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Palmada de amor...

dói1
Rosana Morgado2

Iniciando a discussão sobre a violência doméstica contra a infância a partir de um dito


popular (embora destacando o seu reverso), pretendo evidenciar o grau de legitimação social
ainda conferido a esta prática. Na mesma direção, compreender a violência doméstica contra a
infância como fenômeno de ordem pública inscreve-se na perspectiva de considerar a infância
como uma etapa de desenvolvimento da cidadania que, especialmente, em razão do lugar de
subalternidade que ocupa na sociedade brasileira, carece de leis e políticas públicas específicas
que assegurem tal desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, considera-se que a democracia, como processo que está em
permanente transformação, deve ser, cada vez mais, debatida na sua relação com a vigência dos
direitos humanos. Entende-se, pois, que esta relação nos conduz a refletir sobre os diferentes
motivos que condicionam a existência ou não de políticas públicas dirigidas à infância em
situação de violência doméstica.
A violência doméstica contra a infância, como fenômeno que atinge parcela significativa
da população infanto-juvenil brasileira, enfrenta um duplo desafio.
O Brasil passa, hoje, por um momento de drástica redução da atuação do Estado, nos
fenômenos já aceitos como pertencentes à esfera pública. Embora esta atuação venha se
efetuando na contramão da manutenção de direitos sociais já adquiridos, é defendida e
divulgada, por segmentos do governo e setores a ele associados, como o único caminho para se
alcançar o desenvolvimento econômico equilibrado, evitando o chamado “risco Brasil”.
A violência doméstica contra a infância, assim, tem primeiro que se afirmar como
problema de ordem pública (tal como, por exemplo, a mortalidade infantil), rompendo com o
pacto do silêncio, que se apresenta travestido em respeito ao chamado “mundo privado da

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Artigo publicado no livro: Almeida, S. (org) Violência de Gênero e Políticas Públicas. Ed UFRJ. Série Didáticos,
2007.

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família”.
Ao mesmo tempo, precisa afirmar-se como prioritária na agenda de diferentes setores
organizados da sociedade para exigir do Estado a estruturação de uma política de enfrentamento
do fenômeno, sustentada por meio de programas articulados com base em uma rede de proteção
social que, através de diferentes instituições, desenvolvam ações voltadas para a prevenção e o
atendimento às vítimas; programas de capacitação para os profissionais que atuam diretamente
com a problemática; infra-estrutura de apoio ao adulto que ficará responsável pela criança,
dentre outros.

Situando o fenômeno
No Brasil, é no do processo de aprovação da nova Constituição, datada de 1988, que a
temática da infância e juventude passa a ser amplamente debatida. O termo menor oriundo do
campo jurídico foi substituído, dado que a análise das práticas sociais historicamente
desenvolvidas revelaram seu caráter discriminatório. Menores eram aqueles considerados
delinqüentes, abandonados ou infratores, sempre associados a pobreza. Crianças e jovens
passam a figurar, juridicamente, como “sujeitos de direitos”. Em 1990, a homologação do
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, confirma esta perspectiva e define as
responsabilidades do Estado, da família e da sociedade.
Entretanto, o fenômeno da violência doméstica contra a infância, regulamentado em
diversos artigos, ainda não foi, ao longo desses quinze anos de implementação do ECA, objeto
sistemático de preocupação e atuação do Estado.
No ECA, especialmente em seu artigo de no 87, explicita-se a necessidade de estruturação
de serviços dirigidos a crianças e adolescentes em situação de violência doméstica como parte
da política de proteção que se expressa na rede de atendimento. Diz o artigo: “São linhas de
ação da política de atendimento: (...) III serviços especiais de prevenção e atendimento médico e

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Assistente Social e Doutora em Sociologia; Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

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psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão
(...)”(1990: 37).
O ECA reconhece, ao dispor em lei, a existência do fenômeno, inclusive sendo claro
quanto às penas e medidas cabíveis quando da autoria do crime por parte de pais ou
responsáveis pela criança. Em seu artigo de n.130, por exemplo, dispõe: “Verificada a hipótese
de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade
judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia
comum” (1990).
Os dois parágrafos acima quando confrontados com as imensas dificuldades do cotidiano
de profissionais que atuam com o fenômeno evidenciam a distância entre a concepção de
proteção integral contida na lei e a realidade por eles vivenciada.
Uma das graves dificuldades enfrentadas é a falta de dados globais sobre o fenômeno,
sendo esta mais uma evidência de que o problema não é considerado como de ordem pública,
posto que esta ausência contribui para que não sejam traçadas diretrizes de atuação sob a
responsabilidade do Estado.
Aliada a esta dificuldade, outros fatores obstaculizam o enfrentamento do fenômeno:
ausência de disciplinas nos currículos de graduação - serviço social, psicologia, direito,
pedagogia e área da saúde - que analisem a temática, falta de capacitação profissional para a
identificação da violência, medo de represália a si ou à família, desconhecimento das leis,
descrédito nas possíveis ações do Estado para solucionar o problema, banalização dos efeitos
provocados nas vítimas, decorrentes da(s) violência(s) sofrida(s) e, ainda, descrédito no relato
da vítima.

Sobre a complexidade do fenômeno


A violência doméstica é um fenômeno antigo - seus registros remontam a séculos
longínquos - que atinge crianças e adolescentes de todas as classes sociais e em todas as

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sociedades. Falso é imaginar que sociedades desenvolvidas, grau de instrução, renda alta ou a
opção por uma religião sejam impeditivos para a existência do fenômeno.
Para citar apenas um exemplo, já em 1932, Ferenczi registrava que: “Mesmo crianças
que pertencem a famílias honradas e de tradições puritanas, com mais freqüência do que
ousaríamos supor, são vítimas de violências e estupros”(apud Lamour,1997:46).
A violência doméstica foi conceituada por Silverman e Kempe, em 1962, como a
“síndrome da criança espancada”, mas os avanços dos estudos indicaram que o fenômeno
envolvia outras dimensões para além dos maus-tratos físicos. Atualmente, tem sido analisada e
conceituada em seus aspectos físico, psicológico, sexual, como negligência/abandono e como a
síndrome de Munchausen. A síndrome de Münchausen ficou assim conhecida, por ser um tipo
de violência, em que o responsável, mediante simulação de uma sintomatologia, provoca a
necessidade de exames e investigações médicas constantes. Cabe destacar que uma mesma
criança pode ser vítima de uma ou mais formas de violência ao mesmo tempo.
No Brasil, foi ao longo da década de 80, no contexto de organização de diferentes
movimentos por direitos - especialmente os de denúncia de violência contra a mulher- que
passaram a ter lugar as denúncias de maus-tratos infantis ocorridos na família.
Ainda assim, figura no imaginário social e mesmo nas produções científicas uma visão
idealizada do que seja a família. Embora já haja uma certa aceitação social para a existência de
diferentes arranjos familiares, a família nuclear burguesa ainda é difundida como o modelo
natural de união. Esta concepção traz, com ela embutida, a perspectiva fictícia de que a família
está unida, unicamente, com base em laços de amor.
A existência de um modelo ideal de referência - pai, mãe e filhos - nos papéis de,
respectivamente, provedor, cuidadora e protegidos - completa o quadro de naturalização da
concepção e das relações existentes na família.
Seixas, que coordenou, por três anos, a área de psicologia do Programa de Atenção à
Vítimas de Abuso Sexual, em São Paulo, ao analisar a ocorrência da violência sexual contra
adolescentes perpetrada por um familiar ou por um desconhecido, entende que: “muitas vezes,

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trata-se de uma família disfuncional, que não é capaz de exercer suas funções adequadamente,
quais sejam: de cuidado, de prover seus membros de proteção e socialização.(...) Provavelmente
a experiência violenta mais importante, por isso deflagra uma crise na estrutura familiar, pois
denuncia sua fragilidade e seu funcionamento patológico”( Seixas,1999: 131).
A concepção idealizada, ao não se sustentar mediante tantas formas diferenciadas de
organização familiar, acaba por reduzir a análise sobre a instituição família à designação da
existência de famílias desestruturadas. A percepção de desajuste, de que se eu não estou vivendo
o modelo o errado sou eu, de que sou incompetente, é incorporada por pessoas que vivenciam
formas familiares diferentes do modelo apresentado como correto, especialmente por aquelas
que se encontram em situação econômica menos favorecida. Para os pesquisadores do IEE,
estabelece-se uma cisão entre a família pensada e a família vivida. A pensada “parecia ser a
certa, a boa, a desejável, e a família que se vivia era a diferente. (...) A família que se vivia era
vista como um desvio de um modelo “estabelecido” de se viver” (Szymanski,1992:10).
Evidencia-se, assim, o quanto ainda é difícil analisar a família como uma instituição que,
por ser produto das relações sociais, modifica-se em consonância com as transformações
históricas, adquirindo particularidades em diferentes sociedades.
Bruschini chama atenção para o fato de que “a identificação do grupo conjugal como
forma básica e elementar e à percepção de parentesco e na divisão de papéis como fenômenos
naturais”, são obstáculos para a análise da instituição família. Por esta razão, propõe “dissolver
sua aparência de naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável”
(Bruschini,1993:50).
A família, em dado momento histórico, organizava-se em função da conservação de
bens, da prática de um ofício, de ajuda mútua, da proteção da honra e da vida em caso de crise
ou guerras, funcionando muito mais como unidade de consumo. Determinações históricas
processaram transformações no papel a ser desempenhado pela família, fazendo com que
passasse a ser vista como um lugar de socialização e de afeto. Esta concepção trouxe embutida a
idéia de respeito à figura paterna e de que a mãe deveria desempenhar a função de cuidadora

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(Bruschini,1993:53).
É nesta direção que se entende que a discussão sobre as relações de gênero, como
construção social, tem desempenhado um papel fundamental para a desnaturalização dos papéis
e para o entendimento das próprias relações, enfatizando a necessidade de romper-se com o
determinismo biológico que aprisiona homens e mulheres em perfis socialmente traçados. A
discussão de gênero vem auxiliando, assim, a compreender de que modo as relações entre
homens, mulheres e crianças nas diferentes sociedades, constituem-se em relações
hierarquicamente construídas.
Neste sentido, compreender a violência doméstica como uma expressão da violência de
gênero aponta para um caminho fecundo de enfrentamento das inúmeras formas de violência em
nossa sociedade, que se assentam na transformação das diferenças em desigualdades com fins
de dominação e exploração, tendo como eixos estruturais a inserção de classe, gênero e etnia.
De acordo com Almeida a violência de gênero: “ designa a produção da violência em um
contexto de relações produzidas socialmente. Portanto, o seu espaço de produção é societal e
seu caráter é relacional” (Almeida, 2003:2).
Ainda segundo a autora: “a violência de gênero, conquanto relacional, é constituída em
bases hierarquizadas, objetivando-se nas relações entre sujeitos que se inserem desigualmente
na estrutura familiar e societal (...)”(Almeida,2003:8).
Com base nesta discussão, é que o questionamento de modelos apresentados como
naturais possibilita a análise da família como uma instituição social, não cabendo, pois,
designá-la como desajustada, desestruturada ou patológica por não corresponder a eles.
Dessacralizar a instituição família e desnaturalizar as ações de violência são
pressupostos ainda não enfrentados em nossas pesquisas e/ou em nossos campos de intervenção
profissional. Continuamos a reproduzir as máximas naturalizantes do papel da família e de
como os seus membros estariam imunes a um processo de socialização em si violento. Como
esperar que uma família tenha memória de recursos democráticos se em outros espaços ela não
os vivencia? Por que esses membros, em diversas outras esferas de suas vidas, sofrem e

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praticam violências e na família deveriam se comportar de forma solidária e respeitosa para
com os direitos de outros, em uma posição subalterna, mais fracos e emocionalmente
dependentes?
Nas palavras de Bruschini, “as características da família - grupo solidário e rede de
relações carregada de emocionalidade - estão em franco contraste com o sistema profissional,
no qual predominam o individualismo e a concorrência” (Bruschini, 1993: 56).
É nesta ótica que se inscreve a necessidade de compreendermos o fenômeno da
violência doméstica. Ao culpabilizar ou patologizar a família estamos reduzindo um problema
de ordem pública à esfera do individual, negando o quanto os sujeitos se constituem e são
constituídos nas e pelas relações sociais. Diversos são os fatores que desencadeiam a violência
doméstica; um deles é o abuso do mais forte sobre o mais fraco.
De acordo com Faleiros:
“A violência, que, no cotidiano, é apresentada como abuso sexual,
psicológico ou físico de crianças e adolescentes, é, pois, uma articulação de
relações sociais gerais e específicas, ou seja, de exploração e de forças desiguais
nas situações concretas, não podendo, assim, ser vista como se fosse resultante de
forças de natureza humana ou extranaturais - por exemplo, obra do demônio - ou
um mecanismo autônomo e independente de determinadas relações sociais”
(Faleiros,1998:42).

Tendo por base a discussão aqui travada afirmo, então, que a violência doméstica não
deve ser vista como um fenômeno das relações interpessoais, mas como uma expressão de
violência nas relações interpessoais.
Nesse sentido, transcender a culpabilização de indivíduos, identificados/tratados como
“doentes” ou “anormais”, evidencia-se como um dos caminhos para que o Estado seja
compelido a assumir suas responsabilidades. A patologização dos fenômenos concorre para sua
manutenção e inviabiliza proposições de ordem pública.

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Uma das bases de sustentação da relação pais-filhos aparece precisa na formulação de
Assis: “A relação pai-filho, culturalmente, está fundamentada na dominação. É facultado aos
pais utilizarem de agressão física, como maneira de disciplinarem os filhos, sempre que estes
necessitarem de correção”(Assis,1994:36).
Em pesquisa realizada no Rio Grande do Sul, percebeu-se que “os maus-tratos a
crianças e adolescentes, na verdade não são uma anormalidade. Pelo contrário, aceitos e
“psicopedagogicamente” defendidos até hoje, por muitos técnicos (...)”(Moraes,1998:31).
Por estas razões, mostra-se extremamente fecunda a idéia de Pinheiro de analisar o
autoritarismo “como uma forma de dominação independente da periodização política” e não,
congelado em um período histórico ou como uma expressão de um regime político (Pinheiro,
1989:10).
O poder, em nossa sociedade, deve ser analisado nos seus diferentes espaços e nas suas
diferentes manifestações. Todavia, reconhecer especificidades no exercício do poder não pode
significar que devamos individualizar a reflexão sobre o poder exercido na família, tratando-o
de forma dissociada dos demais espaços sociais. As relações interpessoais singularizam
relações sociais, que estão sempre determinadas pela estrutura da sociedade.
Numerosas pesquisas evidenciam que o lar é um espaço de extremo risco para crianças e
adolescentes, em todas as classes sociais e nas mais diferentes sociedades. A família, longe de
ser o espaço de exercício de amor e respeito entre seus membros, destaca-se como o locus de
graves agressões, que continuam sendo mantidas sob o mais forte sigilo.
Ou seja, percebe-se que as práticas educativas na sociedade contemporânea não
deixaram de incorporar castigos e punições físicas, evidenciando que o “ambiente familiar é,
com maior freqüência do que seria desejado, um ambiente factível de expressão da violência e
como tal deve ser encarado” (Assis, 1994:45). Práticas estas “oriundas da autorização social de
“educar” a qualquer custo, introduzindo um conceito de educação baseada no respeito à força e
à hierarquia (...) onde educar vem se confundindo com mostrar quem manda” (Moraes,
1998:33).

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Ou ainda, como destacam Saffioti e Almeida, “o domicílio constitui um lugar
extremamente violento para as mulheres e crianças de ambos os sexos, especialmente as
meninas”(1995:33).
A título de exemplo, Diêgoli cita que, em 1995, o setor de sexologia do Instituto
Médico-Legal de São Paulo registrou “2.403 queixas de abuso sexual; entre as quais 69,77%
(1.665) foram contra meninas com idade inferior a 18 anos; 7,94% (191) contra meninos e
22,47% (547) contra mulheres maiores de 18 anos” (apud Seixas, 1999:118).
Saffioti, citando Gordon, chama atenção para o fato de que:
“As estatísticas sobre abuso sexual de crianças permanecem o que eram
há um século: o mais perigoso lugar para a criança é o lar, o mais provável
agressor, seu pai. Não obstante,(...)no ano escolar de 84-85, nos EUA, relata
Gordon, que sua filha foi ensinada, na segunda série, em três programas
separados, a como reagir a tentativas de abuso sexual, enfatizando-se, em todos
os programas,a presença de estranhos neutros do ponto de vista de gênero
(...)”(apud Saffioti,1995:31).

A família, como instituição social, está atravessada por contradições que envolvem o
exercício do poder, do qual desfrutam de forma desigual homens, mulheres e crianças. O lugar
ocupado pelo homem continua conferindo-lhe privilégios e poderes, dos quais nem as mulheres
nem as crianças desfrutam ou exercem.
Em se tratando do chamado espaço privado do lar, estabelecem-se “um território físico e
um território simbólico, nos quais o homem detém praticamente domínio total”, o sentimento
de propriedade e a impunidade atuam, dentre outros, como alicerces de manutenção dessa
dominação (Saffioti,1997:46).
A impunidade provoca efeitos nefastos não só porque legitima a continuidade da
violência, como reforça na criança ou jovem “o sentimento de impotência e depressão”
(Seixas,1999:130).

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Embora diversos pesquisadores e/ou técnicos não admitam a existência de uma relação
entre os maus - tratos sofridos e a expressão de sintomas variados, eles são largamente
identificados ao longo do processo de atendimento.
A violência doméstica, que tem como uma de suas características ser um fenômeno de
longa duração, ocorrendo rotineira e sistematicamente, atinge de forma dramática a auto-estima
de crianças e jovens, que passam a se sentir merecedoras das violências sofridas e responsáveis
por desencadeá-las.
As crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica vivem em um estado de alerta
permanente. Este estado de permanente tensão desencadeia na criança ou adolescente os mais
angustiantes sentimentos, na tentativa de adivinhar o que deve fazer (ou não fazer) para não
evocar a ira do adulto; com isto, acaba por trazer para si a responsabilidade sobre a violência, a
que está potencialmente exposta em seu cotidiano.
O sentimento de responsabilidade pelas violências sofridas constitui-se em um processo
de internalização da culpa, atribuída pelo agressor à criança, para justificar seu comportamento.
Elas freqüentemente assumem ainda a responsabilidade por proteger a família.
Como o agressor desfruta de uma posição de confiança e autoridade/poder em relação à
criança, os sentimentos ambíguos desenvolvem-se devido às dificuldades dela em discernir
sobre o que há, de certo ou errado, na atitude do adulto.
Supõe-se haver uma predominância dos efeitos psicológicos sobre os demais;
entretanto, estes quase sempre são acompanhados por uma diversidade muito grande de
sintomas, tais como: apresentam doenças freqüentes e não tratadas, fadiga constante, depressão,
perda ou excesso de apetite, enurese, encoprese, problemas de aprendizagem, mudanças
repentinas e “inexplicáveis” de comportamento, tentativa de suicídio, fuga de contato físico,
dentre outros.
De fato, entende-se que há permissão social para o comportamento violento. Mais que
isso, há o incentivo para que a violência contra a infância se perpetue, já que não há programas
públicos que visem à prevenção ou ao seu atendimento, faltam programas de qualificação

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profissional para identificação do crime, falta estímulo ao cumprimento da lei que obriga a
denúncia e porque o relato da vítima é tratado com descrédito.
Enquanto a violência continuar a figurar como forma de socialização e a ser aceita como
disciplina, chamando atenção apenas pelos seus excessos, e, ainda, enquanto for atribuída a
pessoas com “doenças”, o Estado e a sociedade em geral continuarão a partilhar do pacto do
silêncio sobre a violência doméstica contra a infância, atribuindo à família, caracterizada como
disfuncional, desestruturada, desajustada ou patológica, a responsabilidade, exclusiva, pela
reprodução da violência.
Desse modo, cabe refletirmos sobre como estruturar políticas públicas que enfrentem o
fenômeno e que superem impasses presentes, também, em outras áreas, tais como fragmentação
de serviços e despreparo profissional. Pois, de fato, atribuímos direitos a crianças e adolescentes
que não estão sendo respeitados, explicitando-se a imperiosa necessidade de estruturação de
mecanismos de efetivação das leis. Para tal, a capacitação profissional, o financiamento de
pesquisas e de programas de intervenção sobre a problemática, a estruturação de amplos debates
e de campanhas de prevenção e de mobilização, são alguns dos caminhos que podem assegurar
que os setores pertinentes assumam suas responsabilidades legais, políticas e sociais.
Considera-se primordial o investimento continuado no desvendamento deste fenômeno,
com vistas a demandar e subsidiar a estruturação de políticas públicas capazes de oferecer a esse
segmento da população condições de romper com os condicionantes que determinam sua
existência. Investir na publicização do fenômeno pode concorrer, ainda, para atuar como forte
obstaculizador na continuidade de instauração desse processo em nossa sociedade, que, como o
presente texto pretendeu demonstrar, pode atingir crianças e adolescentes de qualquer classe
social.
Cabe destacar, finalmente, que o artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente
dispõe: “Deixar o médico, o professor ou responsável por estabelecimento de saúde e de ensino
fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que
tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou

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adolescente. Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de
reincidência” (ECA, 1990).
O respeito a um cidadão em desenvolvimento, inserido em uma sociedade que distribui
de forma desigual seus poderes, e a luta pela garantia de seus direitos devem subsidiar a
inserção profissional e fomentar a estruturação de políticas públicas e pesquisas dirigidas ao
tema.

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