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Uma paciente de Pierre Janet dizia: “Um livro sobre o qual é preciso refletir torna-se
sujo.” Essa observação nos revela, ao que parece, uma das razões de ser da crítica.
Mesmo quando esta pouco reflete, ela comenta, ela interpreta; ela se orienta para o
mundo. Seu papel é atrair as obras para fora de si mesmas, fora deste ponto de
discrição fascinante em que elas se formam e gostariam de se fechar, abrigadas de
toda curiosidade pública. Mas, no fim, é preciso que elas se tornem impuras; não
vemos por que elas escapariam a essa prova. Quando Rilke escreve a um jovem
poeta “As obras são de uma solidão infinita; para agarrar uma obra de arte, nada
pior do que as palavras da crítica”, ele exprime apaixonadamente uma reserva que
gostaríamos de manter junto com ele, mas que ele próprio não pode senão
quebrá-la, pois por que essa solidão de que ele fala tornou-se ela própria obra? Por
que essa intimidade violenta foi repousar na calma existência de um livro? No final
deste movimento, está o crítico e sua intervenção suja.
É verdade que a crítica, tal como Rilke a rechaça e tal como ela se exprime todo e a
cada dia, potência rápida, passageira nula e soberana, destinada a introduzir as
obras imprecavidamente no turbilhão e no curso do mundo, é um fenômeno
moderno. O século XVIII, que libera a arte do gosto do eterno, mostra que esse
trabalho não tem nada a ver com aquele dos autores da arte poética e dos
comentadores de Aristóteles e Quintiliano. Sua essência está ligada ao instante e à
ação. Sainte-Beuve, nas páginas que consagra a Bayle (1), chama-a (para louvá-la)
de “cotidiana”. Ela combate no dia-a-dia. Ela não tem nada de digna nem de
preocupada. Ele diz ainda: “O gênio crítico, em seu ideal completo (e Bayle realiza
esse ideal mais que qualquer escritor), está nas antípodas do gênio criador e
poético, do gênio filosófico com seu sistema; ele leva tudo em consideração,
valoriza tudo… Todo espírito que possui em si uma parte de arte ou de sistema só
admite de bom grado o que é análogo a seu ponto-de-vista, à sua predileção. O
gênio crítico não se mantém em seu centro ou a pouca distância; não escava em
seu quintal, nem em sua cidadela, nem sua academia; ele não teme rebaixar-se; vai
a toda parte, pelas ruas, informando-se, acercando-se; a curiosidade o seduz, e ele
não se poupa dos regalos que se apresentam.”
Talvez não leiamos essas linhas satisfeitas sem uma certa repugnância. Essa
alegria da curiosidade sem paixão, esse prazer da busca agradável e sem objetivo
(“a curiosidade o seduz”) e mesmo essa vocação da infidelidade, esse gosto pelas
inversões que permite a Bayle “fazer compras em toda sorte de autores”, expressão
admirável, diz Sainte-Beuve: nós podemos apreciar semelhantes traços, se muito, à
época em que vivia Bayle, quando eles significavam a tranquilidade da tolerância,
isto é, uma certa forma de insubmissão. Mas o inquietante é que tal tolerância, esta
verdadeira felicidade do espírito, nada mais é que uma indiferença de fundo, mesmo
que Sainte-Beuve veja em Bayle um espírito crítico mais verdadeiro que Montaigne,
pois lhe é inferior na arte e no estilo, mais justo que Voltaire, por não possuir a
paixão (não possui sequer a paixão amorosa, e essa falta de desejo amoroso
“serviu maravilhosamente bem a sua faculdade crítica”), mesmo que ele nos
convide a reconhecer nessa neutralidade perspicaz (ao ponto de Bayle pôr no
mesmo plano Pradon e Racine) uma das condições essenciais do gênio crítico, “o
qual, quando é pleno, consiste em correr ao primeiro sinal para o terreno de um
qualquer, em encontrar-se à vontade, em bancar o mestre e conhecer todas as
coisas.” Na realidade, como não dar razão a Rilke?
***
Notas:
(2) No original, pronome impessoal “on”. Como na frase anterior Blanchot opunha o
“je” ao “nous”, escolheu-se, na ausência de tradução melhor, manter o “nós”. [N.T. ]