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INSTITUTO PAULISTA DE SEXUALIDADE - InPaSex/SP

Especialização em Sexologia Aplicada

Fernando de Rezende Eugênio Araújo Aguiar

DA FANTASIA À REALIDADE:
PERFORMANCES E TRANSGRESSÕES DE GÊNERO EM ANIMAÇÕES DISNEY
COMO CONDICIONANTES MORAIS DO PÚBLICO INFANTO-JUVENIL

SÃO PAULO
2021

Fernando de Rezende Eugênio Araújo Aguiar

DA FANTASIA À REALIDADE:
PERFORMANCES E TRANSGRESSÕES DE GÊNERO EM ANIMAÇÕES DISNEY
COMO CONDICIONANTES MORAIS DO PÚBLICO INFANTO-JUVENIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como


requisito para obtenção do título de Sexólogo junto ao
Instituto Paulista de Sexualidade – InPaSex/São Paulo no
curso de Especialização em Sexologia Aplicada – Área do
Conhecimento Saúde e Bem-estar social, sob orientação da
Profª Ms. Vera Lúcia Vaccari.

SÃO PAULO
2021

RESUMO

Este artigo buscou analisar dez títulos de filmes produzidos pelos estúdios cinematográficos
Disney, bem como artigos a respeito das obras escolhidas, que exibissem papeis de gênero
socialmente aceitáveis e desviantes atribuídos aos vilões de cada narrativa. Através de análise
estética das obras selecionadas, fez-se um comparativo entre os estereótipos que se repetem
em diferentes figuras de heróis e princesas, além de elencar marcos desviantes de
performance de gênero tidos pelos vilões. Ao correlacionar os artigos analisados com as obras
estudadas, ficou evidente um padrão doutrinador de moral embutido nos filmes da produtora e
que se repete em diversas obras. Este padrão visa reforçar o que se entende por “natural" no
contexto da heteronormatividade, bem como denunciar os comportamentos excêntricos e
perversos dos antagonistas. Dada a grande relevância cultural que os estúdios Disney
representam para o público infanto-juvenil, essas manifestações distintas de performance têm
efeito condicionador negativo sobre a forma como o público passa a compreender e julgar
personalidades gênero-discordantes nas telas e no mundo real. Diante desse efeito
historicamente consolidado nas obras do estúdio, faz-se necessária uma nova forma de pensar
a respeito de como a diversidade pode e deve ser abordada para as futuras gerações nas
animações infantis.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Disney. Heróis. Vilões.

ABSTRACT

This article sought to analyse ten film titles produced by Disney film studios, as well as
articles about the chosen works, which exhibited socially acceptable and deviant gender roles
attributed to the villains of each narrative. Through an aesthetic analysis of the selected
works, a comparison was made between the stereotypes that are repeated in different figures
of heroes and princesses, in addition to listing deviant milestones of gender performance held
by the villains. When correlating the articles analysed with the works studied, a doctrinal
pattern of morality embedded in the producer's films was evident and which is repeated in
several works. This standard aims to reinforce what is understood by "natural" in the context
of heteronormativity, as well as to denounce the eccentric and perverse behaviours of
antagonists. Given the great cultural relevance that Disney studios represent for children and
adolescents, these distinct manifestations of performance have a negative conditioning effect
on the way the audience comes to understand and judge gender-discordant personalities on
screen and in the real world. Given this historically consolidated effect on the studio's works,
a new way of thinking about how the diversity can and should be addressed for future
generations in children's animations is necessary.

KEYWORDS: Gender. Disney. Heroes. Villains

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO……………………………………………………………………… 05
2. MÉTODO…………………………………………………………………………..… 06
2.1. Delineamento do estudo ……………………………………………………………. 06
2.2. Objetivos……………………………………………………………………….…… 06
2.3. Objetivos específicos……………………………………………………..………… 06
2.4. Critério de seleção das obras abordadas………………………………………….… 07
3. DISCUSSÃO………………………………………………………………………… 08
3.1. Gênero: um conceito em construção…………………………………………..…… 08
3.2. Heróis, princesas e a heteronormatividade reforçada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 08
3.3. Vilões: cartas fora do baralho cis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
3.4. A diversidade em cena transferida para a realidade……………………………..… 14
4. CONCLUSÕES……………..……………………………………………………… 15
5. REFERÊNCIAS………………………………………………………………….…. 16

1. INTRODUÇÃO

Fundada em outubro de 1926, a Companhia Walt Disney (The Walt Disney Company)
é uma multinacional norteamericana de entretenimento criada pelos irmãos Walt e Roy
Disney. Mais famosos por serem a maior referência em filmes de animação e de computação
gráfica, os estúdios Disney consolidaram um verdadeiro império cultural, produzindo filmes e
seriados, além de expandirem suas atividades para parques de diversões temáticos distribuídos
pelo mundo todo.
Pioneiros em suas produções cinematográficas em animação, os estúdios Disney
sempre se sobressaíram na qualidade de suas narrativas e nas tecnologias inovadoras
investidas, que abriram caminhos para que outros estúdios de animação surgissem
posteriormente. Em 1937, deram início à sequência de sucessos de bilheterias com Branca de
Neve e os Sete Anões, primeira animação da empresa, que viria a conquistar gerações de fãs
de todas as idades, ao longo de décadas, no mundo do cinema.
De todas as gerações que se encantaram com o "jeito Disney de fazer cinema",
certamente o público infanto-juvenil foi e é, até hoje, o maior foco dos produtores do estúdio.
Por meio de narrativas fantasiosas, estética colorida e números musicais diversos, as
animações Disney criaram a receita perfeita para cativar os jovens espectadores e fundar uma
legião de fãs. E é indiscutível que as mensagens e concepções veiculadas pelo estúdio através
de suas animações viriam a repercutir profunda e imutavelmente no processo de formação de
opinião das crianças.
Diante da diversidade de narrativas e de personagens exploradas no universo Disney, é
inegável que as mais variadas características e personalidades abordadas produzam efeitos
distintos nas percepções de gênero e de seus papéis sociais no imaginário do público infanto-
juvenil. E é sobre estes reflexos que este trabalho pretende se pautar.
Tendo em vista o caráter educativo dessas obras no desenvolvimento social de
crianças, faz-se necessário explorar mais atentamente os impactos de figuras de heróis,
princesas e vilões na formação de opinião de seus telespectadores, com ênfase nas
construções de imagem e gênero de suas personagens principais.

2. MÉTODO

2.1. Delineamento do estudo:


O presente estudo foi elaborado por uma revisão literária acerca do tema, tendo
como proposta destacar exemplos relevantes que sejam capazes de estabelecer nítidas
discrepâncias estéticas e de caráter entre heróis e vilões nos longa-metragens
produzidos pelos estúdios Disney. Para tal, foram selecionadas e analisadas
publicações pertinentes ao escopo deste trabalho, além da escolha de dez filmes que
ilustrassem as diferentes representações de gênero, bem como suas transgressões, no
universo fantasioso da empresa em questão.

2.2. Objetivos:

Discutir, a partir da análise das obras citadas e de artigos de opinião, como os


diferentes aspectos estéticos e de personalidade propositalmente atribuídos a heróis e
vilões interferem no processo de formação de opinião de indivíduos jovens.

2.3. Objetivos específicos:

a) Elucidar o conceito teórico de gênero dentro da área do conhecimento da


sexualidade humana e explorar como se dá o estabelecimento de padrões
normativos, bem como abordar os desafios daqueles que rompem com as
expectativas socialmente impostas;

b) Investigar como a forma de enxergar os papéis sociais feminino e masculino


permeia as narrativas dos longa-metragens dos estúdios Disney, de forma a
reforçar os padrões heteronormativos de nossa sociedade;

c) Examinar como a representação das figuras vilanescas de tais obras se insere na


norma implícita que rege o que se julga “aceitável" ou “desviante" dentro das
obras selecionadas;

d) Analisar e debater como performances transgressoras de gênero entre as


personagens estudadas podem refletir sobre a forma como crianças e jovens
espectadores aceitam ou rejeitam a diversidade sexual, transferindo estas
impressões das telas para a vida em sociedade.

2.4. Critério de seleção das obras abordadas:


Optou-se por analisar dez longa-metragens de animação (Quadro 1). As obras,
em questão, possuem grande relevância histórica e cultural para a consolidação do
universo Disney como potência dentre os produtores de entretenimento popular.
Ademais, compõem um amplo panorama temporal que ressalta o viés mantenedor de
conceitos heteronormativos que perduram até hoje na sociedade.

Quadro 1. Relação de filmes selecionados para análise neste trabalho


TÍTULO TÍTULO ORIGINAL ANO
Branca de Neve e os Sete Anões Snow White and the Seven Dwarfs 1937
Cinderela Cinderella 1950
A Bela Adormecida Sleeping Beauty 1959
A Pequena Sereia The Little Mermaid 1989
Aladdin Aladdin 1992
O Rei Leão The Lion King 1994
Pocahontas Pocahontas 1995
O Corcunda de Notre-Dame The Hunchback of Notre Dame 1996
Hércules Hercules 1997
Tarzan Tarzan 1999
Fonte: elaborado pelo autor

3. DISCUSSÃO

3.1. Gênero: um conceito em construção


Ao mergulhar nos estudos de sexualidade humana, um indivíduo certamente irá se
deparar com termos fundamentais que, ao primeiro contato, podem soar confusos, tais como:
sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. A princípio, estes conceitos podem
parecer complexos demais para serem bem esclarecidos e, mais ainda, distinguidos uns dos
outros. Décadas de discussões remontam à história dos primeiros estudos da sexualidade e das
definições dos termos mais elementares em relação às discussões de gênero que, por sua vez,
seguem em constantes transformações. O que se sabe (ou não) sobre o campo da sexualidade
humana está em uma metamorfose ininterrupta e a humanidade ainda está longe de desvendá-
la por completo.
Uma das profissionais mais estudiosas do tema, a filósofa Judith Butler (1990) afirma,
enfaticamente, que gênero trata-se de um construto social performado. Para a autora, não
existe identidade de gênero por trás do que se vê como expressão de gênero. Esta, por sua vez,
é a forma como as sociedades moldam e normatizam papéis a serem desempenhados dentro
de um contexto sociocultural, sejam estes determinados apenas como “masculino" ou
“feminino”. Estes discursos dominantes são delineados por aspectos históricos, culturais,
sociais, religiosos e econômicos. Diante da normatividade criada, traça-se um limite entre o
“aceitável" e o “desviante”. Em outras palavras, toda forma de expressão que cruze essa linha
passa a habitar o meio do torto, do imoral. E aqueles que transgridem as expectativas
socialmente criadas reforçam, ainda mais, o quanto os ditos “normais" são bons e moralmente
bem aceitos. Para Gross e Woods (1999), identificar as transgressões de uma performance de
gênero é necessário para definir quem, em contrapartida, é considerado normal.

3.2. Heróis, princesas e a heteronormatividade reforçada


No protagonismo dos longas de fantasia do universo Disney encontram-se as duas
figuras mais proeminentes das narrativas: os heróis, dotados de feições e atitudes tipicamente
vistas como masculinas, e as princesas, que expressam os estereótipos femininos mais
historicamente arraigados na humanidade. De fato, estes extremos do binarismo de gênero
têm se tornado cada vez menos evidentes nas produções mais recentes do estúdio. No entanto,

para Towbin et al (2004), tradicionalmente as narrativas Disney retratam imagens limitantes


de gênero em suas obras mais clássicas. Para as autoras, os homens são representados como
fisicamente agressivos, não-expressivos e como salvadores heroicos, especialmente de
mulheres. Enquanto isso, suas parceiras se mostram belas, dependentes dos homens e
engajadas em afazeres domésticos.
A heterossexualidade orgânica de heróis e princesas é evidente logo de início a partir
de suas vestimentas e atributos físicos. As princesas são frequentemente desenhadas com
longos vestidos, cinturas finas e bustos realçados por decotes. Pode-se perceber estas
características em personagens como Pocahontas, Ariel (A Pequena Sereia), Megara
(Hércules), Jasmine (Aladdin), Cinderela, Aurora (A Bela Adormecida) e Branca de Neve.
Todas estas figuras classicamente femininas são reforçadas pela sexualidade realçada em suas
feições delicadas e trajes graciosos. Além disso, as princesas, em questão, estão sempre a
desempenhar suas tarefas domésticas com alegria e satisfação. Elas cantam em números
musicais, possuem afinidade com seus amigos animais e esboçam um instinto maternal
inerente a seus papéis. Em seu estudo de análise comportamental de protagonistas e
antagonistas, Hoerrner (1996) conclui que as figuras femininas tendem a apresentar menos
atitudes fisicamente agressivas do que homens e ações mais pró-sociais do que seus parceiros.
Em contrapartida, os heróis das tramas analisadas são diametralmente opostos às
princesas. Eles divergem em feições e atitudes de suas amantes e ainda apresentam duas
particularidades com relação a elas: eles se apaixonam instantaneamente pelas donzelas e
estão de prontidão para resgatá-las do perigo sempre que necessário (PUTNAM, 2013).
Comumente, os heróis fazem uso de força física e desempenham feitos expressivos para
triunfar sobre os antagonistas, que por sua vez visam minar o caminho para a felicidade de
heróis e princesas. Caminho este que tradicionalmente implica em casamento, família e o tão
sonhado “felizes para sempre”. Fisicamente, os heróis tendem a ser mais altos que suas
parceiras. Eles possuem músculos proeminentes, que enfatizam sua força física e reforçam o
ideal de virilidade inerente aos homens, pautado na heteronormatividade. Contam também
com fisionomias firmes, traços bem delineados, mandíbulas fortes e com ângulos marcantes.
Hércules e Tarzan, ambos protagonistas de seus filmes homônimos, exemplificam
perfeitamente a robustez e o vigor socialmente esperados de sujeitos masculinos.

É válido acrescentar que as características físicas dos representantes masculinos não se


limitam apenas à espécie humana. Personagens como Mufasa e Simba (O Rei Leão), pai e
filho, são felinos que exibem seu destaque dentro da alcateia como líderes natos de formas
não-verbais. Eles demonstram sabedoria, coragem, possuem pelagem mais volumosa que seus
semelhantes e encarnam a figura do macho alfa dentro de um grupo.
No que diz respeito à forma como homens e mulheres expressam seus sentimentos nos
filmes da Disney, Towbin et al (2004) chegam à conclusão, após uma análise criteriosa, que
homens recorrem a meios físicos para expressar suas emoções. Pela análise das autoras, o
gênero masculino tende a recorrer a comportamentos físicos (e, por vezes, violentos) como
resposta a uma situação emocional. Em diversas obras, os homens são encorajados a suprimir
suas emoções em experiências traumáticas. As autoras também concluem que homens não
possuem controle sobre suas próprias sexualidades, o que fica evidente diante da paixão
instantânea que se instala quando eles têm o primeiro contato com suas donzelas. Este
comportamento, naturalizado em diversas narrativas em diferentes contextos apenas reforça a
heteronormatividade socialmente imposta que argumenta que homens e mulheres sofrem de
amor à primeira vista graças a uma atração física imediata. Mais adiante, o mesmo estudo
ainda denota que homens são naturalmente fortes e heroicos, que não possuem afazeres
domésticos, ao contrário de suas parceiras do sexo feminino. As autoras ainda afirmam que
personagens masculinos que exibem figuras de sobrepeso são caracterizados como
intelectualmente inferiores e cômicos, o que reforça a importância dada a uma suposta
superioridade dos atributos físicos de beleza, força e bravura.
A mesma análise de um apanhado de personagens femininas infere que a aparência
física das princesas sobrepuja suas habilidades intelectuais. Em A Bela Adormecida (1959), a
princesa Aurora recebe três dons de suas fadas madrinhas ao nascer, sendo o primeiro
presente a beleza antes de qualquer outra qualidade. Para além, as mulheres também foram
majoritariamente consideradas como indefesas, necessitando serem salvas por seus bravos
heróis. Mulheres encaixam-se naturalmente nos ambientes domésticos e têm como objetivos
máximos de vida casamento e constituição de família. No que diz respeito à sexualidade, as
mulheres tendem a recorrer a seus atributos físicos estereotipados e maneirismos sensuais, a
fim de seduzir os homens visando um ganho pessoal, o que acentua a imagem da femme fatale
como uma personagem ardilosa e sedutora. Por fim, assim como seus respectivos do gênero

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masculino, as mulheres representadas como obesas refletem o aspecto cômico, menos atraente
e de aparência repugnante (TOWBIN ET AL, 2004).

3.3. Vilões: cartas fora do baralho cis


No extremo oposto do espectro das narrativas, encontram-se as figuras antagonistas de
toda história: os vilões. Putnam (2013) define os vilões como aqueles que criam e ditam o
enredo. Eles possuem planos, mecanismos e personalidade necessários para problematizar a
narrativa, que acabam por perturbar e frustar a dominante heterossexualidade ao
antagonizarem o “felizes para sempre” de heróis e princesas. Assim, a bondade inerente das
princesas e de seus príncipes emerge naturalmente como reação aos planos maquiavélicos
arquitetados por seus respectivos algozes. Em suma, a autora conclui que o "mal" é necessário
para que o “bem" seja identificado.
No entanto, por trás de suas figuras perversas, os vilões tendem a esconder traços
subliminares que intensificam sua tirania e condicionam os espectadores a sentirem uma
profunda aversão aos vilões de cada história. Através de um olhar mais atento, Li-Vollmer e
LaPointe (2003) denunciam indícios de transgressões de gênero nos antagonistas, que
contrastam de forma mais expressiva ainda com as qualidades heteronormativas já citadas de
heróis e princesas. Por inserirem essas particularidades tão discordantes da heterossexualidade
cisgênero convencional, os autores refletem sobre o peso que tais atributos trans trazem na
avaliação que o público consumidor tem sobre vilões e vilãs ao associá-los, automaticamente,
como desviantes da norma socialmente imposta. Essa hipótese também é explorada de forma
mais detalhada por Putnam (2013), cujo artigo dialoga de forma assertiva com a tese de Li-
Vollmer e LaPointe (2003).
É curioso notar como as transgressões de gênero aplicadas a vilões e vilãs diferem. Os
antagonistas do gênero considerado masculino refletem características tipicamente vistas
como afeminadas ou então desvirilizantes. Já as vilãs, comumente representadas por bruxas e
rainhas más, tendem a apresentar traços físicos mais grosseiros, vozes mais masculinizadas e
biotipos que não expressam a sensualidade feminina inerente das princesas.
No que diz respeito às características físicas e fisionômicas, os vilões costumam
apresentar estruturas ósseas mais finas e esguias, através de mandíbulas estreitas, malares
proeminentes e narizes perfilados, que constrastam com os traços fortes e grosseiros dos

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heróis (LI-VOLLMER e LAPOINTE, 2003). Vilões como Hades (Hércules), Juíz Frollo (O
Corcunda de Notre-Dame) e Jafar (Aladdin) são mais delgados e expressam menor força bruta
do que seus rivais. Scar, o algoz Shakespeariano de Mufasa e Simba em O Rei Leão é
indubitavelmente o oposto de seu irmão e sobrinho. Apesar de pertencerem à mesma família
de leões, Scar possui uma juba menos volumosa, de cores mais escuras e seu biotipo é mais
alongado e magro comparado aos outros leões. Ademais, os vilões tendem a ser desenhados
com diferentes tonalidades em suas faces e, por vezes, aparentam usar sombras nos olhos e
outras formas de maquiagem. Essa pintura facial realça os olhares maquiavélicos e aproxima
os vilões das figuras femininas, ao passo que os distingue ainda mais dos heróis. Os vilões
também costumam exibir cabelos mais volumosos, longos ou com penteados considerados
não-masculinos. O Governador Ratcliffe (Pocahontas) é um exemplo emblemático: ele usa
seus cabelos longos com tranças amarradas por pequenos laços vermelhos, semelhante a uma
menina.
Passando à análise dos corpos dos vilões, estes habitualmente são mais esguios e
longilíneos, não são dotados de músculos salientes e não possuem muitas partes do corpo à
mostra. Do contrário, estão na maioria das vezes trajando longas vestimentas acinturadas e
esvoaçantes. No longa Hércules, Hades apresenta uma silhueta andrógina graças a sua longa
toga, ao passo em que Zeus traja uma toga mais curta e que evidencia seu corpo musculoso.
Em Pocahontas, o Governador Ratcliffe ainda vai além, vestindo roupas típicas da aristocracia
do período das grandes navegações. Ele usa vestes púrpuras, capa, joias extravagantes,
mangas com babados e sapatos de salto. Li-Vollmer e LaPointe (2003) ainda acrescentam que
o ápice da feminização da figura de um vilão se concentra em suas mãos. Vilões possuem
mãos magras, pulsos finos e dedos alongados e pontudos, por vezes com unhas compridas, o
que lhes garante um ar ainda mais diabólico.
O comportamento dos vilões também muito difere dos heróis. Nas obras analisadas, os
vilões portam-se de forma mais contida e menos ativa do que os protagonistas. Li-Vollmer e
LaPointe (2003) reconhecem que os vilões limitam seus movimentos à parte superior de seus
troncos, quase não apresentando grandes gestos da parte inferior. O que mais chama atenção
nessas figuras são os gestos efusivos com suas mãos, que apresentam maior amplitude e
atividade mais enérgica. A postura dos vilões também é vista como mais contida. Eles
costumam se portar com a coluna ereta, pescoço alongado e ombros para trás, o que lhes

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confere um ar de superioridade e indiferença aos demais. A forma de caminhar dos vilões


também evoca uma marcha vista mais como feminina, enquanto os heróis costumam ser mais
explosivos e cheios de energia em seus movimentos. As vilãs também apresentam esse tipo de
postura mais contida. Lady Tremaine (Cinderela), a Rainha Má (Branca de Neve e os Sete
Anões) e Malévola (A Bela Adormecida) expressam elegância e desprezo, ao mesmo tempo,
em seus gestos. Para completar essa aparência macabra, os vilões costumam ser
excessivamente vaidosos. Em contraste aos heróis, eles esboçam uma preocupação com
autoimagem de sofisticação, que é tradicionalmente atribuída a mulheres.
Em se tratando das vilãs, especificamente, Putnam (2013) argumenta que estas
adquirem traços mais masculinizantes com o intuito de mostrar um contraste mais evidente às
figuras ultra-femininas das princesas. Em Cinderela, as meias-irmãs da princesa que dá nome
ao filme são fisicamente mais grotescas e menos graciosas do que a protagonista. Elas exibem
uma postura mais bruta, possuem corpos mais atarracados, seios quase inexistentes e silhuetas
tidas como hediondas. O ápice deste contraste entre Cinderela e suas meias-irmãs se dá no
clímax do enredo, quando o príncipe as faz experimentar o sapatinho de cristal a fim de
identificar quem era a princesa por quem se apaixonou no baile. Enquanto Cinderela tem um
encaixe perfeito com seu pé pequeno, gracioso e proporcional, Drizella e Anastasia possuem
pés que claramente não servem para a delicadeza do calçado. No filme, elas mal conseguem
introduzir o dedão do pé por inteiro no sapato. Bell, Haas e Sells (1995) ainda descrevem
como as antagonistas de Cinderela estão constantemente engajadas em brigas físicas
características de meninos, como elas humilham a princesa e a agridem fisicamente antes do
baile, deixando seu vestido em ruínas por pura inveja de sua superioridade feminina. Em A
Pequena Sereia, a antagonista Ursula ainda conserva algumas feições femininas. No entanto,
sua aparência é mais exagerada, sua maquiagem é muito mais marcante, seu corpo mais
robusto do que o das princesas e seu ar é maléfico ao extremo a ponto de sobrepujar seus
traços femininos. Com sua voz grave e maneirismos exagerados, a bruxa do mar chegou a ser
comparada por Pinksy (2004) com a drag queen Divine1, um símbolo da performance
escrachada do feminino.

1 Harris Glenn Milstead, conhecido por seu nome artístico Divine, foi um ator, cantor e drag queen
famoso no meio cultural e que atuou nas décadas de 60, 70 e 80. É tido como um importante ícone
cult da cultura LGBTQIA+ devido a sua performance bizarra e exagerada do feminino, seu senso de
humor irreverente e pelo teor excêntrico dos principais filmes de que participou, sob direção de John
Waters.
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3.4. A diversidade em cena transferida para a realidade

As animações do universo Disney abordam uma expressiva variedade de questões em


diferentes cenários, contextos sociais e históricos, seja em civilizações humanas ou no reino
animal. Como Bell, Haas e Sells (1995) apontam, os filmes da Disney ocupam um espaço
sagrado na cultura, especialmente quando se trata do público infantil. No entanto, Giroux
(1997) vai além, ao afirmar que as animações infantis são fontes de pedagogia cultural,
funcionando como codificadores educativos, morais e culturais.
Sintetizando essas duas visões, Norden (2000) argumenta que filmes e programas de
televisão não são simples mecanismos para refletir a realidade. O autor insinua que estes
produtos de entretenimento são a realidade da qual muitos espectadores depreendem suas
ideias acerca do mundo em que vivem. Para o autor, muitos espectadores constroem suas
visões de mundo por meio de imagem veiculadas em massa e que visam o lucro, imagens
estas que bombardeiam seus públicos-alvo diariamente.
Para Li-Vollmer e LaPointe (2003), através da performance fora das normas esperadas
em uma cultura de construções de gênero naturalizadas de forma consistente e inflexível,
indivíduos podem questionar não somente o gênero em si, mas também duvidar das próprias
habilidades, competências e moralidade daqueles que transgridem a heteronormatividade
imposta. Para crianças, que são o maior público das animações Disney, essas nuances
aceitáveis e desviantes de performance de gênero embutidas nas personagens não passam
despercebidas. Pelo contrário, as crianças são muito mais suscetíveis a desenvolver seus
julgamentos e sensos de moral pelas leituras que fazem dos filmes e programas que assistem
incessantemente. Através de novas fontes e experiências diárias cumulativas, a visão que o
jovem público adquire sobre quem são os “mocinhos" e os “malvados" tende a se solidificar
com o tempo, tornando-os mais resilientes a mudanças no futuro (FISKE e TAYLOR, 1991).

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4. CONCLUSÃO

Por mais que, nos últimos anos, a Disney tenha tentado se desvincular do
conservadorismo em suas obras e passado a focar na figura das heroínas protagonistas que
assumem o controle de seus destinos impondo-se contra as normas esperadas, o histórico de
longas que dialogam e frisam a heteronormatividade ainda possui um grande peso no
currículo do estúdio. Foram décadas de sucessos de bilheteria sustentados nos costumes
conservadores visando reproduzir um entretenimento de qualidade que pudesse pregar a
receita da dicotomia de gênero às crianças. Por meio de exemplos positivos e recompensas
por sua benevolência, os heróis e princesas não somente moldam o jeito de se comportar e
agir de seu público jovem como também enfatizam o que é considerado moralmente aceitável
em acordo com a cisnormatividade.
Em contrapartida, os vilões carregam consigo as mais implícitas nuances de desvio de
gênero que de forma indireta ajudam as crianças a identificar quem é bom e quem é ruim. É
evidente que essas figuras não são maléficas em si graças única e exclusivamente a estes
traços desviantes. Suas inclinações para causar sofrimento e problematizar a narrativa partem
da própria personalidade e das motivações pessoais de cada vilão. Entretanto, não se pode
ignorar o fato de que atribuir características discordantes às do gênero presumido de um vilão
tem um propósito singular de realçar as distinções que podem ser inferidas de um protagonista
e um antagonista. Ao submeter seus espectadores a essa associação de vilania com
performances gênero-discordantes, o império Disney planta a semente que estabelecerá
fundamentos na moral de cada indivíduo, que cresce acostumado a repetidas exposições de
padrões heteronormativos. Com o tempo, estas crianças desenvolverão um conceito de
“natural" ou “normal" socialmente pregado e seus desconfortos diante de figuras trans
poderão evoluir para uma transfobia velada ou mesmo explícita.
Posto isto, é de suma importância que não somente as animações infantis como todas
as demais formas de entretenimento em massa passem cada vez mais a se alinhar com a
diversidade de gênero existente na sociedade. Por meio de exemplos não-discriminatórios, as
futuras gerações poderão compreender de forma mais abrangente e inteligível a complexidade
de corpos, sexualidades e etnias que compõem o mundo contemporâneo. E talvez assim, as
figuras vilanescas não sejam mais tão aterrorizantes quanto antigamente.

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5. REFERÊNCIAS

A BELA Adormecida. Direção: Clyde Geromini, Eric Larson, Wolfgang Reitherman e Les
Clark. Produção de Walt Disney. Estados Unidos: Walt Disney Productions, 1959. DVD (88
min).

A PEQUENA Sereia. Direção: Ron Clements e John Musker. Produção de John Musker e
Howard Ashman. Estados Unidos: Walt Disney Pictures, 1989. DVD (83 min).

ALADDIN. Direção: Ron Clements e John Musker. Produção de Ron Clements e John
Musker. Estados Unidos: Walt Disney Pictures, 1992. DVD (90 min).

BELL, E.; HAAS, L.; SELLS, L. From Mouse to Mermaid: The Politics of Film, Gender, and
Culture. Bloomington: Indiana University Press, p. 1-20, 1995.

BRANCA de Neve e os Sete Anões. Direção: David Hand, William Cottrell, Wilfred Jackson,
Larry Morey, Perce Pearce e Ben Sharpsteen. Produção de Walt Disney. Estados Unidos: Walt
Disney Productions, 1937. DVD (83 min).

BUTLER, J.. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11ª ed.. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 288p.

CINDERELA. Direção: Clyde Geromini, Hamilton Luske e Wilfred Jackson. Produção de


Walt Disney. Estados Unidos: Walt Disney Productions, 1950. DVD (75 min).

FISKE, S. T.; TAYLOR, S. E. Social cognition. Menlo Park, CA: McGraw-Hill Book
Company, 1991.

GIROUX, H. Are Disney movies good for your kids? Kinderculture: The corporate
construction of childhood, p. 53–67, 1997.

GROSS, L. P.; WOODS, J. D. The Columbia Reader on Lesbians and Gay Men in Media,
Society, and Politics. [s.l.] Columbia University Press, p. 3-22, 1999.

HÉRCULES. Direção: Ron Clements e John Musker. Produção de Alice Dewey, Ron
Clements e John Musker. Estados Unidos: Walt Disney Pictures, 1997. DVD (93 min).

HOERRNER, K. L. Gender Roles in Disney Films: Analyzing Behaviors from Snow White to
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