de cidadania era definida pelos rendimentos anuais de uma pessoa, o
alistamento na milícia também era feito utilizando os critérios de renda pessoal. Nas
quatro maiores cidades do Brasil, entre elas o Rio de Janeiro, o requisito mínimo de
ingresso era o de ser eleitor, ou seja, o de possuir uma renda mínima anual de
200$000.39 A participação política tal como o ingresso na Guarda corroborava para
noção de “distinção” e “identidade” para esses homens cidadãos. Era o meio de destacar
a diferença que havia entre eles e o restante da população, como libertos, escravos e sem
renda. Ademais, o alistamento na milícia os fazia participantes da defesa não só dos
seus bens e propriedades, como também sobre a manutenção da ordem e da sociedade.
Cabe ressaltar que também na Guarda combinavam-se as influências do governo e dos
grandes proprietários e comerciantes. Era grande o poder de pressão de seus
comandantes sobre os votantes que eram seus inferiores hierárquicos.
Percebemos assim, as redes de solidariedade e influência no qual se fundou o
percurso da cidadania e suas implicações na sociedade, sobretudo, sobre a forma
política. Não se tratava apenas de estabelecer e exercer o direito de participar na vida
política do país ou da tarefa de defesa da ordem, mas relacionava-se a noções de
dependência fundadas desde a colônia, em uma sociedade marcada pela desigualdade
social. Neste sentido, considerar tanto a categoria de análise relacional de experiência
vista como os limites da cidadania brasileira, são essenciais para a compreensão das
ações e normas que regulamentaram a sociabilidade dos indivíduos no período analítico
dessa pesquisa, a Regência do Império do Brasil.

38
O autor indica que o analfabetismo chegava a de 85% população. Ver: CARVALHO, 2001. p.32.
39
No decreto de 25 de outubro de 1832 assinala que para o serviço das Guardas Nacionais nas cidades do
Rio de Janeiro, Bahia, Recife, Maranhão, os termos deveriam ser de renda liquida anual de 200$000, o
mesmo critério para eleitor. Ver:< http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-
37342-25-outubro-1832-563877-publicacaooriginal-87927-pl.html>. Acesso em 16 jul. 2017.

19
1.5 Fontes:
Ao propor uma análise da Guarda Nacional, como aparelho repressivo no período
regencial pretendo qualificar a análise do estudo, por meio de um corpus documental
amplo que nos apresente perspectivas pertinentes da ação do Estado brasileiro entre os
anos de 1831 a 1840.
Para tanto, esta pesquisa se debruçará especialmente sobre o Fundo da Guarda
Nacional, depositado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Nesses
registros constam a lista de nomeações, demissões, concessões de dispensa e uma ampla
documentação o que nos possibilita perceber as dinâmicas de funcionamento da Guarda.
Outro importante eixo de análise fixa-se no acervo do Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro (ANRJ), especialmente no que se refere às atividades cotidianas de
policiamento. Assim, é de suma importância à análise dos informes policiais, ordens de
patrulhamento e ofícios que permitem acompanhar atuação policial da Guarda Nacional
nas ruas do Rio de Janeiro. Toda esta documentação já se encontra devidamente
mapeada.
Sobre a atuação política do Estado, suas deliberações e as perspectivas sobre a
organização legislativa do período temos como fonte a Colleção das Leis do Império, a
fim de possibilitar a perspectiva da observação da política no período da Regência. Essa
documentação encontra-se disponível no site do Congresso Nacional Brasileiro para
livre consulta.40
Ainda sobre o aspecto de análise política e legislativa o estudo dos relatórios das
autoridades provinciais do Rio de Janeiro, presidente e vice-presidente, nos apresenta
importantes elucidações sobre os aspectos oficiais de demandas da Guarda Nacional e
de outros aparatos repressivos imperiais. Essa documentação encontra-se disponível no
web site da Universidade de Chicago, nos EUA, disponibilizadas pelo Center for
Research Libraries e Latin American Microform Project.41
1.6 Metodologia
Nossa compreensão se dá para análise das relações entre o individuo, a sociedade
e o Estado. Este trabalho figura-se como um processo intercalar das noções históricas
entre as demandas oficiais e normativas e as estratégias diárias dos indivíduos e as ações
na prática dessas normas.
40
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>
Acesso em: 20 jul 2016.
41
Disponível em: <http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_de_janeiro>. Acesso em: 20 jul. 2016.

20
A historiografia recente tem demonstrado inúmeras possibilidades de abordagem
da história política do cotidiano, ou seja, das práticas sociais e dos comportamentos dos
indivíduos em contextos e cenários também variados. De acordo com José Maria
Imízcoz, a análise da sociedade a partir dos atores sociais é um campo crescente na
historiografia.42 A utilidade dessa abordagem é elaborar pesquisas a partir das vivências
e das estratégias diárias ocorridas nos espaços políticos e normativos. Parte importante
desse método é reconstituir o tecido social e as tramas, a partir das formas e das relações
e redes de solidariedade. O conceito central para essa tarefa é a noção de discurso, um
componente ativo na geração dos significados sociais.43 Os indivíduos apreendem e
conceituam a realidade social em função das normas e das experiências sociais. O
discurso, portanto, funciona como uma rede conceitual que torna visível, especifica,
diferencia e classifica essas ações.44
No campo das ideias políticas, John Pocock em Linguagens do Ideário Político
expõe que para análise do discurso o historiador é confrontado com algumas
perspectivas.45 A primeira é uma leitura extensa da literatura da época a fim de aguçar
sua própria sensibilidade e intuição para detectar a presença dos diversos “idiomas”. Em
certo grau, portanto, seu processo de aprendizado é um processo de familiarização, mas
ele não pode permanecer meramente passivo e receptivo à linguagem que lê e, com
frequência deve empregar certos procedimentos de detecção no documento que lhe
tornam possível construir e validar hipóteses. No sentido de estabelecer que as
linguagens detectadas podiam e estavam sendo empregadas de diversas maneiras. Nessa
linha de trabalho, ele terá inevitavelmente de se defrontar com problemas de
interpretação e com o círculo hermenêutico, isto é a interpretação ou compreensão do
texto, dos sentidos e/ou da significação das palavras que o compõem.
Para esta pesquisa, abandonamos a ideia de uma reconstrução exaustiva dos
fatos, mas pretendemos alcançar uma identificação de “redes de significados”46, através

42
IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes e procesos: de los individuos a las configuraciones sociales. In:
Revista da Faculdade de Letras. Porto, III Série, vol. 5, 2004, p.121.
43
Considero a perspectiva de José Maria Imízcoz, que designa como discurso todo um sistema de
significados formador de uma rede de categorias e não só, portanto, outras coisas habitualmente
chamadas também de discursos, como textos, livros, ou outros exemplos empíricos de textos, corresponde
àquilo que Michel Foucault denominou “episteme”, um campo de relações, continuidades e
descontinuidades entre práticas discursivas. Ver: IMIZCOZ, 2004, p. 121.
44
IMÍZCOZ, 2004, p.122.
45
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003.
46
Para José Maria Imizcoz, rede de significados é uma estrutura constituída por um conjunto de pontos e
linhas que materializam laços e relações mantidas por grupos ou conjuntos quaisquer de indivíduos. Pode

21
da historiografia, sobre as quais poderemos identificar lógicas a partir de sujeitos
qualificados à Guarda Nacional e as elaborações oficiais estabelecidos na Regência.
Para isso, além da análise do textual e sua linguagem, buscamos compreender o
discurso como expressão da ação dos indivíduos. Um exemplo dessa possibilidade é ver
a continuidade de práticas administrativas mesmo diante de normas promulgadas, o que
confere a importância de um sistema relacional dentro da burocracia imperial brasileira,
a fim de entender seu funcionamento. A partir disso, nossa atenção para fonte estará
voltada para o discurso como padrão de significados, “como uma troca entre o sistema
da linguagem, o sujeito falante e o contexto histórico e social.”47
Para conseguirmos visualizar, estas vivências, comportamentos e estratégias,
analisaremos os esquemas institucionais de um momento em que a coerção e a
organização repressiva se delineava. Cabe assim, identificar esse debate, com o intuito
de perceber sobre quais demandas essa ordem pública se sustentou, a fim de garantir a
estabilidade da ordem social.
Nosso trabalho irá atentar, para existência de certos recursos que quebravam,
ainda que temporariamente, a rigidez do serviço ativo, como as dispensas temporárias
que, por motivos de serviço público ou mesmo particular, eram concedidas pelos
conselhos de qualificação. Assim, não interessa apenas compreender a fonte em seu
texto e conteúdo, mas por meio de um arcabouço teórico e historiográfico perceber as
estratégias pelas experiências sociais dos indivíduos.
Esta noção de estratégia e as demandas de funcionamento são parte importante do
sistema operacional da milícia sobre o qual debruçaremos, assim como identificamos no
parecer do relatório do ministro de justiça sobre a Guarda:
Nas províncias tem também os Prezidentes encontrado grandes
embaraços na boa organização das Guardas Nacionaes , a faculdade
de dispensar os empregados as dispensas concedidas listão a
facilidade que os commandantes, e officiaes dão parte de doentes e os
Guardas mudão de Municípios, e rolhares de outros inconvenientes,
que seria longo enumerar, tem posto em embaraços o Governo.48

Essa avaliação detalhada dos problemas de pessoal da Guarda corrobora a

ser também a dinâmica relacional regida por normas, valores, códigos de conduta, crenças e instituições
vigentes. Ver: IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes e procesos: de los individuos a las configuraciones
sociales. In: Revista da Faculdade de Letras. Porto, III Série, vol. 5, 2004, p.121.
47
IMIZCOZ, 2004, p. 2004.
48
RELATÓRIO MINISTRO DE JUSTIÇA, 1834. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1824/000001.html> . Acesso em: 12 out. 2016.

22
importância e a noção de estudo aqui proposta. Sobre esse ponto é importante
considerar o caráter singular do período regencial (1831-1840). Um momento histórico
complexo, conduzido pela elite política brasileira após a abdicação do imperador d.
Pedro I e a impossibilidade de governo pelo seu filho, príncipe herdeiro ainda menor de
idade. O período regencial, expressa-se na historiografia por um momento
particularmente tenso, com a eclosão de violentos protestos coletivos (como rebeliões e
quarteladas, agitações populares e revoltas de escravos).
Desta forma, cabe refletir como pontua Marco Morel, que o período regencial foi
um “laboratório de formulações e práticas políticas sociais”, onde estava se delineando
por parte de uma elite política, demandas importantes de organização nacional e a partir
desses contínuos movimentos de instabilidade social, onde a manutenção da ordem se
transformou na preocupação central.
Em uma sociedade, com desníveis sociais evidente, como já percorremos, a
atuação e os limites da força coercitiva é um ponto de análise importante e faremos isso
ao pensar em relações, estratégias e negociações a partir dos boletins de ocorrência. As
forças de policiamento remanescentes do primeiro reinado e as instituições militares
(onde se incluíam Exército e as Milícias auxiliares) apareciam como aparatos sem
prestígio e confiança em meio aos acontecimentos sucessivos que desgastaram sua
atuação. Em muitos momentos, eram os seus próprios componentes, que esqueciam a
ordem legal e acabavam promovendo motins e tumultos ou incentivando os grupos de
revoltosos nas agitações de rua e revoltas populares. Assim além de escravos e a
“plebe”, a atenção da elite política voltavam-se também para aqueles que tinham a
obrigação de reprimir tais movimentos.
Prevalecia, a convicção de que as milícias civis, por serem formadas unicamente
por cidadãos que se armavam com o intuito de defender a sua própria liberdade, eram
mais apropriadas para a manutenção da ordem interna, cabendo ao Exército apenas a
função de combater os inimigos externos. Desta forma, a função policial foi uma
atividade constante para a Guarda Nacional.
Faremos uma análise, de modo a atentar para as ações e percalços, que
condicionaram este policiamento no período. A partir de duas perspectivas: a análise da
atuação desses guardas como autoridades policiais no ato da repressão e em sua
interação com a sociedade, principalmente com escravos e indivíduos de camada social
mais baixa, com noções de resistência e sobrevivência. Importa-nos assim a análise

23
relacional e das alternativas para os conceitos oficiais da polícia em matéria de
criminalidade e cumprimento da lei.
O uso das fontes de arquivo, como elucida Keila Grinberg, especialmente em
autos criminais, deve percorrer o trabalho de interpretação. “O que nos interessa nas
documentações, é saber que ela é sempre construção de um conjunto de versões sobre
um determinado acontecimento.”49 Pois, se de um lado as ordens policiais, aparecem de
forma estruturada e bem documentadas, as demandas populares são difusas e acessíveis
hoje apenas por meio de informações fragmentadas e de constituição primária indireta.
É necessário, portanto, mapear os sentidos das ações e problemáticas. E atentar que os
documentos de arquivo, são criados em função das necessidades de uma instituição,
para comprovar e fundamentar seus atos. Em razão dessas premissas o auxilio de um
arcabouço historiográfico é de suma importância para caracterizar esse percurso
temático, social e cultural da cidade do Rio de Janeiro de 1831 a 1840.

1.7. Bibliografia:
Fontes:
Arquivo Nacional. Fundo/Coleção: Série Justiça/Gabinete do Ministro. Código do
Fundo:IJ6.
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Fundo: Presidente de Província. Seção de
Guarda: CODES. Código do Fundo: BR RJAPERJ PP-SPP-0643.3.
Colleção das Leis do Império. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>
Relatórios das autoridades provinciais do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www-
apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_de_janeiro>.
Referências:
BASILE, Marcello. “O laboratório da nação: a era regencial (1831–1840)”. In GRINBERG,
Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, volume II: 1831 – 1870. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009.

BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço


e perspectivas. Topoi, Rio de Janeiro. 2013, vol.14, n.26.

49
GRINBERG, Keila. A História nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla Bassanezi;
LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

24
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 1. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. v. 1.
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã – A Guarda Nacional de 1831 a 1850. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
COSTA, Lidiana Justo da. Cidadão do Império, Alerta! A Guarda Nacional na Paraíba
Oitocentista (1831-1850).2013. 194 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, 2013.
GRINBERG, Keila. A História nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009.
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa
cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes e procesos: de los individuos a las
configuraciones sociales. In: Revista da Faculdade de Letras. Porto, III Série, vol.
5, 2004, p. 115-140.
MOREL, Marco. O Período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003. p.18.
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003.
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: os milicianos e os guardas nacionais
gaúchos (1825-1845). Santa Maria: UFSM, 2005.
SCOTT, Joan. “Experiência”. Tradução de Ana Cecília Adoli Lima. Falas de Gênero. Org.
SILVA, Alcione; LAGO,Mara; RAMOS, Tânia. Florianópolis. Editora Mulheres,
1999.
SILVA, Wellington Barbosa. Entre a liturgia e o salário: a formação dos aparatos
policiais no Recife do século XIX (1830-1850). 2003, 278 f. Tese (Doutorado em
História), Programa de Pós- Graduação em História, Universidade Federal de
Pernambuco, Pernambuco, 2003.
SILVA, Wellington Barbosa. Sob o Império da necessidade: Guarda Nacional e
policiamento no Recife Oitocentista (1830-1850). Revista CLIO – Revista de
Pesquisa Histórica, Pernambuco. v.2 n.28, 2010,p. 1-17.
SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

25
2. Plano de Redação dos Capítulos:
Entre a Ordem e o Medo: a utilização da Guarda Nacional no policiamento do
Rio de Janeiro Oitocentista (1831-1840)

Ordem, cidadania e manutenção das fronteiras sociais foram temáticas centrais ao


período da regencial. A unidade do país, uma unidade frágil, cuja construção ainda se
delineava, estava ameaçada em meio à instabilidade política e social após o fim do
primeiro reinado. Tradicionalmente essa fragilidade é pensada em termos estruturais:
tratava-se de um poder despojado do prestígio da Coroa e entregue a homens eletivos.50
Mas, além disso, vale acrescentar a conjuntura política, com diversos grupos em franca
disputa, resultado de um debate iniciado no processo de abdicação. Como resposta
direta a esse cenário, é criada a Guarda Nacional, além, de outros aparelhos repressivos
e judiciais. Tudo por meio da ação da elite moderada que assume a Regência do Império
num clima de desordem e insegurança. Esta demanda também parte da constatação de
que as forças de policiamento herdadas do primeiro reinado não eram de plena
confiança dessas elites dirigentes, uma vez que suas fileiras reportavam a uma ligação –
como se costuma dizer à época – “com uma Coroa estrangeira e absolutista.”51
Muitas vezes, eram os próprios militares – oficiais e praças – que esqueciam a
ordem legal e acabavam promovendo motins, ou engrossando os grupos de revoltosos
nas agitações de rua e revoltas populares. As forças de repressão da época não eram
impermeáveis às ideias contrárias à ordem vigente. Contudo, o país não podia
permanecer desprovido de um aparato repressivo que pudesse atuar em todo o território
nacional, ou seja, que pudesse fazer com que a ordem legal e administrativa fosse
mantida. Promoveu-se então o sentimento de que seria eficiente a delegação dessa
função de defesa a quem tinha interesse em preservar o patrimônio e ordem pública. Foi
nesse contexto que surgiu a Guarda Nacional, instituição paramilitar, não remunerada,
cujo recrutamento estava baseado na sua condição de cidadão.
Deste modo, essa pesquisa busca analisar a estruturação, o perfil e a atuação da
Guarda Nacional do Rio de Janeiro, bem como acompanhar os debates e resoluções
políticas da ascensão e estabelecimento do grupo político liberal moderado, em meio a
um cenário de intensas disputas políticas. O recorte inicialmente proposto compreendia
todo o período regencial (1831-1840). Porém, a partir da análise das fontes e da

50
SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
51
SOUZA, 2008, p. 181.

26
bibliografia do período, pude perceber que os primeiros quatro anos da Regência (1831-
1835) marcam o período da ação policial regular da Guarda Nacional nas ruas do Rio de
Janeiro, serviço do qual ela é dispensada pelo ministro da Justiça em janeiro de 1835. 52
Pretendemos, com essa análise, mapear os mecanismos que entraram em vigor no ano
de 1831 e forneceram o equivalente funcional, adaptado ao regime constitucional, para
garantir a repressão social e as mudanças controladas de cunho político moderado, para
romper com absolutismo colonial, rejeitado na legislação reformadora.

2.1. Introdução:
Delimitaremos na introdução questões importantes como a temática da pesquisa,
metodologia e apresentação das fontes, quais perspectivas que a historiografia nos
apresenta sobre a formação da Guarda Nacional no período, além de um breve debate
sobre os capítulos. Assim, será possível mapear as principais abordagens e questões
apresentadas pelos autores que nos auxiliou na construção do trabalho.

2.2 Primeiro Capítulo: O estabelecimento da Regência e a reestruturação dos


aparelhos repressivos
2.2.1. O 7 de abril: a abdicação de d. Pedro I
Neste item inicial, apresentamos um breve relato dos acontecimentos ocorridos no
Campo da Aclamação entre os dias 6 e 7 de abril de 1831 e o seu desfecho: a abdicação
do imperador d. Pedro I em nome do seu filho Pedro de Alcântara, então com apenas
seis anos de idade. Seguindo as determinações da Constituição de 1824, foram
escolhidos os regentes que governariam durante sua menoridade. Nossa intenção,
portanto, é apresentar os conflitos, as negociações e os grupos em evidência em cena no
7 de abril, a fim de compreender o resultado desse momento na política do Império.

2.2.2. Debates políticos da Corte


A experiência dos conflitos que envolveram a abdicação de d. Pedro I assinalava
uma conjuntura marcada por tensão e expectativa. A transferência da política do cenário
palaciano para o espaço público passou a representar uma ameaça à tranquilidade da
cidade, cuja manutenção sempre fora prioridade máxima do governo. Ações legais com

52
RELATÓRIO MINISTRO DA JUSTIÇA, Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, 1834. p. 4
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1824/000001.html> . Acesso em: 20 fev.2018.

27
o propósito de reprimir os opositores são realizadas para preservação da ordem. Desta
forma, o objetivo deste tópico é apresentar a experiência inicial da Regência moderada,
numa conjuntura de instabilidade política e social.
Estaremos atentos, também, aos episódios em que se destacam a ação das forças
de repressão então vigentes e sua conduta, quase sempre vista com desconfiança pela
vertente política moderada.

2.2.3 Reforma das forças militares e a criação da Guarda Nacional

É nossa intenção, nesse item, apresentar as características próprias do


estabelecimento da política repressiva da Regência moderada, ou seja, a reformulação
do aparelho repressivo realizada pelo grupo a partir do projeto político que defendiam.
Como parte integrante dessas medidas, focaremos a análise na criação da Guarda
Nacional. Pretendemos, portanto, debater o contexto da sua criação e apresentar a partir
da legislação que a organiza, suas funções e diligências gerais. O ingresso na Guarda era
facultado apenas aos cidadãos. Os custos com equipamentos e o desempenho das
atividades eram de responsabilidade de seus integrantes. Assim, a análise da instituição
relaciona-se com questões relativas à cidadania e seus significados, tanto para as elites,
quanto para os segmentos sociais menos favorecidos. Sob tal perspectiva, prosseguimos
no estudo sob a atuação política da Regência moderada, suas deliberações e as
perspectivas sobre a organização legislativa do período. Analisaremos, assim, além da
bibliografia, a Coleção das Leis do Império a fim de observar, do ponto de vista legal,
as demandas relacionadas à Guarda.

2.3. Segundo Capítulo: Um perfil dos Guardas Nacionais


2.3.1 Legislação e aspectos organizacionais da Guarda Nacional
Neste capítulo, a análise parte dos aspectos organizacionais e nas dinâmicas
internas da Guarda Nacional no Rio de Janeiro. Nos interessa, percorrer uma análise
detalhada sobre a legislação que regulamenta sua criação e organização, inicialmente o
decreto de 18 de agosto de 1831, e a sua montagem efetiva na corte. Incorporaremos
também outros decretos legais que alteravam seu regimento no recorte proposto (1831-
1835). Demandas sobre, quantas divisões armadas existia e que tipo de divisões tinha no
Rio de Janeiro: cavalaria, infantaria, artilharia? Quantos homens compunham suas
fileiras? Ela existia apenas na corte ou também para o interior? Como estavam

28
distribuídas? Elucidar essas questões nos ajuda a compreender a demanda formal da
legislação e o que efetivamente foi organizado no Rio de Janeiro.
Assim, também é nossa intenção destacar as dificuldades de organização, as
demandas de dispensa e as resistências ao serviço, uma vez que esses indivíduos tinham
seus ofícios, dedicando-se apenas secundariamente ao serviço na Guarda. Teremos
como objeto de análise a documentação oficial de demissões e dispensas já mapeadas
no Arquivo Nacional, além da contribuição da historiografia sobre o tema para a
compreensão dessa função na sociedade, tanto na obtenção de prestígio como na
rejeição ao serviço pelos seus membros.

2.3.2. Composição social dos Guardas Nacionais


Neste item, temos como objetivo delinear o perfil dos indivíduos que compunham
a Guarda Nacional do Rio de Janeiro. A partir de alguns critérios como o ofício, cor,
idade e renda. Esse mapeamento nos permitirá definir características comuns deste
grupo social no período da Regência, observando ainda suas dinâmicas internas e seus
relacionamentos com outros grupos e com o espaço de poder e, desse modo, contribuir
para a compreensão de redes e configurações. Este item estará fundamentado na análise
da documentação oficial da Guarda (decretos de nomeação e relação de alistamento).53
O entendimento metodológico que acreditamos ser mais eficaz não é o
levantamento exaustivo das trajetórias individuais, mas sistematizar - a partir dos
critérios e das informações apresentadas - o conjunto e delimitar um perfil coletivo
desse grupo de atores. Esta estratégia nos permitirá, inclusive, refletir sobre os critérios
estabelecidos pelos próprios contemporâneos como centrais no processo de
recrutamento dos guardas.

2.4. Terceiro capítulo: A Guarda Nacional na defesa da ordem interna


2.4.1. Guarda Nacional no serviço de policiamento
Nas considerações iniciais da lei de 18 de agosto de 1831, que criava a Guarda
Nacional, uma das funções definidas para a Guarda era o "serviço ordinário dentro do
Município."54 Deste modo, e assim como já foi apontado pela historiografia sobre a
instituição, a Guarda Nacional assumiu a função de conservar a ordem social interna,

53
Arquivo Nacional. Fundo/Coleção: Série Justiça/Gabinete do Ministro. Código do Fundo:IJ6-449.
Decreto de nomeações.
54
Lei de 18 de agosto de 1831. Colleção das Leis do Império. p.49 Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>.

29
como força policial, principalmente face aos protestos políticos e sublevações militares
no Rio de Janeiro. A intenção, portanto, neste capítulo é compreender qual a dimensão
dessa atuação da Guarda Nacional como força policial, verificando as deliberações das
diversas autoridades para designar essas ações de policiamento. Atentos ainda aos
episódios que geralmente eram vistos como ameaçadores da ordem interna e que,
segundo a elite política dirigente, eram encarados como perigosos do ponto de vista da
manutenção do status quo e, por isso, necessitavam da intervenção da Guarda Nacional.
A ação policial permite perceber o conteúdo desse temor experimentado por uma
parcela dos habitantes da cidade, além de permitir a visualização do plano de
intervenção articulado pelo governo.

2.4.2 A Guarda Nacional como força policial na Corte


Neste item, faremos uma análise mais específica dos relatos da ação cotidiana
policial da Guarda Nacional e a interação com os diversos atores sociais (por exemplo,
sua relação com os grupos marginalizados, escravos, mundo da prostituição) e com as
demais forças repressivas atuantes.
Além de delimitar na interação com a sociedade e com a criminalidade, uma
análise que permeie ações de repressão e resistência, ou seja, entender a relação entre os
que possuem a autoridade formal e os grupos marginalizados e rebeldes. A análise irá
percorrer os boletins de ocorrência e relatos das atividades, em partes já mapeados no
Arquivo Nacional e no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro.55

2.5 Conclusão
Dando sequência ao debate proposto nos outros capítulos, é importante destacar se
a Guarda Nacional na corte regencial cumpre com os objetivos que lhe foram destinados
legalmente. Como parte de uma ação política de manutenção da ordem, cabe refletir
sobre quais dinâmicas a Guarda Nacional apresentou resultados efetivos. Ademais, é
importante delinear se esses resultados são satisfatórios ou não, ao esboço de uma nova
conjuntura de dispositivos repressivos e legais, baseados na pretensa ideia de prevenção
e manutenção da ordem imperial.

55
Arquivo Nacional. Fundo/Coleção: Série Justiça/Gabinete do Ministro. Código do Fundo:IJ6-I66 e
Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, index 200.136.

30
3. Capítulo I: O estabelecimento da Regência e a reestruturação dos aparelhos
repressivos

3.1. O 7 de abril: a abdicação de d. Pedro I


No dia 6 de abril de 1831, na Corte do Rio de Janeiro, uma multidão de
aproximadamente 4000 pessoas concentrava-se inquieta no Campo da Aclamação (atual
Campo de Santana).56 A substituição do ministério dos brasileiros, na noite anterior, por
um novo gabinete, composto basicamente de portugueses, tornava-se o alvo dos
protestos. Acreditava-se que a suspensão do ministério traria a anulação das garantias e
a prisão de muitos deputados. Entretanto, justificativas mais diversas e profundas,
estavam na origem do movimento. Era o momento decisivo de uma série de pequenos
conflitos de rua e de manifestações de protesto. As ruas da corte estavam em tensão
desde a noite das garrafadas. Violentos embates envolvendo portugueses e brasileiros
revelavam a forte descrença da população com os propósitos do imperador d. Pedro I
para a nação.57 A imprensa ampliava os acontecimentos. Falava-se na preparação de um
golpe absolutista, no fechamento do Parlamento e na represália a opinião pública.
Havia, no Campo, uma diversidade de pessoas, de lugares e condições sociais
diferentes, motivadas a dar fim, no que acreditavam ser arbitrariedades do imperador,
exigindo a reintegração do ministério dos brasileiros.58 À frente desse movimento, os
setores oposicionistas integrados eram compostos por homens com determinada
relevância na cena pública, influenciados pelos princípios da liberdade de circulação de
ideias e mercadorias, de acordo com o liberalismo econômico e político.59 Defensores
das facções liberais conservadora (moderados) e radicais (exaltados).
As manifestações e conflitos no espaço público nos últimos meses, antes do
desfecho do 7 abril de 1831, ainda intimidava a facção moderada dos liberais quanto à
tomada de uma medida mais drástica contra o governo, por temor que tal atitude abrisse
espaço para maior participação da população de baixa condição social, principalmente

56
Para os relatos dos acontecimentos utilizo os trabalhos de Adriana Barreto de Souza, Duque de Caxias:
o homem por trás do monumento e Marcello Basile, Revolução do 7 de Abril de 1831: disputas políticas
e lutas de representações. Ambos, porém, tem como base o texto de Silvério Cândido de Faria, Breve
história dos felizes acontecimentos políticos no Rio de Janeiro em os sempre memoráveis dias 6,7 de abril
de 1831.
57
A referência sobre o episódio noite das garrafadas, ocorrido entre os dias 11 e 14 de março de 1831 é
narrado por Marco Morel em O Período das Regências (1831-1840). Ver: O Período das Regências
(1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.18.
58
SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008, p. 171.
59
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades
na Cidade Imperial 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005. p. 120.

31
os escravos. Mas as indisposições com d. Pedro I, com atitudes que pouco beneficiava o
grupo político foram ficando cada vez mais irreconciliáveis. Diferente era a postura da
facção exaltada, que, gradativamente, buscava aproximar-se das tropas e mesmo
daqueles setores subalternos, certos de não haver outro meio para pôr fim no que ser
denunciavam como tirania.60
Embora movidos por interesses diversos, faziam agora causa comum contra d.
Pedro I, desenvolvendo suas ações em vertentes distintas: os primeiros no Parlamento e
entre a elite política, e os segundos no espaço público e entre as camadas populares.
Porém, os dois grupos utilizavam também a imprensa para defender suas posições.
Ademais, a insatisfação com o governo de d. Pedro vinha também dos quartéis, onde
parte da oficialidade, ainda que hesitante, aproximava-se dos moderados, e os escalões
médios e inferiores atrelavam-se cada vez mais aos exaltados.
No Campo da Aclamação, em meio a discursos inflamados, vivas são dados à
Constituição e à Independência do Brasil, como se fossem coisas opostas a d. Pedro I.
Crescia a disposição para o rompimento definitivo com o imperador. Por volta das
quatro horas da tarde, chegam ao local, juízes de paz de diversas freguesias para se
juntarem ao protesto. Em seguida, o comandante de Armas da Corte, general Francisco
de Lima e Silva, envia o major Miguel de Frias e Vasconcellos, ao Paço de São
Cristovão para comunicar a d. Pedro o que estava se passando. 61 No mesmo momento,
uma proclamação do imperador é lida para a multidão pelo juiz de paz Custodio Xavier
de Barros no Campo da Aclamação. Nela, d. Pedro afirmava que não havia motivo para
o temor instaurado contra ele e reafirmava seu compromisso com a Constituição,
pedindo tranquilidade, respeito às autoridades constituídas e confiança nele e no novo
ministério. Entretanto, antes que o juiz de paz pudesse concluir a leitura, a proclamação
é arrancada de suas mãos e rasgada pelos manifestantes, irritados com a insistência do
imperador em não atender a vontade soberana do povo. Aos gritos, a multidão exigia
que o juiz partisse de imediato encontrar o d. Pedro I. Por volta das cinco e meia da
tarde, Custódio Xavier Barros, com outros dois juízes de paz, deixam o Campo da
Aclamação com uma requisição ao povo. Mais uma vez, d. Pedro I defende seu direito
constitucional de nomear e demitir livremente os ministros de Estado. O imperador
recusa-se novamente a ceder. Quando os juízes de paz retornaram ao campo, às sete

60
BASILE, Marcello. A Revolução do 7 de Abril de 1831: disputas políticas e lutas de representações. In:
XXVII Simpósio Nacional de História, 2013, Natal. Caderno de resumos do XXVII Simpósio Nacional de
História, 2013, p. 10.
61
SOUZA, 2008, p. 179.

32
horas da noite, e relataram a resposta do monarca, romperam gritos de “morra o traidor!
está descoberta a traição! às armas, cidadãos!”62
Diante do cenário insustentável, o brigadeiro Lima vai pessoalmente à d. Pedro I o
alertar sobre gravidade da conjuntura. Não consegue, contudo, alterar a situação. O
imperador parecia não acreditar na abrangência do movimento e na disposição dos
manifestantes. Com o seu retorno ao Campo da Aclamação, vê a conjuntura se estreitar
com a informação de que o 1° e o 2 Corpos de Artilharia de Posição haviam deixado
seus quartéis e reforçavam a oposição a d. Pedro I. Outros diversos batalhões, como o
“corpo de artilharia de Marinha (que até então estava incumbido da patrulha da
cidade)”63 vieram se reunir aos manifestantes. Até mesmo o Batalhão do Imperador que,
se achava de guarda no campo do Paço de São Cristovão, percebendo à proporção que o
movimento ganhava, abandonou o posto e as onze horas da noite se reuniu ao povo e
tropa no Campo da Aclamação.
Perante a movimentação intensa das tropas e de parte da oficialidade no Campo da
Aclamação, o brigadeiro Francisco de Lima, apoiador do movimento, mas sempre
cauteloso, cumpria seu dever como comandante de Armas da Corte e tentava pela
última vez fazer d. Pedro perceber seu "total isolamento, político e militar”. Envia outra
vez o sargento-mor Miguel de Frias e Vasconcellos a São Cristovão. A resolução
tomada por d. Pedro desta vez foi de não reintegrar o ministério demitido, porém
compor outro mais agradável à preferência dos brasileiros. Para a formação desse novo
gabinete, o imperador escolhe o senador Nicolau Vergueiro.
(...) O senador, entretanto, não é encontrado e, após algum tempo de
espera, Frias avisa ao imperador que não poderia mais aguardar, pois
sua demora em retonar ao campo seria visto com suspeição e então
nada mais iria evitar que a multidão explodisse em ações violentas e
instituísse um governo revolucionário.64

O imperador, então é avisado, que as “últimas unidades militares fiéis – a Guarda


de Honra e uma bateria de Artilharia” abandonaram o palácio e marchavam em direção
ao Campo da Aclamação para se juntarem aos rebeldes. Marcello Basile aponta que
naquele momento d. Pedro entendeu que ceder a mais pressões não iria salvar sua
posição como imperador e abriria mais espaço para outras exigências irreconciliáveis.
Decide assim tomar, talvez a única atitude que a grande proporção da manifestação

62
SOUZA, 2008, p. 179 apud FARIA, 1831.
63
BASILE, 2013, p. 10.
64
BASILE, 2013, p. 10.

33
deixava: na madrugada de 7 abril abdicar do trono em favor do seu filho, então com
cinco anos de idade.
Divulgada a notícia no Campo da Aclamação, “povo e tropa prorromperam em
festa e em toda a cidade foram espalhadas cópias impressas do decreto.”65 A
constituição da Regência Trina Provisória, formada ainda naquela manhã de 7 de abril
pelos parlamentares presentes na corte até que a Assembleia Geral, em recesso,
nomeasse outra para governar durante a menoridade de d. Pedro II contava com o
brigadeiro Francisco de Lima e Silva e os senadores Nicolau Pereira de Campos
Vergueiro e José Joaquim Carneiro de Campos (Marques de Caravela). A direção que o
brigadeiro exerceu, mostrava a preocupação, de que tudo ocorresse sem quebra da
hierarquia social e militar. Garantiu assim a vitória da moderação.
O objetivo desse capítulo a partir de agora é apresentar as estratégias iniciais do
grupo político moderado no poder, sobretudo, em relação aos aparelhos repressivos.
Numa conjuntura de instabilidade, a que se respondeu com um conjunto expressivo de
reformas institucionais, dentre estas a criação da Guarda Nacional.66

3.2 Debates políticos da Corte imperial

A experiência dos conflitos que envolveram a abdicação de d. Pedro I assinalava


uma conjuntura marcada por tensão e expectativa. Mobilizou grupos importantes e
articulou projetos que deram uma identidade política para a construção do Estado. Desta
forma, retomamos esses debates a fim de destacar os confrontos, as ações e reações das
vertentes políticas e de setores da sociedade identificados como “povo e tropa”.
O 7 de abril consagrou o espaço público como cenário de tensão das facções
políticas e camadas sociais. Marca também a emergência de novas formas e diversas
possibilidades de ação política. A coligação de forças liberais que promovera a queda de
d. Pedro I era uma aliança circunstancial, uma vez que eram grupos políticos com
projetos e linhas de ação distintas. Enquanto os moderados pretendiam circunscrever o
aumento das liberdades políticas e civis, com reformas que não iriam comprometer a
65
SOUZA, 2009, p. 180.
66
Apesar da existência de projetos políticos e deliberações políticos-institucionais, esses homens
influentes não se designavam como um grupo homogêneo e até 1837, não se pode falar, a rigor, em
partidos políticos no Brasil. Só a partir desse ano, formaram-se as duas agremiações que caracterizaram o
Segundo Reinado, a dos Conservadores, chamado Partido Conservador (saquaremas) e a dos Liberais,
chamado Partido Liberal (luzias). BASILE, Marcello. “O laboratório da nação: a era regencial (1831–
1840)”. In GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, volume II: 1831 – 1870. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

34
ordem social ou o regime estabelecido, os exaltados almejavam operar transformações
muito mais amplas, avançando sobre questões de ordem não só política, como também
social. Essa vertente mais radical do liberalismo era mais aberta a ampliação dos
direitos dos cidadãos e com mais receptividade para questões como o fim gradual da
escravidão e as violências sofridas pelas camadas pobres. Criticavam a vitaliciedade do
Senado, reivindicavam mais espaço no cenário político, a implantação de uma república
democrática e do sistema federalista. Embora defendessem demandas mais populares,
não eram exatamente essa camada mais baixa da população.67 Porém, tornava-se
inevitável a associação (e posteriormente acusações) com as iniciativas dessas camadas.
Ainda no Campo da Aclamação, em meio à multidão que exigia a abdicação, as
divergências políticas entre exaltados e moderados eram facilmente percebidas, “(...)
entre os gritos de morra o traidor podiam-se ouvir também diferentes vivas. Os
exaltados davam vivas à federação e a república. Os vivas a d. Pedro II eram dados
pelos moderados, em uma clara disputa pelo apoio político da multidão.”68
Além da oposição política entre exaltados e moderados, a fragilidade da Regência
consistia também no espectro da volta de d. Pedro I como imperador do Brasil, que
assombrou a Regência moderada até a sua morte em 1834. O grupo político formado
por seus apoiadores, conhecido como restauradores ou caramurus era contrário a
qualquer reforma na Constituição de 1824 e defendiam uma monarquia constitucional
firmemente centralizada. Tinham proeminência em ambitos político e econômicos,
principalmente com participação no Senado.69
A pouca identificação entre os membros da Regência eleita com a tropa e o povo
também era outro fator de fragilização do governo. Por esse cenário, a resolução mais
viável para os membros do governo era tentar promover a suspensão, ainda que
provisória, das oposições entre os grupos. A reintegração do ministério dos brasileiros
era indiscutível. Além da prudência em lidar com as tropas, decisiva no momento da
abdicação, mas reconhecidamente um perigo à ordem.
Essas ideias sobre prudência, moderação e ordem são partes dos princípios da
tendência política que se ascende ao poder após a abdicação forçada de d. Pedro I. A
moderação se auto representava como sinônimo de razão. Marco Morel aponta que uma

67
Sua composição social não era muito distinta dos demais liberais da época, havia entre eles
funcionários públicos, médicos, profissionais liberais e jornalistas. Ver: MOREL, Marco. As
transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial
1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005. p. 120.
68
SOUZA, 2008, p. 183.
69
BASILLE, 2009, p. 61.

35
postura moderada implicava um equilíbrio entre o antigo e o novo, um justo meio entre
o monárquico e a ação do parlamento.70 Como grupo político, os moderados começam a
se delinear a partir da primeira legislatura, que representava o início do mandato de
deputados e senadores em 1826. A participação na abdicação quase nos momentos
finais dava-se principalmente pela postura – na perspectiva moderada –
anticonstitucional de d. Pedro I, como a nomeação de portugueses aos mais altos cargos
do Estado. Sua composição social era diversa, composta, segundo o autor, por
comerciantes urbanos ligados ao abastecimento da corte. Contava também com parte do
setor militar e da imprensa. Grupos cuja projeção socioeconômica não correspondia à
participação almejada no governo imperial. Apoiavam uma modernização estável, sem
rupturas da ordem. A moderação seria, assim, defendiam os próprios moderados, uma
visão de mundo para distinguir o que é sábio e civilizado.
Não por acaso, a Regência tentava se firmar como resultado do congraçamento
das forças atuantes no 7 de abril. Perante o povo, o novo regime precisava legitimar-se.
Providências foram tomadas para acalmar as paixões, sossegar os espíritos e manter a
ordem pública. Porém, a manutenção desse espírito conciliatório em uma sociedade
atravessada por tanta desigualdade, revela-se desafiador.
Dias depois ao 7 de abril, na imprensa liberal exaltada, já se pontuava sobre os
rumos da nação. Como aponta Gladys Sabino, os radicais atacavam a permanência de
portugueses da administração de d. Pedro I nos quadros da Regência moderada e
constantemente defendiam que os cargos deveriam ser ocupados por brasileiros,
especialmente pela facção denominada “os patriotas que lutaram pelo 7 de Abril.”71
Ansiavam pela ampliação de sua participação no poder político do Estado após a
abdicação, contudo foram excluídos do governo central e dos principais cargos
administrativos da corte. Com o apoio majoritário das camadas pobres, os exaltados
também não tinham expressão no Parlamento, com proeminência dos moderados.72 O
grupo, então, só podia exercer oposição por meio da imprensa e de manifestações de

70
Suas referências eram pensadores liberais como Benjamin Constant, François Guizot, Montesquieu e
Locke. MOREL, 2005, p. 123.
71
RIBEIRO, Gladys. A radicalidade dos exaltados em questão: jornais e panfletos no período de 1831 a
1834. In: XXV Simpósio Nacional de História, História e Ética, 2009, Fortaleza. XXV\Simpósio Nacional
de História, História e Ética. Fortaleza: Fortaleza Editora, 2009. v. 1. p. 191-191.
72
Segundo Marcello Basile, composição política na segunda legislatura (1830-1833) na Câmara dos
Deputados estava distribuída de tal forma: dos 123 deputados (incluindo, além dos eleitos, os suplentes
que assumiram vaga) que atuaram na segunda legislatura, a tendência política de 89 (72,36%); destes,
47(52,81%) filiavam-se aos moderados; 35(39,33%) aos caramurus; e apenas 7,86% aos exaltados. Ver:
BASILE, 2009, p. 61.

36
rua. Assim, em fins de abril, voltava a se unir ao povo. Pequenos distúrbios, marcados
por provocações a antigas rivalidades com portugueses, insultos, agressões físicas e
quebra-quebras, recomeçam nas praças e ruas da cidade.73 Em meio aos tumultos,
sempre havia quem exigisse a destituição da Regência.74
Desta forma, em suas deliberações, é notória a preocupação do poder central em
manter o governo e a ordem pública. Com a lei aprovada pela Regência Trina
Provisória, em 6 de junho de 1831, o conceito do que era atividade criminosa foi
ampliado. Reunião de cinco ou mais pessoas, por exemplo, devia ser reprimida como
ajuntamento ilícito.75 Para os regentes, era essencial afastar o povo das ruas e fazer com
que a vida retomasse sua normalidade e que todos voltassem às suas atividades. Com o
estabelecimento da Regência Trina Permanente, em 17 de junho de 1831, composta
pelos deputados José da Costa Carvalho, João Bráulio Muniz, e novamente pelo
brigadeiro Francisco de Lima e Silva, a representação moderada se confirmava. Além
disso, uma nomeação importante fortaleceu o projeto político: a escolha de Diogo Feijó
para o ministério da Justiça. Figura proeminente dos ideais da facção política moderada,
suas determinações e procedimentos seriam demandas de extrema importância em uma
época de forte instabilidade em âmbitos políticos e sociais. Responsável ainda pelo
controle policial e pela manutenção da ordem pública, Feijó teve atuação enérgica na
repressão às agitações populares e aos levantes militares que ocorreram na capital e em
diversos pontos do país nesse período. A ele caberia colocar em vigor essas leis e
trabalhar a política do congraçamento.
Thomas Holloway destaca que, apesar do receio político, com os simpatizantes da
volta do imperador, o temor maior para o governo era provocado pelas revoltas de rua.
A ameaça latente de uma insurreição social evidenciava as regras de coexistência social,
defendida pela Regência moderada. Por meio do reforço das fronteiras a partir do corte
social feito pela renda.76
Atentos a isso, o constante estado de insubordinação das tropas de primeira linha
e das forças policiais, formada por gente mal paga e insatisfeita com os maus tratos, fez
com que o governo tentasse organizar um sistema policial que lhes assegurasse, em
qualquer circunstância, meio de intervir e controlar revoltas.

73
SOUZA, 2008, p. 184.
74
SOUZA, 2008, p. 185.
75
SOUZA, 2008, p. 191.
76
HOLLOWAY, 1997, p. 100.

37
A lei de 6 de junho 1831 também determinava a substituição do policiamento dos
soldados por Guardas Municipais, uma força civil onde as categorias de alistamento
refletem os pressupostos de seus criadores sobre as disposições das categorias sociais de
quem deveria defender e atuar nesse campo de batalha da guerra social.
Ao contrário do que ocorria no grosso da tropa do Exército, em cujas fileiras
podiam ser encontrados escravos fugidos, libertos e brancos extremamente pobres, os
guardas municipais deveriam ser recrutados por critério socioeconômicos e excluía de
imediato os libertos e quem tivesse sido condenado por algum crime. As unidades,
compostas de 25 a 30 homens seriam organizadas pelo juiz de paz em cada freguesia da
cidade, que seguiram as instruções do governo. Sua principal tarefa era conter
distúrbios, impedir brigas e prender criminosos, ficando sempre atentos a tramas de
desestabilização da ordem pública. Qualquer ação suspeita deveria ser com rapidez
notificada ao governo. Enquanto o poder público não tivesse condições de fornecer o
equipamento necessário, os guardas deveriam se apresentar ao serviço com as armas de
que pudessem compor.
A preocupação com a lealdade das unidades militares era justificada, como
provou a rebelião da 26° Batalhão de Infantaria do Exército regular. Iniciada no dia 12
de julho, uma semana depois de Diogo Feijó ter assumido o cargo. O ministro da Justiça
rapidamente acionou a recém-criada Guarda Municipal para seu primeiro teste. Mas, a
situação era delicada. A força total de um batalhão compreendia 572 homens, o governo
não dispunha imediatamente de um efetivo preparado para conter a situação. A tropa
protestava contra os maus tratos e os castigos corporais nos quartéis. Sobre a promessa
do governo de que não haveria represálias, aceitou ser transferida para a Bahia. 77 Já no
dia 14 de julho, enquanto o governo resolvia a situação com os rebeldes do 26º Batalhão
ao transportar os soldados sublevados em navios para fora do Rio de Janeiro, tropas da
Guarda Real de Polícia, dedicadas ao policiamento urbano da corte, dão início a um
novo motim. Na noite anterior, os soldados amotinados tinham efetuado ronda junto
com a polícia, que também sofria com os castigos corporais por parte de seus
comandantes. Essa conjuntura levou também a Guarda Real de Polícia a se rebelar. Os
policiais abandonaram quartéis, contrariando ordens expressas, tomou de “assalto as
ruas da cidade, espalhando o pânico” como relatam as autoridades. As unidades da 1 ª e
2ª companhias da polícia marcharam para o Campo de Santana em franca rebelião,

77
SOUZA, 2008, p. 194.

38
acompanhadas de civis, exigindo a volta do 26° Batalhão e o fim dos castigos corporais
militares.78 O então comandante militar da capital, general José Joaquim de Lima e
Silva, solicitou que tropas regulares fossem conter os soldados rebeldes. Porém, boa
parte das tropas do Exército juntou-se aos colegas da polícia em oposição ao governo.
As unidades militares do Rio de Janeiro inclusive sua força policial, engrossadas por
civis, rebelaram-se contra o governo e em favor dos exaltados.79 As imposições
realizadas pelos rebeldes eram em sua maioria de caráter antilusitano, com a exigência
da deportação de altos oficiais do Exército.
Com a maior parte das unidades militares da capital, incluindo a sua força
policial, em franca rebelião, as autoridades indicam que a cidade estava "mergulhada no
terror". Registraram-se homicídios e roubos cometidos em vários pontos da corte.
Grupos rebeldes chegaram a cercar o Paço Imperial. Os recém organizados Guardas
Municipais, nas palavras do próprio Feijó, "retirara-se em pânico", nada podendo fazer
para restabelecer a ordem por estarem precariamente armados e lhes faltar disciplina.
Buscando remediar a situação, em 17 de julho, o Parlamento tentou reorganizar a
Guarda Municipal, ao ampliar a habilitação ao serviço, passando a aceitar numerosos
jovens que não podiam votar, mas que pertenciam à mesma categoria social dos demais
membros. Outra medida de emergência foi a criação de uma unidade específica,
constituída de "oficiais de confiança", para o patrulhamento da capital. Thomas
Holloway destaca que essa força ficou conhecida por diversos nomes, Batalhão dos
Oficiais-Soldados, Voluntários da Pátria, Sagrado Batalhão e Guerreiros da Pátria.80
Esses oficiais, tidos como leais, abriram mão dos seus status para assumir a função de
soldados comuns. A força militar cresceu em poucos dias, chegando a contar com mais
de 400 membros do corpo de oficiais profissionais. Sua prioridade imediata foi retomar
o controle dos edifícios públicos situados ao longo da principal área portuária do Rio,
"incluindo o Paço Imperial, a Câmara dos Deputados, a Alfândega, o porto e os
armazéns adjacentes."
Os oficiais leais patrulhavam a cidade, agora na companhia dos civis da Guarda
Municipal reorganizados e tranquilizados. Assim, com o transcorrer dos dias a ameaça
por parte dos rebeldes que permaneciam em armas, sem liderança e cada vez mais
isolados, diminui consideravelmente. Em 19 de julho, o Parlamento sentiu-se bastante

78
HOLLOWAY, 1997, p. 80.
79
HOLLOWAY, 1997, p. 81.
80
HOLLOWAY, 1997, p. 81.

39
confiante para aprovar uma resolução que rejeitava as exigências dos rebeldes como
"absurdas e inconstitucionais" e no dia seguinte o governo conseguiu reunir forças
suficiente para investir sobre o Campo de Santana e prender os que lá permaneciam.
Embora, a ordem tenha se restabelecido, o governo e seus aliados testemunharam
o seu controle seriamente ameaçados, principalmente, por quem deveria proteger. O
aparelho repressivo da cidade encontrava-se desestruturado. Contudo, o país não podia
permanecer sem a ação de um aparato repressivo que pudesse atuar em todo o território
nacional, ou seja, que pudesse fazer com que a ordem legal e administrativa fosse
garantida em todas as regiões do país, em especial a corte fluminense. Foi nesse
contexto que se organizou a Guarda Nacional.

3.3. Reforma das forças militares e a criação da Guarda Nacional

A "crise de julho", como ficaram conhecidas as manifestações na corte,


evidenciou que as forças militares eram instáveis e insidiosas ao governo. Até aquele
momento, a estrutura militar oficial atuante tinha sido definida pela Constituição de
1824. Mantinha os moldes coloniais, que estabeleceram suas três linhas básicas: a
primeira formada pela tropa regular e paga, enquanto a segunda e a terceira eram
constituídas de Milícias e Ordenanças auxiliares e gratuitas, além da força policial.
Definindo-se desse modo, as três categorias militares de terra – Exército, Milícias e
Guardas Policiais.81 O Exército era destinado à defesa das fronteiras, cabia às Milícias a
manutenção da ordem nas cidades quando fosse necessário e as forças policiais
dedicavam-se ao policiamento urbano, segurança dos indivíduos e a prisão de
criminosos.
Além de serem vistas como antiquadas, as forças militares existentes pertenciam a
um outro modelo político, cabendo, agora, aos moderados estabelecer suas próprias
diretrizes sobre o aparelho repressivo. A reorganização dessas forças militares, portanto,
faz parte do processo de mudanças ocorrido a partir de 1831 com a Regência moderada,
em oposição ao poder central de d. Pedro I e buscavam evitar o que denominavam de
caos ou anarquia. Segundo Marco Morel, anarquia significa a libertação de qualquer
tipo de poder superior, fosse ele ideológico, político, econômico, jurídico ou social. Em
outras palavras, a anarquia era entendida como a possibilidade do homem usufruir de

81
BRETAS, 2013, p. 3.

40
toda a sua liberdade, sem limitação legislativa ou governamental. Tal ausência de
limites, e principalmente ausência de uma instituição forte que pudesse acalmar a
sociedade.82
A estrutura das forças militares, sobretudo o Exército regular, eram reconhecidas
pela Regência moderada como vacilante. Sua alta oficialidade ainda contava com
considerável número de portugueses fiéis a d. Pedro I. O grosso da tropa era formada
por gente mal paga e insatisfeita há tempos com os castigos corporais. Em sua
composição social, como já apontamos, encontravam-se indivíduos das camadas mais
baixa da sociedade. A desconfiança e a desmobilização do Exército, portanto, obedecia
a um movimento duplo: debilitar instituições identificadas a d. Pedro I, pelo temor de
seu possível retorno, e controlar as insurreições correntes em suas fileiras inferiores.
Outra questão, para a elite liberal dirigente, era que a existência de uma força
pública como o Exército, permanente e numeroso, onerava os cofres públicos. Assim,
uma das medidas da Regência provisória foi o decreto de 4 de maio de 1831,
confirmando o efetivo de 12 mil homens para toda nação.83 Uma redução drástica para
as fileiras que já haviam chegado a 30 mil homens e consumia dois terços do orçamento
do poder central.84 No decorrer da atuação de Diogo Feijó como ministro da Justiça,
segundo Marcos Bretas, a força de primeira linha, com oficiais sem soldados,
“praticamente desaparece no Rio de Janeiro.”85
Na instituição designada para o policiamento urbano no Rio de Janeiro, a reação
da Regência moderada é ainda mais drástica. As polícias, civil e militar do Império,
derivaram da Guarda Real de Polícia, órgão da Intendência Geral de Polícia, criada em
1808, sendo a Guarda instituída no ano seguinte. Os quadros de oficiais e soldados da
Guarda Real de Polícia provinham das fileiras do Exército, e eram constantemente
acusados de violência e brutalidade por seus métodos.
As praças saiam das camadas sociais inferiores livres e eram como mostrou o
motim de 14 de julho, alvo também da repressão. A instituição representava a
formalização de práticas rejeitadas pela mudança ideológica e a experimentação
institucional da Regência. Para Diogo Feijó, a brutalidade e desordem que presenciava
nos meses após abdicação normalmente começavam nos órgãos que dirigiam as forças

82
MOREL, 2005, p. 29.
83
Decreto de 4 de maio 1831. Colleção de Leis do Império. Actos do Poder Executivo. Parte II. p.7
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>.
Acesso em: 25 fev. 2018.
84
HOLLOWAY, 1997, p. 75.
85
BRETAS, 2013, p. 3.

41
militares. A violência praticada nos seus métodos de repressão evidenciava esse
cenário.86
Em 17 de julho de 1831, a Assembleia Geral aprovou a lei que abolia a Guarda
Real de Polícia. A insubordinação coletiva provocada no motim não seria tolerada pelas
autoridades do governo. “Seus oficiais foram redistribuídos pelas unidades do Exército
regular, os praças foram dispensados do serviço e receberam transporte gratuito para
retornar às suas províncias.”87
Ao mesmo tempo que havia a necessidade da desarticulação do que havia sido
herdado do governo anterior, a intensa ocorrência de insurreições violentas provaram
mais uma vez que a ordem no período era frágil, tanto a política, como a social. Um
novo corpo remunerado, permanente e militar foi formado, porém com outras bases.
Desde a criação da Guarda Municipal, o projeto liberal moderado vê de forma
satisfatória estabelecer instrumentos de coerção designados através dos critérios
socioeconômicos. A nova corporação policial profissional, o Corpo de Guardas
Municipais Permanentes,88 destaca também esse princípio, o recrutamento para suas
fileiras era censitário e voluntário. Baseado no crescente temor das insurreições e na
percepção de que, ao designar critérios socioeconômicos, assegurava uma maior
credibilidade às instituições repressivas. Os “Permanentes”, modo como os moradores
da corte denominavam informalmente os guardas, tratava-se de um substituto funcional
da Guarda Real de Polícia, mas para afastar a indesejável associação com a antiga
instituição, famoso pela violência assim como aponta Adriana Barreto de Souza, não foi
incluída o termo polícia. Um ponto que demarca uma mudança decisiva era a
remuneração. Enquanto um soldado da Guarda Real de Polícia em julho recebia 2$400
mensais, um permanente receberia em novembro 18$000. Esse rendimento, sem dúvida,
atraia para as fileiras da guarda integrantes das camadas inferiores, porém agora pessoas
do povo, e não mais a plebe. Cada vez mais se delineava por parte desta elite que a crise
que comprometia toda importância política e social do Rio de Janeiro, capital do
Império, era pela ruptura das fronteiras sociais. Ao elevar o nível socioeconômico dos
soldados da nova guarda policial, Feijó mostrava que para a Regência, não bastava
apenas reprimir, interessava também conter a brutalidade generalizada, desregrada e
autoritária daqueles dias.

86
SOUZA, 2008, p. 218.
87
HOLLOWAY, 1997, p. 82.
88
SOUZA, 2008, p. 216.

42
A instituição modelo desse projeto será, sem dúvida, a instituição militar da
Guarda Nacional. Ao passo que se confirmava a importância do reforço das obrigações
cívicas em prol da defesa da propriedade e da ordem por parte dos cidadãos, o
despreparo da Guarda Municipal em conduzir as ações criminosas corrobora a ideia da
criação de uma força mais bem armada e preparada militarmente.
A discussão sobre a criação de uma Guarda Nacional entusiasmava setores da
sociedade desde o mês maio. Como se tratava de uma força nacional, o projeto suscitou
muita discussão na Câmara dos Deputados. Em 18 de agosto de 1831, o Parlamento
autorizou a organização da Guarda Nacional para a defesa da integridade do império,
extinguindo – no mesmo decreto – os antigos corpos de Milícias, Ordenanças e Guardas
Municipais. A ideia de criação da Guarda Nacional teve como modelo principal e
incumbências quase idênticas, a instituição francesa da Garde Nationale, uma milícia
composta por cidadãos comuns armados.89 Prevalecia, assim, a convicção de que as
milícias civis, por serem formadas unicamente de cidadãos que se armavam com o
intuito de defender a sua própria liberdade, eram mais apropriadas para a manutenção da
ordem interna – cabendo ao Exército apenas a função de combater os inimigos externos,
com o auxílio quando fosse necessário.90
Uma instituição paramilitar era parte dos princípios liberais, posta em prática pela
facção moderada. A unidade em torno dos princípios liberais, desde do primeiro
reinado, tinha suas raízes no combate ao poder central, por sua tradicional associação
com um imperador estrangeiro e tirânico. A luta liberal era entendida, assim como uma
luta de brasileiros pela descentralização política e administrativa a d. Pedro I. A tarefa
da Regência era enfraquecer instituições políticos-militares diretamente associadas ao
antigo imperador e, por meio dessas estratégias, afastar definitivamente a ameaça de um
possível retorno ao Brasil.91 Sabiam os liberais que o Exército, na forma que lhe
imprimiu d. Pedro I, não seria apenas elemento propício à anarquia, mas marcaria a
atividade política de seus aliados. Logo, a Guarda Nacional estrutura-se em passo
paralelo ao enfraquecimento da tropa regular.
Já no poder, as demandas enunciadas na lei revelam as múltiplas diligencias que
os liberais moderados idealizavam para a Guarda. Nas considerações iniciais da lei, se

89
SILVA, Wellington Barbosa. Entre a liturgia e o salário: a formação dos aparatos policiais no Recife
do século XIX (1830-1850). 2003, 278 f. Tese (Doutorado em História), Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco, 2003. p. 56.
90
SILVA, 2003, p. 56.
91
SOUZA, 2008, p. 180.

43
estabelece o dever de defender a Constituição e a liberdade, a independência e
integridade da nação. A Guarda Nacional deveria "prestar obediência à lei e preservar
ou restabelecer a ordem e a tranquilidade pública; auxiliar o Exército de linha na defesa
das fronteiras, e costas”, mas exercendo "serviço ordinário dentro do Município."92
Desta forma, assumiu, também a função de força policial interna. Ademais, na
elaboração legal, continha uma advertência categórica contra o envolvimento político da
Guarda, declarando que toda ação independente que viesse a empreender com relação
aos negócios públicos constituiria um "ataque à liberdade e crime contra a
Constituição."93
Era uma milícia civil e ficava assim a cargo do ministério civil da Justiça e não do
Ministério de Guerra como as forças armadas. Também é significativa a deliberação
onde o governo poderia extinguir a instituição a qualquer momento, as autoridades da
Regência estavam cientes do risco que implicava a criação de uma força armada capaz
de agir por conta própria ou até mesmo voltar-se contra os seus criadores. Em outra
diligência consta que os Guardas Nacionais não poderão tomar em armas, nem se
formar em corpo sem ordem e sem requisição da autoridade civil.94
Vale destacar demandas importantes sobre os critérios de alistamento. A
princípio, todo cidadão fisicamente apto do sexo masculino, entre 21 e 60 anos, com
renda para ser votantes (100$000) era obrigado a se tornar membro da guarda. Nas
quatro maiores cidades do Brasil, entre elas o Rio de Janeiro, o requisito mínimo de
ingresso era o de ser eleitor, ou seja, o de possuir uma renda mínima anual de 200$000.
Salvo exceções como funcionários públicos, militares em serviço ativo, clérigos,
agentes carcerários e membros da polícia, o serviço na Guarda Nacional se tornou uma
das obrigações do cidadão, como era o voto. A participação política tal como o ingresso
na Guarda, corroborava socialmente a noção de “distinção” e “identidade” para esses
homens cidadãos. Os guardas nacionais, também, como previa o artigo nono eram
isentos do recrutamento nas tropas de primeira linha, desde muito vista com rejeição
pelo serviço e por quem integrava o grosso da tropa. Era o meio de destacar a diferença

92
Lei de 18 de agosto de 1831. Colleção das Leis do Império. p.49 Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>.
93
Lei de 18 de agosto de 1831. Colleção das Leis do Império. p.49 . Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em: 04 abr
2018.
94
Lei de 18 de agosto de 1831. Colleção das Leis do Império. p.49 Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em: 04 abr
2018.

44
que havia entre eles e o restante da população, como libertos, escravos e brancos sem
renda.
O alistamento dos guardas nacionais era feito por inscrição domiciliar e, no caso
de mudança, o guarda nacional era excluído do batalhão ou companhia onde estava
conscrito, devendo alistar-se na província ou freguesia onde havia fixado nova
residência. Em janeiro de cada ano, os juízes de paz organizavam e presidiam o
Conselho de Qualificação, que era a instância encarregada de fazer o alistamento dos
guardas nacionais – determinando, pois, quem devia servir na reserva e quem ficava
isento de prestar o serviço ativo. O referido conselho era composto, além do próprio juiz
de paz, por seis dos eleitores mais votados no distrito.95 Quando não houvesse o número
exigido de eleitores, o juiz de paz poderia completá-lo convocando outros cidadãos
“idôneos.”96 O processo de qualificação, implicava assim, num grande esforço de
recenseamento dos cidadãos apropriados e passíveis de serem alistados na Guarda
Nacional.
Em um batalhão de infantaria, o cidadão alistado tinha, teoricamente, que custear
apenas o seu fardamento. No caso da cavalaria, os custos eram bem maiores. Além de
ser o responsável pela compra do fardamento, um cidadão alistado na cavalaria deveria
ter posses e rendas pessoais suficientes para comprar, equipar e manter a sua própria
cavalgadura. Condição que, inclusive, acabou impossibilitando a organização de corpos
de cavalaria nas freguesias onde a pobreza era maior. No que concerne ao aspecto
operacional, a Guarda Nacional estava organizada em serviço ativo e serviço da reserva.
As substituições e as dispensas, assim como alistamento eram decididos pelas juntas
locais presididas pelos juízes de paz, cargo que também era parte dos princípios liberais.
Criado em 1827, era responsável por exercer a vigilância sobre a jurisdição, desfazer
reuniões ilegais, reunir provas de crimes e prender e julgar os infratores. Seu exercício
não era remunerado, mas agregava grande prestígio. O mandato do juiz de paz como
agente da polícia e juiz local tinha legitimidade na eleição de cidadãos. Essa iniciativa
liberal também era uma estratégia de enfraquecer a tradicional elite de magistrados cuja
influencia obtida relacionava-se a uma estreita e duradoura relação com a Coroa.

95
Lei de 25 de outubro de 1832. Colleção das Leis do Império. p.50. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em: 20 de
fev. 2018.
96
Lei de 25 de outubro de 1832. Colleção das Leis do Império. p.50 Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em: 20 de
fev. 2018.

45
O decreto de 25 de outubro de 1832 alterou o limite de idade que passou a ser de
mais de 18 anos e menos de 60 anos. O decreto também garantia ainda aos guardas
nacionais alistados o direito de serem substituídos por parentes próximos.97 Uma
característica importante da Guarda, de caráter liberal, era a democracia interna.
Também era um fator que a distinguia das instituições militares regulares. Este modelo
se caracteriza pela eleição de seus oficiais98– exceto os postos mais elevados de
comandante de legião e de província – o que lhe conferia, ao menos legalmente, um
caráter democrático e representativo.99
Esta condição refletia a orientação dos liberais moderados, onde esperavam que
homens qualificados para o serviço incorporassem as virtudes da cidadania responsável.
A historiografia sobre a instituição trata a experiência com desconfiança, a partir da
perspectiva de possíveis manipulações nas eleições internas por parte dos oficiais
superiores ou mesmo de autoridades locais como o juiz de paz. 100 Além disso, apontam
que muitos dos eleitos para o oficialato eram os candidatos mais tolerantes em matéria
de disciplina interna ou os mais dispostos a atenuar a carga de serviço na guarda para os
subordinados que os elegeram. A perda de seu caráter democrático após sua reforma em
1850 foi uma forma de concretizar a gradual exigência de disciplina interna. A partir
desta lei, os oficiais superiores dos batalhões da instituição passaram a ser nomeados
pelo presidente da província e escolhidos dentre os habitantes da cidade, da mesma
forma em que o eram os chefes de legião, dando lugar a um processo de aristocratização
dos guardas nacionais.101
Ainda sobre o processo de organização, a força era regularmente convocada para
o patrulhamento da cidade, como já apontamos. A maioria da tropa, nas fileiras de
oficiais e praças, principalmente nos batalhões instalados na corte, tinha pertencido às
Milícias e Ordenanças e à recente extinta Guarda Municipal. O que possibilitou uma
formação inicial mais bem treinada e preparada. Porém, esta demanda de policiamento
cotidiana para civis sempre foi vista como ponto de crítica para Diogo Feijó, uma vez

97
Lei de 25 de outubro de 1832. Colleção das Leis do Império. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em: 20 de
fev. 2018.
98
Nestas ocasiões, os guardas nacionais reuniam-se, desarmados, em cada paróquia ou curato e
escolhiam, através de escrutínio individual e secreto, os oficiais inferiores e cabos – indo a eleição até o
posto de 1.º sargento. Ver: SILVA, 2003, p. 70.
99
SILVA, 2003, p. 70.
100
VER URICOECHEA,1978, p.75; SILVA, 2003, p. 85; COSTA, 2013, p.120.
101
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã – A Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1977.

46
que o tiravam das suas atividades rentáveis, e acreditava ser importante a criação de
uma força pública remunerada, realizada com a Guarda Permanente.102
Neste percurso de reformulação do aparelho repressivo e judicial, a transição
institucional da política liberal moderada não estaria completa sem um novo código de
processo penal sancionado pela Regência em 29 de novembro de 1832.103 Estabeleceu,
assim, uma nova hierarquia com jurisdições circunscritas, determinou os procedimentos
para reunir provas, apresentar queixas, efetuar prisões e indiciar, recursos e os passos
para apelação. Também se confirmava a ação do habeas corpus. A sanção do sistema de
júri delineava mais um compromisso liberal e dava ao código do processo criminal
juntamente com as deliberações do código de 1830, "um código de diretrizes modernas
e liberais nos campos do direito penal e dos procedimentos judiciais.”104 Embora,
muitas disposições encontravam barreiras nas autoridades, como a grande influencia do
juízes de paz e das redes institucionais formadas dentro de um contexto de profundo
desnível social.
O estabelecimento dessas mudanças no aparelho de repressão ainda que
formalmente tornava-se parte de um fortalecimento pelas necessidades políticas e
sociais dos partidários liberais moderados, principalmente, no que tange a organização
judicial, na figura do então ministro da Justiça, Diogo Feijó. Manifestava-se nessas
demandas institucionais sobre os aparelhos repressivos a combinação das ideias mais
avançadas do liberalismo com ações que buscavam romper com as forças do antigo
imperador.
Ademais, Diogo Feijó percebeu que controlar a capital significava mais do que
conter os adversários políticos do regime. O que tornava as insurreições políticas uma
ameaça latente era insurreição social que as mesmas poderiam manifestar-se. O
governo acreditava, assim como expõe Thomas Holloway que o “problema crônico do
crime comum- furto, roubo, assalto e homicídio" e o constante desafio de controlar a
população escrava e pobre da cidade assumiram, de modo geral, proporções alarmantes
nas desordens políticas que levaram à abdicação e a ela seguiram, culminando na quase
ausência da autoridade do Estado na crise de julho.
A obra da Regência, conduzida pelos moderados, não se esgota no afastamento
dos exaltados e na anulação dos restauradores. Para subsistir devia libertar-se da ameaça

102
HOLLOWAY, 1997, p. 112.
103
HOLLOWAY, 1997, p. 101.
104
BASILE, 2009, p. 70.

47
social vinda das ruas e buscar uma base estável de poder. Ainda, segundo Holloway, o
ministro da Justiça distinguia claramente os ofensores da ordem pública dos agitadores
políticos, mas a paralisação política da capital criara um ambiente “em que os vadios e
os arruaceiros prosperaram.” Para Feijó, seus aliados e a imprensa moderada, o
sentimento de insegurança com as atividades criminosas cresciam em períodos de
incerteza institucional.
Logo, suas reformas levaram Feijó a enredar-se nas contradições do que se
poderia chamar de liberalismo autoritário. O ministro da Justiça representava o
liberalismo que procurara eliminar o exercício do poder pelo monarca absolutista da era
precedente, a fim de que os membros de sua facção pudessem perseguir seus interesses
livres de restrições e exigências impostas arbitrariamente. Porém, a consciência da
ameaça social vinda de baixo, exacerbada pelos acontecimentos políticos nas ruas do
Rio de Janeiro em 1831, levou-o a ser o arquiteto implacável de uma estrutura policial
moldada, pelas necessidades do grupo que assumira o poder no Brasil, após o
absolutismo de d. Pedro I. As condições das ruas do Rio, num cenário de intensas
manifestações políticas e sublevações militares, a real ameaça era compreendida na
desagregação social. A tarefa do policiamento era controlar as massas e sufocar as
rebeliões armadas, mas também manter um ambiente propício à economia da cidade, e
assim afastar a opinião pública sobre a desordem ao tornar as ruas seguras.105
Com o sistema repressivo organizado, era preciso disciplinar também os agentes
da ordem. Para isso nada melhor que reafirmar esse sentimento nos cidadãos que tinham
algo a defender. A Guarda Nacional se destaca assim por esse viés. O serviço não
remunerado representava que suas rendas viessem dos ofícios paralelos, sugeria, assim
que seus homens não estariam nas ruas, como escravos e pobres livres. Esses grupos
marginalizados sejam pela circunstância escravista ou pela extrema pobreza, embora
fossem a base mercantil e produtos da colonização, encontravam-se desvinculados de
modo direto das atividades que conferiam sentido à ocupação e de importância do
território. Imersos nessa situação esses homens expressavam por meio da violência o
que era negado em seu cotidiano:
Governo, trabalho e desordem - os mundos constitutivos do Império
do Brasil, mundos que se tangenciavam, por vezes se interpenetravam,
mas que não deveriam confundir-se, por meio da diluição de suas
fronteiras, mesmo que os componentes da "boa sociedade" fossem

105
HOLLOWAY, 1997, p. 80.

48
obrigados a recorrer à repressão mais sangrenta a fim de evitar que tal
acontecesse.106

Mais do que desordem e revoltas uma noção se esclarecia, a marca da cidadania


que cumpria o papel de reafirmar as diferenças na sociedade imperial, como o atributo
racial, o grau de instrução, a propriedade de escravos e, sobretudo, os vínculos pessoais
que cada qual conseguia estabelecer. A Regência moderada empenhava-se na
conservação da instituição monárquica e dos mundos distintos que integravam a
sociedade. Desta forma, a formação das instituições policiais do Brasil acabou por ser
parte integrante desse projeto. Modificar e substituir o que havia sido herdado da ordem
anterior tornavam-se não apenas uma forma de apagar a expressão de atraso, como uma
necessidade para o cotidiano de ordem da sociedade e da condução política da elite
moderada dirigente.
Assim, por este percurso, conseguimos apontar os objetivos gerais, com a criação
e reformas de instituições, a partir das necessidades dos membros da elite brasileira que
assumiu a direção do Brasil, no momento da abdicação de d. Pedro I. Esse caminho
também pode ser compreendido, supostamente por ser um caminho autônomo, para o
Brasil, uma vez que, a elite brasileira passa a cuidar de seus próprios assuntos internos e
a criar instituições e os procedimentos da nacionalidade independente. A frente desse
movimento estava grupos políticos, com influências liberais que marcava uma forte
oposição antilusitano. Estas facções políticas (moderados e exaltados) com projetos e
linhas de ação distintas uniram e formaram um bloco de oposição a d. Pedro I.
Realizada a abdicação do imperador, o que se seguiu foi a convicção de que as
revoltas e insurreições deveriam ser sufocadas para impedir que os opositores da facção
liberal se fortalecessem. Além disso, a dissociação entre moderados e exaltados, trouxe
um clima de grande instabilidade. Tornava a cidade vulnerável e trazia assim, o medo e
a instabilidade que eram ruins tanto para a economia como ameaçava a ordenação da
sociedade, expostos a desagregação por escravos e pobres livres. Para a condução da
nação cada um deveria saber e não esquecer o seu lugar. Nesse sentido as forças
policiais criadas nesse momento de transição não eram apenas criações partidárias dos
liberais moderados, indicando a superioridade sobre os radicais (exaltados). Era
necessário evocar o sentimento de pertença e de cidadão daqueles que tinham algo a
defender. No que entendemos ser a marca dessa ação e assim percorremos algumas

106
MATTOS, 1990, p. 121.

49
diretrizes, foi à criação da Guarda Nacional. Instituição símbolo dessa elite política, ao
passo que significava o avanço liberal contraditoriamente reforçava as relações
baseados na influencia e nos critérios pessoais.

3.4. Referencial Bibliográfico


Fonte:

Colleção das Leis do Império. Disponível em:


<http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>

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