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2. Dogtown

o cara mais difícil da banda / porque os ricos não têm amigos / as esposas vão nos
matar / U2 em nighttown / adam se expõe / primavera para bono

TUDO é MAIS FÁCIL em Dublin na primavera de 91. Pelo menos na área musical. Um dos
efeitos colaterais de colocar a máquina U2 para funcionar outra vez é o estrago que causa na
vida doméstica dos membros. Adam, um solteirão, não tem nada que o impeça de se
comprometer com um longo tempo na estrada. Larry tem uma namorada de longa data
chamada Ann Acheson, mas eles não têm filhos e ela tem sua própria vida e trabalho.

É diferente para Bono e Edge, cada um é casado há vários anos e têm filhos pequenos. Edge
tem três filhas. Bono tem uma filha de dois anos e uma segunda a caminho. Suas esposas têm
o direito de dizer que depois de colocar os casamentos de lado por meses ou mesmo anos
para que o U2 pudesse conquistar o mundo, eles podiam ter esperado, agora que os
objetivos da banda já haviam sido alcançados, para se estabelecerem numa vida familiar
normal. Elvis Presley, os Beatles e Bob Dylan pararam de fazer turnês após atingirem o topo
e se dedicaram a gravar álbuns e viver com suas esposas e filhos. O U2 agora está falando em
lançar o novo álbum no outono de ’91, sair em turnê pelos Estados Unidos e Europa na
primavera de ’92, voltar aos Estados Unidos no verão e outono de ’92 se houver demanda, e
então, se as coisas estiverem mesmo indo bem, mais uma turnê na Europa em ’93. Ao voltar
para Dublin com o álbum inacabado, eles têm à frente uma agenda de trabalho que fará com
que eles coloquem suas vidas domésticas em espera pelos próximos três anos.

Há caixas dentro de caixas na organização U2 e o que acontece entre os membros da banda e


suas famílias está na menor caixa de todas. Eu não sei o que finalmente o fez desencadear - e
certamente isso não é da conta de ninguém - mas perto da Páscoa, Edge muda-se de sua casa
e para longe de sua mulher, Aislinn. Ele se instala na casa de hóspedes de Adam e o trabalho
no álbum continua.

“Eu poderia contar histórias de momentos em que cada um dos outros membros da banda
estavam lá para me ajudar”, diz Edge no jantar em uma noite. “Quero dizer, houve períodos
em que Adam e eu particularmente, não nos entendíamos, ao longo dos anos. Entretanto,
quando eu deixei a Aislinn eu me mudei para a casa dele”. Edge, que raramente não consegue
se expressar ou é sentimental, tem dificuldades em dizer as próximas palavras: “Eu suponho
que os outros três são os amigos mais próximos que eu tenho”.

Pode ser difícil para qualquer pessoa de fora penetrar nessa amizade. E ninguém é tão
restrito quanto a isso do que o cabeça dura do Larry Mullen.

“As pessoas dizem: ‘Por que você não dá entrevistas? O que você pensa sobre isso? O que
você pensa sobre aquilo?’” Larry suspira. “O meu trabalho na banda é tocar bateria, subir ao
palco e manter a banda unida. Isso é o que eu faço. No final do dia, isso é tudo o que importa.
Todo o resto é irrelevante”.

Muitas pessoas neste planeta dizem que odeiam bobagens, mas ninguém odeia bobagens
tanto quanto Larry Mullen Jr. A possibilidade de que ele possa de alguma forma adicionar

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algo ao crescente montante de besteiras que ameaça submergir a nossa civilização com
exageração e absurdo o aterroriza, tanto que ele fecha a cara e se cala ao primeiro indício de
tapinhas nas costas, falsa sinceridade, agrados excessivos, puxação de saco, beijinhos no ar,
admiração exagerada, amizades só de bons momentos, oportunismo, exageros, bajulação,
lisonjas, pretensão, sorrisos falsos, carícias ao ego, lambe-botas, beijoquinhas,
comportamento servil, falar besteiras, adulação, caça-fama, chamar a atenção, adoração a
ídolo, estrelismo, ou paparicação. Cara, ele escolheu a profissão errada!

Bono diz que para Larry todo o mundo é culpado até provar o contrário - mas se ele te
declara inocente, ele não só o deixará entrar na sua casa, mas o deixará dormir na sua cama.

Larry sempre foi difícil. Ele pode dar muita risada ao contar a história de quando eram
crianças na véspera de Natal, ele e a irmã aborrecendo o pai dizendo: “Eu acho que ouvi o
Papai Noel, papai! Eu acho que ouvi o Papai Noel!” Até que o coroa irritado respondia: “Não
existe Papai Noel! Agora vão dormir!” Quando sua mãe lhe disse que ele não podia sair para
tocar em bares com o U2, por ser menor de idade e ilegal, ele respondeu-lhe simplesmente
que ele tinha de ir, não havia nada que discutir. E lá foi ele.

Larry efetivamente fundou o U2 na Mount Temple, a escola onde estudavam em Dublin


quando ele convidou Dave Evans (Edge) para começarem uma banda. O comentário se
espalhou e Paul Hewson (Bono), Adam e alguns outros garotos foram até a cozinha da
família de Larry surrar suas guitarras e cantar músicas de outras bandas. Rapidamente a
quantidade de membros foi diminuindo até chegar aos quatro personagens que são o U2
hoje. Edge era uns dois meses mais velho que Larry. Adam e Bono tinham mais de um ano
em relação a ele. Com o seu cabelo loiro e bonitas feições, Larry parecia mais jovem que os
outros. Ele parecia uma criança. Mas, Larry sempre era tão cabeça-dura, como um
minotauro. Ele brincou que desistiu de ser o líder do grupo assim que conheceu Bono, mas
que de alguma forma não definida ele continuou sendo o centro do U2 desde os tempos de
escola até agora. E nem é por ele ser a consciência da banda: é mais por ele saber quem é
cada um deles e o que cada um pode ou não se tornar, e ele nunca hesitará em dizer isso na
cara de qualquer um deles. De alguma forma, ao definir isso, Larry acaba definindo o que o
U2 é.

“O que fez o U2 sempre foi o relacionamento”, ele diz. “O relacionamento não só tem sido
pessoal, mas é também musical. Tem sido um entendimento. É cliché, mas as maiores
influências do U2 sempre tem sido cada um de nós mesmos. Nós sempre tocamos juntos. Nós
sempre tocamos uns contra os outros musicalmente. Quando viemos para Berlin estávamos
inesperadamente, em diferentes níveis musicais e isso afetou tudo. As diferenças musicais
afetaram as diferenças pessoais”.

“É muito, muito estranho o mundo em que vivemos. Eu era muito novo quando a banda
começou. Eu acabei fazendo isso por culpa de uma tragédia, de certa forma. A minha mãe
morreu e eu entrei de cabeça na banda. Isso foi o estímulo. Na estrada, eu estava cercado por
pessoas que eram mais velhas que eu e mais experientes do que eu. Eu tinha dezessete anos.
Era virgem. Eu tinha dificuldades como qualquer adolescente normal”.

“Quando você é um garoto e é jogado nisso, é muito difícil. Algumas pessoas lidam com isso
melhor do que outras. Eu sinto que talvez eu seja menos afetado hoje do que os outros
rapazes porque eu me apaixonei por isso. Eu amava isso quando era um garoto, mas então,

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quando eu saí para a estrada em turnê foi tão difícil, eu simplesmente não sabia o que estava
acontecendo, era muito complicado. Então, depois de acontecer um monte de coisas
diferentes com o sucesso da banda, eu tomei uma decisão muito clara na minha própria
cabeça de que isso é o que eu quero fazer e eu quero fazer isso com seriedade. Eu não quero
mais ser apenas o baterista do U2. Eu quero realmente contribuir com algo diferente e fazer
mais”.

Quando Larry diz que entrou de cabeça no U2 porque a mãe morreu (ela morreu num
acidente de trânsito quando ele tinha quase 17 anos), ele está entrando numa história
secreta do rock & roll. Perder a mãe enquanto ainda jovem é uma tragédia que Larry
compartilha com John Lennon, Paul McCartney, Jimi Hendrix, Madonna, Sinead O’Connor e
Bono. Acrescente ainda Elvis Presley e Johnny Rotten, dois cantores muito achegados às suas
mães que morreram logo depois que eles ficaram famosos e você tem uma ótima
representação de um dos maiores picos no sismógrafo dos quarenta anos do rock & roll.
Bono perdeu a mãe em 1974, quando tinha 14 anos. Ela desmaiou por culpa de um derrame
cerebral no funeral do próprio pai e morreu logo depois.

Larry diz que ter esta perda em comum colocou Bono e ele mais próximos. “Havia uma
conexão ali”, ele explica. “Ele entendia um pouco do que eu sentia. Eu era mais novo do que
ele. Eu não tinha irmãos. O meu pai estava fora do normal, então Bono era a ligação. Ele
disse: ‘Olha, eu entendo um pouco do que você está passando. Talvez eu possa te ajudar’. E
ele ajudou. Nos bons e maus momentos ele sempre esteve ali para me apoiar. Sempre”.

“As pessoas pensam que a banda é uma unidade que está sempre junta. Nós brigamos e
discutimos o tempo todo! Mas, eu tenho que dizer que apesar de tudo o Bono sempre esteve
lá. E foi aí onde tudo começou, essa foi a conexão original. Quando eu estava realmente na
merda, ele se disponibilizou para mim, ele estava por perto. Mesmo na estrada, quando eu
estava passando por alguns momentos difíceis eu costumava dividir o quarto com ele. Ele
simplesmente queria se assegurar de que eu estava bem”. De repente, Larry sorri e diz: “Era
um pouco como uma babá, sabe o que eu quero dizer?”

Pergunto para o Larry como sua vida foi afetada por tornar-se rico.

“Foi só depois do Joshua Tree que começamos a ganhar dinheiro”, ele diz. Isso é uma
surpresa – The Joshua Tree, que foi lançado em 1987 e vendeu 14 milhões de cópias, foi o
quinto álbum do U2. Todo mundo achava que eles eram ricos muito antes disso. “Depois do
Joshua Tree investimos muito dinheiro no Rattle and Hum. Então vimos muito dinheiro, mas
não ganhamos nenhum. Ele foi investido no filme. Lembro-me de ter saído com cerca de 20
mil dólares. Este era o dinheiro que eu tinha quando voltei para casa depois da turnê do
Joshua Tree. Houve mais depois. Lembro-me de ir até Waterford. Eu vinha economizando
por anos para comprar uma Harley para mim. Essa foi a primeira coisa real, material que eu
comprei na vida. O dinheiro começou a entrar muito, muito devagar. Não foi algo imediato.
Não foi como se fizéssemos a turnê do Joshua Tree e alguém desse cinco milhões de dólares e
dissesse: ‘Aqui está, filho, diverta-se’. Não teve nada a ver com isto, foi uma coisa muito
lenta”.

Qual foi a reação dos amigos e familiares quando eles assumiram, talvez antes que fosse
verdade: “Oh, o Larry é um milionário agora”? Todos esperavam que você puxasse o talão de
cheques depois do jantar?

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“Em parte”, ele diz. “Apenas recentemente isto se tornou algo importante, porque há
publicidade sobre isto, muitas pessoas falam sobre isto. O que me incomoda é que as pessoas
pensam: ‘Ei, veja, cem pila pra mim é um salário de duas semanas. Para você não é nada!’ Eu
acho isso incrivelmente ofensivo. Isso é tirar conclusões precipitadas. É se aproveitar. Isso é
a coisa que mais influencia o que sinto em relação a outras pessoas. Eu acho que há duas
reações claramente diferentes. Há aquelas pessoas que dizem: ‘Eu não estou nem aí para o
que você faz, eu pago a minha rodada, você paga a sua. Nós somos amigos. Eu não espero
nada de você’. E há os outros. É difícil porque as pessoas com as quais você cresceu são
geralmente pessoas que não têm nenhum dinheiro. Elas trabalham em bancos ou são
eletricistas e elas não ganham tanto. Eu acho que elas deveriam ser responsáveis por elas
mesmas e não se aproveitar. Acho que é uma falta de respeito com elas mesmas. Eu com
certeza não as respeito”.

Pergunto ao Larry porque ele disse a Bono, durante a última turnê, que não gostou do que o
U2 tinha se tornado.

“Tinha se tornado um trabalho muito sério, muito pesado. E simplesmente não era divertido.
Não tinha nada a ver com música. Tinha a ver com levantar e ir trabalhar. Visto que nos
encarregamos de muitos dos nossos próprios negócios, gastamos bastante tempo em
reuniões. Sempre fizemos isso. No palco era bom, mas também era muito intenso e muito
trabalho pesado. Você estava fazendo caretas porque estava estressado. Lembro de sair
daquela turnê e sentir: ‘Se é assim que é, eu realmente não quero mais fazer isso, eu não
posso mais fazer isso’”.

“Era apenas estressante em um nível musical. Acho que tínhamos percebido que não éramos
tão capazes de nos conectar ao mundo de outras pessoas – como o do B. B. King – quanto
esperávamos. E eu certamente achei que isso não tinha nada a ver comigo e com o lugar de
onde eu vinha. Eu estou contente por ter tido aquela experiência, mas é só isso. Eu venho de
um mundo diferente”.

Bem, eu digo, a temporada em Berlim não foi exatamente cheia de risadas.

“Não”, diz Larry. “De repente estava tentando desconectar daquele mundo diferente do
Rattle and Hum e conectar-se a outro. Isso é muito difícil de fazer. Quando nos conectamos
ao Rattle and Hum perdemos o contato com o lugar de onde viemos – que era tentar
encontrar novos caminhos. Algumas pessoas foram mais rápidas em encontrar a rota do que
outras, e isso causou uma tensão imensa na banda. Porque pela primeira vez na história da
banda, não havia um consenso musical. Enquanto que no passado, apesar de talvez nem
todos estarem de acordo, havia uma espécie de entendimento sobre o que estava
acontecendo. Desta vez, não havia entendimento. Ninguém sabia que diabos o outro estava
falando. Este foi o princípio de todos aqueles problemas”.

Tudo o que a banda estava atravessando foi colocado nas letras de Bono. É apenas nas
últimas semanas antes da data marcada para o álbum ser entregue à gravadora que a maior
parte dele se une. “A gente tende a gastar 90% do tempo em 30% do material”, Adam
explica, “e o restante acontece incrivelmente rápido”.

O U2 traz seu antigo produtor Steve Lillywhite, bem como Eno, Flood e Lanois, e todos
passam a trabalhar nas mixagens. Produtores diferentes fazem a mixagem das mesmas

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músicas e então as apresentam para a banda, que escolhe uma (ou pior, escolhe certos
aspectos de cada uma e pede a um dos exaustos produtores para combiná-las). O que surge é
uma estranha justaposição de sons frenéticos (influenciado pela música techno, hip hop e
outras tendências urbanas, mas enraizados em sólidas estruturas musicais) e letras
introspectivas sobre a tensão entre a vida doméstica e o atrativo das aventuras do mundo
exterior. A música, o próprio som, é tão cheio de vida e eletricidade que é fácil entender o
que seduz o compositor para longe das suas responsabilidades em casa; a música expressa o
quanto é divertido pode existir lá fora no mundo das boates, caixas de som, shows de rock e
raves. As palavras podem revelar a culpa e a preocupação que atravessam a cabeça do
cantor, mas a música mostra a diversão e a exuberância correndo através da sua corrente
sanguínea.

A primeira música – “Zoo Station” – começa explodindo com um bombardeio de sons


eletrônicos e distorções. A voz de Bono está tão fortemente processada, que mal soa humana.
Se você se esforçar poderá entender o que ele está dizendo: "I'm ready, ready for what's
next." [Estou pronto, pronto para o que vier].

A música materializa um ambiente como a Times Square ou o Piccadilly Circus às 11 da noite


num sábado de julho. Cheio de puxões e empurrões, amostras de hip hop, altas discussões,
imagens explosivas e guitarras gritantes. Algumas das letras de Bono soam como se fossem
lidas de camisetas numa loja de souvenirs que fica aberta a noite toda (“Don’t let the
bastards grind you down”, “A woman needs a man like a fish needs a bicycle”) [“Não deixe os
bastardos te derrubar”, “Uma mulher precisa de um homem tanto quanto um peixe de uma
bicicleta”], como se estivessem sendo recitadas por um homem naquele estado de uma noite
de sobrecarga sensorial onde apenas se balbucia as frases que acabou de ouvir.

A personagem central que emerge nessa expedição através da perdição urbana é um homem
arriscando sua segura vida doméstica ao atirar-se às tentações da noite. O álbum está cheio
de uma romântica e espiritual angústia, das negociações feitas entre casais e das
recriminações que eles lançam um ao outro quando esses acordos são quebrados. Neste
contexto, quando Bono canta “We’re one, but we’re not the same” [“Nós somos um, mas não
somos o mesmo”], soa mais como uma desculpa do que como um conforto.

Um bom efeito colateral do mau hábito de Bono de seguir mudando todas as suas letras até o
último minuto é que quando ele finalmente grava os últimos vocais para um álbum há
usualmente uma coerência narrativa em tudo. Seu antigo professor de inglês poderia te dizer
que isso resulta numa coesão novelística. Certos membros do U2, que já não têm mais unhas
sobrando, poderiam chamá-lo de o resultado de uma longa constipação intelectual que
finalmente acaba numa diarréia verbal. Eu mesmo gostaria de dizer que neste caso isso
resulta num metafórico álbum tendo a lua como uma mulher obscura que seduz o cantor
para longe do seu amor virtuoso, o sol. No meio do Lado B, o cantor, caído na sarjeta numa vã
tentativa de atirar os braços ao redor do mundo*, olha para cima e vê o sol nascendo. Ele
pergunta, "How far are you gonna go before you lose your way back home?" [“Até onde você
vai antes de perder seu caminho de volta para casa?”] Então, ele começa a restejar para casa,
exausto, eufórico, envergonhado, satisfeito, e cuidando de um nariz sangrando.
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* Atirar os braços ao redor do mundo é a tradução da frase “throw your arms around the world”,
referência à música “Tryin’ to throw your arms around the world”.

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Esse seria um lugar fácil para o álbum terminar, e no mundo de Andy Capp da maioria do
rock & roll, aí é aonde geralmente vamos desvanecendo. O U2 não deixa seus ouvintes
escaparem tão facilmente. A escuridão das dúvidas que eles criaram não pode ser exorcizada
com uma noite na cidade. As últimas três músicas enfrentam a grande questão de como os
casais começam a se reconciliar após o sofrimento que eles causam um ao outro. Em “Ultra
Violet” o cantor suplica para que o seu amor ilumine o seu caminho para casa, apenas para
descobrir que “o dia é tão escuro quanto a noite é longa” [“the day is as dark as the night is
long"]. O casal rasteja junto para a cama, incapaz de dormir. Ele se maravilha com sua
própria hipocrisia: “Eu devo ser um acrobata para falar assim e agir de outra maneira” [“I
must be an acrobat to talk like this and act like that”]. Eles decidem que se eles não
conseguem dormir, talvez eles consigam dizer os sonhos em voz alta e (aqui Bono cita
Delmore Schwartz) “começar a ter resposabilidades” [“begin responsibilities”]. O álbum se
encerra com a conclusão de que “o amor é cego” [“love is blindness”], incapaz de distinguir o
dia da noite.

Esse é o U2 em Nighttown (Cidade Noturna), um raio X de quatro homens que passaram sua
adolescência estando focados, sérios e devotos e que, ao alcançar os trinta, querem ver o que
perderam. Havia uma música gravada em Berlim que não foi parar na sequência final, na
qual Bono canta sobre querer “ver e tocar e provar tanto quanto um homem pode, antes de
se arrepender” [“to see and to touch and to taste as much as a man can before he repents”]. A
Nighttowm criada por James Joyce em Uyisses era um mundo urbano e noturno que
prometia conhecimento em troca de inocência. Ulysses era, entre outras coisas, uma paródia
da Odisseia de Homero, com o herói lutando contra os demônios de sua alma em vez de
monstros mitológicos na sua longa jornada de retorno à casa para a sua esposa. Esta viagem
que o U2 tem a intenção de empreender está apenas começando. Não há maneira de dizer o
quão longe ela os irá levar ou se todos eles conseguirão retornar.

“Eu não acho que alguma vez eu tenha voltado para casa de uma turnê sendo a mesma
pessoa de quando eu parti”, diz Bono. “Então, há sempre um momento onde as pessoas para
as quais você volta se perguntam se você vai conseguir se dar bem com elas. Ou se elas vão te
querer em casa. Eu tenho um coração itinerante. Quando eu tinha quatorze anos a minha
mãe morreu. Eu vivi com o meu pai, e era uma casa, mas não verdadeiramente um lar depois
disso. Eu sempre acabava dormindo no chão da casa dos outros. Então, em qualquer lugar
que eu estou, estou feliz o suficiente. Eu provavelmente nunca voltaria para casa se não fosse
o fato de eu ter uma família”. Bono pensa sobre isso um pouco e diz: “Acho que os problemas
reais começam quando você volta, não quando você parte”.

O novo álbum será o primeiro do U2 desde que gravadora multinacional Polygram, uma
divisão da companhia de eletrônicos multinacional Philips, comprou a Island Records, o selo
com o qual o U2 tem contrato. A Polygram pagou algo em torno de 300 milhões de dólares
pela Island, o que realmente significa – sabendo que a Island não tem nenhuma outra
celebridade viva – que eles pagaram isso para ter o U2. A Polygram está planejando um
grande empurrão para o primeiro álbum da sua banda superstar e eles precisam de alguma
informação para fazer a bola girar para as campanhas de outono, tipo: O álbum tem um
nome?

O U2 considerou o título Cruise Down Main Street, uma referência aos mísseis que cruzaram
com tanta precisão através do centro de Bagdá e ao clássico Exile on Main Street, dos Rolling
Stones. Eles falaram sobre intitular o álbum de Fear of Women (Medo de Mulheres) – mas o

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rejeitaram porque certamente ia fazer a Polícia da Pretensão sacar seus revólveres. Eles
estão determinados a não chamar a atenção para a seriedade das letras, para manter o olho
da mídia na superfície brilhante. Tudo faz parte de erigir a máscara sobre a qual Bono falou,
o falso rosto que protegerá o U2 do constrangimento de ficarem parados com o pinto à
mostra. O que parece ser uma boa idéia! Que tal isso para a capa: uma grande fotografia do
Adam parado, nu. A banda chama o fotógrafo deles Anton Corbijn e Adam, orgulhosamente,
mostra a sua masculinidade para a câmera. Adam acha que se eles usarem isso para a capa
deveriam chamar o álbum de Man (Homem) – a seqüência lógica do primeiro álbum, Boy
(Menino). Edge acha que poderia ser mais divertido usar a foto do Adam nu e chamar o
álbum de Adam, em tributo tanto ao seu baixista como ao primeiro mortal, Adão (que foi
também o primeiro homem a ser expulso de sua casa em direção ao mundo cruel).

Há uma certa preocupação na Polygram quando eles ouvem rumores sobre uma capa de
álbum com nudez. Eventualmente, o U2, incapaz de decidir dentre os muitos conceitos de
capa possíveis de Anton para usar, decide usá-las todas: criar uma grande montagem com
tudo, desde a foto do pinto do Adam até os retratos dos quatro membros da banda
espremidos em um daqueles pequenos Trabants. Anton está um pouco angustiado com a
ideia, mas não é o álbum dele. Para o nome, eles decidem por algo que nenhum crítico levaria
a sério: Achtung Baby. É uma referência – usada frequentemente em Berlim pelo técnico de
som do U2, Joe O’Herlihy – ao The Producers, o filme de Mel Brooks sobre uma dupla de
sórdidos brincalhões teatrais que tentam organizar o maior fracasso de todos os tempos da
Broadway com um musical chamado Springtime for Hitler [Primavera para Hitler].

O U2 acredita que nenhum crítico vai acusá-los de serem pomposos com um título daqueles!
Embora este crítico pense que devido ao tema do álbum, sobre a fé e a falta de fé, Achtung
Baby sugere o que Elvis Costello chamou de “fascismo emocional” – a ditadura da fidelidade.

“É um pouco fraudulento chamar o álbum de algo tão sem sentindo como Achtung Baby”,
Bono admite. “Porque debaixo daquela fina camada de lixo está sangue e entranhas. É um
álbum muito pesado e carregado. É um álbum denso”. Ele sorri. “Eu disse a alguém que eu
achava que este era um álbum denso (em inglês: dense) e espalhou-se por aí que estávamos
fazendo um álbum dance”.

“Eu penso que os verdadeiros rebeldes dos anos noventa provavelmente não são os músicos,
mas sim os comediantes. Os comediantes de stand-up. Porque eles conseguem fazer as
pessoas rirem dizendo onde elas estão. Se as pessoas vêem você se aproximar com um cartaz
elas simplesmente saem do seu caminho. O U2 tem de ser cuidadoso. E esperto”.

A propósito, em “The Producers” o contador desonesto que coloca em cartaz Sprigtime for
Hitler chama-se Leo Bloom. Talvez o U2 tenha descoberto sem querer de que eles poderiam
ser o mesmo Bloom que James Joyce enviou para Nighttown em Ulysses. Veja, se você ficar
mudando de canal durante algum tempo, as suas sinapses continuam pulsando mesmo
depois de a TV ser desligada.

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3. Achtung Bono

rock e recomodificação / por que seguir em frente / fantasmas nas máquinas


/ quando def leppard envergonhou o U2 e outras lições aprendidas do
sistema de som do carro / podemos fazer o pedido agora?

Agora que a guerra civil do U2 acabou, o álbum está completo e os membros da


banda se abraçam mutuamente com o queixo tremendo como o de um velho casal
que renova os votos de casamento, Bono sente-se à vontade para opinar sobre
onde o U2 tem que ir e porque foi tão difícil chegar até à porta de entrada.

“É difícil para as pessoas”, diz Bono durante o almoço, numa tarde, num
restaurante onde a versão de Muzak de “Over the Rainbow” adiciona um toque
especial à sua conversa sobre as suas ambições para a segunda década pública do
U2. “Se você se der conta que essa fricção torna você mais esperto, rápido e
resistente, então é certamente sábio mantê-la. Mas se você quiser uma vida fácil, se
você é feliz com o seu destino, se você vê o sucesso como seu objetivo, então
acabou. Eu tive este problema com vários membros da banda, como você sabe, e,
eu vou ser honesto, com a Ali”. Ali é a esposa de Bono, Alison Stewart Hewson. “Nós
pensamos: tudo bem, talvez leve dez anos para atingirmos nossos objetivos, mas,
quando conseguirmos, poderemos parar com toda essa loucura. Mas eu não acho
que isso seja uma loucura. Eu acho que essa é a parte divertida. Penso que não há
nada mais triste do que as pessoas que sentem que já chegaram ao final da meta. E
creio que levará só mais uns minutos para que algumas das outras pessoas
percebam o mesmo”.

“Quando você tem trinta anos, a sua vida criativa está apenas começando se você é
pintor ou escritor. Alguns não começam até terem quarenta, ou provavelmente,
não deveriam. Só que para os parâmetros do rock & roll, da maneira que
costumava ser, muitos ficaram desgastados. Eles eram estrelas em ascensão, e é
claro que elas brilharam muito forte, mas acabaram se apagando muito rápido.
Mas com muitos outros grandes artistas aconteceu exatamente o oposto, eles se
tornaram cada vez melhores. É isso que eu quero que o U2 seja. Eu sinto como se
tivéssemos provado apenas um pouco disso e que o sucesso, de uma certa forma, é
uma distração. Isso não é falsa modéstia, é a consciência genuína de que o trabalho
foi extraordinário por causa daquilo que ele se mostrou ser muito mais do que por
aquilo que ele realmente foi”.

Bono diz que depois de todo o sucesso de Rattle and Hum (o álbum, apesar das
críticas, vendeu 7,5 milhões de cópias) e repercussão, depois da queixa de Larry de
que o U2 no palco estava se transformando em uma jukebox, e também aceitar que
talvez ter abraçado as raízes americanas da música era um beco sem saída para o
U2, Bono voltou para casa depois do show de despedida em Dublin no final de
1989 sentindo-se exausto e acabado.

“Eu tive dias horríveis no Natal”, ele admite. “Uma depressão bastante conveniente
de final da década. Sabe, eu não compro a idéia de que o U2 se reinventou naquele

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momento, porque sempre senti, durante toda a nossa vida, que passávamos por
um processo de reinvenção, matar o velho, e trazer à tona o novo. Só que esse foi
apenas um assassinato mais espetacular”.

“Eu olhei para trás e disse, ‘Ok, foi maravilhoso e um bom trabalho foi feito’, mas eu
me sentia muito infeliz. Eu disse: ‘Se isso é tudo, não é o suficiente’. Eu acho que os
demais chegariam a mesma conclusão, mas precisaria de mais alguns álbuns
medíocres e eu não acho que isso seria uma boa. Então, haviam umas poucas
tarefas simples para enfrentar. Como: o ritmo agora era mesmo parte da linguagem
do rock & roll branco. Não havia como voltar atrás. Como podem três pessoas tocar
e ter vários ritmos? É preciso ter mais alguma coisa. No Unforgettable Fire a
contribuição de Brian Eno foi encontrar pequenas sequências gravadas para nós
tocarmos. Foi dessa maneira que essa coisa da tecnologia chegou até nós. Esses são
problemas práticos. Então você pode se concentrar na personalidade com que o
Adam toca o baixo, em vez de na simples marcação de tempo dele. E você pode ter
aquele tipo de martelada do bumbo da bateria do Larry sentindo ao mesmo tempo
a delicadeza de um ritmo de conga. Mas foi muito difícil e aprender a se adaptar a
essa nova tecnologia criou tensão. É um pouco como tentar ajudar alguém que está
do outro lado da rua a atravessá-la, mas que está dizendo: ‘Ei, o que você está
fazendo? Eu gosto de estar aqui!’ Mas, na verdade ele não gosta. Ele simplesmente
ainda não está preparado para atravessar a rua”.

O U2 agora abraça sequenciadores que reproduzem partes instrumentais pré-


gravadas para tornar o som mais “cheio” e permitir que os músicos toquem
acompanhamentos e contrapontos enquanto uma máquina cuida do básico. Em um
momento o U2 teria pensado nisso como uma trapaça. Agora eles a vêem como
uma libertação. Os valores que inspiraram o Rattle and Hum – “Vamos aprender
sobre as raízes e sobre como faziam os velhos compositores” – foram guardados no
fundo do baú.

“O U2 é a pior banda de casamento do mundo”. Bono dá de ombros. “Somos... Por


que nós simplesmente não admitimos isso e paramos de besteira? Por exemplo,
nós sempre tivemos ciúmes do fato de não sabermos tocar músicas de mais
ninguém. Isso deu origem a vários B-sides onde fazíamos versões cover e
tentávamos entender a estrutura da escrita musical através de outros
compositores e então aplicá-la. Essa é uma banda com uma das melhores
apresentações ao vivo do mundo e não sabemos pôrra nenhuma em termos do que
a maioria dos músicos consideraria importante. Porque todas essas bandas,
incluindo a nova safra, terem todas tocado em bandas de bar, estão todas por
dentro da estrutura do rock & roll – o que é também o motivo do porque estão tão
por dentro dos clichês do rock & roll”.

“Imitação e criação são opostos. O espírito imitador é muito diferente do espírito


criativo, o que não quer dizer que nós não pedimos, roubamos ou pegamos
emprestado uns dos outros, mas se a síntese de tudo isso não é um espírito
original, é tudo sem importância”.

“Compare o rock branco com o estado da cultura afro-americana. A posição negra é


muito mais moderna, muito mais antenada, muito mais pós-moderna. Eles estão

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pedindo, roubando e tomando emprestado, mas criam coisas novas, usando a
tecnologia disponível. O trampolim para o rock & roll foi a tecnologia da guitarra
elétrica, a caixa acústica e os circuitos integrados. Eu acho fascinante que em
Comption e no Bronx, há garotos de 16 e 17 anos que são parte da nova geração
que está conectada à toda essa nova tecnologia para criar novos sons, enquanto os
garotos da classe média das universidades da Ivy League (universidades de elite)
estão ouvindo música que é Neandertal. Não Neandertal no sentido de serem cruas
e com gritos primitivos, mas na forma e no estilo”.

Quando Bono se mete em um tema como esse não há forma de o calar. Mas vale a
pena prestar atenção porque depois do lançamento do Achtung Baby o U2 vai
colocar toda essa teoria em prática ou morrerá tentando. E naquele momento ele
poderá não estar a fim de falar tudo.

“Eu tenho uma teoria sobre a tecnologia, se você suportar ouvir isso”, diz Bono, se
aprofundando no tema. “É longa, mas é interessante. Sentados em Sunset Strip,
fora do estúdio de gravação, trabalhando na trilha sonora do Rattle and Hum em
1988, nas noites de sexta-feira nós costumávamos assistir ao desfile. Era uma visão
extraordinária todos aqueles carros equipados com sistemas de som. A gente via o
desfile dos caminhões mexicanos e ali havia um som”. Bono faz uma concha com as
mãos sobre a boca e imita a pesada e distorcida batida do hip-hop explodindo
através do reforçado sistema estéreo de som de um carro, sobre o qual ele então
canta um blues melancólico.

“Eu pensei: ‘Eu conheço essa música!’” Ele canta o blues melancólico de novo, dessa
vez apenas distorcendo as notas um pouco além da distorção do padrão ocidental
mais do que as notas do blues já se distorcem. Agora a canção hip-hop do Bono soa
árabe.

“Eu pensei, uau, esse som me lembra muito de quando eu estava viajando pela
África, gravando aquele tipo de música atonal de chamadas-e-respostas que se
encontra no norte da África. E me dei conta que uma jornada aconteceu na música
negra que é tão extraordinária. Você tira pessoas da África, à força, duzentos,
trezentos anos atrás para as plantações de algodão. Você os priva da sua própria
música, proíbe os tambores falantes. Geralmente eram esclavagistas irlandeses que
os privavam das suas formas nativas de música, já que os irlandeses eram o degrau
mais baixo do escalão social dos brancos. Dos esclavagistas irlandeses e escoceses
eles aprendem os três acordes da música folclórica celta e um novo formato surge:
o blues e, eventualmente, o gospel”.

“Tudo começa a se misturar. A tecnologia continua a mudar. Os circuitos


integrados e a amplificação eletrônica surgem e o rock & roll é este novo híbrido
que, eventualmente volta para a Europa e faz um enorme sucesso com os Beatles e
os Stones e então volta para a América onde Hendrix o leva para mais além. Então
volta para a Europa e você tem na Alemanha um grupo chamado Kraftwerk
trabalhando com puro som sintetizado, sons completamente eletrônicos, onde
você remove qualquer sinal de um instrumento musical original. É interessante,
isso volta e começa a influenciar toda a América e você tem pessoas como George
Clinton e Stevie Wonder se envolvendo com sons eletrônicos e sintetizadores. Isso

3
retorna para a Inglaterra, há uma invenção, o instrumento de sampling¹, o Fairlight
e o Synclavier. O sampling volta de novo, e a dança entre os dois continentes
continua com a música tocada pela tecnologia. E com este novo dispositivo de
sampling você é capaz de pegar e recombinar pedaços de gravações antigas e
assim surge um novo formato: o hip-hop.

“O que é completamente impressionante para mim é que depois de trezentos anos,


a música volta ao seu núcleo através da tecnologia. Você tem garotos no Bronx
arranhando discos, criando uma chamada-e-resposta, usando a tecnologia para
voltar às suas raízes. O que isso quer dizer? Isso é tão grande. Para mim, transmite
a ideia de que existem ramificações além da música”.

“Eu suponho, como um irlandês que trabalhou tão duro para tentar uma espécie de
música e reinventar o que é ser um irlandês, isso é ótimo para mim. Porque as
pessoas ouvem o U2 e dizem: ‘Bem, o que vocês estão fazendo é irlandês, mas o
modo como isso é mostrado não é’. É um espírito”.

“Essa foi uma das coisas que para mim explodiu a ideia de autenticidade, que é,
naturalmente, o slogan de todos esses grupos de rock: ‘Isso é real, porque estamos
no controle’. ‘Música Disco não presta’. Isso é errado. Comecei a ver o Kraftwerk
como uma espécie de grupo soul. E todas as ideias de autenticidade, com as quais
nós tínhamos tocado no Rattle and Hum – ‘Vamos escrever músicas acústicas,
vamos tentar fazer como outros fizeram, vamos ser fãs e aí então vamos descobrir’.
Descobrimos coisas maravilhosas, aprendemos coisas maravilhosas, escrevemos
algumas músicas das quais eu deveria me orgulhar. Mas, aquilo foi como ir por
uma estrada e depois encontrar nesse caminho a palavra: ‘Não’.”

Bono faz uma pausa para deixar o sedento bastão do meu entendimento tocar nas
profundezas das suas ideias. Antes que eu possa dizer: “Vamos fazer o pedido”, ele
continua cavando profundo.

“Paralelo a isso”, ele diz, “percebi que a tecnologia pode facilitar a liberdade. Na
verdade, o que eu acho que as pessoas não entendem sobre o negócio da música é
que as pessoas não compram aparelhos de som para tocar seus discos, as pessoas
compram os discos para fazer funcionar os seus aparelhos de som’. Pense sobre
isso sob o ponto de vista do consumidor, comprar o hardware é muito mais caro
que comprar o software². Se você está vivendo no mundo real, onde eu certamente
___________
¹ Teoricamente a técnica da sampleagem é extrair de uma gravação algum trecho da construção
musical e utilizá-la para a construção de uma nova música. Em parte ou em seu todo. "Sample", em
inglês, significa "amostra". Um sample de bateria, por exemplo, é uma amostra de som "tirado"
desse instrumento, via gravação digital, por exemplo. Quando alguém "sampleia" um som, este
alguém (ou algo) está gravando amostras de áudio para uso posterior ou não. Exemplos: 1) Baixo
do "Under Pressure" do Queen, virando base para a música "Ice Ice Baby" do Vanilla Ice. 2) Sample
da versão da Andrew Oldham Orchestra para a música dos Rolling Stones, "The Last Time" virou
"Bittersweet Symphony" do Verve.

² O conceito de recursos de hardware engloba todos os dispositivos físicos e equipamentos


utilizados no processo de informações. O software é a parte lógica, o conjunto de instruções e dados
processados pelos circuitos eletrônicos do hardware.

4
vivia quando tinha dezesseis anos, e você compra um desses filhos-da-puta, você
quer comprar um disco que toque bem nele. É por isso que os Beatles seguiram
paralelos à tecnologia. Sgt. Pepper era um álbum estéreo. Quando se escreve sobre
o sucesso do Sgt. Pepper isso simplesmente não é mencionado. Mas, eram novas
companhias de hardware comercializando essa nova tecnologia para ouvir música
e esta era uma maneira de mostrar o produto. Isso pode ser seguido pelo Pink
Floyd, à medida que ele se desenvolveu, e agora em CD, o sucesso do Dire Straits”.

Eu tenho que admitir que Bono acertou numa coisa. No início dos anos setenta,
adolescentes enlouqueceram por causa dos fones de ouvido estéreo e compravam
discos que eram mixados para tocar para frente e para trás, ou da direita para a
esquerda. Recentemente, novas bandas como o Nirvana e o Nine Inch Nails tiraram
vantagem do grande alcance dinâmico dos CDs para criar álbuns capazes de saltar
de tons muito suaves para muito altos de uma maneira que as gravações em vinil
nunca poderiam.

“E se você quer saber porque os brancos estão ouvindo rap”, diz Bono, “além
daquela coisa social do cara-branco-que-se-sente-atraído-por-coisas-das-quais-
tem-medo, tem bastante a ver com os sistemas de hardware, a aparelhagem de
som dos carros, o sistema de som das danceterias. O fundo tem que ser bem
fechado, para você poder aumentar o volume. De repente, gravações que soavam
ótimas num som estéreo ou mesmo no rádio – aquele som de rock das FMs – de
repente, não parecem tão boas comparadas com essas bandas de rap ou hip-hop.
Você sabe como é, você coloca para tocar um disco do Public Enemy e soa como se
fosse o fim do mundo!”

Bono primeiro pensou sobre isso – e sentiu que isso faltava no U2 – quando ele e o
Adam estavam fazendo uma viagem no Tennessee durante a peregrinação do
Rattle and Hum de Graceland para o Sun Studios. Um garoto lhes deu carona e
estava tocando no rádio do seu carro um álbum do grupo pop-metal Def Leppard,
produzido pelo produtor sul-africano Mutt Lange. Bono ficou chocado com o quão
poderosa a música dos Def Leppard – que nunca tinha significado nada para ele
antes – soava num envenenado, pesado aparelho de som automotivo. O motorista
ficou alucinado quando reconheceu os seus passageiros, arrancou os Def Lep e
colocou uma fita do U2. Ela não tinha nem a metade da excitação.

“‘Pour Some Sugar on Me’, do Def Leppard, é para mim um dos primeiros álbuns
industriais”, diz Bono, sabendo que está começando uma briga. “Eu ainda não
percebi plenamente quais as implicações disso. Eu acho que temos que fazer
álbuns que sonoramente façam mais uso da tecnologia. Isso é algo que ainda
precisamos fazer”.

“Isto tudo é excelente”, eu digo, acenando freneticamente para o garçom antes que
o Bono volte a falar sobre o tema, “mas, isso não faz uma banda boa se metade dos
caras não querem seguir por esse caminho”.

“Sim, mas grandes ideias são grandes persuasivos”, diz Bono. “Se você está
discutindo muito, a ideia não é suficientemente clara. Uma grande ideia é clara
para todos. E o problema que aconteceu com o Achtung Baby foi que as ideias, os

5
conceitos eram bons, mas as músicas no início não eram suficientemente boas para
convencer a todos. A recompensa não era visível. E o Danny, é claro, estava se
descabelando. Brian sabia o que estávamos fazendo e entendeu a grande diversão
que poderíamos ter desconstruído -” Bono se pega sorrindo. “Foi difícil não usar
termos artísticos. E termos artísticos, só por serem termos artísticos, chateiam
algumas pessoas. É difícil falar com um cara que está tentando criar um som de
bateria sobre recomodificação ou essa idéia que você tem de “pegar esse som e
virá-lo de cabeça para baixo como uma daquelas bolhas de Natal e ver o que
acontece”.

“É como tocar as músicas do show na ordem inversa! Vamos tocar U2 de trás para
a frente e ver o que acontece. Então foi um momento muito difícil. Eu diria que se
as músicas tivessem surgido antes – mas o motivo das músicas não terem chegado
mais rápido era que as pessoas perderam o contato. Nós todos tínhamos perdido o
contato. Osmose é o herói anônimo do rock & roll. Osmose é a maneira pela qual
pegamos tudo. A música é outra linguagem e você se torna fluente nela. Se você a
perde por não vivê-la, a esperteza pode te levar até certo ponto, mas não
realmente. Acho que estávamos meio que incomunicáveis. Eu acho que isso
também foi parte do problema. Nós chegamos a Berlim e nos demos conta: ‘Oh, oh.’
Já se passaram alguns anos desde o Joshua Tree, e de lá para cá tem sido divertido;
fazer o Rattle and Hum foi uma barbada. Ficamos em Los Angeles, aprendemos a
beber, tocamos um pouco, tínhamos um monte de cigarros e músicas e saímos com
pessoas interessantes. Isso foi a alguns anos! Nós não sabíamos o que era estar no
estúdio e pensar, isso atordoou todo o mundo. Nós não éramos tão bons quanto
pensávamos que éramos”.

____________

6
4. Tecnologia & Trabants
montando o palco / uma viagem ao bloco leste / o U2 faz as suas próprias
roupas / a perspectiva das mulheres: amarrando seus testículos e puxando /
chantageando a Phillips

O primeiro single do Achtung Baby será "The Fly", faixa escolhida porque não soa
nada como o U2. A banda imagina que, depois de ficarem sem um single do U2 por
uns dois anos, as rádios tocarão qualquer coisa que eles derem - então porque não
lhes dar uma coisa estranha?

Quando eles vão fazer um vídeo para a faixa, Bono parece uma mosca humana
numa roupa de couro preta e com uns óculos escuros enormes. Ele decide que deve
se vestir assim para a turnê. Os óculos de mosca são quase uma máscara - assim
que os coloca ele transforma-se em um personagem. A roupa preta de couro
materializa um panteão de lendas do rock - de Jim Morrison a Iggy Pop - mas a
roupa se parece mais com a que Elvis Presley usou no especial de TV que marcou a
sua volta em 1968. Como Elvis, Bono pinta de preto o seu cabelo castanho para
tornar-se a personificação de um roqueiro.

As ideias de Bono para o palco dos concertos são suficientemente ambiciosas para
fazer contadores experientes chorarem. Ele quer monitores de TV gigantes
espalhados pelo palco, transmitindo não apenas o U2, mas também comerciais, a
CNN e qualquer coisa que esteja no ar. Ele ainda tem na cabeça as imagens da
Guerra do Golfo transmitidas pela TV. O designer de palcos Willie Williams vê uma
chance de realmente ir para o Vale dos Designers. Ele quer levar a ilusão de uma
cidade toda futurista, com as grandes TV’s piscando e torres erguendo-se em
direção ao céu. Bono será The Fly escalando essa paisagem estilo Blade Runner.
Larry e Adam, já de acordo, devem parecer-se com policiais ou soldados - a tropa
de choque do futuro. Edge tem um trabalho diferente. Ele é o guitarrista, então tem
que parecer brilhante. As camisetas brancas e jeans pretos que ele costuma usar
sob o palco não têm lugar num mundo futuro. Fintan Fitzgerald, o figurinista do
U2, começa a buscar formas de vestir Edge como um herói da guitarra da Era
Hendrix, com gigantescos anéis detonadores de juntas, calças cobertas com
padrões elaborados, e um chapéu de estivador feito de algodão em vez dos chapéus
e bandanas que usualmente cobrem a sua linha capilar em recessão. Um fino
bigode e um cavanhaque de aparência maldosa completam a transformação de
Edge num bandido psicodélico.

A banda e o pessoal que faz parte do círculo interno da Principle, a companhia que
faz o gerenciamento deles, começam a referir-se ao proposto show como "Zoo TV".

É uma extensão da música "Zoo Station" e, na imaginação do U2, uma extensão


visual dos programas de rádio "Morning Zoo", populares na América e nos quais,
entre músicas estonteantes, DJ’s espertalhões fazem piadas rudes, recebem
ligações telefônicas e põem no ar gravações de celebridades em situações
embaraçosas.

1
O U2 nunca aceitou patrocínio corporativo - uma dúbia instituição torna-se um
grande propagandista dando um monte de dinheiro para uma turnê em troca de
ter autorização para fazer propaganda (até mesmo nos ingressos) que dizem
"Jovan apresenta os Rolling Stones" ou "Budweiser apresenta The Who". Assim
como o R.E.M., Springsteen, e outros roqueiros de alta-classe, o U2 sempre pensou
que - assim como vender músicas para serem utilizadas em comerciais - o
patrocínio come uma parte da integridade da música e degrada a relação entre o
artista e audiência. É como convidar alguém para ir à sua casa e tentar lhe vender
Tupperware.

Mas, seguindo o espírito irônico e o flerte com a contradição que eles querem criar
para essa turnê, o U2 brinca com a ideia de cobrir todo o palco como cartazes de
anúncios numa rua lotada da gente. Willie Williams faz esboços de um palco
recheado de logos do Burger King, Shell, Sony, Heinz, Singer, Betty Crocker, Fruit of
the Loom, e uma dúzia de outras corporações, com três TV’s do tamanho de casas
no meio. Uma mostra o Bono cantando, outra mostra um homem vendendo cerveja
e a terceiro é um close da guitarra do Edge com o slogan de uma batata frita colado
lá. Willie chama a este design "Motorway Madness". Isto levanta uma questão: se
eles decorarem o palco com os emblemas de todas estas corporações, por que não
deixar que as corporações paguem por isso? Por que não simplesmente vender o
palco para patrocinadores, tirando-lhes dinheiro e sarro ao mesmo tempo? O U2
brinca com a ideia por uns tempos e então decide que se puserem os logos
ironicamente e, ironicamente, pegarem o dinheiro, a ideia deixará de ser irônica.
Eles atingirão o ponto onde terão se vendido, e nenhum exercício semântico
conseguirá justificar. Então eles acabam com a "Motorway Madness".

Willie tem então outra ideia, que apresenta para Bono e Edge separadamente antes
de apresentar para toda a Principle. Ele acha que será hilário comprar um monte
de Trabants, aqueles pequenos e baratos carros da então Alemanha Oriental que o
U2 viu abandonados nas calçadas depois da reunificação, e pendurá-los no teto
para usar como iluminação.

Anton Corbijn sentiu-se atraído pelos carros usados nas fotos para a capa do
álbum. Willie diz, enquanto a banda ri, que eles podem deixar os carros ocos,
colocar luzes gigantes lá dentro e fazer com que pareça que os faróis dos Trabants
estão iluminando o palco.

O U2 dá autorização para Willie. O empresário Paul McGuinness se voluntaria para


liderar uma expedição às terras mais obscuras da Alemanha onde ele irá comprar
Trabants como um pedinte atrás de gado mais barato depois da Guerra Civil.
“Como uma imagem do que deu errado com o Comunismo, o Trabant é útil”,
explica McGuinnes. “Porque é um carro que faz o motorista parecer patético. É uma
coisa que o diminui. Ele também cheira muito mal e é muito desconfortável”.

A viagem através da Alemanha é menos divertida do que McGuinnes e o resto do


pessoal da Zoo TV esperava. As tropas de ocupação soviéticas que estavam
estacionadas na Alemanha Oriental antes da reunificação não têm para onde
voltar. Os alemães querem que eles saiam, mas os russos pedem para que não se
aproximem - não há casas para eles, a comida já é escassa e o governo está à beira

2
de um colapso. Em Berlim, os soldados soviéticos estão vendendo as armas e
uniformes por qualquer valor que ofereçam. Quanto mais para o leste McGuinnes e
companhia vão, pior fica. Numa das paradas ao longo da estrada, eles veem um
oficial russo - com seu longo casaco, botas e insígnias - comprando cigarros e uma
garrafa de bebida e depois saindo lentamente, sentando no para-choque do carro e
partilhando a garrafa com o seu motorista.

Quando eles chegam à fábrica da Trabant, em Chemnitz, que era até pouco tempo
chamada de Karl-Marx-Stadt, o lugar está quase deserto. Ninguém quer comprar
essas caixas de brinquedo baratas e parcialmente feitas de madeira quando tem a
oportunidade de comprar um Volkswagen ou um Audi. A fábrica de carros tinha
sido o centro da economia local desde os anos 20, quando era a Auto Union (e mais
tarde se tornou Audi).

A produção mudou para os Trabants no início da Guerra Fria. Agora acabou, e as


pessoas que trabalhavam lá estão esfomeadas. "Trinta mil pessoas simplesmente
perderam o emprego", diz McGuinness depois de meter o nariz no assunto.
"Ninguém aqui acha que os Trabants são engraçados".

McGuinness faz a tour pela fábrica. Com os Trabants saindo de linha, a fábrica
agora serve de armazém para as vans de correio à espera de entregar no leste as
correspondências que estavam retidas. Quando questionado sobre o que achava
dos planos do U2 de fazer os seus automóveis famosos no Ocidente, o gerente
entristecido diz: "Nós nos sentimos bem com relação a isso, mas já é tarde demais".

Quando McGuinness volta para Dublin, o U2 é dono de uma quantidade suficiente


de Trabants para pendurar nas vigas, brilhar no palco e conduzir através dos
camarins. Eles trazem para pintar os carros Catherine Owens, artista e velha amiga
dos tempos em que a banda dela, composta só de garotas - The Boy Scoutz -
costumava dividir o palco com os adolescentes do U2. Um dos desenhos de Owens
é o que ela chama de "O Carro da Fertilidade", um Trabant coberto com recortes de
colunas de jornais anunciando "acompanhantes" e um desenho de uma mulher
dando à luz enquanto segura dois pedaços de fios que estão atados aos testículos
do marido, "para que ele também possa partilhar da dor".

Owens empurra as suas opiniões porque, ela sente, o U2 tem homens tomando
todas as decisões criativas e estão escorregando para designs centralizados na
masculinidade. "Vamos colocar algumas curvas aqui", diz ela enquanto olha para
um design do palco com ângulos retos e caixas, enquanto os membros do U2
respondem: "Hum?"

Adam, que sabe mais sobre arte (e, dizem alguns, sobre mulheres) do que os outros
três, leva à frente as ideias de Owens e lhe dá poderes para ir à rua recrutar
artistas visuais que possam contribuir para a bombardeio de imagens que será
necessário para encher aqueles monitores de TV.

Owens vasculha a Europa e os Estados Unidos (ela mora em Nova Iorque e está
ligada a muitos artistas de lá) em busca das pessoas certas. Entre aqueles que ela
traz para a tarefa estão o videoartista Mark Pellington; David Wojnarowicz - um

3
aclamado e sensível artista foto-conceitual de Nova Iorque que está morrendo de
AIDS, e o Emergency Broadcast Network (EBN), grupo satírico performático de
multimídia, natural de Rhode Island, que usa truques de computador para
samplear imagens e sons. Um dos seus feitos de maior orgulho é um filme com o
Presidente Bush, em sequencia e editado de forma a parecer que o Presidente está
cantando a música "We Will Rock You", do Queen, enquanto bate contra o
palanque. Nos EUA, 1992 vai ser ano de eleições, e após a rápida derrota sobre o
Iraque na Guerra do Golfo, Bush é considerado imbatível. O U2 decide que este
trecho do Bush vai abrir os shows.

Enquanto Bono corre de um lado para o outro alterando sua imaginação e


limpando as contas bancárias da banda, Adam, Edge e Larry começam os ensaios
sem ele. Eles têm um monte de trabalho para discutir e onde Bono não é necessário
– como aprender a tocar com os sequenciadores e programas de som que vão
fornecer a base sonora para seus instrumentos, além de criar arranjos e
finalizações para as novas músicas serem tocadas ao vivo. Isto dá ao cantor um
tempo para se acalmar e dá aos outros três um descanso do Bono e uma chance
para se reconectarem como músicos. É um período importante para Adam, Edge e
Larry, porque os recoloca na posição de ser uma unidade de novo, depois da
divisão Bono & Edge/ Larry & Adam nos primeiros tempos do álbum. Como em
qualquer grupo de pessoas de mesmo nível, existem várias maneiras para as
segmentações dentro do U2 se configurarem.

Quando Bono encontra os outros três unidos contra ele, costuma trazer
McGuinness para lhe dar suporte. Por um tempo, nos anos 80, quando Edge, Larry
e Bono abraçaram o cristianismo carismático, era Adam e McGuinness contra os
três Renascidos. Como em qualquer família, as alianças mudam a toda hora. É
importante que antes de saírem em turnê, Edge, Adam e Larry se unam. Assim
quando Bono se junta aos ensaios, ele é sugado para dentro de uma banda unida.

Os quatro membros da banda e McGuinness dividem todas as decisões de negócios


igualmente e o U2, sem McGuinness, toma as decisões criativas - não apenas em
relação à música, mas também quanto ao palco, fotos, capas de álbuns, e por aí
afora.

Bono afirma que isso tudo começou no nascimento do U2 porque, por serem uma
banda de Dublin lutando num lugar onde não existia o negócio musical, eles não
conheciam outro caminho.

“Nós, necessariamente, não gostamos de fazer tudo sozinhos", diz Bono. "Nós
chamamos isto de 'fazer as nossas próprias roupas'. Mas, por força das
circunstâncias, nós temos que fazê-lo”. Paul McGuinness tinha muito pouco
interesse nos detalhes da vida estética da banda e era difícil encontrar nele
aconselhamento. Então tivemos que nos transformar em produtores de vídeo para
fazer bons vídeos. Tivemos que nos transformar em diretores de arte. Nós
fazíamos o álbum, fazíamos a capa do álbum, nós fazíamos os vídeos e criávamos o
design do palco. Nós usávamos mão de obra local de Dublin porque não
conhecíamos mais ninguém. Nós colaboramos com eles e crescemos juntos. Paul
nos colocou para fazer tudo sozinhos e não sei exatamente o porquê. Ele saiu do

4
caminho, para o que é preciso muita coragem. Seu instinto foi confiar no nosso. E
isso desenvolveu toda essa coisa da ‘Gangue dos Quatro’ onde nos tornamos uma
corporação. Uma gangue de quatro musicalmente, uma corporação de cinco com o
Paul, sete com a Elle (Darst, que gerencia as operações do U2 nos EUA) e Anne-
Louise (Kelly, que toma conta da Principle Dublin), oito com o Ossie (Kilkenny,
conselheiro financeiro do U2).

"Brian Eno disse 'Quase tão extraordinário quanto o que vocês estão fazendo como
artistas é essa organização - ou organismo - que parece estar evoluindo em torno
de vocês'. Nós tínhamos essa ideia de que você também poderia ser criativo nos
negócios, que você não precisaria dividir as coisas entre arte e comércio. Nós
encontrávamos esse pessoal das gravadoras durante a turnê nos EUA, e para a
maioria das bandas punk vindas do Reino Unido, eles eram o inimigo. E eu não
concordo. Eu achava que eles eram trabalhadores que entraram para o ramo da
música provavelmente pelas razões certas, e não tiveram tanta sorte como nós,
pois não foram capazes de preencher as ambições que tinham para serem músicos
e agora estavam trabalhando para indústria da música. Talvez eles tivessem
perdido o amor que tinham e eu sentia que parte da nossa missão era reacender
isso.

"Então um monte de pessoas se inspirou e reuniu-se em torno de nós, criando uma


rede, e isto nos protegeu, criou essa espécie de barreira. Então, você começa a ver a
organização sob a luz da criatividade. Você começa a dizer 'bem, essas são decisões
importantes, esse é o trabalho artístico, e essas coisas'. Então você se dá conta que,
de fato, ser um grupo é a arte".

Enquanto o lançamento do Achtung Baby e os ensaios para a Zoo TV Tour tornam-


se iminentes, as ideias do U2 se expandem mais rápido do que as contas bancárias.
Eles fizeram um plano para construir um boneco gigante do “Bebê Achtung” com
um pênis, que funcionaria para fazer xixi sobre a plateia. McGuinness sugere que é
uma indulgência muito cara. Edge começa a pensar, então, que talvez o que eles
deviam fazer é criar fotos falsas do, digamos, bebê gigante no topo da Tower
Records e tentar convencer a imprensa de que aquilo realmente aconteceu: falsos
eventos para a mídia! Isto também foi vetado.

Planos para o palco começam a se tornar mais austeros e inquietantes que a cidade
dos Jetsons pensada nos designs iniciais. Agora a banda fala em andaimes negros,
como poços de petróleo ou torres de TV, apontando para o céu e com monitores de
vídeo espalhando imagens por todos os lados. Haveria uma segunda divisão, acima
da banda, onde o Bono poderia subir. Haveria ainda duas asas nos cantos frontais
do palco, pelas quais Bono e Edge poderiam aventurar-se. A pergunta principal de
Larry para cada nova proposta era: "Quando isso irá custar?"

A imaginação do Bono não se deixa incomodar com tais preocupações financeiras.


Então, ele tem uma inspiração: “O que acham de um segundo palco enfiado no
meio da plateia e ligado ao palco principal por uma rampa?”. Então, depois de
atingiram a galera com toda essa parafernália high-tech, a banda pode se
encaminhar para o “palco B” e relaxar só com violões. Como Elvis no especial de

5
retorno em 68 que, depois de destruir o recinto com seu rock & roll, sentou-se
rodeado pelo público e dedilhou as velhas canções com a banda.

Os designers não sabem bem como farão isso, mas dizem que vão tentar.
Eventualmente, eles surgem com o desenho de uma longa rampa que parte do
palco, ao lado do Edge, e termina numa pequena plataforma. É como um grande
pulso no fim de um longo e magro braço.

A pergunta de Larry fica suspensa no ar. “Quanto vai custar?”. Um elemento


essencial para o empreendimento total é a compra de um Vidiwall, um telão de TV
gigante. A má notícia é que isso custa entre quatro e cinco milhões de dólares. A
boa notícia é que o Vidiwall é construído pela Philips, a companhia que é dona da
Polygram, que acabou de comprar a Island, que é a gravadora com a qual o U2 tem
contrato! McGuinness já esperava que a banda se reunisse com Alain Levy, o
cabeça da Polygram. A banda planeja convidar Levy para aparecer e amaciá-lo. Eles
vão convidá-lo para um jantar na casa do Adam e para passar a noite na casa de
Bono - e vão acertá-lo mostrando como seria maravilhoso se a Philips desse ao U2
o material para o Zoo Vídeo de graça - numa demonstração de sinergia corporativa.
Aqui está o hardware da Philips, o álbum da Polygram e a música do U2.

Ao jantar, Levy, um francês, não parece antipático ou excessivamente social. O que


se vê claramente é que ele é esperto. Bono se dá conta que se eles tentarem jogar
com o cara, irão apenas insultá-lo. Afinal, a Philips/Polygram acabou de pagar 300
milhões de dólares pela Island, essencialmente para ficar com o U2. Eles devem
gostar da banda. Então, durante o jantar, Bono se atira e pergunta “O que você acha
de pedir à Philips para nos dar os monitores de vídeo?”. Levy olha friamente para
Bono e diz: "Você nem espera pela sobremesa para me perguntar isso?".

Bono fica surpreso. Levy continua friamente: "Eu não sou estúpido. Eu sei porque
vocês me convidaram para vir aqui. Vou ver o que posso fazer. Vamos ver". Para o
desapontamento (e ressentimento) do U2, a Philips rejeita a proposta de Levy. O
U2 vai ter que providenciar o dinheiro para os seus telões gigantes como todo
mundo. Aparentemente os cientistas pesquisadores da companhia eletrônica se
importam tão pouco com o U2 quanto com uma lâmpada de maior duração. Levy
consegue que a Polygram disponibilize meio milhão de dólares ou um pouco mais
para apoiar a turnê, como um gesto de boa-vontade diante da frustrada tentativa
anterior em ajudar.

Quando o U2 começa a se dar conta do quão caro sairá aos bolsos para que os seus
planos sejam executados, Larry não é o único engolindo à seco. Montar a Zoo TV
poderia facilmente custar 50 milhões de dólares. Eles concordam em dar um passo
de cada vez. O álbum será lançado no Natal de 1991. Na primavera, eles farão uma
turnê em lugares fechados nos EUA e na Europa. Se o álbum não for bem recebido
ou se os shows não venderem tão rápido quanto eles esperam, talvez parem por aí.
Talvez, no próximo verão, façam um tipo de concerto televisivo como
encerramento. McGuinness sugere que podem até transmitir o tal show
diretamente da fábrica dos Trabants.

Se o Achtung Baby for um sucesso e a demanda por ingressos dos shows for

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suficientemente grande, o U2 voltará à América para tocar em estádios de futebol
na segunda metade do verão. Mas, com os custos deste show, a margem potencial
de lucro fica apenas entre 4% e 5%. Se a banda se comprometer a tocar em lugares
abertos – e a América tem um verão frio e chuvoso - eles podem ter que acabar
limpando as economias para financiar seus impulsos criativos.

Bono está inquestionavelmente encantado com as possibilidades que a nova


maquinaria - e a nova concepção de U2 - oferecem. Quando os grandes monitores
de TV chegam, eles são depositados no Factory, o prédio onde o U2 ensaia. Bono
caminha entre eles explicando o funcionamento, como um garoto contemplando
um novo trem que ganhou de Natal.

Ele me pergunta se eu estou familiarizado com as frases tipo manchete de Barbara


Kruger e Jenny Holzer. Eu estou. Elas são artistas nova-iorquinas conhecidas pelas
suas corajosas declarações.

Bono enfatiza que a música "The Fly" é cheia de novas obviedades ("A liar won't
believe anyone else"["Um mentiroso não vai acreditar nos outros"]) e quando eles
tocarem a música ao vivo, quer que os monitores mostrem todo o tipo de
epigramas, mensagens e palavreados, desde ‘Call your mother’ a ‘Guilty is not of
God’, incluindo “Pussy” ["Chame sua mãe", "A culpa não é de Deus" e "Buceta"].

"Eu realmente gosto de falar sobre o assunto rock & roll", diz Bono, referindo-se ao
palco exagerado e à sua nova persona, o próprio The Fly. "Pergunte a você mesmo
o que Dali ou Picasso teriam feito se eles tivessem o vídeo à disposição. Se tivessem
samplers, sequenciadores, baterias eletrônicas ou guitarras elétricas, fotografia,
cinematografia!"

Na verdade, eu tenho um pouco de dificuldade de imaginar. Isso me parece


realmente uma boa maneira de uma banda rica ir à falência. Outra frase de "The
Fly" é "Ambition bites the nails of success” ["A ambição rói as unhas do sucesso"].

____________

7
5. A Trip Through Edges Wires¹
nos ensaios da zoo tv / a proposta de bono para o reino dos monkees / toda a história
do U2 condensada e apresentada por the edge/ como o cão de caça do céu quase
mordeu a banda / o rock & roll hall of fame

O ACHTUNG BABY é lançado antes do Natal de 1991 recebendo boas críticas e uma forte
vendagem. Pouco depois de atingir o número um nas listas da Billboard, vem o colapso da
União Soviética. Coincidência? Deixemos que a história julgue.

Chegando a Dublin em janeiro, sou recebido no meu hotel por um bilhete do Bono: “Bem
vindo a Nighttown”. Quando me dirijo para a Factory, os ensaios da Zoo TV ultrapassaram o
ponto de ansiedade e estão se aproximando da histeria.

A Factory se encontra em um antigo moinho de pedra perto das docas de Dublin. Para entrar,
você toca uma campainha numa porta preta num muro de pedra, sobe uma escada de
incêndio interna, passa por uma porta de segurança e uma mesa, atravessa umas portas
duplas e segue por um longo corredor. Ao caminhar pelo corredor, a música fica cada vez
mais alta. Como acontece em Get Smart (“Agente 86”, filme de Mel Brooks de 1965). Então
você vira uma curva, abre outra porta e lá está o U2 detonando com “The Fly”. Bono está
ouvindo a banda, se mexendo ao lado da mesa de som e dando sugestões ao engenheiro Joe
O’Herlihy. Larry e Adam estão criando uma estranha e pesada base. The Edge está se
estendendo, preenchendo todas as cores sonoras da versão da música no álbum enquanto
canta o alto contra vocal que o Bono sobregravou no disco.

“Nós estamos tentando descobrir como chegar a todos os sons do Achtung Baby ao vivo”,
explica Bono quando a música acaba. “Basicamente, podemos fazê-lo se Edge tocar algo
diferente com cada um dos seus acessórios”.

A turnê americana do U2 começa dia 1º de março de 1992. Nesse momento, 14 de janeiro,


Bono avalia que eles estão uma semana atrasados e com apenas uma semana de sobra aqui
em Dublin antes de empacotarem os equipamentos e partirem para os Estados Unidos. Bono
diz que o material no qual eles trabalharam é tão bom que ele não está preocupado com o
atraso. Edge, no entanto, está. Ele agora entende o quanto pode dar errado em uma turnê tão
grande. “No passado” - ele sorri – “eu não sabia. Eu achava que era fácil”.

A banda pega seus instrumentos novamente e começa “Mysterious Ways”. Sobre o ritmo
inicial Bono canta: “Who loves you? Who loves you? Who loves you?” (Ele chama isso de
Kojak Mix). Edge estabelece um efeito de guitarra pós wah-wah² que sugere o que teria
acontecido se os Isley Brothers tivessem aderido à cena rave de Manchester.

___________________________

¹ Tradução: "Uma viagem através dos cabos de Edge". Trocadilho com o nome da música "Trip Through Your
Wires" do The Joshua Tree.

² Wah-wah é um pedal de guitarra eletrônico que é usado para alterar o som natural de uma guitarra elétrica.
Os pedais geralmente ficam no chão próximo ao músico e são conectados diretamente ao seu instrumento.
Geralmente os pedais são acionados pelo pé do músico que pressiona um interruptor. O efeito do wah-wah não
muda a nota tocada, mas serve para atenuar algumas frequências.

1
Às 7:30 o ensaio termina e Edge, Bono e Adam dirigem-se para o Kitty O’Shea’s, um pub nas
redondezas. O fato de ser o meu aniversário é a desculpa que esses irlandeses precisam para
iniciar uma longa noite de cerveja e conversa. O U2 volta a contar suas grandes histórias de
sempre: o encontro com o Frank Sinatra em Las Vegas, serem chamados nos bastidores do
Madison Square Garden por Michael Jackson, o brilho convincente, mas às vezes
perturbador, de Bob Dylan e Van Morrison. Esses garotos têm mantido rápidas sociedades e,
penso eu, comparando-se com os ícones que eles encontram.

Quando chegamos ao tema da “Zoo TV” e toda a ironia que ela propõe, eu peço a Bono que
me esclareça de que modo o besteirol multimídia reflete, por exemplo, a Guerra do Golfo.

“É um Guernica”. Bono responde.

Deixe-me limpar os ouvidos, Bono, pensei ter ouvido você dizer: “É um Guernica”.

“A resposta deve conter a energia da coisa que ela está descrevendo”, diz Bono. “Para
capturar a loucura da Guerra Civil Espanhola, Picasso imbuiu sua obra com aquela loucura e
com o surreal”.

Culpem minha bebida brega, mas isso começa a fazer muito sentido para mim. Suponho, eu
sugiro, que assim como em “O Rapto das Sabinas”¹, cada tentativa para usar a beleza como
um veículo para descrever a brutalidade acaba glorificando a brutalidade, e mais gerações
querem tomar parte na próxima guerra.

“É isso mesmo”. Bono balança a cabeça afirmativamente. “É exatamente isso”.

Então, a maneira de representar a guerra é como fez Picasso no “Guernica”, com deformados
cavalos gritando e facas cubistas², ou como a Zoo TV faz, com uma torrente de mídia que
mistura imagens de mísseis cruzadores e bombas nucleares com o fogo rápido de trechos
dos comerciais de TV e cantores de rock & roll em roupas de couro - uma recriação ao vivo e
no palco da visão “sentado no sofá” da Guerra do Golfo. Soa ótimo na teoria; vamos ver como
isso funciona em qualquer cidade dos Estados Unidos!

Edge tem que deixar a Irlanda antes do amanhecer para que ele possa voar a Nova Iorque
para introduzir os Yardbirds - Jimmy Page, Eric Clapton e Jeff Beck entre eles - no Rock &
Roll Hall of Fame. Edge aprecia ambos, a honra e a ironia de que um guitarrista que fez mais
do que qualquer outro para desmantelar o velho mito do “guitar hero” agora está naquele
mesmo salão, para introduzir os três maiores responsáveis pela criação desse mito. No pub,

___________________________

¹ O Rapto das Sabinas é um episódio mitológico que descreve o sequestro de mulheres da tribo dos sabinos
pelos fundadores de Roma. Esta cena foi pintada maravilhosamente por Jacques-Louis David.

² O Cubismo foi um movimento artístico fundado no início do século XX, onde a representação do universo
visual passou a não ter nenhuma obrigação com suas reais formas, no entanto não chegavam à abstração, pois
as imagens representadas ainda permaneciam figurativas, ou seja, ainda eram reconhecíveis. Os cubistas
utilizavam pontos de vistas diversos e cambiantes. Desse modo, ao olharem para uma cadeira, por exemplo, a
representavam na pintura, por diferentes ângulos: de cima, de baixo, de lado ou de cabeça para baixo. Assim,
esses artistas tentavam capturar todos esses pontos de vistas num mesmo plano. Essa é a principal
característica das pinturas cubistas.

2
o que começou como um ou dois drinks transformou-se em um ou dois barris e a terça-feira
deu lugar a quarta quando Edge vai para casa dormir por algumas horas.

Irei voar junto com o Edge, então eu me levanto para sair também, mas Bono e Adam me
lembram: “É seu aniversário”, e me convencem a ficar para mais uma rodada. Em princípio
Adam iria conosco, mas há problemas com a imigração americana devido a uma apreensão
de maconha irlandesa há alguns anos atrás, então o baixista vai acabar ficando. O que
significa que eu sou o único ainda no pub que não poderá dormir até tarde amanhã.

Após o bar fechar e os outros clientes saírem, Bono sai em busca de uma guitarra para cantar
para mim uma música country que ele escreveu chamada “Slow Dancing”. É uma bela música
sobre saudade e falta de fé - temas típicos de Nashville e do U2. Ele a enviou para o Willie
Nelson, mas nunca recebeu uma resposta.

No caminho para casa, enquanto atravessamos um túnel escuro, Bono insiste que devemos
colocar os braços no ombro um do outro e cantar o tema do The Monkees. Ele continua
chateado porque a sua proposta para o U2 adotar os nomes dos membros do The Monkees
como pseudônimo para se hospedarem nos hotéis nesta temporada foi vetada. Bono queria
ser Davy Jones, o pequeno cantor e tocador de maracas. Edge ia ser Mike Nesmith, o sério
guitarrista de chapéu de algodão. Ele achava que Adam poderia se opôr a ser o loiro burro e
desordeiro Peter Tork, mas Adam disse que não havia problema. A ideia toda afundou
quando Larry se recusou a ser Mickey Dolenz.

A versão de Edge para a história é ligeiramente diferente; ele me disse que não foi o Larry
que acabou com o plano; foi o fato de os nomes dos Monkees serem mais famosos que os
nomes dos membros do próprio U2. “Continuaríamos tendo fãs batendo nas portas dos
quartos”, protestou Edge, “mas seriam os fãs de outras pessoas!”

Bono já deveria ter aprendido a lição. Durante a turnê do Joshua Tree ele se registrou nos
hotéis como “Tony Orlando” até que numa noite ele acabou no mesmo hotel com o
verdadeiro Tony Orlando e foi um caos. Ele então trocou para um nome que provavelmente
ninguém mais teria: “Harry Bullocks”. Ele teve que desistir quando Ali se recusou a ser a Sra.
Harry Bullocks. Ele deveria aprender uma lição com Adam (“Maxwell House”) ou Larry (“Mr.
T. Bag”).

Muitas coisas estúpidas soam engraçadas quando se passa a noite inteira acordado bebendo.
É até uma espécie de piada quando Bono mergulha tão completamente no tema dos The
Monkees, enquanto dirige através do túnel, que nem vê os faróis de um carro se
aproximando de frente até que eu puxo o volante e o tiro do caminho. (Imagina se eu não o
tivesse feito. As pessoas iriam perguntar quais foram as últimas palavras de Bono e eu teria
que dizer: “Hey, hey, we're the Monkees and people say we monkey around”) [Ei, ei, nós
somos os Monkees e as pessoas dizem que é bobagem].

Toda essa hilariedade parece muito menos engraçada quarenta e cinco minutos depois de
pegar no sono, quando o alarme toca e eu tenho que me arrastar até o aeroporto para
encontrar o Edge. Quando o sol nasce estamos num avião da Irlanda para a Inglaterra, onde
faremos uma conexão para Nova Iorque.

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Enquanto olho para as salsichas gordurosas que me encaram, calculo que este dia - que
graças às mudanças de fuso-horário terá vinte e nove horas – parece estar bem longe de se
tornar um dia agradável. Um carro nos pega em Heathrow para nos levar de um terminal até
o outro, onde nós sentamos numa enfumaçada sala de embarque por uma hora e tentamos
fazer algum trabalho. A ambiciosa arrogância é que Edge e eu vamos tentar cobrir toda a
história do U2 entre aqui e o Rock & Roll Hall of Fame.

“Achtung Baby é definitivamente uma reação ao mito do U2”, Edge começa enquanto toma
sua segunda xícara de café. “Nós realmente nunca tivemos qualquer controle sobre esse
mito. Você poderia dizer que nós contribuímos um pouco, mas o verdadeiro mito é uma
criação da mídia e da imaginação das pessoas. Como todos os mitos. Existe muito pouca
semelhança com a verdadeira personalidade da banda ou com as intenções da banda, e o
Achtung Baby dá uma equilibrada nas coisas”.

“Mas o mito tem base nas personalidades”, eu protesto. (Ei, neste ponto eu queria protestar:
“Hello”.) “Por exemplo, a imagem do desenho animado do Bono pode ser uma caricatura -
mas, como todas as caricaturas, tem alguma exagerada semelhança com a pessoa real”.

“É uma caricatura de apenas uma faceta de seu caráter. É o Bono visto através das músicas.
Mas o caráter do Bono é totalmente diferente disso. Talvez, durante a nossa carreira, a nossa
habilidade para criar música, que mostra a abrangência total das personalidades do Bono e
dos outros membros da banda tenha sido muito pobre. Mas essa é a verdade - esse cara é
completamente diferente do modo como a maioria das pessoas pensa que ele é. Ele é muito
mais engraçado, se leva muito menos a sério do que a maioria acha. Ele é impetuoso, não é
reservado. Nenhum dos clichês que vem à mente quando você pensa na percepção que os
outros têm dele”.

“Esse não é um problema apenas para o Bono, é um problema para a banda toda. Todos têm
essa espécie de imagem caricata sobre como nós somos. Decidimos que vamos encontrar um
modo de poder mostrar outros aspectos de nós mesmos. Estamos explorando vias musicais
completamente novas e está sendo muito divertido. Quero dizer, nós podemos nos divertir
de verdade explorando, e isso é fantástico. Essa é a boa notícia para nós. É realmente algo
que podemos fazer! Penso que nós não estávamos realmente interessados anteriormente”.

Eu pergunto ao Edge se, pelo fato do U2 ter sido tão sério e focado quando eram ainda
muitos jovens, a banda está agora, aos trinta, passando pelo que a maioria dos jovens passa
aos vinte.

“Eu acho que há um pouco disso, sim. Esse é na verdade um ponto bastante importante. Ao
longo da nossa carreira a gente vem enfrentando problemas e lutando pela sobrevivência:
em primeiro lugar para sair da Irlanda, depois conseguir um contrato, e por fim fazer isso
acontecer. E acho que finalmente chegamos a um estágio em que percebemos que
poderíamos relaxar um pouco. Continua não sendo fácil, mas não precisa ser tudo ou nada”.

“Você acha que Bono estava falando com você em algumas letras do Achtung Baby?”

“Acho que o que estava acontecendo na minha vida teve uma influência sobre o Bono e,
consequentemente, nas letras de algumas músicas”, diz Edge tranquilamente. “Com toda a
certeza. Muitas pessoas têm interpretado as letras como se fossem a história do meu

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casamento acabando. Não estou negando que isso teve uma certa influência, mas acho que
há muitas histórias ali e não apenas a minha história”.

Sugiro ao Edge que teria sido fácil terminar o álbum com “Tryin'to Throw Your Arms Around
the World”, deixando o ouvinte sair com esse final que dá a impressão que tudo foi
perdoado. Mas o U2 faz a gente voltar para dentro de casa com eles e enfrentar as
consequências de suas traições.

“Sim, não é um final muito reconfortante, não é?” Diz Edge, e então ele pensa um pouco e
acrescenta: “Mas, está bem assim, eu acho. Suponho que foi isso que aprendemos. Nem tudo
está bem lá fora. Mas é assim que as coisas são”. Nosso vôo é chamado enquanto estamos na
metade do nosso segundo café da manhã e nos dirigimos para o portão de embarque,
passando por dois jovens londrinos que olham e gritam: ‘Ei, Edge. Que tal um autógrafo?’
Uma vez afundados nos agradáveis e confortáveis assentos da isolada primeira classe, nós
voltamos o relógio atrás, para o nascimento do U2 e começamos a nossa escavação a sério.

“Eu acho que tudo realmente começou quando peguei uma guitarra elétrica aos quinze anos
e toquei um monte de covers”, diz Edge. “Aprendendo alguns acordes de Rory Gallagher ou
qualquer outra coisa. Então, de repente, você está nessa banda e surge toda essa música
fantástica que desafia tudo aquilo que você acreditava sobre o que era a guitarra elétrica. De
repente, a questão é: ‘O que você está querendo dizer com seu instrumento?’ E não: ‘Você
consegue tocar esse acorde?’ ou ‘A que velocidade você pode tocar? O que está sendo
comunicado nessa música?’ De repente, a guitarra não é uma coisa para ser agitada diante do
público, mas agora é algo que você usa para alcançar a galera. Se você estivesse na quarta fila
do show do Jam no Top Hat Ballroom em Dunleary, em 1980, quando Paul Weller tocou
aquela Rickenbacker de doze cordas, aquilo significava alguma coisa e dizia algo que todos
naquele prédio sabiam. Havia outras bandas, outros guitarristas. Todos soavam diferentes,
mas todos eles tinham aquela coisa em comum, que era o fato de terem algo por trás daquilo
que faziam, que era comunicar alguma coisa”.

“Eu tive que reexaminar totalmente a minha maneira de tocar. Foi um desafio muito grande
agarrar-se ao seu estilo e dizer: ‘Bem, o que é que você está dizendo? Sobre o que é essa
música? O que essa nota significa? Por que essa nota?’ Muita coisa má desse blues-branco
dos bares que reinava na época, eram simplesmente guitarristas correndo pelo braço da
guitarra para baixo e para cima. Era tipo uma masturbação. Não fazia sentido algum, era só
ginástica. Eu comecei a tentar descobrir o que essa coisa pendurada no meu pescoço poderia
fazer no contexto dessa banda. Músicas estavam aparecendo e ‘Bem, isso parece estar
funcionando’ e integrando o eco, colorindo o som, controlando o tom da guitarra. Eu não
estava atrás de pureza, eu estava atrás do oposto. Eu estava tentando esculhambar o som o
máximo possível, tentando algo que fosse realmente bagunçado, definitivamente adulterado,
obtendo uma característica que não era o som normal da guitarra”.

“Então, acho que de repente vi chegar esse novo estilo. Comecei a ver como as notas
realmente significam algo. Elas têm poder. Eu penso nas notas como coisas caras, preciosas.
Você não as toca simplesmente. Eu busco aquelas que fazem o melhor trabalho e são essas
que eu uso. Acho que sou minimalista instintivamente. Não gosto de ser ineficiente se eu
puder evitar. Como no final de ‘With or Without You’. O meu instinto foi usar algo bem
simples. Todo mundo dizia: ‘Não, você não pode fazer isso’. Eu ganhei a discussão e ainda
creio que foi algo corajoso, porque o final de ‘Withor Without You’ poderia ter sido muito

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maior, ter um clímax muito maior, mas há um poder naquele final que eu acho que é ainda
mais potente porque esse poder está contido”.

“Acho que, no final, eu estou interessado na música. Sou um músico. Não sou um pistoleiro.
Essa é a diferença entre o que eu faço e o que fazem muitos dos guitar heroes”.

Depois de dez ou doze anos nisso, digo a Edge que ele pode ver a grande quantidade de
guitarristas que ele tem influenciado.

“Sim”. Ele concorda. “Infelizmente, quando algo é simplificado até um estilo básico, aqueles
que copiam o estilo estão basicamente copiando algo muito chato. Você pega o que eu faço, o
transforma numa fórmula pequena e simples e tenta aplicá-la num outro contexto, outro
guitarrista, outra música - vai soar terrível. Acho que foi isso que provavelmente aconteceu
com Jeff Beck e Eric Clapton e Jimmy Page. Muitas das suas grandes ideias foram usadas por
outros guitarristas em outras bandas e o resultado foi uma música muito ruim. Heavy Metal,
por exemplo”.

Os primeiros álbuns do U2 foram dominados por um pesado efeito de eco na guitarra de


Edge. Isso encheu o som da banda, encobrindo o fato de que nem o guitarrista, nem o
baixista nessa banda tocavam muito bem. Isso também deu às primeiras músicas do U2 uma
certa áurea e – não menos importante – deu ao material uma personalidade única. O U2
tinha um som.

Edge diz que tudo começou com Bono: “Nós tínhamos uma música na qual estávamos
trabalhando chamada ‘A Day Without Me’ e o Bono não parava de dizer: ‘Eu ouço esse eco,
como um acorde se repetindo’. Então eu disse, é melhor eu arranjar uma unidade de eco para
este single. Eu levei uma para o ensaio e a testei de várias maneiras atingindo um sucesso
limitado. Na verdade eu não gostei nada daquilo, eu achava que aquilo enlameava o som.
Então eu comprei a minha própria unidade, uma Memory Man Deluxe fabricada pela Electro-
Harmonix. A Electro-Harmonix fabricava as coisas mais baratas e vagabundas para guitarra,
mas elas sempre tiveram uma grande personalidade. Essa Memory Man tinha um som único
que eu realmente adorava. Comecei a tocar com ela durante semanas, integrando-a nas
músicas que já tínhamos escrito. Depois que comecei a usá-la, um novo conjunto de músicas
começou a aparecer”. Ouve um momento em que o Bono disse: “Oh, não, eu criei um
monstro! Desligue esse eco!?”

“Quando estávamos fazendo o álbum War, todos nós - principalmente o Bono - sentíamos
que deveríamos tentar nos livrar dessa coisa do eco”, diz Edge. “Foi uma tentativa muito
consciente de fazer algo mais abrasivo, menos etéreo, mais duro. Distanciando-nos do que
havíamos feito antes. Eu percebi que o eco poderia se tornar uma armadilha. Há algumas
coisas que você pode fazer com uma guitarra e com o eco que soam impressionantes, mas eu
podia ver que elas eram becos sem saída. Eu sempre as deixo de lado e volto para elas. Eu
não gosto de usar efeitos de uma maneira óbvia. Você enjoa das mesmas texturas. A
variedade se torna importante”.

Entre o primeiro álbum, que estabeleceu o U2 como uma banda underground importante, e
War, que começou a movê-los para o pelotão de frente, MTV, a encabeçar festivais e encher
arenas, veio o problemático segundo álbum, October. Gravado às pressas, com Bono
improvisando as letras depois do seu caderno de composições ter sido roubado, o álbum

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refletiu o momento em que o U2 quase se desfez devido à dedicação de Bono, Edge e Larry
ao cristianismo carismático, para o desapontamento de Adam e McGuinnes.

“Acho que o October sofreu como álbum por causa do pouco tempo que tivemos para
prepará-lo, mas na verdade é um álbum muito bom”, diz Edge. "Tem muita espontaneidade,
é realmente fresco, porque não tivemos tempo para fazer as coisas de outra maneira. Eu
gosto de ‘Stranger in a Strange Land’, ‘Tomorrow’. ‘October’ era uma música que poderia ter
ido a lugares diferentes, mas não tivemos tempo para fazer mais nada com ela, então
dissemos: ‘Bem, vamos simplesmente colocá-la como está’”.

“October é um álbum muito europeu porque pouco antes de escrever aquelas músicas e
gravar o álbum, passamos todo o nosso tempo viajando pela Europa. Nunca havíamos estado
na Alemanha, Holanda, Bélgica, França. Dirigimos através dessas sombrias paisagens de
inverno da Alemanha. Aqueles tons e cores definitivamente surgiram nas músicas que
escrevemos”.

“Foi realmente uma experiência que nos abriu os olhos. Boy foi escrito e gravado no contexto
de Dublin. Quatro caras se juntam, decidem formar uma banda, escrevem algumas músicas
porque eles se sentem inspirados por esse enorme e novo tipo de música que está
acontecendo do outro lado da água. Há todos esses álbuns que apareceram: the Jam, Horses,
da Patti Smith foi um álbum fascinante para nós, Television, Richard Helland the Voidoids.
Foi um período incrível, extremamente excitante. Mas, aqui estávamos nós em Dublin,
tentando entender o que estamos ouvindo, tentando dar sentido a nossa própria vida no
contexto de Dublin. Então, acabamos no meio da Europa numa van Transit, dirigindo pelo
corredor entre a Alemanha Oriental e a Ocidental em direção a Berlim. Isso nos deu uma
perspectiva totalmente diferente. De uma maneira estranha foi uma perspectiva mais
irlandesa, porque, de repente, nosso sentimento irlandês tornou-se mais tangível para nós,
muito mais óbvio, talvez até mais importante”.

“October foi uma luta do início ao fim. Para nós foi um álbum muito difícil de fazer porque
tínhamos um grande problema com o prazo. E eu estava passando por isso tudo sem saber
se deveria estar na banda ou não. Foi muito difícil manter todas as coisas no lugar e ainda
continuar focados em realmente acabar a gravação no tempo que tínhamos. Você podia ouvir
o desespero e confusão em algumas das letras. ‘Gloria’ é na verdade uma letra sobre não ser
capaz de expressar o que está acontecendo, não ser capaz de deixar de lado, não saber onde
estávamos. Tendo nos atirado nisso estávamos tentando que isso fizesse algum sentido. ‘Por
que estamos nisso?’ Foi um período muito difícil”.

“Você, o Larry e o Bono estavam tendo dúvidas sobre se era certo para vocês como cristãos
dedicarem a vida a uma banda de rock”.

“Era conciliar duas coisas que pareciam para nós naquele momento serem irreconciliáveis”,
diz Edge. “Nós nunca resolvemos as contradições. Essa é a verdade. E provavelmente nunca
o faremos. Há agora ainda mais contradições”.

Mesmo na época do October o U2 resistia a falar em público sobre seu cristianismo. Lembro-
me de ter escrito um artigo sobre o U2 no exato momento em que o futuro da banda estava
em dúvida - uma batalha que todos ao seu redor estavam tentando arduamente esconder do
mundo exterior. Eu sabia sobre a fé do U2, mas quando eu falei com McGuiness ao telefone e

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lhe pedi para falar publicamente sobre o assunto ele retrocedeu como um homem a ponto de
pedalar com sua bicicleta diretamente para um precipício.

“Eu ainda estava muito nervoso com relação ao rótulo de cristão”, diz Edge. “Não tenho
problemas com Cristo, mas tenho problemas com muitos cristãos. Esse era o problema. Nós
queríamos nos dar a chance de ser vistos sem esse assunto pairando sobre as nossas
cabeças. Eu não acho que estamos preocupados com isso agora. Além disso, naquela época
estávamos passando pela nossa fase mais aberta, espiritualmente. Foi incrivelmente intenso.
Estávamos tão envolvidos naquilo. Foi uma fase das nossas vidas onde estávamos realmente
concentrados e dedicados à fé mais do que em qualquer outra coisa. Exceto Adam, que
simplesmente não estava interessado”.

O distanciamento de Adam do resto da banda naquela época era fácil de notar. O cara mais
interessado na diversão de ser um rockeiro encontrou-se na ridícula posição de finalmente
ver a sua banda ter um contrato de gravação, fazer turnês internacionais e começar a
construir uma grande reputação - quando os outros três caras começaram a falar em rejeitar
tudo aquilo. Adam não estava feliz. Um amigo meu que tinha recentemente sido forçado a
sair de uma grande banda estava passando uns tempos na minha casa quando o October foi
lançado. Ele olhou para a foto da capa, apontou para o Adam, e disse: “Esse cara vai ser
demitido. Veja como os outros três estão formando um círculo e ele está fora”.

Eu digo isso ao Edge e ele fica surpreso. “Bem, ele estava errado, mas também estava certo”,
diz Edge sobre a análise do meu amigo. “Nós nunca cogitamos despedir o Adam. Isso teria
sido completamente ridículo. Mas, acho que o Adam se sentia meio isolado, marginalizado
durante aquele período. Não era nossa intenção fazer aquilo, mas eu acho que era inevitável
que ele se sentisse um pouco como o cara esquisito”.

Mesmo depois que Bono e Larry decidiram que era bom continuar com o U2, por umas duas
semanas em 1981 espalhou-se o rumor que Edge havia desistido. Lembro-me de um
completo silêncio nas bases operacionais do U2, até que recebi um telefonema de Ellen Darst
dizendo que o fogo tinha se extinguido, e Edge continuava na banda.

“Na verdade, não deixei a banda”, diz Edge, “mas houve um período de duas semanas em que
eu coloquei tudo em stand by e disse: ‘Nesse momento, em minha consciência eu não posso
continuar nessa banda. Portanto esperem. Quero me afastar e pensar sobre isso. Eu só
preciso de algumas semanas para reavaliar para onde estou indo e se eu posso realmente me
comprometer com essa banda ou se é o momento que eu apenas tenho que recuar’. Porque
tínhamos muita gente nos nossos ouvidos dizendo: ‘Isso é impossível, vocês são cristãos,
vocês não podem estar numa banda. É uma contradição e vocês têm que ir por um caminho
ou por outro’. Elas também disseram muitas coisas piores do que isso. Então eu só queria
descobrir. Eu estava cansado de pessoas que na verdade não sabiam e eu não sabia se isso
era certo pra mim. Então reservei duas semanas. Mas, em um ou dois dias eu simplesmente
soube que aquilo era bobagem. Nós éramos a banda. Ok, é uma contradição para alguns, mas
é uma contradição com a qual eu sou capaz de conviver. Eu simplesmente decidi que eu ia
viver aquilo. Eu não ia tentar explicar porque eu não podia. Então eu segui em frente a partir
daquele ponto, e foi ótimo no sentido de eu me livrar de todas aquelas idiotices. Era tipo:
‘Acabou. Certo, essa banda vai em frente, não há dúvida na cabeça de ninguém’. Então fomos
em frente”.

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“Lembro-me de caminhar pela praia e dar a notícia para o Bono. ‘Escute, amigo, eu realmente
preciso pensar sobre isso. Eu não posso continuar a menos que eu realmente entenda’. Ele
meio que olhou pra mim e eu pensei que ele ia sair da real, mas na verdade ele disse: ‘Ok,
tudo bem. Se você não está disposto a continuar, então é isso. Nós vamos desfazer a banda.
Não faz sentido irmos em frente’. Eu acho que ele se sentia exatamente como eu, só queria
saber que caminho seguir. Então, uma vez tomada a decisão, seria assim, não haveria mais
dúvidas, não haveria mais segundas chances. Não teríamos mais que aceitar o conselho dos
outros. Esse seria nosso destino”.

Vocês tinham uns vinte anos naquela época. Agora vocês têm trinta. Vocês sentem que as
suas velhas crenças não fazem mais sentido para vocês?

“Creio que mudamos muito as nossas atitudes desde aquela época”, diz Edge. “A fé central e
o espírito da banda são os mesmos. Mas eu tenho cada vez menos tempo para a legalidade.
Eu apenas vejo que vivemos uma vida de fé. Não tem nada a ver necessariamente com as
roupas que você veste ou se você bebe ou fuma ou com quem você vê ou não vê”.

A aeromoça aproxima-se com o nosso terceiro café da manhã. Enquanto voamos para Oeste
o relógio continua correndo para trás, nunca fica mais tarde. Eu pergunto ao Edge sobre o
quarto álbum do U2, o primeiro com Eno e Lanois. “A maioria dos seus álbuns captura um
momento”, eu digo pra ele. “The Unforgettable Fire é o único que é completamente
atemporal”.

“É interessante você dizer isso”, diz Edge, passando manteiga num pão e em mim ao mesmo
tempo. “Nós tivemos discussões sobre esse mesmo ponto. Existe uma qualidade em um
grande trabalho, que é ser atemporal. Você precisa equilibrar o fato de ser relevante e
comentar sobre algo que está acontecendo hoje com a tentativa de alcançar esta
atemporalidade. Unforgettable Fire é provavelmente menos preso a qualquer tempo, é mais
um trabalho que em dez anos significará o mesmo que significou quando foi lançado”.

“No Unforgettable Fire, provavelmente mais do que nos nossos outros álbuns, a música tem
uma voz tão forte que os vocais do Bono são quase como outro elemento musical. Nós fomos
acusados de que era uma espécie de desculpa, de que já não estávamos mais escrevendo
músicas, que aquilo era um trabalho indisciplinado. Eu conseguia ver de onde provinham os
comentários, provavelmente baseados em um final de semana ouvindo o disco, mas eu sabia
que este disco iria mais longe. Não se trata do U2 agora fazer algum tipo de arte, mas na
verdade havia algo ali que era realmente valioso e duradouro. Eu ainda ouço esse disco”.

A gente dá uma pausa na viagem através dos caminhos da memória enquanto Edge escreve o
discurso que ele fará hoje à noite ao introduzir os Yardbirds no Rock & Roll Hall of Fame. Ele
rabisca, lê trechos para mim enquanto eu resmungo minha aprovação. Entramos numa longa
discussão sobre a pronúncia correta do nome de Chris Dreja. Depois disso, tentamos assistir
o filme do vôo, Regarding Harry, com Harrison Ford interpretando um cara mau e
materialista que se transforma em simpático e amável depois de levar um tiro na cabeça. Se
a minha própria cabeça estivesse limpa eu faria uma terrível metáfora com isso sobre algum
aspecto do U2, portanto considerem-se com sorte porque Edge desiste do filme e nós
começamos a conversar novamente. Pergunto se o tamanho da operação que o U2 está
montando para essa turnê é intimidante.

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“Sim, um pouco”, diz Edge. “Mas, no fundo, o mais intimidante são as expectativas. Eu
realmente não me preocupo com os erros. Nunca tive problemas com os erros. Há uma coisa
que acontece conosco no palco, uma certa faísca, uma certa eletricidade. É impossível
descrever mas é como se isso fosse o show, entende? Isso é algo que a banda sempre teve.
‘Química’ descreve apenas um aspecto disso. Nós não tocamos há algum tempo e estamos
presumindo que aquele espírito, aquela faísca ainda vai estar lá. Não sei se isso vai
acontecer. Lembro-me de shows em que não estava lá. Fiquei apavorado. Era tipo: ‘Oh... isso
pode se perder!’ Isso nos abriu os olhos. Acho que se eu tivesse algum medo obscuro seria
essa eletricidade, esse espírito desaparecer”.

Você acha que se perdeu em Berlim, nas sessões iniciais de gravação do Achtung Baby?

“Houve alguns momentos muito difíceis”. Edge suspira. "Todos nós fomos severamente
testados. Ultrapassar aquele obstáculo e continuar com as gravações e acabá-las não foi fácil.
Nós conseguimos sair daquela tempestade e creio que seja um grande álbum. Eu estou
encantado com ele. Na verdade, eu acho que o U2 ainda tem muitos grandes álbuns pra
gravar. Penso que ainda seremos bons por pelo menos mais uns dez anos. Acho que estamos
melhorando em quase todos os níveis, e o compromisso ainda existe”.

Pergunto o que ele acha que estava faltando em Hansa.

“Para colocar em uma única palavra, a magia simplesmente não estava lá. Se era tocar, o
material, os arranjos, a direção do material, o estúdio, o som da flauta, quem sabe o que era?
Simplesmente não estava acontecendo”.

Talvez para evitar culpar os outros membros da banda, Edge tende a concentrar suas
frustrações iniciais de Berlim em Daniel Lanois. Larry me avisou para ter cuidado com esse
assunto, dizendo que Danny estava no mesmo barco tanto quanto qualquer um deles. Lanois
era um desconhecido quando Eno o trouxe para acompanhar a gravação do Unforgettable
Fire, mas desde então desenvolveu um estilo distinto, terrenal e etéreo, que ele trouxe para
dois fantásticos álbuns com suas próprias músicas, além de produções para Peter Gabriel,
Robbie Robertson, Bob Dylan e os Neville Brothers. Edge sugere que Lanois deve ter cuidado
para que esse som sedutor não se torne clichê.

“No Achtung Baby, Danny sabia que não voltaria ao pântano”, diz Edge. “Ele sabia que isso
seria algo diferente. Eu não acho que ele apreciou plenamente o quão diferente seria e o
quão difícil seria para ele se ajustar. Houve algumas semanas que era: ‘Será que o Danny
entendeu isso?’ Mas, o Brian chegou e Danny e Brian trabalham muito bem um ao outro,
porque o Brian é muito claro, tem muita opinião e é muito objetivo. Danny, em comparação,
é instintivo. Ele se alimenta do lado téorico de Brian, mas ele tem toda essa música saindo
por todos os poros. Então, Danny estava satisfeito com o que Brian estava sentindo e
pensando, com base no que estávamos dizendo e tocando. Danny realmente começou a
entender e foi muito bom”.

Nos EUA, um homem acusado de assassinar uma jovem atriz de televisão chamada Rebecca
Schaeffer afirmou ter sido inspirado ouvindo à música “Exit” do U2, que é uma viagem
dentro da cabeça de um homem violento perdendo controle. Bono diz que isso parece ser
manobra de um advogado esperto tentando criar uma defesa dramática, mas é algo que o U2
não gosta de chamar atenção. Quando eu menciono isso para o Edge ele fica irritadiço.

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“Bem, o que você quer que eu diga?” ele pergunta. “Creio que é algo muito sério. Nos remete
de volta à autocensura. Deveriam os artistas desistir de lançar algo por ter medo do que
alguém irá fazer como resultado do seu trabalho? Eu odiaria ver a censura aparecer, quer
seja do governo ou, no meu ponto de vista, pessoal”.

“Exit” é do The Joshua Tree, seu álbum mais popular, com o U2 explorando a América. Eu
pergunto para o Edge o que é que a banda estava tentando capturar.

“Eu acho que o álbum foi uma mola propulsora para o Bono como compositor. Ele estava em
busca de algo. Os pontos de referência foram o Novo Jornalismo, The Executioner’s Song de
Norman Mailer, Raymond Carver, a sombria paisagem do deserto americano como metáfora.
Há definitivamente uma locação cinematográfica, uma paisagem de palavras e imagens e
temas que compõem The Joshua Tree. É um equilíbrio sutil, uma mistura de músicas e
letras”.

O cume emocional do ábum era “Bullet the Blue Sky”, uma música que começou em Dublin
antes de Bono e Ali viajarem para a América Central em 1986. Bono tinha uma noção muito
romântica de que se ele fosse escrever sobre os Estados Unidos, ele tinha que ver o pior lado
do sonho americano, o imperialismo que se manifestava numa guerra não declarada em El
Salvador e Nicarágua. Ele voltou para a Irlanda com letras sobre o que ele havia vivenciado e
um desafio para o Edge: “colocar El Salvador através do seu amplificador”.

Edge tocou como um ataque de bombardeio aéreo nessa faixa, liberado pelo tema para se
permitir usar um pouco dos músculos da pesada guitarra rock que ele geralmente evita. Um
pouco do sucesso do seu solo foi acidental - ele não sabia que estava sendo gravado e não
tinha os fones de ouvido colocados, ele estava apenas brincando com os estranhos ruídos da
guitarra quando ele ergueu os olhos e viu Bono e Lanois olhando através do vidro do estúdio
fazendo sinais positivos para ele e dizendo: “Yeah! Yeah!”

Pergunto ao Edge o que lhe passa pela cabeça quando toca “Bullet” no palco.

“Uau”. Ele sorri. “‘Espero não fuder com ela!’ É obviamente um som incrivelmente sombrio.
Nós costumávamos chamar essa parte do show de ‘O Coração das Trevas’. De ‘Bullet’ até
‘Exit’ era tudo muito, muito intenso. Às vezes, o Bono saía do palco sem abandonar a
personagem. A escuridão ainda estava lá com ele. Às vezes, era duro para ele livrar-se
daquilo e se concentrar em tocar as próximas músicas. Essa escuridão tem um certo tipo de
adrenalina”.

Por falar nisso, o crítico britânico Mat Snow escreveu na Q Magazine que “Until the End of
the World”, do novo álbum, que parece ser um diálogo entre um cara machão e uma mulher
que ele acabou de dar um beijo de despedida, é na verdade Judas falando com Jesus.

“Sim”, disse Edge. “Há um poeta irlandês chamado Brendan Kennely que escreveu um livro
de poemas sobre Judas. Uma das estrofes é: ‘Se você quer servir a época, tem que traí-la’. Isso
realmente mudou minha cabeça. Ele é fascinado por todo o conceito moral de ‘Onde
estaríamos se Judas não tivesse existido?’ Penso que existe alguma verdade em chamar a
atenção para esse tema, e você, por um lado, está traindo uma espécie de regra não escrita,
ao mesmo tempo que também a está servindo”.

11
Bono até escreveu uma revisão entusiásta para o Livro de Judas, de Kennelly, para o Irish
Sunday Press, e de forma entusiasmante: “Essa poesia é tão pesada como o heavy metal, tão
alta quanto o espírito santo consegue voar, cômica e trágica, da ladainha à crítica, gritando às
vezes, elevando-se em outras. Como Davi nos salmos, como Robert Johnson no blues, o poeta
rascunha Screwtape Letters para um Deus que pode ou não tê-lo abandonado e, é claro, para
todos os que estiverem o ouvindo”. No mesmo jornal, Kennelly escreveu uma resenha do
Achtung Baby com o entusiasmo de um lisonjeador, mas sem nenhuma evidência de que
tenha ouvido o disco mais de uma vez.

O avião está aterrisando no aeroporto JFK. Eu posso ver a minha cama daqui! Mas, ela não
me dará as boas vindas tão cedo. Edge é levado através de um portão especial da alfândega
para VIPs e somos apresentados à nossa limosine que nos espera. O que torna o Edge
sofisticado, entretanto, não é aquele tipo de tratamento a la Imelda Marcos; o que o torna
sofisticado é que ele não está carregando nenhuma outra roupa. Ele vai vestir a mesma
roupa, um mal combinado jeans e casaco do deserto que ele vestiu no escuro em casa, em
Dublin. Irá usá-la num palco em Nova Iorque, ou fazendo um discurso em frente às pessoas
mais importantes do mundo da música e muitas lendas do rock, vai tocar guitarra numa
sessão de ensaio só com estrelas e então, provavelmente, vai socializar até o amanhecer e
depois vai pegar um avião de volta para Dublin onde os ensaios do U2 continuam.

No caminho para o banquete, eu encho o ouvido prisioneiro do Edge com a minha teoria
sobre a diferença entre os tipos de trio poderosos que Beck, Clapton e Page criaram depois
dos Yardbirds e o U2. “O Jeff Beck Group, Cream e Led Zeppelin surgiram a partir do modelo
do Hendrix - um guitar hero explodindo solos poderosos enquanto o baixista e o baterista
tocavam em apoio”, eu digo. “O U2 parece ter mais em comum com o modelo do The Who,
onde todas as três peças são iguais e a guitarra é a cola”.

“Sempre tive um pequeno problema com toda essa ideia de guitar heros e guitarristas
matadores”, diz Edge. “Na verdade isso nunca me atraiu. Eu acho que o Townshend é
diferente dos outros guitarristas que você mencionou porque ele é, primariamente, um
compositor. Ele entende a importância de tocar guitarra dentro da perspectiva da
composição musical, ao contrário de tocar guitarra simplesmente como forma de se
justificar. Posso apreciar, creio eu, guitarristas que simplesmente sobem lá e improvisam
sobre um baixo e uma guitarra, mas não é algo que me interessa tanto assim”.

Edge, entretanto, faz um grande discurso introduzindo os Yardbirds ao Hall of Fame, e


sugere, diplomaticamente, que a sombra que eles lançaram era tão longa que guitarristas
como ele mesmo têm que se dedicar a descobrir algo que saia daquilo que eles já têm feito.

À meia noite, hora ocidental (5 da manhã em Dublin) ele está no palco do Hotel Waldorf-
Astoria, tocando “All Along the Watchtower” e outras músicas onde a guitarra se destaca
com uma banda de estrelas que inclui - alinhados juntos - Carlos Santana, Johnny Cash, John
Fogerty, Jimmy Page, Neil Young, Robbie Robertson e Keith Richards. (Beck está parado lá,
mas não tenho a certeza de que ele tocou algo realmente.) Vendo todos esses lendários
guitarristas interagirem, reconheço, com uma certa surpresa, que Edge merece estar entre
eles. O som que ele ouviu em sua cabeça já foi ouvido em todo o mundo, foi absorvido pelo
vocabulário do rock & roll e vai continuar a reverberar quando ele for tão velho quanto as
lendas às quais ele faz companhia essa noite.

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Um roadie¹ da empresa de aluguel de instrumentos, que está atrás do palco não consegue
mais aguentar a proximidade com a grandeza. Ele desliza para o palco, conecta sua guitarra
na tomada livre no amplificador do Edge e começa a tocar - sobrecarregando o amplificador
e explodindo-o exatamente quando Neil Youg aponta para Edge e pede um solo. Edge fica
surpreso quando ele se aproxima para tocar e não sai nenhum som, mas quando ele
descobre o que aconteceu ele acha aquilo incrível - ele acredita que há mais espírito de rock
& roll naquele corajoso e furtivo roadie do que em todos os smokings do salão.

_____________________

¹ Roadie é um técnico responsável que acompanha uma banda para todos os espetáculos. Apoia os músicos nas
montagens e desmontagens dos shows, garantindo que fique tudo tecnicamente bem ligado e como os músicos
gostam. Entre outras coisas, o roadie é responsável por: descarregar e carregar os carrinhos com o material,
montagem de todos os equipamentos no palco, apoiar as montagens, afinações e programação da iluminação
do show, apoiar as montagens de cenografia, coordenar as ligações de vídeos, afinar instrumentos. Durante o
show, também está disponível para qualquer eventualidade ou problema em cima de palco. Estará sempre em
contato com os técnicos de som de frente, som de palco, iluminação e vídeo para que possa resolver de
imediato possíveis problemas. Para ser roadie é necessário um conhecimento transversal dos meios técnicos e
de música.

____________

13
6. Tratam-me como uma garota
uma festa animada com modelos e travestis / pregadores que moram em catedrais de
vidro/ um telefonema do inferno / frases de conquista dos grandes autores / o
interesse de adam em roupa íntima feminina

MAIS TARDE, no inverno, todo o U2 aterrissa em Nova Iorque e vagabundeia pela Times
Square com um ar urbano para a câmera de vídeo do seu antigo documentarista, o diretor
Phil Joanou. Depois do Rattle and Hum tê-lo valorizado muito, Joanou dirigiu o hitchcokiano
“Final Analysys”¹, com Richard Gere e o scorceseano “Stateof Grace”² com Sean Penn e Gary
Oldman. Ele concordou em dar uma escapada daquela terra do mais alto degrau
cinematográfico para salvar “One”, a faixa do Achtung Baby com mais chances de dar ao U2
um single número um, dos seus dois primeiros vídeos. O primeiro tinha os membros do U2
vestidos de drag queen, e não era o tipo de coisa que a banda imaginou que a MTV iria se
importar de propagar na América. O segundo vídeo de “One” era um filme em câmera lenta
de um búfalo correndo sobre um precipício - uma bela metáfora para a epidemia de AIDS,
talvez, mas não uma grande promoção. A tarefa de hoje é fazer um vídeo de “One” que a
audiência adore. Depois de vaguear um pouco por Manhattan, a banda, o diretor e a sua
equipe retiraram-se para o Nell’s, um clube noturno que era chique nos anos 80, quando o
dinheiro borbulhava como champanhe em Nova Iorque e a cocaína corria solta. O Nell’s foi
desocupado esta noite para que Joanou possa criar a sua visão de “One”. Para qualquer
pessoa que não fosse empregada, estar aqui seria uma empreitada chata se não fosse por: (a)
o suntuoso banquete; (b) o generoso bar e, acima de tudo, (c) os extras: lindas jovens
modelos e os espalhafatosos travestis do submundo de Nova Iorque.

No andar de cima, luzes e câmeras estão montadas, e Bono - com alguns dos lindos
figurantes em torno dele - está sentando a uma mesa balbuciando a letra da música
incontáveis vezes enquanto a fita toca. No andar de baixo, as salas de festa no porão estão
cheias de mulheres lindas e homens vestidos de mulher. Edge está sendo preparado por uma
maquiadora enquanto bandejas e mais bandejas de comida são servidas. Há grandes pratos
de M&M’s e Hershey’s Kisses e cookies com pedaços de chocolate e chiclete Bazooka. Os
bares estão abertos e bebidas grátis são bombeadas por garçonetes tão lindas quanto as
modelos.

Lá em cima, Bono tem que fingir cantar “One” por sete horas. Lá em baixo, o resto da banda,
sua equipe, os amigos, as modelos e os travestis fazem festa e esperam serem chamados ao
palco para fazer um pouco mais de festa.

O que pode alguém dizer de um encontro onde todas as mulheres são belas profissionais e
todos os homens são gays? Um contente Adam Clayton explica: “Se você não conseguir
arrumar nada essa noite, você pode perder as esperanças”. Toda vez que o cinegrafista troca
a fita, Bono foge escada abaixo, tentando fazer parte da diversão. Então, justo quando ele
leva um copo aos lábios, gritam o nome dele e ele tem que voltar e fazer um pouco mais de
mímica embaixo das quentes luzes dos holofotes.
_________________________

¹ No Brasil, chamado “Desejos”


² No Brasil, chamado “Um Tiro de Misericórdia”

1
Às 10 da noite, Bono salta para o colo do produtor musical Hall Winner e começa a contar
grandes histórias, quando ouve uma série de vozes, como ecos através do Grand Canyon,
vindo do andar de baixo: “Bono! Bono! Bono!” Ele suspira e volta para o trabalho. Uma
gigante, divinal drag queen sorri maliciosamente para o traseiro do baterista do U2 e diz
para o seu amigo: “Eu tenho o número do quarto do Larry Mullen!”

À meia-noite eu caminho pelo set e Bono me envolve em uma intensa discussão sobre o que
ele espera alcançar com a Zoo TV Tour. Ele fala sobre aceitar a ironia, o glamour estúpido do
Rock & Roll, as bolas de espelho e as limusines - sem abandonar a verdade no coração da
própria música. Ele compara isto ao Elvis Presley de macacão cantando “I Can’t Help Falling
in Love with You” para uma mulher chorosa em Las Vegas. Poderia ter sido
desesperadamente vulgar, mas se a mulher acreditasse na música e Elvis acreditasse na
música, não soaria falso. Talvez o Rock & Roll seja mais verdadeiro no espaço entre essas
contradições aparentes.

“Basicamente”, diz Bono, “é um acordar para o fato de haver um monte de idiotices no Rock
& Roll, mas algumas idiotices são muito legais. Isso é importante para mim, porque nós
achávamos que o sucesso era esse lobo mau. Parecia nos comprometer, nos fazer parecer
charlatões ganhando todo esse dinheiro por coisa que faríamos de graça. Eu achava que eles
iriam acabar por finalmente nos calar, porque, como é possível que eu escreva sobre as
coisas nas quais estou interessado e estar no grande show business? De repente, eu me senti
amordaçado. Se eu escrevesse uma música sobre a Guerra do Golfo, então isso seria como
ganhar dinheiro com a Guerra! Eu não podia mais escrever uma música sobre fé e dúvida
porque isso me tornaria num pregador nessa catedral de vidro do Rock & Roll. Então eu
decidi que a única maneira era, em vez de correr das contradições, correr em direção a elas e
colocar meus braços em torno delas e dar-lhes um grande beijo. Na verdade, escrever sobre
a hipocrisia porque eu nunca vi um homem correto que se parecesse com um. Então eu
escrevi sobre isso, e, na verdade, me transformei literalmente ‘num pregador roubando
corações num show ambulante’ ¹. Em vez de escrever sobre uma personagem, tornar-se a
personagem. Em vez de escrever sobre um maluco imoral, tornar-se um. Eu não sabia o
quanto os malucos imorais eram divertidos!

“Eu sempre senti como se ‘The Fly’ fosse uma ligação telefônica do inferno, tá ligado? Com a
voz distorcida e tudo mais. É uma chamada do inferno - mas o cara gosta das coisas de lá!
‘Querida, eu sei que é quente aqui... mas eu gosto!’” Nós demos boas risadas, e Bono
acrescentou: “Outro assunto que me interessa é o Rock & Roll em si - o meio e a máquina.
Uma das grandes contradições dele é que é muito pessoal. Música pessoal endereçada ao
grande público”.

À 1:30 da madrugada, Edge está sentado numa cadeira no meio da sala no andar de baixo
conversando atentamente com uma modelo. Uma das drag queens tirou a sua gigantesca e
pesada peruca em formato de elmo com penas de avestruz e deixou-a na cadeira atrás do
Edge. Hal Willner, que bebeu cerveja a noite toda e agora está vendo ligeiramente desfocado,
pega a peruca, pesa-a nas mãos e estuda a parte de trás da cabeça do Edge. Hal caminha
sorrateiro para trás dele como o índio Hiawatha e começa uma manobra para deixar cair a
_________________________
¹ ‘a preacher stealing hearts on travelling show’, trecho da música Desire.

2
gigantesca cabeleira no topo da cabeça do guitarrista. De repente, uma voz de harpia soa
através da festa: “Larga a minha peruca!” Hal olha para cima e vê uma drag queen violenta e
careca crescendo ameaçadoramente na direção dele. Ele larga a peruca e se manda.

Lá pelas 3 da manhã, Larry, Adam, Edge, os travestis e as modelos começam a se dar conta
que não serão chamados para o set. “One” está se tornando rapidamente um vídeo só do
Bono. O humor no andar de baixo começa a ficar um pouco intenso. Parece que Nell deixou
entrar alguns dos seus clientes habituais. O autor Jay Mclnerny aparece, arruma uma bebida
e tenta começar uma conversa com uma jovem mulher dizendo: “Quando eu escrevi o meu
primeiro livro, Bright Lights, Big City...”

Paul McGuinness identifica uma pessoa típica de Manhattan tirando fotos disfarçadamente.
Ele a pressiona e ela diz, num jeito de falar ao estilo Vogue, que trouxe a câmera apenas
porque estava vindo de uma festa na casa da Anna Wintour... McGuinness não está
acreditando. Ele não acredita que ela é realmente a socialite desligada que diz ser - ele
imagina que ela seja uma fotógrafa de algum jornal e ataca-a verbalmente. Eu acho que o
empresário está sendo paranoico, mas na noite seguinte eu vejo a mesma mulher novamente
fotografando - para um tablóide de Nova Iorque - um evento beneficente do Sting para as
florestas tropicais. Sim, ela diz – substituindo seu jeito de socialite pela atitude foda-se –
McGuinness desmascarou-a. É por isso que ele é um dos grandes empresários. Todos no
Nell’s estavam fingindo ser algo que não eram.

Me dou conta que não foram apenas Adam, Larry e Edge que nunca entraram no vídeo de
“One”, mas também todos os travestis. Eu pergunto ao Bono porque as drag queens foram
agrupadas, filmadas de pé comendo e bebendo, mas nunca foram usadas no corte final. E
qual era o esquema com o primeiro vídeo, com o U2 vestido de drag? O que há nas
entrelinhas da letra que eu perdi?

“Originalmente”, diz Bono, “a ideia do vídeo era que aqueles homens eram homens cujo
conhecimento sobre as mulheres era tão baixo que eles se vestiam de mulher para tentar
compreendê-las. Esse era o tipo de absurdo, ponto de vista estilo Sam Beckett, que nós
tínhamos. Não era relacionado com travestismo. E então pensamos: "Oh, Deus, isso é um
single sobre a AIDS! Depois de tantos anos que a comunidade gay levou para finalmente
convencer as pessoas de que a AIDS não é um problema dos gays, aqui está o U2 se vestindo
de mulher!”

Bono explica que a ideia de filmar o U2 vestido de drag “foi baseada em que o U2 não podia
fazer aquilo e nós tínhamos que fazê-lo! Nós estávamos em Santa Cruz, uma ilha da África, na
época do Carnaval. Eu tenho ido ao Carnaval por alguns anos. É um conceito interessante
porque está relacionado com carne - carne, alimentar-se de carne antes da Quaresma e da
Páscoa. Eu estou interessado porque não é uma negação da carne, é uma celebração. Nós
estávamos lá, Anton Corbijn estava lá, estava tudo ficando um pouco tedioso, e nós não
podíamos participar do Carnaval como nós mesmos. Então, em vez de nos fantasiar com
máscaras elaboradas, Anton sugeriu que nos vestíssemos de mulher. Nós fizemos isso, e ...”
Bono começa a rir, “ninguém queria tirar aquelas roupas por quase uma semana! E eu tenho
que dizer, algumas pessoas continuam a usá-las desde então!”.

3
Uau, eu digo – “Qual foi a reação inicial do ultra masculino e inimigo das bobagens Larry
Mullen Junior, com relação a essa ideia?”

“Duas pequenas e distintas palavras”, responde Bono. “O mais engraçado com relação ao
Larry foi que, tudo bem, ele entrou no vestido e fez maquiagem, mas estava tendo ataques
com isso. Ele não tirou os seus coturnos Doc Martens e, quando sentava, ele colocava os pés
em cima da mesa. Mas, por mais macho que ele tentasse ser, ele continuava parecendo um
figurante de algum filme pornô. Essa era a ironia. Enquanto o Adam estava simplesmente
arrumando alguém para o deixar mais bem arrumado e trocando dicas de maquiagem com
cada garota que passava. Você sabe, de repente ele podia mudar de assunto e mostrar
interesse na roupa íntima delas!

“Toda essa história de estar numa banda de Rock é simplesmente tão ridícula”, diz Bono. “Eu
estava pensando: é como mudar de sexo! Ser uma estrela de rock é como mudar de sexo! As
pessoas te tratam como uma garota, tá ligado? Eles te secam, eles te seguem pela rua, eles te
pegam. E tentam te fuder! É uma coisa difícil de se falar porque é muito absurda, mas na
verdade é válido. Quando eu estou com uma mulher eu sei como é que ela se sente. Eu sei
como é ser uma gatinha”.

O terceiro vídeo de “One” funciona. Bono parece tão sofisticado quanto o filósofo Camus
sentado num cabaré preto e branco em meio a pessoas bonitas enquanto canta calmamente
cheio de alma.

O clipe passa muitas vezes na MTV, a música toca muitas vezes nas rádios americanas, e o
single levanta muita grana para caridade contra a AIDS. Uma interpretação comum de “One”
é que ela é cantada na voz de um filho que é HIV-positivo confrontando e se reconciliando
com o seu pai conservador. Essa é uma das muitas maneiras que a música pode ser ouvida.
“One” parece ter uma capacidade infinita de se abrir e o U2 não mostra nenhuma inclinação
para prendê-la.

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4
7. Os Braços da América

a zoo tour começa / os fantasmas de martin luther king, jr., e phil ochs sentam-se /
escolhendo uma dançarina do ventre/ bruce springsteen fala sobre a qualidade da
grandeza / axl rose se convida para entrar a bordo

NO DIA PRIMEIRO DE MARÇO a Zoo TV Tour começa em Lakeland, Flórida, distante cerca de
uma hora de Tampa. Os Trabants estão cuidadosamente pendurados no teto, as colossais
telas de TV estão piscando sobre o palco e Bono está sendo enfiado dentro da sua roupa de
couro. Na plateia, o malvadinho B. P. Fallon, um veterano paz-e-amor dos anos 1960, que
tem sido crítico de rock e publicitário do Led Zeppelin, está sentando em um dos Trabants
vestindo uma capa e um chapéu de abas largas, servindo de DJ para uma audiência ansiosa e
bombando com as músicas inspiradoras de John Lennon, Bob Marley e outros grandes ídolos
mortos.

Enquanto Bono, como uma mosca - com seus óculos escuros de olhos de inseto - espera no
camarim para entrar no elevador provisório que vai elevá-lo até um holofote, ele tem uma
revelação: na verdade, ele não sabe o que irá fazer quando chegar lá fora.

“Você sabe”, ele diz, “para essa turnê nós trabalhamos por quatro meses antes de sair de
Dublin. Nós criamos ‘The Fly’, arrumamos os óculos, montamos a nossa estrela de rock pós-
moderna”. Ele aponta para cada um dos seus membros como se estivesse fazendo uma visita
guiada pelo tempo. “Nós temos a perna do Jim Morrison, o topete do Elvis, Lou Reed, Gene
Vincente - juntamos isso tudo e o criamos. Fizemos as fitas, fizemos os loops, descobrimos
como tocar polirrítmos, gastamos meses nisso. Chegamos aqui, as pessoas estão abrindo
caixas. Eu visto a minha roupa. E agora o quê?”, questiona.

Artistas como Prince e Michael Jackson gastam meses trabalhando com espelhos, ensaiando
o que irão fazer no palco, encontrando-se com coreógrafos. O U2 não pensa nisso. Eles
simplesmente esperam que Bono faça algo interessante quando sair de lá.

Boa coisa ele faz! As luzes diminuem e o Presidente Bush aparece na tela para dizer à
audiência “We will, we will rock you!” enquanto Adam, Edge e Larry deslizam para o palco
na escuridão. A introdução de “Zoo Station” explode na escuridão enquanto os Vidiwalls¹ se
enchem com neve azul e estática. Enquanto a música sacode a sala, Bono lentamente ascende
para o nível superior do palco, a sua silhueta de perfil contra a tela azul, vibrante atrás de
Edge, e com o dobro do tamanho na imagem de vídeo dele projetada na tela azul, vibrante
atrás do Adam. A audiência celebra, bate os pés, aplaude e Bono se dá conta que é melhor ele

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¹ Vidiwall ou Video wall (parede de vídeo) é um equipamento que consiste em uma série
de monitores conectados fisicamente em arranjo, empilhados e enfileirados de maneira modular de modo a
formar uma grande tela. Normalmente são compostos por painéis de LCD ou LED.

1
fazer algo, então ele se desequilibra para trás a cada batida poderosa, cambaleante como um
bêbado, primeiro no lugar, depois através da passarela que atravessa o palco, e canta
enquanto anda: “I’m ready, ready for the laughing gas! I’m ready for what's next!” Bono sabe
que o que está fazendo está funcionando, mas também se pergunta: “O que teria realmente
acontecido se eu tivesse pensado sobre isso?”
Em “The Fly”, Bono realmente imita Elvis em 1968, dançando em sua roupa de couro ao
ritmo de uma música que, por toda sua modernidade sônica, me parece muito com uma
música de Elvis Presley.
Parcialmente por causa das frases epigramáticas – você não consegue ouvir Elvis pregando:
“A man will rise, a man will fall, from the sheer face of love, like a fly from the wall”? (Um
homem vai se erguer, um homem vai cair, da face pura do amor, como uma mosca na
parede)¹ Mas, também porque a estrutura básica da música é um dos antigos versos de rock
& roll que se transforma num refrão gospel. De qualquer modo, nada disso pode ser
aparente para a multidão, que está maravilhada pelos aforismos e palavras praguejadas
mudando a mil por hora nas telas de TV: ‘Chame sua mãe’, ‘Eu gostaria de ensinar o mundo a
cantar’, ‘Todo o mundo é racista menos você’². Conforme a música atinge o clímax os slogans
piscam cada vez mais rápido.

Nos primeiros quarenta minutos, o U2 toca apenas material do Achtung Baby, uma jogada
arriscada que acaba dando certo. Em vez de tratar as novas músicas com as quais não estão
familiarizados como desculpa para irem comprar pipoca entre os hits, o público é forçado a
colocar toda a sua energia no novo material e - auxiliado pelos fogos de artifício visuais - ele
participa.

Depois de se rasgar em sete das músicas novas - e no exato momento onde a audiência
poderia estar se ajustando ao excesso sensorial - Bono acha o seu caminho através da rampa
entre o palco principal e o palco B e canta “Tryin’ to Throw Your Arms Around the World”
enquanto caminha através da multidão. É um pequeno toque de intimidade à la Engelbert
(Humperdinck, cantor anglo-indiano famoso nos anos 60 e 70) depois de um distanciamento
contínuo à la Tom Jones (cantor e ator galês) e a pulsação dos fãs realmente acelera quando
Bono arranca da plateia uma garota excitada, dança com ela e então sacode e estoura uma
garrafa de champanhe. Ele partilha com ela e alcança uma handicam, uma pequena
filmadora, e pede a ela para filmá-lo. Quando ela pressiona o botão, as Zoo telas são
invadidas por um close-up de Bono cantando para a fã. Edge então caminha pela rampa,
inclina-se para o microfone na mão de Bono e os dois cantam juntos enquanto a
camerawoman convidada continua a filmar. O voyeur e o objeto trocaram de lugar.

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¹ Trecho da música “The Fly”.

² No original: “Call your mother, I’d like to teach the world to sing, Everyone’s a racist except you”.

2
Quando a música acaba, Edge e Bono caminham para o palco B como se tivessem acabado de
se dar conta de que estavam lá e, para o deleite do público, fazem sinal para Adam e Larry
virem juntar-se a eles. Depois do bombardeio audiovisual que alguns dos antigos poderiam
temer como um sinal do fim do antigo U2, aqui estão os garotos íntimos e pessoais, sem
efeitos especiais, tocando guitarras acústicas, batendo em congas e cantando velhos hits
como “Angel of Harlem”. No final do set acústico, Bono e Edge permanecem no palco B para
tocar uma versão delicada de “Satellite of Love”, do Lou Reed, enquanto um Trabant coberto
com pequenos espelhos balança lentamente sobre a cabeça deles, refletindo prismas pela
arena, fazendo parecer que o lugar todo mergulhou no espaço.

Quando o U2 volta para o palco principal, eles pegam leve nos seus greatest hits e músicas
que satisfazem a plateia – “Bullet the Blue Sky”, “I Still Haven’t Found What I’m Looking For”,
“Pride (In the Name of Love)” e “Where The Streets Have No Name”, enquanto até mesmo os
policiais batem em seus cassetetes e os vendedores de cachorro quente se sacodem.¹

Bono volta para a segunda parte vestido num terno feito de espelhos, óculos e um grande
chapéu de cowboy. Ele aparece segurando um grande espelho no qual admira-se e beija o
seu reflexo. Ele canta “Desire” como Mirrorball Man, um agressivo proto-americano com um
sotaque de evangelista do Sul e um estilo de vendedor de carros pela TV. Esse é o
personagem baseado nas frases de “Desire” sobre “um pregador roubando corações num
show ambulante por amor ou dinheiro, dinheiro, dinheiro” (a preacher stealing hearts on a
travelling show for love or money, money, money). Depois de a música acabar (e atirar
dólares falsos para o público) o Mirrorball Man pega o telefone e liga para a Casa Branca. A
audiência ouve deliciada um operador perplexo dizer-lhe que o Presidente Bush não pode
atender o telefone no momento.

Esse final me lembra um bizarro e praticamente esquecido incidente do final dos anos 1960,
quando um talentoso e atormentado cantor de protesto, Phil Ochs, arriscou a carreira e
perdeu. Ochs - considerado pelo pessoal da esquerda como seu líder depois de Dylan ter “se
vendido” ao tornar-se elétrico - anunciou que iria tocar um show importante no Carnegie
Hall. Ele apareceu no palco vestindo um terno de lamê dourado, como Elvis na capa do seu
Greatest Hits, e continuou tentando “Elvizar” a audiência que protestava.

Os sofridos folkies estavam mortificados. Eles voltaram para Greenwich Village e declararam
que Ochs estava louco. Mas estavam enganados. Ochs decidiu que não adiantava ser visto
como um reclamão e pregar para os convertidos. Se você realmente quiser atingir a massa,
se você realmente quiser ser subversivo, a melhor maneira de fazê-lo era tentar se
comunicar tão completa e generosamente quanto Elvis Presley fazia. Dê as pessoas o
espetáculo do showbiz (entretenimento), mas dê também algo sólido para elas mastigarem.

_________________________

¹ No original, “[...] hotdog men shake their buns”. “Buns” pode referir-se aos pãezinhos do cachorro-quente, mas
também significa nádegas.

3
Eu não sei se o U2 alguma vez ouviu falar em Phil Ochs, mas quando Bono arrastou-se para o
palco com as luzes douradas e prateadas refletindo-se no seu terno e cantou algumas das
mais profundas e pessoais músicas que o U2 um dia escreveu, com a sua cintura rebolando e
a multidão dançando, eu pensei “Meu Deus, talvez Phil tenha realmente descoberto algo
apesar de tudo”. A verdadeira prova foi quando, no meio de “Pride”, os Vidiwalls se
iluminaram com um filme de Martin Luther King e seu discurso “I’ve Been to the
Mountaintop” (Eu estive no topo da montanha), na noite anterior ao seu assassinato. Dr.
King foi usado como uma base audiovisual enquanto o U2 tocava sob ele. Quando ele acabou
com “I’ve seen the promised land” (Eu vi a terra prometida), a garotada ficou enlouquecida
como se ele tivesse acabado de cantar “Stairway to Heaven”.

Uma noite, eu estou sentado com Bono num bar quando um cara se aproxima, estende a mão
e diz: “Bono, eu trabalho com Michael Ochs, o irmão de Phil Ochs”. Ele diz o nome do cantor
folk com um ponto de interrogação, sem saber se Bono irá reconhecê-lo. “Não me diga”, eu
me intrometo. “Ele quer o terno do Phil de volta!” Bono demora a reagir, surpreso, e diz:
“Boa ideia, Bill”. No fim, ele sabe tudo sobre Phil Ochs e o seu duelo no Carnegie Hall.

Pelas próximas duas semanas, a Zoo TV Tour ataca a Costa Leste através da Flórida, Geórgia,
Carolina e Virgínia, depois ao Norte até Long Island, Philadelphia e New England. É um show
triunfante. Durante os ensaios na Flórida, um dos membros da equipe conhece uma fã no
estacionamento que se identifica como dançarina do ventre. Como brincadeira, o membro da
equipe a deixa dançar no palco e surpreende Bono durante o ensaio de “Mysterious Ways”.
Depois do primeiro show, Bono decide que gosta do efeito, então agora a dançarina,
Christina Petro, é adicionada à turnê. Cada noite, durante “Mysterious Ways”, ela rodopia
pelo palco fora do alcance de Bono enquanto ele se esforça para tocá-la.

A cabeça de Bono entra em parafuso uma noite quando Eunice Kennedy Shriver, a irmã de
JFK e mãe de Bobby Shriver, um jovem e influente político Democrata e aliado dos amigos do
U2, Jimmy Iovine e Ted Fields diz a ele que sempre existiram anjos no palco do U2, mas que
agora eles estavam deixando entrar os demônios também. Ela diz que gosta disso, pois torna
a luta mais justa.

O U2 toca maravilhosamente no Madison Square Garden na última noite do inverno. Nos


camarins, grandes nomes do mundo do esporte (como John McEnroe), da música (como
Peter Gabriel) e do cinema (como Gary Oldman) acotovelam-se para aproximar-se da banda.
Bono é prensado num canto por Bruce Springsteen, que o cumprimenta por conseguir a
difícil tarefa de fazer um show numa arena cheia de surpresas. Bono explica que durante o
show dessa noite estava distraído por pensamentos sobre um irritante homem de negócios
de Wall Street que o abordou no bar do hotel. O yuppie gabou-se de ter comprado,
juntamente com os amigos, uma série de ingressos de cambistas, exatamente o tipo de coisa
que o U2 tenta evitar que aconteça.

4
“Durante todo o show essa noite”, diz Bono, “eu via esse idiota aparecendo na minha cabeça”.
Ele gesticulava batendo em si mesmo. “Eu continuava pensando nele, sentado no público,
sorrindo insolente”.

Springsteen olha para Bono e diz “Isso é patético!” Bono parece magoado e Bruce ri e diz: “É
por sermos uns grandes egomaníacos! Temos que vencer todos até a última pessoa do
lugar!”

Bono começa a rir também.

Springsteen tem sido uma figura relevante para o U2. Ele veio aos camarins para vê-los
quando ainda tocavam em clubes e sempre mostrou confiança de que alcançariam um
grande público. Para o U2, Springsteen era a prova de que era possível para um músico da
classe operária, vindo de lugar nenhum, chegar ao topo sem comprometer seus princípios e
encaixando-se no estilo de vida das estrelas do Rock.

Isso era uma ótima notícia para quatro garotos de Dublin que não eram, nem de longe, tão
modernos quanto as sensações surgindo em Londres naquela época.

Mais tarde, quando o U2 começou a ter um sucesso comparável com o de Springsteen, Bono
teve a coragem de desafiar Bruce a escrever menos sobre personagens fictícias e mais sobre
ele mesmo. Isso foi justamente depois de “Born in the USA” ter tornado Springsteen a maior
estrela de rock da Via Láctea, portanto, a maioria das pessoas imaginava que Bruce tinha
desenvolvido os seus métodos com sucesso. Mas para Bono - que veio da tradição de John
Lennon – “Aqui vai mais uma música sobre mim” - Springsteen estava evitando algo.

Bruce disse a Bono que não achava que a vida dele era interessante o bastante. “Eu entro
num ônibus, saio de um ônibus”, ele disse. Mas, o seu álbum seguinte, Tunnel of Love, foi
claramente autobiográfico. Era também super bom. Bono não se acha tanto para pensar que
ele influenciou “The Boss”, mas ele estava orgulhoso pelo seu impulso ter sido preciso.

Springsteen diz que a reação para ele ter tanta certeza que o U2 iria ser uma grande banda
desde o início tinha a ver com as diferentes maneiras que o rock & roll funciona nos clubes,
teatros, arenas e estádios. “A minha própria música era do tipo certo para grandes lugares
porque ela era grande”, ele diz. “Eu acho que essa é uma das razões para o U2 ter tanto
sucesso. A música deles era grande e cheia de eco. No momento em que os ouvia, podia ouvi-
los num grande espaço. Eles tinham grandes emoções, grandes ideias. Essas coisas tendem a
traduzir-se bem quanto tocadas para grandes multidões, o que pode ser uma experiência
fantástica. Eu tive noites fantásticas em estádios, mas isso realmente altera o que você faz.
Num clube é muito mais fácil você se manter focado. O público está mais perto e vendo o que
quer que você faça. Você pode afinar a guitarra ou contar uma história. Um teatro retém o
sentimento do show. Numa arena você consegue reter uma boa parte desse sentimento, mas
o tamanho da coisa amplia o que você faz. Esta é uma arena e isso pede por algum tipo de
grande gesto. Você tem que ser capaz de trocar os aparelhos e o contexto no qual você está.
Algumas pessoas são grandes apenas em clubes. Alguns, como The Who e o U2, são grandes
em um estádio”.
5
Eu conto ao Adam o que Springsteen disse e ele concorda e vai além: “O U2 nunca foi bom
em clubes, lugares pequenos”, diz, desafiando todos aqueles fãs da Era Boy que dizem aos
seus irmãos menores: “Você devia era tê-los visto naquela época”.

“Eu acho que as pessoas - artistas, jornalistas - que nos viram naqueles lugares respondiam
não ao que éramos na época, mas ao que poderíamos nos tornar”, diz.

Enquanto a Zoo TV atravessa a América no que é essencialmente um aquecimento de


primavera antes de atacarem os estádios no verão, Axl Rose, o animado e imprevisível cantor
dos Guns N’ Roses, aparece algumas vezes. Em Los Angeles, ele é uma das muitas estrelas
nos camarins e é impossível para Bono tirar algo que tinha sentido dele. Mas, quando ele
vem para um concerto no Texas, eles têm uma chance para conversar. As mulheres do
Principle¹ não tem problema em encontrar o seu julgamento; elas acham que o Axl é um
amor.

“Hipocritazinho surpreendente”, é a reação de Bono. “Era muito fácil conseguir uma frase
direta. Eu consigo entender porque as pessoas gostam tanto da música dele. Não há muita
edição na conversa dele ou, obviamente, no trabalho. É uma linha direta com os instintos
dele. E foi disso que eu gostei”.

“Eles são a minha banda favorita nesse momento”, diz Axl sobre o U2. “Estou finalmente
entendendo certas músicas que eu nunca entendi antes ou com as quais não conseguia me
identificar. Eu sempre os ouvi, mas a única música que realmente fazia a minha cabeça era
‘With or Without You’. Eu não conseguia me identificar com as outras músicas porque eu era
tipo: ‘Isso é ótimo, mas eu simplesmente não vejo essa parte do mundo’. As coisas eram um
pouco escuras demais para mim. Agora eu consigo ver mais das coisas sobre as quais ele
fala”.

“Eu comprei o ‘Achtung Baby’ e eu realmente quero fazer um cover da terceira música, ‘One’.
Eu quero tocá-la em turnê nesse verão. Eu acho que ‘One’ é uma das maiores músicas já
escritas. Eu coloquei-a para tocar e simplesmente comecei a chorar. Foi um alívio tão grande.
Foi realmente muito bom para mim. Eu estava realmente chateado porque minha ex-mulher
e eu nunca tivemos uma chance por causa dos danos nas nossas vidas. Nós não tivemos uma
chance e eu não tinha realmente aceitado isso. Essa música me ajudou a ver. Eu queria
escrever uma carta para o Bono simplesmente dizendo: ‘O seu disco fez muito por mim’.”
Quando eu menciono isso para os diferentes membros do U2, recebo uma série de reações
diferentes. Adam sorri e diz para eu não me entusiasmar muito com o que pode ser apenas
um interesse passageiro por parte do Axl. Edge diz que já sabia - um motorista de limousine
disse-lhe que Axl sentou na parte de trás do seu carro e tocou “One” inúmeras vezes sem
parar.

_________________________

¹ Principle, ou Principle Management trata-se da equipe de produção do U2, ou o escritório da produtora.

6
Quando eu digo ao Bono, entretanto, ele pula direto para a associação. Diz que cada década
precisa de uma banda que irá se erguer e refletir o espírito de sua época sem qualquer
escudo. O U2 fez isso nos anos 1980 e não irão mais fazê-lo - é muito doloroso. Talvez esse
seja o papel do Guns N’ Roses agora. Estar lá fora com todas as suas extremidades nervosas
abertas, refletindo todas as alterações atuais acontecendo no consciente coletivo sem
qualquer ironia ou distância.

Bono diz que o U2 está trabalhando de forma mais sutil agora. Eu pergunto-lhe: “Como vocês
conseguem refletir a época e desafiá-la?”

“Apenas a enfraquecendo”, diz Bono. "Descrever é desafiar. Não é isso o que é suposto aos
artistas fazerem realmente? Não é trabalho deles resolver o problema. É trabalho deles
descrever o problema. E parte da descrição é dar-se conta que isso é muito atraente. É adiar
a sua própria atração. Foi o Bertolucci que me deu essa dica”.

“Ele estava falando sobre revistas de moda feminina e disse que nunca imaginou um período
tão efêmero quanto os anos 1980. E, apesar disso, ele às vezes se encontrava folheando
revistas de moda feminina e apreciando a energia delas. E que essas imagens perdiam o seu
significado muitas das vezes; era puramente superficial - mas havia realmente algo naquilo.
Foi um sinal para mim. Porque negar a energia é uma idiotice. E essa é a posição clássica do
rock & roll: diminuí-la. Fazer isso é ignorar o quão grande a coisa é. Então o trabalho é
descrever o que está acontecendo, descrever a atração, e ser suficientemente generoso para
não mostrar o dedo para isso enquanto o faz”.

“O Rock & roll é música folk agora. O rock & roll nunca havia sido tão sem inspiração, tão
codificado. Se o rock & roll tivesse que ser apenas uma coisa, então é melhor que você diga
que ele só pode ser Little Richard. O que não é o mesmo que dizer que não podemos fazer
um álbum folk, mas não pode ser tudo o que podemos fazer. O rock & roll é um espírito e
esse espírito é a Zoo TV”.

____________

7
8. “One” Se For Por Terra, U2 Se For Por Mar

as aventuras do esquadrão anti-bombas de bono / adam clayton, agente secreto / U2


engana a polícia e invade a inglaterra num bote / um romance a bordo / noção de
moda naútica do larry

Acabei de chutar a cabeça do Bono. Ele nem percebeu. Ele está dormindo aos meus pés e eu
acidentalmente bati nele com o meu sapato quando Larry Mullen atravessou pelo meu colo
para tentar tirar um cochilo no banco à minha direita enquanto Edge, à minha esquerda,
deita-se encostado na janela do ônibus, dormindo ou olhando fixamente para a noite do
norte da Inglaterra. Eu não consigo dizer com certeza.

São 3 da manhã e estamos viajando por três horas. Edge, Larry e eu estamos no banco de
trás de um ônibus alugado. Bono, cochilando no corredor, tem o braço envolto em sua
esposa, Ali, que está dormindo no banco em frente ao nosso. Mais à frente no ônibus vejo
Adam Clayton com outra garrafa de champanhe rastejando sorrateiramente pelo meio do
pessoal do Greenpeace que está desmaiado. Paul McGuinness está acordado lá na frente,
assim como o advogado deles, que alerta Adam sobre o que dizer e o que não dizer para a
polícia se nós formos presos. Adam, que já foi pego antes, diz que não se preocupe, ele está
agora trabalhando a ideia de como não ser levado preso. Então ele bebe seu champanhe com
a suavidade audaciosa de James Bond numa missão secreta.

Este cenário atulhado de gente poderia parecer, de certo modo, confortável se não
estivéssemos evitando as barreiras policiais em nosso caminho para podermos embarcar
num navio, cruzar o Mar da Irlanda e remar para a margem carregando barris de lixo
radioativo para despejá-los na porta de um produtor de leucemia que o Greenpeace acredita
ser a mais perigosa usina de plutônio do mundo. Quando subi nesse ônibus em Manchester, à
meia-noite, me pediram para aceitar a responsabilidade legal em caso de prisão, afogamento
ou contrair câncer como resultado de me juntar ao U2 enquanto eles contornam a ordem
judicial britânica que foi emitida para impedi-los de se aproximarem deste pequeno poço
atômico na costa inglesa. Na próxima vez, eu digo à McGuinness, vamos fazer a entrevista
por telefone.

Quatro horas atrás o U2 estava no palco em Manchester, tocando outro maravilhoso set na
série de maravilhosos shows que marcaram o mês nessa parte da Zoo TV Tour na Europa,
apenas uma amostra no meio da turnê americana em preparação para uma turnê maior na
Europa, no ano que vem. Edge liberou solos ao estilo Hendrix de tirar o fôlego em “Bullet the
Blue Sky” e “Love Is Blindness” que foram muito além das minhas expectativas sobre suas
habilidades na guitarra. Lou Reed, que se junta à banda para “Satellite of Love”, comentou
entusiasmado nos camarins que Edge estava agora sozinho à frente dos guitarristas da sua
época. (Ele pode nunca ter escalado o topo da árvore da técnica, mas pela criatividade com
seu instrumento, Edge está na vanguarda.) Também nos camarins estava Peter Gabriel, que
também esteve em shows recentes do U2 em Nova Iorque e Londres, disse que enquanto
apresentações como as do Prince deixam-no impressionado, o U2 realmente lhe toca o
coração.

1
As telas de TV que mostram mensagens para o público durante os shows do U2 tiveram
novos slogans na noite passada: Chuva Radioativa, Plutônio, Mutações, Doenças Radioativas,
Chernobyl. O show tinha sido planejado como uma manifestação para protestar contra a
expansão da usina nuclear de Sellafield, que despeja lixo radioativo no Mar da Irlanda,
acrescentando à sua repugnante empresa uma segunda instalação de processamento para os
resíduos atômicos que os outros países não querem. Pior ainda, o Greenpeace e o U2 dizem
que essa refinaria de plutônio envia radiação para a costa da Irlanda, da Escócia, da
Inglaterra e do País de Gales. Já é bastante ruim, segundo o Greenpeace, que a taxa de
leucemia em torno de Sellafield é três vezes maior que a média nacional. Mas, agora eles
querem adicionar a isso um ponto de coleta para os resíduos mortíferos de todo o planeta?
Essa foi a última gota. Então o U2, junto com o Public Enemy, B.A.D. II e Kraftwerk
concordaram em fazer um show para o Greenpeace na noite anterior a uma manifestação de
protesto autorizado que seria realizado perto de Sellafield. Quando a usina nuclear
descobriu que um monte de gente poderia aparecer, eles foram ao tribunal e conseguiram
uma ordem judicial contra o protesto, alegando que era um show que poderia atrair
milhares de fãs de rock que poderiam causar danos às propriedades dos residentes locais.
Esse argumento falacioso convenceu a corte britânica. Ainda mais que Sellafield é de
propriedade do governo britânico.

No palco em Manchester, Bono disse ao público: “Eles cancelaram uma manifestação pacífica
por razões de segurança pública! Essas pessoas são responsáveis pela morte de crianças
inocentes, pelo amor de Deus. A segurança pública não chega perto dessas crianças!” Mais
tarde acrescentou: “Não deixem eles amordaçarem vocês! Nós vivemos há apenas 200 km de
Sellafield. Então vocês em Manchester, estão muito mais longe do número 10 da Downing
Street!” ¹

Quando o show terminou, o U2 entrou no ônibus alugado para o final de semana e partiu
noite adentro. A ordem judicial de Sellafield proibia o U2 de colocar o pé em qualquer terra
que fosse perto da usina nuclear. Então o U2 e o Greenpeace traçaram o plano de chegar pela
água e avançar até a praia o mais perto possível da linha da maré alta, justificando que a
liminar não se aplicava ao oceano. No ônibus, Bono anunciou a intenção de cruzar a linha
litorânea e pisar no solo de Sellafield, mas o organizador do Greenpeace insistiu que
qualquer tipo de provocação deliberada como essa seria encarada como um desprezo da
liminar e poderia levar o tribunal a confiscar todos os bens do Greenpeace. O U2 devia se
submeter à lei ao pé da letra. Ele continuou dizendo que a areia que estaríamos pisando era
areia radioativa, a água que estaríamos nadando era radioativa. Todos engoliram a seco, mas
ninguém desistiu: “Ouvimos dizer que durante essa noite eles estariam montando barreiras
num raio de 30 km de Sellafield”, disse Edge. “Se ficarmos parados lá pode haver algum tipo
de confronto com a polícia. Eu não sei. Agora somos convidados numa ação do Greenpeace.
Não sabemos o que poderá acontecer”.

“Há uma quantidade considerável de evidências científicas que indica que a poluição de
Sellafield teve um efeito na saúde das pessoas que vivem na costa leste da Irlanda.
Impossível de provar, mas as conexões podem ser feitas. Nós somos membros do
Greenpeace, então quando ouvimos falar em Sellafield2 ficamos ainda mais chateados. O
pessoal da British Nuclear Fuels (Combustíveis Nucleares Britânicos) tem sido eficaz em
_________________________

¹ Endereço da residência oficial e escritório do Primeiro Ministro da Inglaterra durante o seu mandato.

2
conter a onda de preocupação e ansiedade, através de grandes campanhas de TV
apresentando Sellafield como uma instalação segura, bem controlada, bem monitorada,
eficiente e benigna. Eles irão gastar alguns milhões de libras por ano em comerciais de TV
exaltando as virtudes de Sellafield. Eles até abriram um centro de visitantes! Eles têm um
pessoal bastante esperto no departamento de Relações Públicas”.

“A maior agência de publicidade e propaganda da Inglaterra”, acrescentou Larry. “Eles são


também os publicitários do governo. Sellafield é de propriedade do governo e, portanto, tem
toda a proteção que o governo puder pagar – ou seja, MI6 e M15 (Inteligência Britânica). O
pessoal do Greenpeace e qualquer outra organização que se opõem ao que está acontecendo
em lugares como Sellafield ou outros lugares estão nas listas deles. Então eles têm
dificuldades para conseguir emprego porque as listas vão para os computadores e as
empresas ligam e verificam os nomes deles. É tudo muito dissimulado e sórdido. A coisa toda
é doentia”.

“Não há dúvida de que os telefones do escritório do Greenpeace estão grampeados”, diz


Edge. “Você não está lidando com corporações privadas aqui, está lidando com o governo.
Todo o dinheiro que a British Nuclear Fuels gasta é dos contribuintes, todas as campanhas
de TV são pagas pelos contribuintes e, como disse o Larry, eles têm acesso a todas as
informações das agências clandestinas. Você não está lidando com grandes empresas, está
lidando com o governo britânico”.

Larry continuou: “Depois que fizemos a turnê da Anistia Internacional, o Live Aid e um
monte de outros shows beneficentes, Bono e eu nos sentamos e conversamos sobre como
iríamos abordar o futuro. Chegamos à conclusão de que talvez a melhor coisa a fazer seria
sair da Anistia - continuar a apoiá-los, obviamente, mas fazer mais shows seria um erro no
momento - e faríamos alguma coisa pelo Greenpeace. Nós doamos para eles há muito tempo,
já fizemos shows com eles, mas nunca estivemos realmente envolvidos em uma ação.
Quando isso surgiu, era então a oportunidade.

“Seria bom se não tivéssemos que fazer esse tipo de idiotice porque não tem nada a ver com
rock & roll. Absolutamente nada a ver. Isso é loucura, Live Aid foi uma loucura. O fato de
estarmos viajando em um ônibus tentando chegar a Sellafield é um indício de como o nosso
governo e o governo Britânico estão respondendo aos problemas ambientais. O fato de o
Sting ter que ir para a Amazônia! Há um cara lá fora que põe o dele na reta. Peter Gabriel é
outro. E as pessoas dizem: “Ah, saco! Outra causa”. Eu tenho uma grande admiração pelo
Peter Gabriel e pelo Sting, pela quantidade de trabalho que eles fazem, porque eles foram
jogados de um lado para outro pela imprensa britânica”.

Agora, com Larry e Edge dormindo, eu passo por cima do Bono e encontro um lugar ao lado
do Adam. Devido ao champanhe ou à arriscada expedição, o baixista está um tanto pensativo.
“As pessoas entram no rock & roll pelas razões certas e acabam saindo dele por todas as
razões erradas”, Adam diz calmamente. “Elas entram nisso por ingenuidade, e quando a
ingenuidade acaba elas pensam: ‘Isso não é o que eu esperava’, e elas pensam em desistir. Eu
estava simplesmente pensando como tenho sorte por estar numa banda, por ser um dos
quatro e não estar sozinho. Não importa o que aconteça, eu sempre saberei que tenho três
amigos”. Pergunto ao Adam se devo ligar o meu gravador e ele diz que não, não, vamos
apenas conversar. Então é o que fazemos, e o membro do U2 que mais frequentemente se
apresenta como o cara festeiro, o engraçado, o desordeiro do grupo, revela-se um
3
personagem pensativo, bastante consciente de estar envolvido numa grande aventura da
vida.

Amanhece cedo no interior do país na época de verão, o dia mais longo. Pelas 4h30 o céu
está claro e nós cruzamos a região do lago Cumbrian, despistamos os carros que nos seguem,
evitamos os bloqueios policiais e chegamos ao Mar da Irlanda. Bono acorda B. P. Fallen, o
filósofo e DJ da corte do U2, gritando “B. P.! Vamos ouvir uma música apropriada nos auto-
falantes!”

“Algo como ‘Get Up, Stand Up’?”,pergunta B.P.

“Não”, responde Bono. “Eu estava pensando mais em algo tipo o tema de ‘Havaí Cinco-0’”.

Nós rastejamos para fora do ônibus, pestanejando como toupeiras recém-nascidas, e


inspecionamos o frio, o frio do oceano, os íngremes degraus de pedra e os botes de borracha
cor de laranja que esperam para nos levar até o navio do Greenpeace. Dizem-nos para
trocarmos os nossos sapatos por botas altas de borracha e para meter-nos dentro de roupas
de sobrevivência cor de laranja antes de zarparmos. Cinco minutos depois estamos cortando
as ondas e aquele pequeno navio no horizonte está ficando cada vez maior. Bono parece
profissionalmente heróico no spray de águas oceânicas, quando um segundo bote do
Greenpeace - este com uma equipe de filmagem e fotógrafos - corta ao nosso lado,
imortalizando a sua nobreza. É como se Washington tivesse cruzado o Delaware com
Emanuel Leutze remando ao lado dele numa canoa, pintando o quadro furiosamente.

Nós encostamos ao lado do navio do Greenpeace, Solo, e a brava tripulação hippie nos olha
fixamente do deck e acena para nós. O tamanho do navio do Greenpeace é impressionante
quando você está chacoalhando ao lado dele dentro de um botezinho, assim como o é saber
que essas pessoas passam suas vidas se arriscando em defesa do ecossistema. Um navio do
Greenpeace foi explodido pelo governo francês. O U2 pode ser, como diz Bono, algumas
estrelas do rock numa viagem de apenas um dia, mas esse não é um dia qualquer, porque
eles estão viajando com heróis.

“Atirem os vossos tesouros e vossas mulheres e tudo correrá bem!” Bono grita para o navio
do nosso bote. Então amarramos o bote e começamos a subir as escadas de metal ao lado do
casco do navio. O capitão explica que vamos levar duas ou três horas para navegar para o sul
até Sellafield, de modo que podemos tirar nossos coletes salva-vidas e tomar o café da
manhã. (Eu cometo o erro de pedir uma Coca-Cola; pela reação dos herbívoros comedores de
comida saudável do Greenpeace você iria achar que eu pedi um bastão para bater em bebês
focas.) O Solo é uma espécie de combinação de balsa de State Island e um dormitório de
faculdade - um navio grande e funcional com notas fofas e apelidos colados nas portas das
cabines de dormir individuais. Uma mulher, de um jornal de Londres, que ouviu falar que
algo iria acontecer nessa viagem e forçou sua própria presença a bordo começa a entrevistar
qualquer membro do U2 que ela consegue encurralar. A equipe de filmagem do Greenpeace
filma Adam olhando para as cartas náuticas na ponte. Um cara parecido com Thor, que talvez
esteja no mar há muito tempo, tenta convencer o Bono a contratá-lo como roadie.

Uma das mulheres presentes diz a Bono que há uma cabine vazia disponível se ele quiser se
deitar um pouco. Obrigado, diz Bono, isso seria ótimo. Ela leva Bono até a cabine e fica lá

4
olhando para ele enquanto ele se deita na cama. Bono está exausto e tenta ignorá-la. Então
ela pergunta: “Você não vai tirar as calças?”

Er, diz Bono, não, assim está bem. Estou legal assim. Obrigado. Então ela sobe na cama ao
lado dele. Gentilmente, mas com firmeza, Bono explica que a jovem mulher que está lá em
cima, a de cabelo castanho é a sua esposa. Ahhh. E talvez ela queira tirar uma soneca comigo,
hmmm? Tudo bem, ok, obrigada. A mulher sai para buscar a Ali e o Bono se recosta aliviado.
Uns minutos depois, a porta se abre novamente, Ali entra e se deita ao lado do marido. É a
primeira vez que os dois estão a sós em séculos, pelo fato de Bono estar na estrada, e o casal
cansado tenta tirar o melhor proveito dessa estranha circunstância. Quando eles começam a
se aconchegar, Ali dá um berro. A anfitriã deles está de volta e está subindo na cama com
eles. Bem, diz Bono, dando um pulo, vamos ver o que está acontecendo no convés.

Adam está vagueando pelo interior do navio, procurando por um lugar para sentar-se
sossegado. Um subtexto emocional dessa operação é que Sellafield é uma companhia
britânica poluindo o Mar da Irlanda, e o U2 é uma banda irlandesa. A radiação não reconhece
fronteiras, mas o histórico de opressão britânica e do ressentimento irlandês dá a essa ação
em particular um elemento extra. Adam nasceu na Inglaterra de pais britânicos. Será que ele
vai encarar isso como uma questão de nacionalismo?

“Há uma questão relativa ao nacionalismo, mas mais do que isso é uma questão de encontrar
solução para esse dilema”, responde Adam. “A ideia de colocar algo tão perigoso como isso é
perigoso em qualquer parte do mundo, além de bastante primitiva. Como o que acontece em
Lake District (setor rural do norte da Inglaterra), pode ser que se safem porque as pessoas
são relativamente pouco sofisticadas pelos termos administrativos do governo. A arrogância
é muito mais ofensiva que o nacionalismo”.

Durante os últimos seis meses, o U2 conseguiu erguer aquela barreira entre a sua imagem
pública e suas vidas pessoais e convicções.

Eles concordam que essa será sua única boa ação pública do ano. Eles também esperam
manter o assunto em evidência o máximo possível, evitando aquele tipo de piedade pelo qual
eles foram tão criticados nos anos oitenta. Sellafield é um teste para o quão versátil a nova
imagem do U2 pode ser.

Musicalmente, a banda mudou de marcha antes - da atmosfera mística do Boy e do October


para o rock puro de War, e desse rock para as aquarelas de Eno no The Unforgettable Fire.
Adam algumas vezes abraçou essas reviravoltas de forma relutante. Não dessa vez.

“Essa é definitivamente uma virada que não poderia ter acontecido antes, no que me diz
respeito”, declara o baixista. “Eu acho que isso é uma coisa que todos os membros da banda
queriam desde o início, mas não sabiam como conseguir. Nós sempre quisemos ser capazes
de ser apenas uma banda de rock & roll, mas de uma certa forma nós desenvolvemos as
outras possibilidades da banda precocemente, antes de sermos uma banda de rock. Foi
assim por causa da forma como a música era nos anos 80; havia muita superfície e pouco
conteúdo e nós não nos sentíamos confortáveis com aquela superfície sem aprender algo
sobre o conteúdo. Então começamos a escavar no gospel, blues e nos primórdios do rock and
roll. Nós queríamos recuar e descobrir o que realmente era aquilo tudo, antes de nos

5
sentirmos confiantes em apresentar uma versão que representasse o espírito do que
tínhamos”.

Adam é interrompido por uma convocação para descer para o deck inferior para uma
pequena reunião. Eu fiquei pensando num verso do Achtung Baby, um verso que Bono me
disse se aplicar ao Adam muito antes de os outros três membros da banda se tornarem
suficientemente desprendidos para se juntar a ele:

“Me dê mais uma chance para deslizar pela superfície das coisas”.¹

Às 7 da manhã, as repulsivas torres de Sellafield surgem enormes no horizonte, como


Mordor (do filme “O Senhor dos Anéis”). O Solo baixa a âncora a cerca de 1,5 km de lá. O
organizador do Greenpeace anuncia que é hora de todos os que irão até a margem calçar as
botas de borracha, colocar as máscaras no rosto e vestir os macacões anti-radiação com
capuz. Todos nos parecemos com grandes bichos de pelúcia, exceto pelo rusticamente belo
Larry Mullen, que coloca o seu macacão anti-radiação por cima da sua jaqueta preta de
motoqueiro e então puxa a sua gola de couro para fora do zíper. De óculos escuros e boné
camuflado do exército, Larry é a personificação do rock de combate. “Eu inventei o
sofisticado”, ele fala, “e você está num bote comigo”.

Bono e Edge, por outro lado, parecem burritos com óculos de sol. Eles olham um para o
outro tentando não rir. Bono estende a mão e pega na mão do parceiro. “Edge”, ele diz de
forma romântica, e eles se abraçam enquanto os boquiabertos Greenpeacers dão
gargalhadas. “Isso é que é sexo seguro!” Bono grita do seu uniforme espacial. “Não se pode
ficar mais seguro do que isso!” Aventura, radiação e privação de sono conspiraram para
espalhar um humor pastelão sobre o U2. Os macacões encapuzados não ajudam.

A equipe do Greenpeace está carregando os botes com barris de areia radiotiva das praias
irlandesas. A ideia é o U2 desembarcar em terra e depositar esses barris na porta de
Sellafield, um exemplo gráfico do que Sellafield está bombeando para a Irlanda. Na margem,
ativistas do Greenpeace vindos da Inglaterra, País de Gales e Escócia estão carregando barris
das praias dos seus próprios países para a fábrica. Paul McGuinnes observa-os através dos
binóculos. Então o empresário volta a sua atenção para um projeto especial para os seus
meninos. Paul tem com ele a capa do álbum Help, dos Beatles, com a fotografia dos Fab Four
² agitando bandeiras de sinalização da marinha. Paul tem oito bandeiras vermelhas e um
livrinho de instruções que ensina como fazer os sinais das letras. Ele convoca o U2 para o
deck superior e coloca-os em linha e eles aprendem primeiro a sinalizar “H-E-L-P” e depois
“F-O-A-D” - uma das expressões favoritas do Larry que é abreviação de “fuck off and die”
(“foda-se e morra”).

Apesar de ser uma grande banda de rock, coreografia nunca foi o ponto forte do U2. Eles
gastam um tempão fazendo os sinais ao contrário (eles estão seguindo as instruções de
_________________________

¹ “Give me one more chance to slide down the surface of things” é o primeiro verso de Even Better than the
Real Thing.

² “Fab Four” (os quatro fabulosos) é o indelével apelido dos Beatles. O primeiro assessor de imprensa e
publicitário dos Beatles, Tony Barrow, foi quem cunhou esse apelido e ajudou a configurar a visão que o mundo
tinha da banda.

6
McGuinnes, que está de frente para eles, o que torna-se confuso) e batendo com as bandeiras
uns nos outros. Durante a difícil “Troca!” de “H-E-L-P” para “F-O-A-D”, Adam acerta no olho
do Bono. Eventualmente, o exercício se torna uma luta de espada com as bandeiras. Então
uma grande agitação surge nas escadas, vinda do deck inferior. É hora de invadir a
Inglaterra.

____________

7
9. Bono, Reme Com o Bote Até a Margem

a banda estabelece um ponto de desembarque / bono é carregado / edge entre os


menos importantes / uma habilidosa mudança de sexo oral para w. b. yeats / um
pestinha dúbio / transcendendo a confusão

“EU ME SINTO como um idiota nessas Wellies”, diz Larry enquanto caminha pelo Solo dentro
de suas botas de borracha (“Wellingtons”) depois que recebemos ordens para recolocá-las
antes de andarmos pela água atômica. Enquanto o U2 se prepara para embarcar no seu bote
que os vai levar para a praia, a organizadora do Greenpeace se surpreende ao notar que
Bono não calçou suas Willies, mas está calçado com as suas próprias botas de motociclista.
“Você não pode usar isso!”, ela insiste. “Essa água é radioativa! O que quer que você use nela
deve ser descartado depois!” “Está tudo bem”, diz Bono. “Não vou molhar os pés”. “Você não
entende”, ela diz. “Com o peso dos barris, os botes não os levarão até a margem. Vocês terão
que entrar na água!”

“Molhar os meus pés!” Bono diz, adotando um sotaque malcriado, reconhecendo que está
dando um bola fora. “Ah, não, não, não, tudo isso está errado!” Após uma procura rápida não
encontram um par extra de botas de borracha no Solo. A exausta líder do Greenpeace diz:
“Tudo bem, Bono. Eu sei que você pode andar sobre a água”.

Enquanto nos preparamos para embarcar em um dos dois botes que nos levará para a
margem, uma das organizadoras do Greenpeace me impede de embarcar. Isso é o mais longe
que você vai, ela diz. A partir desse ponto irão somente os membros do U2 e a equipe de
filmagem. Eu digo a ela que se ela acha que eu percorri todo esse caminho para ficar no
barco e acenar, ela deveria ter parado antes no porto e ido mais a fundo na questão, mas ela
é inflexível. Eu desanimo por um minuto e então me dou conta que nessas roupas com capuz
todos parecemos iguais. Então me aproximo da equipe de filmagem, bato no ombro de um
deles e digo que ele tem que voltar e buscar um colete salva-vidas. Assim que ele sai eu tomo
o lugar dele no bote, onde o comissário do Greenpeace conta nossas cabeças e dá ordens
para partirmos. Lá vamos nós.

Enquanto o bote de borracha do U2 navega em direção do litoral nuclear, a tensão que


esteve presente durante todos os preparativos para essa aventura deu lugar ao humor non-
sense de Monty Python¹. Mesmo assim, enquanto o bote das câmeras passa por eles, os
membros da banda e McGuinness adotam poses sérias, até heroicas. O objetivo principal

_________________________

¹ Monty Python foi um grupo formado pelos comediantes John Cleese, Eric Idle, Terry Jones, Graham Chapman,
Michael Palin e Terry Gilliam que se popularizou no anos 1970 e 80 tornando-se um ícone da comédia. O grupo
tornou-se um clássico com suas esquetes e longa metragens marcados pelo humor tipicamente britânico.

1
dessa expedição é dar aos jornais e à TV uma imagem que focalizará a atenção, ainda que em
segundo plano, sobre quão perigosa é a usina de Sellafield. Assim, enquanto eles se
aproximam da costa, o U2 se concentra nesse objetivo.

Aproximando-se da terra, o U2 pode ver ativistas do Greenpeace, em trajes anti-radioativos


brancos, alinhados como um exército de fantasmas na linha onde a praia pública se
transforma em uma proibida terra de ninguém. Eles podem ver repórteres e cinegrafistas.
Eles podem ver policiais com um fotógrafo tirando fotos do U2 com uma câmera, usando
flash em um dia de sol, uns 800 metros dentro das terras de Sellafield. Atrás dos portões da
usina também há alguns camburões. (Camburões, no original é paddy wagons. Paddy é um
termo pejorativo usado para se referir aos irlandeses).

O bote do U2 chega o mais perto possível da costa e, em seguida, antes que Bono possa
molhar os sapatos, um membro enorme do Greenpeace salta para a água salgada, pega Bono
no colo e o carrega até a praia. Bono ergue os braços enquanto é levantado, acenando com os
dedos em forma de “V” para os repórteres que correm até ele, clicando e fotografando. Bono
é depositado na areia e então ele se vira e encara nobremente o Solo. Os jornalistas dançam
ao redor dele como se ele fosse um maypole.¹ Nenhum único repórter presta atenção ao
Edge e ao Adam, de pé na água lutando para erguer seus barris de areia envenenada.
Enquanto as câmeras capturam Bono de todos os ângulos, o grunhido de Edge e Adam passa
despercebido, enquanto eles arrastam a sua carga radioativa.

Na linha da maré alta, o U2 larga os seus barris e convoca uma conferência de imprensa. “Eu
realmente não acredito que vão continuar com Sellafield2”, Bono diz aos repórteres. “A
questão é que o pessoal dos altos níveis do governo está muito nervoso com isso. Eles
gastaram milhões de libras nisso - ninguém quer admitir que foi um erro, então eles têm que
continuar. Será um grande escândalo mais tarde, quando os reais fatos forem revelados. Isso
é tudo o que podemos fazer - trazer os fatos à tona. Somos uma banda de rock & roll! É um
pouco ridículo termos que nos vestir como completos babacas para tornar isso conhecido”.

Depois de todas as fotos terem sido tiradas e todas as perguntas dos repórteres terem sido
respondidas, McGuinness e o U2 se reúnem. O ônibus que os trouxe até o mar deu um jeito
de chegar até aqui. Se eles andarem um quilômetro e meio ou um pouco mais pela praia eles
poderão entrar no ônibus e partir, em vez de terem que voltar ao Solo. A ideia agrada a
todos. Eles se afastam do reator, eventualmente chegando a uma cidade onde o ônibus os
espera. As crianças locais arregalam os olhos ao ver essa falange de criaturas em trajes
brancos surgindo da costa.

Edge é o primeiro a sair da praia e um jornalista que estava a espera num telefone público
leva o guitarrista para uma entrevista de rádio ao vivo. Os garotos locais começam a se

_________________________

¹ Maypole: um poste alto que é tradicionalmente erigido para as celebrações do May Day (1º de Maio,
celebração da chegada da Primavera), geralmente decorado com flores e longas fitas coloridas atadas ao topo.

2
cutucar e murmuram espantados: “É o Edge!” Um garoto chama o seu amigo ainda menor:
“Richie! Você quer ver o Bono? É ele lá embaixo!” O garoto menor corre até lá e olha
espantado. Ele vê uma figura encapuzada numa roupa anti radioativa. “Esse é o Bono?”

As crianças começam a fazer uma fila para pedir autógrafos. O U2 tira seus trajes de proteção
e os deposita nos sacos do Greenpeace. Bono é aconselhado a jogar fora as suas botas de
motociclista - mesmo que elas nunca tenham tocado na água, a areia de Sellafield é perigosa.
Com um sorriso ele as joga fora. Então um casal local se aproxima e começa a censurar um
dos ativistas do Greenpeace: “Nosso filho morreu de leucemia por causa dessa usina!” diz o
marido furioso. “Vocês vêm aqui por um dia e depois vão embora! O que é que vocês sabem?
Nós temos que conviver com isso o tempo todo!” Ele sai furioso. A esposa dá um tapa no
voluntário do Greenpeace, então se vira e segue o marido.

De volta ao ônibus, Bono apoia a cabeça no ombro da sua esposa e acena para as crianças
reunidas ao redor do ônibus. Ele adota um forte sotaque americano e diz com uma voz mais
aguda: “Oh, olhe, querida. Eles não são a-do-rá-ve-is? Oh, eu adoraria colocar todos eles na
minha mala e levá-los para casa!”

Eu chuto a parte de trás do seu assento. “Ei, pare de zombar dos americanos!” Bono se vira
desculpando-se e explica que ele está imitando os turistas americanos que ele conheceu
quando era criança na Catedral de St. Patrick, em Dublin. “Eu cobrava para lhes mostrar a
catedral”, ele diz. “Eu fiz um bom dinheiro”.

“Ah”, eu digo, “você era um pestinha”.

“Eu era!” Bono diz alegremente, e Ali cai na gargalhada. Ela sabe que o marido nunca deixou
de ser um safadinho.

Quando o ônibus começa a se afastar, Bono olha pela janela e vê que um dos garotos fãs do
U2 está orgulhosamente caminhando com suas botas radioativas. “Oh, inferno! Pare o
ônibus!” O garoto se recusa a devolver o suvenir até que os quatro membros do U2 lhe deem
seus autógrafos. Enquanto descemos a estrada para longe de Sellafield passamos por -
viradas no sentido oposto - uma série de barreiras policiais. Lá estão eles, todos alinhados,
esperando para impedir o U2 ou o Greenpeace de se aproximar da usina de plutônio. Quando
passamos pelos policiais, Larry grita pela janela e acena.

Durante a longa viagem de volta para Manchester, Bono - que se tornou pai de duas crianças
desde a última turnê do U2 - fala sobre se reajustar à vida de astro do rock. “Cair na estrada
não é difícil”, ele diz. “Os verdadeiros problemas começam quando você volta para casa, o
reajustar-se. Quando você está na estrada, tudo é colocado em segundo lugar em prol da
turnê. Você tem seguranças que te acompanham quando você sai à noite para ter a certeza
que você vai voltar e tocar no próximo show. E quando você volta para casa, essa
mentalidade caótica que você traz da estrada pode ser muito engraçada. Como o que
acontece com a chave do quarto do hotel. Quando você está na estrada, a chave de um quarto
é como a sua coleira canina de identificação. Ela te ajuda a voltar para casa à noite, ela paga
as suas contas. Houve situações em que um mês após o término de uma turnê, depois de já
3
estar em Dublin, e dar a algum dono de clube noturno uma chave do Ritz-Carlton de Chicago
em vez de dinheiro, e ele olha para mim como quem diz ‘Que droga é que ele está usando?’”

Começamos a falar sobre o egoísmo que a maioria dos músicos, a maioria dos artistas,
cultiva em paralelo com a dedicação à sua arte. “Estamos vivendo um decadente tipo de
egoísmo, um estilo de vida orientado para a arte”, diz Bono. “Não há nada que possa se meter
entre você e a sua música quando você está na estrada. A vida real não existe”.

Cito para Bono os seus próprios versos em “The Fly”: “Every artist is a cannibal, every poet is
a thief, all kill their inspiration and sing about their grief”. (Todo artista é um canibal, todo
poeta é um ladrão, todos matam sua inspiração e cantam sobre o seu luto).

“Sim”, Bono suspira. “Eu espero não ser assim, mas suspeito que eu poderia ser. E na
verdade eu odeio essa ideia. A grande jogada é que, sob o disfarce de ‘The Fly’ eu posso
admitir toda essa merda”.

Bono caminha até a parte da frente do ônibus, desenrola o cabo do microfone que é usado
pelo guia turístico, e começa a nos torturar com a sua imitação de um cantor de salão
irlandês bêbado. Ele murmura dedicatórias embriagadas, canta músicas horríveis e desafia
qualquer um a vir tirar o microfone dele. É uma pena que grande parte do público ache que o
Bono é um chato. Ele é uma figura. O problema é que quando as pessoas ficam tão famosas
como o U2, os outros começam a tratá-las como deuses ou fenômenos. Então eles têm que
construir uma bolha protetora na qual eles possam ser eles mesmos. Dentro da bolha eles
podem ser como sempre foram, sem as tolices dos rock stars. Mas, para quem olha de fora da
bolha eles parecem estranhos e distorcidos.

Essa viagem de volta para Manchester a partir de Sellafield agora dura cerca de três horas e
McGuinness tem nos prometido uma parada para o café da manhã durante toda a viagem.
Nós paramos numa cafeteria de beira de estrada para turistas, todos descem do ônibus e
começam a formar uma fila para salsicha, presunto, bacon cru e todas as outras entope-
artérias, deliciosas iguarias da gastronomia britânica. No restaurante Bono tenta convencer
Edge a sair e sentar na grama, mas Edge resmunga que já viu o suficiente de coisas ao ar livre
para um dia.

Quando a viagem de ônibus é retomada, Bono e eu vamos para o banco de trás. Ao nos
aproximarmos de Manchester eu digo a ele: “Bem, imagino que todo mundo deve estar te
perguntando sobre todas as referências ao sexo oral nas suas novas músicas...”

“O QUÊ?” Bono vocifera. “Bill, você virou a página errada do seu caderno, você está me
fazendo as perguntas que você faz para o Prince!”

Ouça - eu digo - esses versos das músicas recentes do U2: “Surrounding me, going down on
me” (Me cercando, descendo sobre mim)¹, “You can swallow or you can spit” (Você pode
_________________________
¹ Until The End Of The World

4
engolir ou você pode cuspir)², “Here she comes, six and nine again” (Aí vem ela, sessenta e
nove de novo)³, “Did I leave a bad taste in your mouth” (Deixei um gosto ruim em sua boca)4
...

“Ahh”. Bono sussurra algo sobre sessenta e nove ser uma das posições sexuais mais
igualitárias e então sugere enfaticamente que a gente mude de assunto.

Ok, eu digo, em “One” você canta: “You say love is a temple, love's the higher law. You ask me
to enter and then you make me crawl” (Você diz que o amor é um templo, o amor é a lei
maior. Você me pede para entrar e então me faz rastejar). Essa é uma grande metáfora sobre
sacramento/pecado, templo/vagina. É como o poema de Yeats 5: “O amor armou sua mansão
no lugar de excremento”.

“Sim, uau”, Bono exala. “Essa frase, você realmente tocou alguma coisa. Você sabe, não foi por
acaso que Jesus nasceu no esterco e na palha...” O ônibus pára. Finalmente chegamos a
Manchester. Nós nos dirigimos ao hotel para pegar a nossa bagagem e fazer check-out. O U2
tem um avião esperando para levá-los de volta a Dublin. Bono me pergunta se eu quero ir
com eles. Não, obrigado, eu digo, eu deixei todas as minhas roupas numa lavanderia em
Londres e tenho que voltar para buscá-las.

Alguns dias depois, Bono telefona e pergunta se eu vi a nossa aventura em Sellafield nos
noticiários da TV e nos jornais. Ele diz que a indústria nuclear tentou contradizer toda a
cobertura que o Greenpeace conseguiu enviando alguns homens de Relações Públicas para
ficarem na praia, de camiseta, “olhando, como se fossem construir um castelo de areia”. Um
dos porta-vozes do setor nuclear cometeu um grande erro ao dizer aos repórteres que o U2
não tinha o direito de se envolver na Grã Bretanha porque eles eram irlandeses e deveriam
estar em casa, em Belfast, tentando impedir que crianças construíssem bombas. Essa
declaração confusa (além de seu preconceito, já que a Grã-Bretanha considera Belfast parte
do Reino Unido) trouxe acusações furiosas de “ataque aos irlandeses” contra o
desafortunado representante das Relações Públicas. Então, Bono menciona a nossa conversa
no ônibus.

“Eu acho que estava falando com você sobre Jesus ter nascido no esterco e na palha”, diz
Bono. “Acho que o equivalente a isso nos anos noventa é Las Vegas, as luzes de neon. Eu
descobri que o meio do lixo é um bom lugar para eu desenvolver as minhas ideias mais
sublimes, além de ser também um ótimo disfarce”.
_________________________
² Acrobat
³ Lady With The Spinning Head
4 One

5 William Butler Yeats, muitas vezes apenas designado por W. B. Yeats, (Dublin, 13 de junho de 1865 -

Menton, França, 28 de janeiro de 1939) foi um poeta, dramaturgo irlandês. Atuou ativamente no Renascimento
Literário Irlandês e foi co-fundador do Abbey Theatre. Suas obras iniciais eram caracterizadas por tendência
romântica exuberante e fantasiosa, que transparece no título da sua coletânea de 1893, The Celtic Twilight ("O
Crepúsculo Celta"). Posteriormente, por volta dos seus 40 anos, e em resultado da sua relação com
poetas modernistas, como Ezra Pound, e também do seu envolvimento ativo no nacionalismo irlandês, seu
estilo torna-se mais austero e moderno.

5
É interessante encontrar as suas ideias mais elevadas nos detritos, eu digo.

“Sim”, diz Bono. “É o melhor lugar para elas. Porque ali elas não se chamam grandes ideias.
Elas não chamam atenção para si mesmas. Elas não tem uma grande placa dizendo ‘ARTE’”.
Ele faz uma pausa e suspira. “Estou tentando desesperadamente pensar numa maneira de
falar sobre isso e não soar como um completo idiota”.

“As pessoas podem pensar que o que o U2 está fazendo agora é muito mais descartável, mas
acho que as coisas que estamos descartando são muito mais interessantes do que você
suspeitaria inicialmente. Eu nunca estive tão aficionado pelo rock & roll como eu estou agora
porque parece haver tantas possibilidades. Sexo e música ainda são para mim lugares onde
podemos vislumbrar a Deus. Sexo e arte, eu suponho, mas, a menos que você seja
assassinado no espírito de Warhol ou Rothko¹, eu acho que para a maioria de nós arte é
música”.

“Nós estamos procurando diamantes na sujeira e a música está mais na lama no momento.
Nossas cabeças podem ainda estar nas nuvens, mas os nossos pés estão definitivamente
arrastando na sujeira. Quanto mais escuro fica, entretanto, mais procuramos por momentos
brilhantes. Esses momentos brilhantes, para mim, são os mesmos que sempre foram. Há
grandes palavras para eles, como transcendência. Eu continuo interessado nas coisas do
espírito e Deus e na perturbadora ideia de que Ele pode estar interessado em nós, e na fé e
na fidelidade, sexual e espiritualmente falando”.

“Todo mundo está num estado de confusão sexual nos anos noventa. Amor e sexo
simplesmente estão aí para quem quiser pegar. Ninguém sabe o que fazer com eles. O
casamento parece um ato de insanidade, uma grande loucura. Uma coisa que eu realmente
gosto na cultura das drogas, apesar de eu não ser realmente parte dela, é que ela reconhece o
outro lado, a quarta dimensão que todo mundo, de alguma maneira, esconde. Por uma
centena de anos, tem sido dito às pessoas que elas não têm um espírito e, se você não
consegue vê-lo ou provar que ele existe, então ele não existe. Qualquer um que ouça Smokey
Robinson sabe que isso não é verdade”.

“Nós temos mais contradições em palco atualmente do que alguma vez já tivemos. Eu acho
muito interessante a tensão que isso traz. As pessoas são obrigadas e escolher entre carne e
espírito, quando na realidade as pessoas são os dois”.

_________________________
¹ Mark Rothko (Daugavpils, 25 de setembro de 1903 - Nova Iorque, 25 de fevereiro de 1970) foi um
pintor norte-americano de origem letã e judaica. Ele é classificado como um expressionista abstrato, embora
ele tenha rejeitado esse rótulo. De acordo com seus amigos, tinha uma natureza difícil. Profundamente ansioso
e irascível, podia ser também extremamente afetuoso. Andy Warhol, nascido Andrej Warhola, Jr. (Pittsburgh, 6
de agosto de 1928 - Nova Iorque, 22 de fevereiro de 1987), foi um empresário, pintor e cineasta norte-
americano, bem como uma figura maior do movimento de pop art. Artista plástico que passa a se utilizar dos
motivos e conceitos da publicidade em suas obras, com o uso de cores fortes e brilhantes e tintas acrílicas.
Reinventa a pop art com a reprodução mecânica e seus múltiplos serigráficos são temas do cotidiano e artigos
de consumo, como as reproduções das latas de sopas Campbell e a garrafa de Coca-Cola, além de rostos de
figuras conhecidas.

6
Sim, eu digo, na Zoo TV Tour e no Achtung Baby vocês estão tentando equilibrar as coisas
que percebemos como opostas, embora, na verdade, elas possam não ser.

“Sim”, diz Bono. “Esse é um ponto importante. O que parecem ser opostos, mas que na
verdade podem não ser, como plástico e alma”.

Como sexo e Deus?

“Exatamente”.

Em que nível está a sua linha ética agora? Sobre qual assunto o U2 se recusaria a cantar?

“Não recusaríamos nenhum. Ao cantar sobre alguma coisa você a torna limpa. Porque você a
traz à tona”.

Edge me disse no inverno passado que os temas de Achtung Baby são sobre “traição, amor,
moralidade, espiritualidade e fé”. Muitas das músicas lidam com as tentações que
corrompem e podem destruir um casamento. Era o casamento do Edge o único que você
estava desenhando em suas músicas?

“Bem, eu estava indo por esse caminho de qualquer maneira”, diz Bono. “Mas certamente...
não sei o que veio primeiro, para ser honesto. As letras ou as coisas que Edge estava
passando. Estão todas ligadas umas às outras. Mas, há muitas outras experiências que
aconteceram na mesma época. Tudo está relacionado ao fato de ser algo extraordinário ver
duas pessoas se agarrando uma à outra e tentando resolver as coisas. Eu continuo fascinado
com a ideia de duas pessoas contra o mundo, e eu realmente acredito que tem de ser contra
o mundo, porque eu não acho que o mundo tenha a ver com ficar junto. A AIDS não é a única
ameaça, você sabe. A AIDS é o grande lobo mau do momento, mas eu vejo todas as ameaças.
Vejo a necessidade de independência das pessoas, a necessidade de seguir as suas próprias
ideias e não são coisas necessariamente egoístas. Tudo lá fora é contra a ideia de ser um
casal: cada comercial, cada programa de TV, cada novela, cada romance que você compra no
aeroporto. O sexo é atualmente um assunto de propriedade das corporações. É usado para
vender produtos. Ele próprio é um produto. E a mensagem é que se você não o tiver, você
não é ninguém”.

“Eu tive os meus problemas no meu relacionamento. É difícil para todos. Eu acho que a
fidelidade é simplesmente contra a natureza humana. É aqui onde temos que nos envolver
ou não com o nosso lado melhor. Certamente eu não estou tentando descobrir respostas
fáceis. É como na escola quando eles te explicam sobre as drogas. ‘Se você fumar drogas você
se tornará um viciado e morrerá na próxima semana’. Eles não te falam nem metade da
verdade. Eu acho que o mesmo vale para o sexo. É assim, se você disser às pessoas que o
melhor lugar para fazer sexo está nas mãos seguras de um relacionamento amoroso, você
poderá estar mentindo! Pode haver outros lugares. Se a pergunta é, posso eu, como um
homem casado, escrever sobre fazer sexo com uma estranha, ‘sim’ tem que ser a resposta. Eu
tenho que escrever sobre isso porque é parte do assunto sobre o qual estou escrevendo.
Você tem que tentar expor certos mitos, mesmo que eles te exponham ao longo do caminho.

7
Eu não quero falar sobre o meu próprio relacionamento, porque eu tenho muito respeito
pela Ali para fazer isso. O que eu estou te dizendo é, eu posso ou não estar escrevendo sobre
minhas experiências pessoais em alguns casos, mas isso não faz as coisas menos reais”.

Bono e eu continuamos conversando, nós falamos por mais de duas horas. Ele me cita uma
frase de Sam Shepard para concluir: “Bem no meio da contradição”, ele diz, “esse é o lugar
para se estar”.

____________

8
10. Giants Stadium (Estádio dos Gigantes)

uma história do U2 nos estados unidos / uma turnê pelo submundo / bono é
espancado com uma escova de cabelo / ellen darst, uma guia local / mulheres no local
de trabalho / como o autor perdeu sua objetividade / conservando a banda de
abertura

GAROTOS AGLOMERAM-SE por vários dias nos estacionamentos do estádio de futebol,


Giants Stadium, ao Norte de Nova Jersey, do outro lado do rio a partir de Manhattan,
enquanto o poderoso palco é erguido para a ZOO TV: THE OUTSIDE BROADCAST. Eles se
agacham, maravilhados e confusos, como os homens-macaco estudando o monolito em 2001
– Uma Odisseia no Espaço. Para a turnê de verão nos Estados Unidos o U2 elevou tudo à
proporções elefantinas. O palco, enorme e preto, se ergue em uma das extremidades do
campo de futebol, seus picos subindo em direção ao céu como torres de catedrais pós-
nucleares. Elas deveriam se parecer com torres de TV - andaimes negros se estreitando a
medida que sobem até uma luz vermelha piscante - mas o efeito é muito mais assustador do
que isso. O palco de onze andares é apenas a estrutura para as gigantescas telas de TV que
piscam e chiam acima e por toda a frente do palco. Quando as luzes do estádio se apagam e
todas aquelas telas se acendem para a vida um instinto tribal toma conta da platéia: o U2
pode ter descoberto uma ligação subconsciente entre o recente ritual familiar de sentar-se
ao redor da televisão e equivalentes rituais mais primitivos - tal como a reunião do clã para
ser entretido pelo xamã. Quando o U2 sobe ao palco até mesmo os helicópteros circulam lá
em cima para dar uma olhadinha e os aviões que usam o estádio como um marcador de
pouso parecem ornamentos vermelhos piscantes voando e zumbindo em redor do grande
vodu, pequenas fagulhas mecânicas se erguendo da fogueira elétrica.

O Submundo, a vasta rede de áreas de trabalho atrás e abaixo do palco, é uma colmeia. À
direita de Edge, num bunker a dois degraus abaixo, está o técnico de guitarra Dallas Schoo
numa sala cheia de guitarras, afinadores e peças sobressalentes. É uma loja de guitarras
completamente funcional. Durante o concerto, Dallas interromperá uma conversa para
entregar um pedal de wah-wah para que Edge possa obter o efeito que deseja enquanto
mantém os seus próprios pés livres para se mover pelo palco. Bem ao lado da sala de Dallas,
num pequeno cubículo que lhe dá uma clara visão do palco, fica Des Broadbery num
elaborado console de teclados e telas de computador. Des cuida dos sequenciadores que
preenchem o som do U2 e tornam possível que eles se aproximem, em palco, daqueles
elaborados efeitos sonoros do Achtung Baby. Des tem um arquivo de computador de
prontidão com qualquer música do U2 que a banda possa repentinamente tirar da cartola. E
se for necessário um teclado de sintetizador ou uma segunda guitarra, Des está preparado
para participar. Quando Edge está tocando o solo em “Ultra Violet (Light My Way)”, por
exemplo, Des está sob o palco fazendo uma sequência de 8 compassos de guitarra sampleada
(que faz parte da música).

1
“Não há espaço para erro humano no que eu faço”, diz Des. “Você tem que estar afiado. Há
muita coisa que depende do que acontece na minha área. O que realmente importa quando
eles estão no palco é ter a certeza de que eles estarão comigo ou eu estarei com eles”.

Eu pergunto para o Des o que ele faz quando a banda se perde no meio da música, como
resultado, digamos, do Bono se empolgar demais e entrar antes. “O que acontece”, Des
explica, “é eu deixar todos eles descobrirem onde estão e então eu me antecipo a eles para
um refrão ou verso e espero lá até que eles me alcancem”.

O U2 começou a usar sequenciadores em shows para conseguir lidar com “Bad” do The
Unforgettable Fire. Para a turnê Joshua Tree os sequenciadores já haviam chegado a oito em
número. Agora, é rara a música do U2 que não tem o Des adicionando algum sample, frase ou
uma parte de fundo.

Da ala do Des e do Dallas você pode dar um salto direto para um vasto hall atrás do palco, no
qual fica um pequeno camarim com um saco de boxe onde os membros da banda se reúnem
durante os intervalos, e onde eles podem trocar de roupa. Certa noite, Bono entrou furioso
durante o solo de guitarra de Edge em “Bullet the Blue Sky”. Estava dando tudo errado
naquela noite e ele estava furioso. Antes de se jogar na cadeira onde a estilista Nassim
Khalifa o embeleza, ele socou o saco, atirou uma cadeira e chutou a parede. Enquanto Nassim
tentava pentear o cabelo dele ele socava a mesa e gritava: “Merda! Merda!” Então ela bateu
na cabeça dele com a escova de cabelo como se ele fosse um cão malvado. Bono ficou
surpreso. Isso dói! Ele olhou no espelho e viu Nassim o penteando calmamente, sem dizer
nada. Ele calou a boca e se comportou.

Abaixo desse nível está o cérebro central de operações da Zoo TV, uma rede de mesas,
painéis de controle e monitores de televisão geralmente descritos na imprensa como “uma
estação de TV inteira sob o palco”. Isso na verdade é enganador, porque quando as pessoas
pensam numa estação de TV elas pensam em algo muito menos elaborado do que esse
cenário. O que isso realmente se parece é com uma sala de controle de missões da NASA. Em
cada tela há uma imagem diferente, múltiplas imagens de Bono, Larry, Adam e Edge, bem
como diferentes canais de TV transmitindo a sua programação, imagens pré-gravadas
usadas durante o show, os aforismos que piscam nas telas de TV e toda a programação
criada para o show, desde um búfalo que corre em câmera lenta através da série de telas
durante “One” até as bombas nucleares que explodem durante “Until the End of the World”.
Há onze laserdisc players que alimentam com imagens um total de 262 cubos de vídeo (os
componentes de tamanho normal das telas de TV dos vidiwalls) cada um dos quais podendo
ser controlados separadamente, se alguém fosse suficientemente lunático para fazê-lo.

Manter essa operação na estrada custa ao U2 125 mil dólares por dia, todos os dias - tendo
show ou não. Diante de tal custo, a recusa deles em aceitar patrocínio de empresas é quase
heróica.

Há outra loja de música, esta equipada com materiais de bateria e alguns equipamentos de
baixo, no bunker à esquerda de Adam, e há uma espécie de pequeno galpão escondido atrás
do Adam, à esquerda do Larry, onde o baixista pode se agachar para um rápido gole d'água

2
ou uma olhada rápida num gráfico de acordes. Por todo o Submundo há pessoas correndo de
um lado para o outro falando em seus fones de ouvido, dirigindo empilhadeiras e acionando
interruptores com uma determinação que eu só vi em Scotty na sala de máquinas quando o
Capitão Kirk estava lutando com os Klingons. O mais notável é que essa megaestrutura tem
que ser reconstruída e demolida em todas as cidades ao longo do caminho - o que significa
que além dos outros fardos o U2 tem que alugar um estádio de futebol por três noites para
poder tocar uma vez, porque demora todo esse tempo para erguer o palco.

Olhando para esse poderoso empreendimento e para as oitenta e cinco mil pessoas ansiosas
pela chegada do U2, eu tenho que me esforçar para relembrar que doze anos atrás eu
precisei apenas do meu pequeno e desgastado Dodge Dart para transportar o U2, eu mesmo
e Ellen Darst, do Holiday Inn de Providence, em Rhode Island, à um almoço em Warwick
para uma entrevista de rádio na Brown Universitye e dali para a passagem de som num bar
chamado Center Stage do outro do lado do rio, em East Providence. Nós éramos muito
menores naquela época.

Minha amiga Ellen parecia saber o que o U2 seria desde o momento em que ela os ouviu pela
primeira vez. Em 1980, ela havia acabado de ser promovida de uma representante de rua da
Warner Brother Records para um emprego no escritório de Manhattan. Eu ainda vivia na
Nova Inglaterra naquela época, mas eu a visitava quando estava em Nova York. Um dia eu fui
visitar Ellen e ela disse: “Você tem que ouvir isso” e colocou “I Will Follow” para eu ouvir. A
Warners estava distribuindo para a Island Records e o chefe da Island, Chris Blackwell, tinha
essa nova banda, o U2. Eu achei que o single era bom, mas Ellen achava que era a segunda
vinda de Cristo. Ela me fez prometer que eu voltaria para ver o U2 quando eles tocassem no
Paradise, um clube em Boston ¹.

No palco, o U2 era empolgante, ainda muito cru, mas tão cheios de energia e convicção que o
público era arrebatado e ficava de pé, dançando e se empurrando em direção ao palco para
alcançar Bono. Na minha memória eles tocaram “I Will Follow” e “Out of Control” duas vezes
no curto setlist, o que não era muito incomum na época do punk. As bandas tendiam a
começar a fazer shows antes de terem uma hora de músicas que valessem à pena no
repertório que tinham. Mais tarde eu descobri que o U2 tinha muitas músicas que
precederam o contrato de gravação, mas eu acho que eles queriam se dedicar ao que tinham
de melhor para os primeiros shows na América.

Muita gente que comprou o Boy, o primeiro álbum, quando ele saiu e que viu aqueles
primeiros shows gostam de andar por aí agora dizendo que o U2 nunca foi tão bom como
naquela época e dizem para os netos: “Se você tivesse visto o U2 quando eles eram
adolescentes, assim como eu vi, vocês não ficariam impressionados com toda essa
parafernália da Zoo TV agora”. Na verdade isso não é verdade. O jovem U2 era carismático

_________________________
¹ Curiosidade: no DVD Elevation Tour Live From Boston, Bono cita o clube Paradise durante I Will Follow.
“Paradise, Paradise, Paradise. A club called Paradise twenty years ago. Ring those bells, those bells never gonna
get old”. (Paradise, Paradise, Paradise. Um clube chamado Paradise vinte anos atrás. Toque esses sinos, esses
sinos nunca vão envelhecer).

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pra caramba, mas eles ainda se apoiavam na paixão (e no som impressionante da guitarra do
Edge) para conseguir superar a escassez de grandes músicas e a falta de coesão musical.
Quando se deparavam com uma plateia que não estava interessada em acolher a convicção
deles, o jovem U2 soava bastante comum. Mais tarde Larry repetiu o que o Adam havia dito
antes - a banda, realmente, não era tão boa quando eles vieram para a América pela primeira
vez. As pessoas se envolviam não com o que o U2 era, mas com a promessa do que eles
poderiam vir a ser.

Eu prometi a Ellen Darst, depois do show no Paradise, que iria publicar um artigo, como
freelance, sobre o U2 em uma das revistas de rock para as quais eu estava escrevendo. Foi
muito difícil encontrar alguém interessado. Finalmente a revista Output, de Long Island,
disse tudo bem. No dia em que o U2 chegou a Rhode Island, onde eu morava, tentando dar a
entrevista, uns amigos meus, uma banda local chamada Shake, estavam fazendo um grande
churrasco na casa deles e eu não queria perder isso. Então eu me ofereci para buscar o U2 no
Holiday Inn e levá-los comigo. Era um dia úmido e sufocante do Memorial Day ¹ e, quando eu
apareci no motel para buscá-los, Bono, Larry e Edge estavam na piscina. Adam estava me
esperando na porta da frente. “Vamos”, Adam chamou os outros, “vamos para um burnout!”

“Um cookout”, eu corrijo, “não um burnout”. “Um cookout é queimar uma carne, um burnout
é queimar uma ponta” ².

“Ah”, diz Edge, “e vamos queimar uma carne?”

Nós passamos a tarde comendo cachorro-quente com as bandas locais e seus familiares na
casa do pessoal do Shake, e em um dado momento, o U2 e eu fomos para a sala de ensaios no
porão, e fizemos uma longa entrevista em que me contaram a sua história até aquele
momento. Considerando que o mais velho deles, Adam, tinha acabado de completar vinte e
um, não era uma história muito longa. Fiquei impressionado com o fato de que eles
escreverem todas as suas músicas improvisando juntos em uma sala; eles pareciam
determinados a manter tudo igual entre eles. Bono era categórico em afirmar que as bandas
naquela época não eram bandas verdadeiras, onde é um por todos e todos por um. Era um
ou dois líderes e músicos acompanhantes contratados. Ele fez questão para o fato de que o
U2 sempre seria o que eles cresceram acreditando que os Beatles e os Stones eram: uma
banda de verdade. O Shake tinha um pôster colorido dos Beatles no início da carreira
pendurado na parede e eu lembro do U2 olhando para ele, fascinados pelo fato de que nesse
pôster todos os Beatles tinham cabelos completamente pretos. Eles estavam impressionados
com a possibilidade de os Beatles terem tingido seus cabelos para ficarem mais parecidos
uns com os outros. (Na verdade, eu suspeito que a empresa de pôster foi quem fez a tintura,
não Brian Epstein).
_________________________

¹ O Memorial Day é um feriado público para celebrar os soldados que morreram em Guerra, atualmente é
observado na última segunda de maio, mas originalmente era celebrado em 30 de maio.

² Cookout e burnout: confusão feita pelo Adam entre os dois termos. Cookout é uma festa onde cozinha-se e
come-se fora da casa, no pátio, tipo um churrasco, burnout é fumar droga (ou queimar uma ponta).

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Quando subimos de volta à festa, Edge me perguntou sobre o Shake e eu disse que eles eram
uma banda muito boa que tocava seis noites por semana, cinquenta semanas por ano, na
esperança de conseguirem um contrato com uma gravadora. Ele disse que aquela não era a
maneira de se fazer isso. Edge disse que um single, mesmo um feito em casa, com uma
grande música faria mais por uma banda do que cinco anos tocando em clubes. “I Will
Follow” era a prova.

Nos dois anos e meio seguintes, da primavera de 1981 até o outono de 1983, o U2 tocou
tantas vezes no Nordeste que você poderia até pensar que eles viviam em Seekonk. Mesmo
quando eles não estavam em turnê entre Boston e Washington eles mantinham uma forte
presença com entrevistas nos jornais de música locais e com suas músicas sendo tocadas nas
estações de rádios das universidades. Eu lembro de dar de cara com o Adam nos clubes em
Boston, entre turnês, curtindo a América e certificando-se que o U2 teria controle sobre tudo
o que estivesse acontecendo. Ellen Darst estava sempre ao lado deles. Mais tarde, em 1981, a
Warners a demitiu junto com uma tonelada de jovens executivos, em reação a queda geral no
setor das gravadoras pós-discoteca. O U2 ajudou Ellen a conseguir um emprego na Island,
mantendo-a por perto. Ela me disse que o trabalho na Island seria apenas temporário se as
coisas dessem certo para a banda.

E sim, elas deram certo. Paul McGuinness e o U2 usaram Ellen como seu guia para a indústria
musical americana. Assim que o U2 teve suficiente dinheiro para isso, eles abriram um
escritório em Nova York e colocaram Ellen no comando. Ellen contratou Keryn Kaplan como
sua assistente. Keryn, recém saída da faculdade, tinha sido secretária na Warners e também
fora dispensada. Não muito tempo depois, Paul contratou Anne-Louise Kelly para ajudar a
organizar o escritório em Dublin e percebeu que ela era inteligente demais para desperdiçá-
la datilografando e arquivando. Anne-Louise tornou-se diretora do Principle Management
Dublin, o mesmo título que Ellen tinha em Nova York.

Eu sei que Ellen realmente sentia que as mulheres eram maltratadas na indústria gravadora
dos EUA e estava determinada a aproveitar todas as mulheres inteligentes que estavam
sendo ignoradas ou subutilizadas por homens que recebiam demais no clube dos velhos
garotos. Eu não faço idéia se Anne-Louise sentia a mesma coisa, mas ambos os escritórios do
Principle Management, o de Nova York e o de Dublin, eram compostos quase inteiramente
por mulheres. Eles ainda são. Eu acho que isso é uma das razões pelas quais a organização do
U2 tem uma atmosfera completamente diferente - e muito mais camaradagem - do que a
maioria dos negócios musicais. A maioria das empresas de administração – e de fato, os
níveis mais altos da maioria das gravadoras - têm o espírito de um clube de futebol ou de
uma campanha militar. Há muitos gritos de Nós versus Eles e muita postura machista - o que
é sempre desagradável quando as pessoas estão envolvidas numa empreitada que não
requer coragem física e pouco risco pessoal. As pessoas se aborrecem rapidamente nesse
tipo de ambiente. Tenho certeza que uma das razões para as mulheres do Principle
trabalharem muitas horas por dia por vários anos seguidos é porque, na maior parte do
tempo, é um local agradável e encorajador para trabalhar.

“Ellen me ensinou muito sobre a América naqueles primeiros tempos”, diz McGuinness. “Se
você está na estrada com quatro ou cinco caras e todas essas coisas de macho que

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acompanham o rock & roll, um contrapeso muito eficaz é associar-se com um monte de
mulheres. Parece ser a maneira correta de fazer as coisas. Há muita masculinidade no rock &
roll sem que seja preciso tê-la nos escritórios também. Há muitas mulheres no mercado da
música que não são reconhecidas pelo que elas podem fazer e eu acho isso uma estupidez.
Nós não vamos ser estúpidos com relação a isso”.

Uma vez que o U2 estava com sua organização funcionando eles trabalharam como castores
para ganhar novos convertidos para a sua causa. Bono era ímpar na sua busca por audiência,
pulando no público, dançando com as fãs, se atirando sobre braços esticados e - enquanto os
lugares em que eles tocavam cresciam - escalando os andaimes, se pendurando em cabos nas
paredes, se pendurando nas sacadas. A banda organizou uma série de cortes marciais nas
quais eles massacravam o Bono por arriscar-se e colocar em perigo qualquer criança do
público que poderia tentar imitá-lo. Ele finalmente entendeu a mensagem quando Edge,
Adam e Larry ameaçaram acabar com o U2 se ele não parasse de se fazer de Tarzan. Bono
me disse que na época ele também foi influenciado por uma crítica ao show escrita por
Robert Hillburn no Los Angeles Times onde o crítico disse que a música do U2 não precisava
desse tipo de distrações. Eu acho que Hillburn permaneceu como a consciência
conservadora de Bono ao longo dos anos. À medida que a Zoo TV se expandia cada vez mais,
todo o tipo de possibilidades para a futura expansão do U2 em vídeos interativos, redes de
computadores, e TV a cabo eram oferecidas para a banda. Bono estava interessado em tudo,
bem como em escrever roteiros de cinema e nas ofertas para papéis em filmes que eram
regularmente passadas pelas mãos do Principle. Mas, ele mencionou mais de uma vez que
Hillburn disse a ele: “Se você colocar toda a sua energia no desenvolvimento de sua música,
você poderá ser um dos melhores compositores de todos os tempos. Pense no que Gershwin
deixou pra trás, pense em Hank Williams. Será que você deveria deixar que outras coisas te
distraiam disso?” Essa repreensão ecoou dentro da cabeça de Bono. Ele continua lutando
com isso.

A primeira vez que o U2 foi a atração principal numa arena nos Estados Unidos foi no
Centrum em Worcester, Massachusetts, no outono de 1983, seis meses depois do início da
turnê War. O Centrum era, na época, um espaço novo, com capacidade para quinze mil
pessoas e situava-se num centro populacional cerca de 15 minutos de Boston, a nordeste,
Hartford a sudoeste e Providence a sudeste. Os fãs que o U2 vinha conquistando em três
estados correram para lá e esgotaram o show. Foi uma grande noite para a banda, um
presságio do que estava por vir e alguns garotos e garotas muito empolgados correram para
o palco para tentar abraçar o Bono. Quando os seguranças vieram atrás de uma garota, Bono
dispensou-os, envolveu-a com os braços e dançou com ela pela borda do palco. Então ele
continuou cantando enquanto ela se ajoelhou e ficou agarrada à perna dele. Ela se
acorrentou ao tornozelo dele. E não tinha a chave. O show teve que continuar com Bono
preso à fã até que os roadies conseguissem uma serra para cortar a corrente. A relação do U2
com seu público estava mudando.

Eu fui até os camarins logo depois que o U2 saiu do palco naquela noite, parabenizei os
outros caras por terem esgotado o Centrum e fui dizer oi para o Bono. Ele estava coberto de
suor, tinha uma toalha em volta do pescoço e falava, com os olhos arregalados, usando todos
os seus vôos poéticos. Depois de alguns minutos percebi que ele não me conhecia. Tentar

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comunicar-se com quinze mil pessoas fez alguma coisa em seu cérebro e o envolvimento
dele não era uma interpretação. Ele não conseguiu desligar no momento em que saiu do
palco. Ele estava se transformando do garoto que eu havia conhecido quando “I Will Follow”
era novidade em alguém maior.

Um ano mais tarde, depois de “Pride” ter levado o U2 ao próximo nível de sucesso, tocar em
lugares pequenos não era mais uma opção. Naquela época eu havia me mudado para Nova
York e o U2 estava tocando na Radio City Music Hall. Era um local muito pequeno. O público
estava avançando para o palco, os seguranças estavam lutando com os fãs, Bono estava
lutando para recuperar o controle como Mick Jagger em Altamont. Bono entrou em brigas
com os policiais que estavam batendo nos garotos. O show parou várias vezes enquanto os
guardas tentavam restaurar a ordem. Foi uma grande confusão que quase acabou com Bono
sendo preso e praticamente garantiu que o U2 já não podia mais tocar em locais de tamanho
médio nos Estados Unidos.

No verão de 1986, o U2 concordou em ser a banda principal para uma turnê beneficente na
América em favor da Anistia Internacional. Eles seriam o topo de uma lista que ainda
contava com Sting, que tinha acabado de sair do the Police, Peter Gabriel e Lou Reed, um dos
seus primeiros heróis. A última noite da turnê da Anistia seria apresentada aqui no Giants
Stadium e seria televisionada na MTV. Estrelas convidadas surgiam de todos os lados e a
tensão estava alta, quando a MTV deu um passo a frente e assumiu o comando. Miles Davis
tocou, Muhammad Alt falou, Pete Townshend saiu do avião em Nova York e recebeu a notícia
de que seu pai havia acabado de falecer em Londres. Ele deu a volta e foi para casa. Joni
Mitchell, que estava programado para tocar apenas algumas músicas, foi convidado a ficar
sem ensaiar e fazer um show completo para preencher o buraco deixado pelo Townshend. O
lugar estava uma loucura com tanta vaidade, pânico, ameaças e bajulação.

A maior guerra de egos era sobre quem iria encerrar o show. Era uma turnê do U2, sempre
foi, mas nos últimos dias a banda recém falecida de Sting, the Police, havia se reunido para
um majestoso adeus libertador e uma conscienciosa despedida. O the Police era um nome
maior que o U2, e o fato de ser essa a última apresentação de despedida, de adeus-a-tudo-
isso, não deixou dúvidas na cabeça do empresário deles, Miles Copeland, sobre quem deveria
ser o responsável pelo clímax nesse grande espetáculo. O promotor da turnê, Bill Graham,
discordou. Graham, Copeland e o líder da Anistia, Jack Healy, discutiram para decidir quem
iria abrir para quem. Raramente houve tanta energia furiosa gasta no serviço de presos
políticos quanto naqueles camarins do Giants Stadium naquele dia.

Finalmente uma conciliação digna de Salomão foi alcançada. O U2 entrou primeiro e tocou
como principal. Bono, de cabelo comprido, parecia-se com Daniel Webster e teve o estádio
de futebol na mão. As pessoas que assistiram pela TV me disseram que pareceu exagerado,
uma representação, e até pode ser que sim, mas no estádio foi hipnotizante. Eu estava
empolgado por eles terem conseguido. Corri para trás do palco para falar com a Ellen e disse:
“Ellen! Eles foram melhor do que nunca! O The Police nem tem chance!” e ela
metaforicamente chutou minha bunda e me fez engolir minhas palavras. “Isso não é uma
competição!” Ellen explodiu. “Esses músicos não têm nada além de respeito e afeição uns
pelos outros e não ajuda em nada quando as pessoas que os cercam tentam transformar as

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coisas numa batalha de bandas!” “Caramba!” eu expliquei, me encolhendo como uma
camiseta barata lavada com água quente. Ellen se acalmou e disse: desculpe, tem sido um dia
difícil.

O grande acordo era que o U2 sairia do palco a tempo para o The Police ter uma boa parte do
horário nobre na televisão, antes do final da transmissão da MTV. E no final da (excelente)
apresentação do The Police eles tocaram “Invisible Sun”, sua assombrosa canção sobre os
problemas na Irlanda do Norte. Um por um os membros do U2 surgiram por detrás do palco
pegando os instrumentos do The Police. Larry pegou o lugar de Stewart Copeland atrás da
bateria, Edge pegou a guitarra de Andy Summers, Adam pegou o baixo do Sting e Bono foi
para o microfone terminar de cantar a música do The Police. Foi um gesto de classe, a Maior
Banda do Mundo de saída passando publicamente o bastão para a nova.

Olhando em retrospectiva o final da Anistia, um ano depois, Sting disse: “Na última música
que tocamos nós passamos os instrumentos para o U2. Todas as bandas têm o seu momento.
Em 84 nós éramos a maior banda do mundo e eu percebi que o U2 seria a próxima e eu
estava certo. Eles são a maior banda do mundo. Daqui a um ano será a vez deles passarem
seus instrumentos para outros músicos”.

E agora, sete anos depois, nós estamos de volta ao Giants Stadium com o U2 no palco. Sting
estava errado em uma coisa, eles têm mantido o manto de Maior Banda do Mundo mais
apertado e por mais tempo do qualquer grupo desde os Rolling Stones. O veterano da
Anistia, Lou Reed, está de volta à casa essa noite. Ele caminha calmamente para se juntar a
Bono no palco B e cantar “Satellite of Love”, causando um grande grito entusiasmado das
oitenta e cinco mil pessoas presentes. Um dos benefícios dessa tecnologia é que quando o U2
for para outro lugar eles poderão levar o Lou Reed com eles. Eles prepararam um vídeo dele
cantando a música, que vai aparecer e sumir das grandes telas de TV em dueto com Bono
pelo resto da turnê.

Da mesma forma, eles continuarão a levar uma parte da banda Disposable Heroes of
Hiphoprisy, mesmo após o período deles como banda de abertura acabar. Por um ano e meio
do restante da turnê, a música do Hiphoprisy “Television, the Drug of the Nation”, será
tocada várias vezes durante a erupção das telas da Zoo TV antes do U2 entrar em palco. Uma
atualização de “The Revolution Will Not Be Televised”, de Gil Scott-Heron, é um hino perfeito
para a Zoo TV, sendo simultaneamente um comentário sobre a cultura de mídia das massas e
um moderno exemplo da mesma. O líder do Hiphoprisy, Michael Franti, diz estar se
divertindo com o U2, especialmente agora que o chamaram para um canto e disseram que o
nome do guitarrista é “Edge”. Michael o tem chamado de “Ed”.

Há um momento crucial no meio de toda a loucura dos bastidores. O artista David


Wojnarowicz está aqui com sua família, da qual ele está afastado há anos. A imagem de
Wojnarowicz, de um búfalo indo direto para um penhasco, foi escolhida pelo U2 para capa
do single de “One”, lançado em benefício da pesquisa da AIDS, por sugestão do Adam.
Wojnarowicz está morrendo de AIDS; ele provavelmente não viverá até o final do verão.
Aparentemente a família dele viu na TV uma história sobre a colaboração dele com o U2 e o
contatou. Eles vieram aqui essa noite para compensar um pouco do tempo perdido.

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O espetáculo da Zoo TV não perde nada ao ser expandido para um estádio; o espetáculo fica
ainda melhor. As explosões sensoriais no início do show tornam o tamanho do público
irrelevante - a pirotecnia visual atrai as pessoas diretamente para dentro do show, sem a
usual sensação de esforço para ver as pequenas figuras no palco como na maioria dos shows
em estádio. A correnteza de efeitos visuais atrai a audiência para a música. Então, quando as
explosões param e o U2 aparece no palco B com suas guitarras acústicas, o público reajusta
sua perspectiva para que se sintam como se estivessem numa situação íntima, e dali em
diante - de forma marcante - o obstáculo que a distância coloca entre o artista e audiência
parece ter acabado. Quando Bono canta “With or Without You” tem-se a sensação que ele
está se apresentando num pequeno clube.

Toda a parafernália é no fundo uma maneira de conseguir intimidade. Ao começar


explodindo fogos de artifício para depois emergir e ficar de pé iluminados pela luz dos
holofotes, o U2 diminui o espaço entre o palco e as partes mais distantes do estádio. E, uma
vez que essa distância seja superada, a distância restante - entre a voz do Bono e o ouvido do
ouvinte - é fácil de ultrapassar. Quase todo o apelo das músicas do U2 vem de sua intimidade,
de sua humanidade. A banda escreve música a partir de certos estados de ânimo e então
Bono procura uma maneira de dar forma a essas emoções com a sua voz e letras. Ele é o
primeiro amplificador pelo qual a música passa e é seu trabalho definir o sentimento que a
música transmite sem distorcê-lo. Não importa o quão grande seja o som ao vivo do U2 ou
quão ostensiva a produção se torna, nunca se impõe um efeito que já não esteja presente na
composição. Quando o U2 explode em “Bullet the Blue Sky”, eles estão imitando a raiva
humana no coração da canção; quando eles tocam “With or Without You”, eles estão
evocando uma batida do coração. Diferente de muitas outras bandas de estádio, eles nunca
criam um efeito para impressionar a audiência - uma explosão ou um solo de guitarra
gritante ou uma mudança dinâmica radical - apenas para fazer o público pular. Todos os
efeitos crescem a partir da música, e esse é o motivo pela qual, uma vez ultrapassada a
distância física, o público pode se sentir tão perto da música num estádio como se sentiria
num teatro. Eu acho que atuar ao vivo é equivalente ao talento desenvolvido por artistas de
TV como Walter Cronkite, Ronald Reagan ou Bishop Sheen para falar a milhões de pessoas
como se cada uma fosse a única ouvinte, como se locutor e audiência estivessem sozinhos
numa pequena sala.

Eu trouxe um amigo meu essa noite, um engenheiro de gravação que está no negócio da
música há vinte anos. Ele ri e balança a cabeça durante o show todo, que ele diz ser o melhor
que ele já viu. O U2 está tocando aqui, no Giants Stadium por duas noites e ainda se
apresentará por mais umas duas do outro lado do rio no Yankee Stadium. Eles tocarão para
mais gente nessa passagem por Nova York do que em seus três primeiros anos na estrada
pela América.

Eu estou muito feliz por ter visto vários shows do U2 no início de sua carreira e eu tenho
muito sentimentalismo em relação a eles. Mas, eles nunca foram melhores do que são agora.

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II. PROMESSA EM ANO DE ELEIÇÕES ¹

uma ligação do governador do arkansas / o mesmo erro cometido por henry ii / os


serviços secretos à procura de bono / two shots of happy ² / um contratempo para a
imigração irlandesa / george b. insulta b. george / o sangue no solo clama por
vingança

EM 28 DE AGOSTO, o U2 é convidado no “Rockline”, um programa nacional de rádio do tipo


que recebe telefonemas. “Bill, de Little Rock”, está ao telefone. Os membros da banda olham
uns para os outros; eles foram avisados que o candidato democrata à Presidência poderia
ligar para apresentar um pouco da sua sofisticação pública pós-Arsênio. Depois de uma
pequena disputa inicial (Bono: “Devo tratá-lo por Governador?”. Clinton: “Não, me chame de
Bill”. Bono: “Você pode me chamar de Betty”.), Clinton e o U2 se acertaram. Para Clinton isso
significa outra ligação com o MTV News. Para o U2, significa mais uma nota nos jornais
diários; ambas as partes atiram outra pedrinha de Relações Públicas na grande doce
montanha da publicidade e seguem para o próximo evento.

Duas semanas depois, o U2 chega a Chicago às 3 da manhã, bêbados e ainda com as roupas
de palco, três horas de viagem depois de um concerto em Madison, Wisconsin. Ao
registrarem-se no Ritz-Carlton Hotel, foram informados que o Governador Clinton também
está no recinto.

“Bem, então vá chamá-lo aqui!”, Bono manda em voz alta, brincando. “Nós o queremos!”
como Henry II perguntando: “Não irá alguém me livrar deste clérigo intrometido?”. O U2
deveria ter cuidado com o que pede.

Enquanto a banda ri e segue cambaleante para os quartos para desmaiar na cama, um dos
bem treinados roadies subitamente se liga e sai para localizar Bill Clinton e trazê-lo para o
U2. No corredor, do lado de fora dos aposentos do candidato, os agentes do Serviço Secreto
saltam sobre o pobre mensageiro do U2, como coiotes num alce. “São três da manhã”, os
agentes explicam enquanto escoltam o roadie. “O Governador está dormindo”.

“Vocês não entendem”, o mensageiro protesta. “O U2 quer vê-lo já!”

Bono, sem fazer ideia da confusão causada por sua brincadeira, está numa enorme suíte de
dois andares com uma escada em espiral e candelabro. Ótimo casebre, mas ele está muito
ligado para dormir. A sua criatividade foi potencializada pelo álcool. Ele está transbordando
com uma inspiração fresca para a sua busca pessoal de escrever uma nova “My Way” para o
seu camarada Frank Sinatra. É verdade, o velho ‘Olhos Azuis’ não viu a genialidade na
___________________________

¹ No original: “Promisse in the year of election”, trecho da música Desire.

² “Duas doses de felicidade”, referência ao nome da música Two Shots of Happy, One Shot of Sad.

1
primeira tentativa de Bono, “Treat Me Like a Girl”, mas esta, esta é perfeita: “Two Shots of
Happy, One Shot of Sad”. Bono, ainda com seus óculos de besouro e terno justo de veludo
vermelho, cambaleia pelo corredor até a suíte do Edge, zumbindo a melodia para ele mesmo
para não esquecê-la – “Two shots of happy, one shot of sad, you think I'm a good man, but
baby I'm bad...” [Duas doses de felicidade, uma dose de tristeza, você pensa que eu sou um
bom homem, mas eu sou ruim, baby]. Ele tem que gravar esta obra-prima numa fita! Ele
encontra Edge, Edge encontra uma guitarra e um gravador, e eles trabalham na música até
amanhecer.

Quando o sol começa a nascer em Chicago, Edge se retira. Bono trabalha um pouco mais, e
então, avistando um quarto de hóspedes na suíte de Edge, apaga ainda vestido.

Enquanto o U2 está se recolhendo, Bill Clinton está acordando. Ele dá uma olhada para as
mensagens recebidas e os homens do Serviço Secreto informam-no que, enquanto ele estava
dormindo, um hippie maluco apareceu trazendo um convite do U2.

A resposta de Clinton? “Por que vocês não me acordaram?”. Enquanto os guarda-costas do


Governo dão de ombros e murmuram, Clinton demanda: “É tarde demais? Onde eles estão
agora?”.

Repentinamente, é a vez dos agentes do Serviço Secreto correrem pelos corredores por
ordem impulsiva do seu rei. Eles acordam Paul McGuinness, que salta da cama, limpa a
garganta, abaixa o cabelo e diz: “É claro que o Bono gostaria de falar com o Governador! Por
favor, digam ao Sr. Clinton para ir diretamente para a suíte do Bono! Eu vou acordá-lo!”.
Então o empresário desliga o telefone e escava a sua bagagem em busca de uma gravata.

McGuinness liga para a suíte do Bono e não há resposta. Certo, tudo bem, sem pânico –
provavelmente ele simplesmente está apagado. O empresário sai em disparada para o
quarto do Bono, consegue que alguém do hotel abra a porta e Bono não está lá. Ninguém
dormiu naquela cama, ninguém tomou banho naquela banheira, ninguém passou pela escada
em espiral. Não existe Bono, mas aqui vem Bill Clinton! Os funcionários do hotel são tão
desesperadamente úteis quanto os elfos do Pólo Norte; Os coordenadores de campanha de
Clinton estão imperdoavelmente amigáveis, os Serviços Secretos, friamente profissionais e o
próximo Presidente dos Estados Unidos está animado enquanto inspeciona a fabulosa suíte
do Bono. MacGuiness, com seu sorriso de boas vindas congelado, diz, bem-vindos, bem-
vindos, e então vai discretamente para a próxima sala para ligar a todos os membros do U2 e
dizer: (1) levanta, (2) vem pra cá e (3) onde está o Bono?

“Nós trabalhamos numa música até o amanhecer”, diz um sonolento Edge. “Então eu fui pra
cama. Eu não sei onde ele está agora”. Edge arrasta-se para fora da cama para escovar os
dentes e encontrar o candidato. No caminho para o banheiro, ele nota um quarto extra e abre
a porta. Lá, desarrumado, barba por fazer e inconsciente, jaz Bono.

“Levanta!”, Edge o cutuca, “Bill Clinton está no seu quarto”.

Bono não sabe nem em que fuso horário está. A boca dele tem um gosto horrível e a cabeça
está nadando em “Two shots of happy, one shot of sad, you think I'm a good man . . .” O seu

2
cabelo pintado está sobre seus olhos vermelhos e, assim como Lázaro, ele está mal cheiroso.
“Clinton está no meu quarto?”. Bono tenta se arrumar. Ele se olha no espelho. Dorian Gray.
Ótimo. “Tudo bem”, ele murmura, “vamos ver o quanto de político este cara tem”.

Bono anda em zig-zag pelo hotel e entra na sua suíte pela porta de cima. Ele ouve Clinton
falando no andar de baixo. Bono põe de volta os seus óculos de besouro, alisa os amassados
na sua roupa de veludo vermelho e acende uma pequena cigarrilha preta. Elegantemente
cansado, Bono então desce a escada em espiral para juntar-se ao candidato com segurança
ao estilo ‘foda-se’ de Bette Davis num dia ruim. Clinton para. Clinton encara-o e então, cai na
gargalhada.

“Ei”, pensa Bono, “esse cara é legal”.

Edge e Larry aparecem e por uma hora o U2 senta junto com o candidato. Aquele que detesta
bobagens, Larry, desafia Clinton: “Olha, você sabe que o sistema é corrupto. Por que você
quer ser presidente?”

Clinton olha para Larry. Faz uma pausa e fala suavemente: “Isto vai soar babaca. Mas, eu
realmente amo o meu país e realmente quero ajudar as pessoas. Eu sei que o sistema é
corrupto e eu não sei se o presidente pode mudá-lo. Mas uma coisa eu sei: mais ninguém tem
condições de fazê-lo!”

Gol! Nossa, pensa Larry, que cara honesto. Uau, pensa Bono, ele é realmente como o Elvis
(que é o codinome do candidato para os Serviços Secretos - o que o empolga). Bono fala com
Clinton sobre ideias que George Lucas, o diretor, tem promovido relacionadas com a
utilização de alta tecnologia para devolver a funcionalidade ao sistema educacional
americano.

“Eu não me encontrei com George Lucas”, diz Bono, “mas tenho observado, de certo modo à
distância, o que ele está fazendo, porque é um homem bastante interessante. Grande parte
da energia dele, nos últimos seis ou sete anos, tem sido gasta no desenvolvimento de
softwares de computador para programas escolares. Ele acredita que a América pode ser
educada e o sistema educacional é o maior problema dos Estados Unidos. A maneira para
resolver esse problema é através de programas de estudo interativos, estilo fliperama. Eu
acho que ele tem razão. E é uma das ideias importantes neste momento”.

Adam aparece, chocado por ver o grande quarto cheio de políticos e pessoal relacionado com
a Zoo TV, todos conversando prazerosamente e trocando historias da estrada. Adam não se
apressou como Paul Revere¹ quando soube que Clinton estava à procura da banda; ele
tomou banho, tomou o café da manhã e dirigiu-se calmamente para o que agora parece um
quartel-general de campanha. O baixista se junta aos seus amigos da banda quando Bill está
convidando o U2 para tocar na sua posse e Bono está, sarcasticamente, dentro do seu
cérebro enevoado, tentando pensar em algo que um homem com consciência social como ele
___________________________

¹ Paul Revere é uma personalidade histórica norte americana, que, no século 19 foi mensageiro durante as
batalhas de Lexington e Concord.

3
deveria dizer para o próximo presidente enquanto o tem preso a um canto.

Ah, ele encontrou a solução! Algo para o pessoal lá de casa. “Veja”, Bono diz para Clinton,
“supostamente a Irlanda deve gozar essa ‘relação especial’ com os Estados Unidos, mas é um
inferno para qualquer irlandês conseguir um visto para entrar aqui! Os britânicos vêm e vão
conforme querem, mas eu não consigo nem trazer a babá dos meus filhos, pelo amor de
Deus. Se você se tornar presidente, você poderia...”

“Ah, espera aí, Bono”, interrompe um membro da equipe do U2. “Você sabe que se deixarem
um irlandês entrar na América ele nunca vai sair!” Bono fuzila o interlocutor com o olhar
enquanto Clinton ri por ter escapado dessa. “Empate”, pensa Bono, “eu tenho uma chance de
marcar um ponto para a Irlanda...”.

Depois de Clinton ir embora, Bono repreende seu amigo apolítico: “Se as pessoas na Irlanda
algum dia descobrem o que disse para o Clinton, você vai ser encontrado balançando em um
poste de luz em Dublin”.

Durante a conversa, Clinton e o U2 descobrem que ambos têm ingressos para o jogo de
futebol americano do Chicago Bears daquela noite, então eles concordam em unir as
comitivas e dividir uma única escolta policial (isso é o equivalente a eu e você dividindo uma
carona). Agora, como Adam aponta no caminho para o jogo, uma banda na posição do U2
realmente torna-se um pouco confiante em relação a escoltas policiais, mas você sabe que
Clinton está jogando num nível diferente quando olha em redor e se dá conta que os carros
guardados por essa escolta são os únicos na estrada. Os Serviços Secretos bloquearam todas
as rampas de acesso até que o candidato e seus convidados passem. Nem mesmo o Led
Zeppelin teve isso nas suas viagens!

Assistindo TV uns dias depois, a atenção de Bono é atraída para o discurso do Presidente
Bush num comício: “O governador Clinton não acha que política internacional é importante,
mas ele está tentando se atualizar”, diz Bush à multidão. “Vocês devem ter visto isso nas
notícias - ele esteve em Hollywood buscando conselhos sobre política internacional com o
grupo de rock U2”.

Bono olha para a TV. “Grupo de Rock?”.

Bush continua: “Eu não tenho nada contra o U2. Vocês podem não estar cientes disso, mas
eles tentam me ligar todas as noites durante os shows! Mas, da próxima vez que
enfrentarmos uma crise internacional, eu vou trabalhar com John Major e Boris Yeltsin e o
Bill Clinton pode consultar o Boy George!”. Bush segue em frente e declara que se o Clinton
vencer você também¹ vai ter uma inflação alta, você também terá aumento nas taxas. Você
também! Você também!

Bono não entende. “Ele pensa que eu sou o Boy George?”, pergunta.
___________________________

¹ No original “you too”, trocadilho com a pronúncia de U2.

4
“Não” eu digo. “Ele está amaldiçoando o Clinton por associação. Ele provavelmente tem uma
equipe de consultores que passaram a noite acordados tentando encontrar uma estrela de
rock que pudessem insultar sem ofender potenciais eleitores do Bush. A Madonna é muito
grande, Springsteen - eles precisam daqueles votos de New Jersey. Boy George é
estrangeiro, gay e não vende mais nenhum álbum. Ele é perfeito”.

“Sim”, Bono suspira se levantando. “Pobre George. É um alvo seguro. Ele não é popular”.

No dia 3 de novembro, o U2 assiste ao resultado das eleições na CNN antes de entrar no


palco em Vancouver, no Canadá. A equipe deles aplaude a cada vez que Clinton vence num
Estado. “Jesus, não é a nossa cara!” diz Bono. “É uma noite infernal para se ter recém saído
dos EUA”.

Para o U2 as eleições presidenciais americanas são ligeiramente abstratas. Mas Bono começa
a sentir o peso dela no domingo seguinte às eleições, quando ele vai para a celebração na
Glide Memorial Methodist Church, no distrito Tenderloin, em São Francisco. Quando está na
área, Bono é um frequentador assíduo da Glide, uma igreja municipal construída em 1930
por Lizzie Glide, um filantropo rico que tinha uns poucos paroquianos remanescentes
quando o Reverendo Cecil Williams chegou lá em 1964. Rev. Williams transformou-a numa
igreja dedicada a acolher os renegados da sociedade e, por mais de três décadas, fez dela um
centro de adoração e ação social para pessoas piedosas de todos os escalões da comunidade.
“É a única Igreja que eu conheço onde você consegue fazer teste de HIV durante a
celebração”, diz Bono. “É maravilhoso. Os cânticos são ótimos, há filas que dão a volta no
quarteirão no Domingo de Páscoa. É simplesmente um evento, um lugar realmente vivo”.

Neste domingo, a Igreja tem um dia especial de Ação de Graças pela vitória do Clinton e Bono
é apanhado na paixão da congregação. A esposa do reverendo, uma poetisa chamada Janice
Mirikitani, levanta-se e lê um poema sobre o significado deste dia para as mulheres
americanas e, quando ela termina, metade das quase 1200 pessoas apertadas dentro da
igreja pulam cantando e chorando.

“Aquele foi o momento”, disse Bono depois. “Aquele foi o momento em que eu soube o quão
importante essa pequena vitória é. Eu estava olhando ao redor e pensando: ‘Uau, se você tem
HIV, se é homossexual, se fosse membro da subclasse, se você é uma mulher ou se é um
artista - e isso cobre praticamente todo mundo nesta igreja - isso não é uma coisa pequena.
Isso não é como um lar de classe média onde as pessoas dizem – ‘Bem, é uma nova chance’.
Não há nada de pequeno nisso! Isso foi como ir de ‘Nós não existimos’ para ‘Nós existimos’,
você entende? Se o verdadeiro impacto da eleição na vida deles vai realmente existir, pelo
menos eles sabem que estão incluídos. E isso fez com que eu me desse conta. Se ao tomar
parte na campanha ‘Rock the Vote’ nós contribuímos de uma pequena, pequena, pequena
forma, então nós fizemos a coisa certa”.

Foi através da Glide, em 1986, que Bono se ligou ao C.A.M.P., grupo de ajuda que fez arranjos
para que ele e Ali viajassem pela Nicarágua e El Salvador durante as guerras, apoiadas pelo
Reagan, contra os partidos de esquerda naqueles dois países.

5
“Na Nicarágua eu vi supermercados onde não havia comida devido ao embargo”, Bono
explica. “Eu vi um corpo ser atirado da traseira de uma van para o meio da rua, sabe como é?
Nós vimos a força destrutiva que foi a era Bush-Reagan. Não nos demos conta disso quando
começamos a nos envolver com a campanha para que as pessoas se cadastrassem para votar.
Nós nos demos conta disso no final”.

Eu não sei se Bono sabe que Bill Clinton trouxe a Hillary à Glide no último Dia das Mães, e
mais tarde disse aos seus conhecidos que sentado lá, ele sentiu como se tivesse encontrado a
América que queria ver - uma América que inclui todos. Clinton e Bono têm mais em comum
do que o amor pelo Elvis e andarem escoltados.

Contagiado pela vitória do novo presidente, Bono se permite empolgar-se com a


possibilidade de uma verdadeira nova ordem mundial. Durante um jantar tarde da noite, ele
se envolve numa pequena discussão filosófica pós-coquetel com o agente do U2, Frank
Barsalona, o grande negociante que trouxe os Beatles para a América e que tem sido uma
força poderosa, silenciosa, desde então.

A conversa assume um tom sombrio quando Bono diz a Barsalona que a América precisa
fazer penitência pelos seus pecados. Ele cita o trecho do Velho Testamento sobre o sangue
no solo clamando por vingança. “Você sabe”, diz Bono, “é por isso que a América é tão
violenta. Havia uma população indígena que foi dizimada. Os EUA têm simplesmente que
enfrentar isso. A razão para os judeus serem tão poderosos é que eles anotam e memorizam
as suas falhas tanto quanto os triunfos, as derrotas tanto quanto as vitórias. Os EUA deviam
fazer o mesmo. Eu realmente acredito na expiação. Esse discurso de posse é importante. Se o
Clinton se levantasse para o seu discurso de posse e se desculpasse pelos pecados dos EUA,
se desculpasse com os vendedores de crack, as gangues, as prostitutas e os viciados, e
dissesse ‘Eu sei que vocês não erraram com relação aos EUA; os EUA erraram com relação a
vocês! Perdoem-nos e juntem-se a nós!’ Uau! Imagina se ele fizesse isso”. Bono balança a
cabeça maravilhado frente à possibilidade.

Frank Barsalona balança a cabeça também. “Talvez sim”, diz o agente, interrompendo o seu
jantar, “mas não há uma oração para que isso possa acontecer”.

____________

6
12. Vegas

associando-se com o chefe / indo às lutas / andando em limusines brancas / divertindo-


se com o senhor prefeito / andando de moto em quartos de hotel / sentindo-se como
uma máquina de sexo

BONO está intrigado com Las Vegas por todas as razões que ele nos revelou: ele acha que ela é
o lixão onde encontramos as joias; é o consumismo e materialismo da nossa sociedade sem
máscaras; é a catedral da cultura. “Pelo menos se você rezar para um caça níqueis”, sugiro a
ele, “você recebe sua resposta imediatamente”. Mas eu acho que a verdadeira razão pela qual
o U2 se sente atraído por Las Vegas é porque foi em Vegas que eles conheceram Frank Sinatra
e passaram a fazer parte da Irmandade Internacional dos Importantes e Esbanjadores Pós Rat
Pack¹.

Na primavera de 1987, o The Joshua Tree havia acabado de ser lançado e o U2 estava
aproveitando o brilho do seu primeiro álbum número um, de seu primeiro single número um
“With or Without You”, e eles estavam na capa da revista Time. No momento de toda essa
glória eles estiveram em Las Vegas pela primeira vez, e também pela primeira vez foram à
uma luta de boxe e viram o brilhante peso-médio Sugar Ray Leonard vencer com a graça de
um dançarino. Daí, eles ganharam ingressos gratuitos para ver o Sinatra e Don Rickles, no que
lhes disseram ser uma apresentação de 25 mil dólares por mesa. Eles estavam, como o U2
sempre esteve naquela época, vestidos como Emmett Kelly², mas eles eram tratados como
realeza. Sinatra estava numa noite agradável, cantando “One for My Baby” e outros de seus
clássicos, e o U2 estava impressionado. Então Frank diz que quer apresentar alguns
convidados especiais naquele público repleto de estrelas, um grupo da Irlanda detentor do
álbum número um no país, e que estão na capa da Time: o U2. Um canhão de luz iluminou a
banda e eles se levantaram, agindo como grandes estrelas e acenando para Liz Taylor, Gregory
Peck e todas as outras estrelas numa audiência coberta de casacos de pele até que Sinatra os
arrasa dizendo: “E eles não gastaram um centavo em roupas”.

Depois do show o U2 foi ao camarim para dizer olá a Frank e acabou entrando numa discussão
intensa com ele sobre música, um assunto que eles tiveram a impressão de que ninguém
___________________________
¹ Rat Pack é o apelido dado a um grupo de artistas populares muito ativo entre meados da década de 1950 e
meados da década de 1960. Sua formação mais famosa foi composta por Frank Sinatra, Dean Martin, Sammy
Davis Jr., Peter Lawford e Joey Bishop, que apareceram juntos em filmes e em apresentações nos palcos no
começo dos anos 1960. Apesar de sua reputação de grupo masculino, o Rat Pack teve participações femininas,
como as de Shirley MacLaine, Lauren Bacall (a quem se atribui a autoria do apelido), e Judy Garland. Umas das
produções mais famosas do grupo é o filme Ocean's Eleven de 1960, que foi refilmado em 2001 pelo
diretor Steven Soderbergh com o nome de Onze homens e um segredo.
² Emmett Kelly, na íntegra Emmett Leo Kelly, (nascido em 9 de dezembro de 1898, Sedan, Kansas, EUA - morreu
em 28 de março de 1979, Sarasota, Flórida), um dos grandes palhaços de circo americanos, mais conhecido por
seu papel como Weary Willie, um vagabundo lúgubre vestido com roupas esfarrapadas e penteado com barba e
nariz bulboso.

1
nunca havia discutido com ele. Buddy Rich tinha acabado de morrer e Larry perguntou se era
verdade que na época das grandes bandas o grupo todo seguia o baterista. “Da maneira como
deve ser!” Sugeriu Larry. Riche e Sinatra haviam sido companheiros de quarto, amigos,
inimigos e finalmente almas-gêmeas, e Sinatra aproveitou a chance para falar sobre ele, para
falar sobre a interação entre os músicos nos dias de Tommy Dorsey e Glenn Miller.
Os assessores de Sinatra continuavam batendo na porta com os nomes de outras celebridades
que estavam esperando do lado fora por uma chance de dar um oi: “Gene Autry, Frank”.
“Roger Moore, Frank”. Cada vez que Sinatra escutava a batida na porta dizia-lhes para se
mandarem, porque ele estava conversando com o U2. Depois, os gerentes da carreira do
Sinatra pareciam impressionados pelo fato do chefe, que nunca passava tempo com ninguém,
deixou que um grupo de rock tivesse toda a sua atenção. O U2 recebeu convites permanentes
para assistir corridas em Nova Jersey e outros eventos para privilegiados. A piada da turnê
depois disso era: “Desde que conhecemos Sinatra, acabaram-se os problemas em nos
enturmar”.
Bono, sempre um grande fã, se atirou de cabeça na música de Sinatra. Ele assistiu a um
concerto de Sinatra em Dublin, um ou dois anos depois, e achou que seria presunção se
tentasse ir ao camarim - talvez Sinatra até tivesse se esquecido dele. Durante o show ele
sentiu um tapinha no ombro e se virou para dar de cara com o Senhor Prefeito de Dublin
ornamentado com suas faixas cerimoniais e amuletos, agachado no corredor dizendo: “Bono!
O Frank estava perguntando por você!”
Então é com algum interesse prévio que o U2 aterrissa em Vegas novamente, contentes pela
vitória de Clinton e pela inspiração do Glide Memorial e cheios de poder e glória. Eles dão de
cara com o guitarrista do R.E.M, Peter Buck, no show do Alabama e convencem-no a se juntar
a eles quando chegarem a Sin City. Buck diz que é ótimo mergulhar no mundo do U2, mas “eu
me sinto, tipo, o assistente do Hermann Goerig. Você está sempre numa limusine branca
rodando para algum lugar realmente interessante e que ninguém sabe por que você está lá.
Mas, eu realmente gosto disso!”
R.E.M. é a banda cuja posição e reputação é a mais próxima do U2. Em meados dos anos 80,
Bono foi ao telefone e convenceu o R.E.M. a abrir algumas datas do festival europeu para o U2,
depois do R.E.M. ter prometido nunca mais abrir para qualquer um como resultado de umas
más apresentações abrindo para o Bow Wow Wow. Uma amizade entre os dois grupos
começou naquela época, confirmada quando Buck e o baixista do R.E.M., Mike Mills foram
pressionados até cantarem uma versão bêbada de “King of the Road” no ônibus da turnê do
U2.
“Nós éramos, tipo, os décimos segundos na lista de alguns shows”, lembra Buck. “E parece que
eu me lembro de nos apresentarmos lá pelas onze da manhã para uma massa indiferente, em
geral. É engraçado porque tocávamos muito bem. Eu não acho que fazíamos um show ruim.
Ninguém nunca tinha ouvido falar de nós. Nós fomos bem em Dublin, mas em alguns shows eu
lembro de ter visto muitas nucas e ocasionalmente, as solas dos pés deles enquanto
estávamos tocando. Não era ruim. Nós terminávamos lá pelas duas da tarde, então podíamos
nos embebedar e ver as outras bandas. Foi a primeira vez que fizemos algo assim. E depois
que fizemos isso, pensamos, bem, não é tão difícil assim”.

2
Ambos, R.E.M. e U2 surgiram no início dos anos 80 e agora são praticamente as únicas bandas
que restaram em meio a dúzias de concorrentes - X, Husker Du, Gang of Four, the
Replacements, the Blasters - que na época pareciam igualmente propensos a ir tão longe
quanto o R.E.M. e o U2 foram.
“Nenhuma das outras bandas da época que viemos, o pós punk, duraram”, diz Buck. “Eu
achava que talvez houvesse algo em processo de se tornar obsoleto incorporado ali: quando
você não reconhece o passado, há um limite até onde você pode ir no futuro. Muitas das
perspectivas históricas daquelas bandas remontam a 1975 e não há muito que se possa
realmente fazer com isso. Você usa sua energia juvenil e sua loucura e depois faz o que? Então
é hora de aprender a escrever músicas. Muitas daquelas pessoas não aprenderam. Eu lembro
do ano em que o U2 começou a vender muitos discos. De repente ficou meio óbvio que isso
iria acontecer porque, bem, quem mais existia? Ou seria o Bon Jovi e bandas daquele estilo - o
que era óbvio que muitos garotos estavam ouvindo - ou seria o U2 e até certo ponto nós. Eu
não acho que nós iríamos especificamente vender muitos discos, mas eu podia ver que havia
essa grande lacuna e que o U2 definitivamente iria preenchê-lo.
“O R.E.M. realmente não se importa se somos a maior banda do mundo, mas eu acho que o U2
até um certo ponto deseja isso. Eu falei com o Larry sobre o assunto e ele me disse isso. Você
toma decisões conscientes. Não acho que qualquer uma dessas decisões tenham mudado
musicalmente aonde eles queriam chegar, mas eu acho que muda como nós nos
apresentamos, e alguns de nós simplesmente não estávamos realmente interessados nesse
tipo de coisa. Bill Berry (baterista do R.E.M.) disse: ‘Se eu quisesse ser famoso eu seria o
cantor’. Ele ficaria muito feliz se simplesmente nunca tivesse que aparecer em fotografias,
nunca tivesse que dar uma entrevista e eu sou praticamente do mesmo jeito. Então, as nossas
fotos não estão nas capas dos discos e nós não aparecemos muito nos vídeos. Nós não fazemos
o rodízio em programas de entrevista. Não apresentamos prêmios. Não vamos ao Rock & Roll
Hall of Fame. Eu preferia não fazer nada além de gravar os discos, tocar quando eu tenho
vontade e quando chegar a hora de promover os álbuns, fazer as obrigatórias sessões de três
semanas de entrevistas e parabenizações”.
Eu sugiro ao Buck que é melhor que o U2 tenha essas ambições do que deixar o campo para o
Bon Jovi.
“Sim”, diz Buck. “Eu gosto de pessoas ambiciosas. Eu gosto de pessoas que vêem um objetivo
que queiram alcançar e trabalham em direção a ele. Nossos objetivos são apenas diferentes”.
Buck ainda não sabe, mas ele está prestes a ser enredado em um momento não muito R.E.M.
Suzanne Doyle, do Principle, liga para o quarto do Buck e informa-o que nesta noite, no show
do U2 para o qual ele está indo, ele irá entregar um prêmio da revista Q para o U2 e aceitar um
em favor do R.E.M. entregue pelo U2. Peter tenta escapar; ele diz: “Vocês não vão me obrigar a
fazer isso no palco, vão?” Não, não, eles dizem, eles farão tudo no camarim, com fotos para a
revista e uma filmagem dos discursos de aceitação para serem transmitidas no jantar de
premiação em Londres.
Então Buck é conduzido até um camarim decorado com vasos de palmeiras e ele e o U2 se
revezam entregando um ao outro o mesmo troféu (a revista mandou apenas um) enquanto
Bono entra e sai do seu personagem the Fly e todos morrem de rir pedindo ao cinegrafista
para parar a gravação e começar tudo de novo.

3
Como recompensa pelos esforços de Buck, Bono insiste que ele acompanhe o U2 a uma luta do
campeonato mundial de boxe na noite seguinte, entre o campeão Evander Holyfield e o jovem
desafiante Riddick Bowe. Buck nunca esteve em uma luta de boxe e então aceita o convite. O
U2 espera que seja uma experiência tão emocionante como foi ver Sugar Ray Leonard cinco
anos antes. Eles não terão a mesma sorte.
Na arena, Bono e Buck entram numa discussão estilo Alphonse e Gaston¹ para decidir quem
fica com o melhor lugar. Bono insiste que Buck vá para a primeira fila com Edge e Larry; Bono
ainda tem uma boa visão de umas fileiras logo atrás. Mas, Buck diz que não, não, as pessoas
querem ver o U2 entrar juntos. Bono diz: “Olha, eu vou com vocês até a frente, depois volto
para o outro lugar - eu não quero ficar na frente”. Buck recebe uma pequena dose do
tratamento que o U2 ganha por estarem na capa de todos aqueles álbuns e vídeos enquanto
eles caminham entrem os VIPs de Hollywood e todos os cumprimentam. Jack Nicholson olha
para cima e diz: “Olá, rapazes!” “Oi, Jack!” [Nicholson começou a ir aos shows do U2 durante a
Joshua Tree Tour e ele e Bono passam algum tempo juntos em Hollywood e na França. Bono
está impressionado com o fato de Nicholson manter uma representação perfeita de Jack
mesmo quando atua em uma língua estrangeira. Ele faz uma grande imitação do ator dizendo,
com as famosas inflexões dele: “Pardon ey moi, Garson. Havey vous french fries?” (Me
desculpe, garoto. Você tem batatas fritas?)]
Bono cumprimenta seus colegas da realeza e deixa Edge, Larry e Buck na fila da frente. Buck
vira para a esquerda e se apresenta para o homem sentado ao lado dele, que acaba sendo o
próprio Sugar Ray Leonard. Quando a luta começa, Leonard oferece a Buck um comentário
instantâneo, explicando cada estratégia e como cada ponto é contado. Essa, Peter se dá conta,
é a maneira de se assistir a sua primeira luta de boxe.

No segundo round, Bowe, de 25 anos, acerta Holyfield, de 30 anos, com um golpe baixo que o
campeão considera ilegal. Holyfield se vira para chamar a atenção do árbitro e Bowe soca-o de
surpresa. Holyfield fica furioso e abandona toda a estratégia, batendo na cabeça do mais
jovem com socos que, para os músicos, soam como canhões. A luta fica feia. Buck fecha os
olhos. Larry sente o sangue subir quando um famoso idiota atrás dele - Sylvester Stallone –
grita: “Quebra o maldito nariz dele!” como se fosse o amiguinho do valentão da escola. Buck
ouve Bruce Willis berrar “Mate-o!” e resmunga que gostaria de ver Willis e Stallone batendo
um no outro, sangrando para o divertimento de milionários. Isso não é nada parecido com a
luta de Leonard que parecia tão científica, tão graciosa. Esses são dois pesos pesados tentando
arrancar a cabeça um do outro com socos que matariam todos os gêneros de roqueiros.

Eles chamam esses lugares de “o círculo vermelho”, porque se você é rico o suficientemente
para se sentar aqui você pode ter sangue espirrado em você. “Ouvir os punhos acertando os
rostos”, diz Larry, “ver os cortes se abrindo sobre os olhos e o sangue escorrendo para os
olhos dos lutadores é perturbador”.
___________________________
¹Alphonse e Gaston era uma tira de jornal americana apresentando um par de franceses com uma propensão à
educação. Eles apareceram pela primeira vez no jornal em 22 de setembro de 1901. Seu “Depois de você,
Alphonse”, “Não, você primeiro, meu querido Gaston!” divertiu leitores por mais de uma década. Alphonse era
baixo e grotesco; Gaston era alto e grotesco. A premissa da tira era que ambos eram extremamente educados,
constantemente se curvando e se submetendo um ao outro. Nenhum deles poderia fazer nada ou ir a qualquer
lugar, porque cada um deles insistia em deixar o outro precedê-lo.

4
Ao final da luta há um novo campeão: Riddick Bowe numa decisão unânime após o que o New
York Times chama de “Uma das melhores lutas de pesos pesados da história”. Larry, Edge e
Buck ficam desapontados com a doce ciência e desistem do boxe. Bono, que estava mais atrás,
sente-se arrasado quando Buck diz para ele que o lugar que ele cedeu estava do lado do Sugar
Ray.
Os músicos entram em sua limusine branca e são deixados no ringue de outro grande atleta
afro-americano - James Brown. Conseguir uma madrugada em que J.B. se apresenta, em Vegas,
seria genial de qualquer modo, mas James anuncia que ele tem um convidado especial na
audiência que ele quer convidar para se juntar a ele em “Sex Machine”. Bono arruma o cabelo
e Brown anuncia: “Magic Johnson!” O lugar vai a loucura quando Magic, o sobre-humano
jogador de basquete, que recentemente abandonou as quadras quando soube que era
soropositivo, sobe ao palco e se junta a James cantando: “Get up! I feel like a sex machine”
(“Levante-se! Eu me sinto uma máquina de sexo”).

Bono acha que é uma escolha de música estranha para um homem que luta contra o vírus da
AIDS depois do que ele mesmo descreveu como uma vida de promiscuidade. “Seja uma
máquina do sexo”, diz Bono, “mas pelo amor de Deus, use camisinha”.

Quando toda a caçada às estrelas termina, quando os roqueiros voltam e conhecem Magic e
James e colocam Stallone e Willis de lado e dão boa noite para as histórias sobre Jack
Nicholson e Frank Sinatra, Buck fala sobre o quanto a novidade dessa convivência entre
roqueiros e estrelas de primeira é realmente nova.

“Acho que, em parte, a natureza das celebridades do rock & roll mudou nos últimos dez anos”,
ele diz. “Se você olhar para qualquer um daqueles filmes antigos dos Stones, onde eles se
hospedam num Holiday Inn em 1972, eles são a maior banda do mundo e ninguém sabe quem
eles são. Isso não acontece mais. Todo mundo aparece nos vídeos. Pessoas do rock & roll como
nós cresceram ensaiando em garagens e ninguém se importava com a nossa aparência;
simplesmente não tinha nada a ver com celebridades. Então, só quando você se tornava
realmente grande, os garotos saberiam quem você era”.

“Existe a ideia de que o rock & roll é música rebelde e você não está fazendo o que a sociedade
diz. Mas, hoje em dia, assim que você tem um álbum de sucesso você já começa apertando a
mão de caras em escritórios e as pessoas querem que você corte o cabelo de maneira
diferente. Eles oferecem alguém para fazer os seus ternos para que você fique com aquele
visual estilo Armani. Tem de ser algo chocante”.

“O R.E.M. não vendeu um milhão de discos até que estivéssemos juntos por nove anos. Então,
naquele momento, você não conseguiria me mostrar algo que eu ainda não tivesse visto. E
com o U2 foi a mesma coisa. Eles tiveram mais sucesso do que nós, eu acho que lá por 1985
eles eram realmente enormes. Mas, mesmo assim, eu aposto que ninguém com mais de 25
anos os reconhecia na rua. E agora já não é mais assim. Você pode literalmente ter um vídeo e
ser mundialmente famoso. Pessoas em países estrangeiros sabem como você é. Celebridades
do rock atualmente estão mais perto do que o tradicional mundo do entretenimento
costumava ser, onde eles escreviam sobre os seus hábitos pessoais. Os Stones costumavam

5
aparecer na imprensa principal apenas quando eram presos. Agora eu leio as colunas de
fofocas quando estou em Nova York ou Los Angeles e elas dizem quem está comendo onde e
com quem. É uma coisa completamente nova”.

Buck considera que o que separa os artistas dos posers é a vontade de continuar mudando o
que os fez ter sucesso. Outra coisa que o U2 e o R.E.M. têm em comum é que ambas as bandas
criaram sons instantaneamente identificáveis que foram amplamente imitados por outras
bandas - e então abandonaram esses sons e se moveram para novas áreas.

“Há pessoas que estão nisso pela carreira e há pessoas que estão nisso para tentar descobrir
algo sobre si mesmas”, diz Buck. “A única maneira que você pode descobrir sobre a sua vida e
como vivê-la é tentar muitas coisas diferentes e fracassar em algumas delas. Provavelmente, o
único fracasso do U2 foi o Rattle and Hum. Eu tenho certeza que ele vendeu dez milhões de
discos, mas eu não acho que ele tenha feito exatamente o que eles esperavam. E, no entanto,
isso foi bom. Porque abriu as portas para eles fazerem algo diferente”.

Buck estava impressionado com a Zoo TV em vários níveis: “Certamente, ao longo dos anos
eles ficaram conhecidos como sendo um grupo sincero, com letras maiúsculas. Foi legal eles
terem sido capazes de simplesmente pegar isso, jogar fora e começar de novo. E do ponto de
vista tecnológico o show é espantoso. Como músico eu estava pensando: ‘Meu Deus, vai ser
complicado. Eles têm que trabalhar com todas essas deixas e com tanta coisa acontecendo!’
Quero dizer, se eu quero ir ao backstage durante uma música e colocar o dedo no nariz eu
posso; há vários lugares escuros. Mas, isso era quase como uma peça da Broadway, era tudo
muito rígido. Eu realmente acho que foi um grande show. Provavelmente o melhor show que
eu já estive em uma grande arena”.

Os outros voam de Las Vegas para a Califórnia, mas Larry continua - como ele tem viajado por
grande parte da América - em sua motocicleta com o seu companheiro de moto, o segurança
David Guyer. Depois de uma viagem da Flórida para Nova Orleans, Larry ganhou suas asas, um
emblema da Harley-Davidson. David diz que no mundo das motocicletas não faltam
celebridades que sabem mais sobre querer se aparecer do que realmente saber dirigir. Ele cita
uma estrela do rock que comprou uma grande e cara moto e fez um grande show ao entrar no
estacionamento de um clube noturno moderníssimo. Infelizmente, ele não tinha aprendido a
parar e bateu.

Ao longo da estrada deserta entre Vegas e Califórnia, Larry e David param num hotel de beira
de estrada para passar a noite. Larry não sabe ao certo porque David insiste com o atendente
que seus quartos sejam no andar térreo. Assim que eles pegam as chaves, David leva Larry de
volta para fora e diz para ele subir na moto, eles não vão deixar essas Harleys aqui fora. David
dirige a sua motocicleta até o seu quarto e Larry se sente obrigado a fazer o mesmo. “Eu adoro
o cheiro de gasolina pela manhã”, diz Larry.

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6
13. Harpas Sobre Hollywood

bono fecha um contrato para um filme / filmando com william burroughs/ oldman sai
pela porta dos fundos, winona entra pela frente/ phil joaunou assume seus erros /
coito interrompido na sala de edição

SE VOCÊ VISSE o itinerário da turnê, você ia achar que o U2 estava tendo uma excelente
semana de folga em Los Angeles depois de tocarem no L.A. Coliseum e antes de partirem para
a Cidade do México para os seus últimos shows de 1992. Você iria pensar que eles estariam
relaxando à beira da piscina, filosofando sobre o pós-neo romantismo e tendo aulas de
harmônica. Mas, um espaço entre os shows não significa um espaço na agenda de trabalho do
U2, e como aqui é Hollywood os dias são preenchidos com reuniões relacionadas com o filme
e as noites com trabalho televisivo.

O trabalho televisivo é realizar um especial de TV sobre o U2 para ser exibido na Fox no final
de semana de Ação de Graças nos EUA e em outras emissoras ao redor do mundo. Ou seja,
essa obra-prima será transmitida em uma semana e meia e o U2 ainda está escavando
montanhas de filmes gravados durante as viagens e tentando descobrir o que fazer com isso
tudo. A banda importou o excelente diretor de vídeos de rock, Kevin Godley, para ajudá-los a
achar um uso para todas aquelas filmagens de shows que eles fizeram, pequenas aparições
abstratas de cada um dos membros da banda e clipes com artistas convidados não tão
conhecidos como o escritor beat¹ William Burroughs, o autor cyberpunk William Gibson e o
guru do LSD Timothy Leary. Nesse momento, os pedaços de fitas que diferentes membros da
banda estão examinando, em diferentes salas de projeção e edição, de uma instalação em Los
Angeles, traz à memória a ambiciosa incoerência artística da “Magical Mistery Tour”, o especial
de TV transmitido em um feriado, que estourou a bolha de críticas aos Beatles resultante do
triunfo de Sgt. Pepper².

No entanto, alguns trechos são realmente bons. O U2 está determinado a enfiar um osso na
garganta da América no Dia de Ação de Graças com o trecho deles que tem o Burroughs lendo
“Oração de Ação de Graças” em frente a uma sobreposição da bandeira americana. É um
agradecimento ao “Pai nosso que não está nos céus" por ter fornecido índios para serem
assassinados, terras para serem roubadas, nações pobres para serem saqueadas e africanos
para serem escravizados.
___________________________
¹ Escritores Beat: Eles eram radicais, rebeldes, experimentais ... e tinham jeito com as palavras. A partir da
década de 1950, a Geração Beat ganhou destaque nos Estados Unidos, inspirando uma cultura de inconformismo
e revolução social. Allen Ginsberg e Jack Kerouac eram alguns dos rostos mais famosos e sinônimo do grupo,
assim como William S. Burroughs.

²Depois de gravarem o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, Paul McCartney quis criar um filme baseado nos
Beatles e sua música. O filme não teria roteiro: várias pessoas comuns viajariam num ônibus rodoviário (modelo
Bedford VAL de 1964), e teriam aventuras "mágicas" não especificadas. O filme Magical Mystery Tour foi feito e
incluía seis novas canções dos Beatles. O filme foi originalmente exibido no canal BBC de televisão nas férias de
Natal, mas foi duramente criticado.

1
Para gravar esse monólogo, Burroughs visitou o U2 em seu hotel quando a Zoo TV passou por
Kansas. Hall Willner, aquele produtor musical ligado a todas as coisas underground e
alternativas, arranjou o encontro. Não está totalmente claro se o Burroughs realmente sabia
quem era o U2, mas ele sem dúvida proporcionou entretenimento - ele apareceu com um saco
de papel cheio de armas. Agora Burroughs é uma grande e importante figura das letras
americanas, mas ele é quase tão famoso pela lenda de ter matado a sua própria esposa
tentando acertar uma maçã na cabeça dela quanto por ter escrito Naked Lunch. Então, quando
o U2 viu que o velho e frágil autor tinha consigo uma arma, até o chapéu do Edge voou.

Buffalo Bill deixou o U2 com um epigrama tão bom quanto qualquer outro em “The Fly”:
“Quando eu estava na prisão, no México”, ele disse, “um dos guardas me falou: ‘Eu odeio ver
um homem na prisão por causa de uma mulher’.”

De volta à casa de Burroughs, o autor e Willner se armaram e começaram a atirar em alguns


alvos na fresca tarde do Kansas. Willner, outro homem cujos ressentimentos ninguém gostaria
de ver aumentados por armas de fogo, conseguiu acertar na mosca três vezes, ao que depois
de cada uma Burroughs gritou: “Tiros letais!” Todos os disparos, infelizmente, acertaram no
alvo ao lado daquele em que ele mirava. Mais tarde, Burroughs recolheu as pistolas,
recarregou-as, colocou-as de volta na sacola e subiu a colina para casa.

Olhando para as filmagens de Burroughs, Bono me pergunta o que penso (como americano)
sobre qual será a reação do público. A banda irlandesa e o diretor inglês se viram e me
encaram. Eu digo a eles que a oração, a ladainha de abusos históricos, é ótima, e a leitura
lamuriosa afetada pela nicotina de Burroughs é hilária. Mas, vocês têm que ser muito
cuidadosos com relação a zombar da bandeira dos EUA. Pessoas de outros países não
atribuem à bandeira deles esse conceito de quase-santificação, assim como os americanos;
fazer piada com a “Old Glory” é o mesmo que fazer piada com cruzes ou com a Estrela de Davi -
pode ser só um símbolo, mas muitas pessoas são devotas ao símbolo que ela representa. O U2
ouve, olham uns para os outros e dizem: “Deixem a bandeira”.

As noites desta semana são dedicadas à montagem do especial de TV: durante o dia Bono se
apressa como um hollywoodiano para fechar o contrato para início da produção do seu
roteiro, The Million Dollar Hotel. Bono escreveu a história com um roteirista de Hollywood
chamado Nicholas Klein e Bono é dono dos direitos autorais. A história foi inspirada em um
hotel barato de Los Angeles cheio de personagens bizarros que o U2 descobriu durante a
longa incubação do Rattle and Hum. O roteiro foi concluído, colocado à venda e selecionado
pela produtora de Mel Gibson. Um grande sucesso para um jovem roteirista que tem outro
emprego! Agora Bono se encontra com Mel e seu pessoal durante as tardes, enquanto tenta
arrastar quem ele espera que interprete o papel principal masculino - Gary Oldman - para fora
da sua suíte de hotel antes que chegue a atriz proposta para o papel principal feminino,
Winona Ryder. Detalhe, Oldman e Ryder acabaram de fazer um filme juntos, o Drácula de
Bram Stoker, de Francis Ford Coppola. É o filme mais visto na América esta semana! Assim,
Oldman é obrigado a vê-lo fazendo pose chupando o pescoço de Ryder nas capas das revistas
na banca do saguão do hotel! Entretanto, Drácula, criou um mal estar entre os dois jovens
atores, então Bono deixou Winona descansando os pés no saguão do Sunset Marquis
enquanto mostra a Oldman quão mais rápido é sair pela porta dos fundos.

2
“Winona é minha guia em todo esse assunto relacionado aos filmes”, explica Bono. “Ela tem
me dado horas de bons conselhos”. Depois do Rattle and Hum, Bono e Winona andaram
rodeando a ideia de tentar fazer um western sobre Calamity Jane e Wild Bill Hickock, um filme
sobre o conflito entre o amor e a independência. Eventualmente, Bono se distraiu com a
gravação de Achtung Baby e com os planos para a turnê, Winona se envolveu em fazer
Drácula, e a ideia dos cowboys foi posta de lado. Quando Winona completou vinte e um anos,
Bono deu-lhe de presente uma Magnum 38 com a inscrição, “Feliz Aniversário, Winona - Você
fez o meu dia”.

Bono aprecia muito o patrocínio de Mel Gibson e fica grato pelas portas que o poderoso nome
de Gibson abre na indústria cinematográfica. Mas, ele precisa se perguntar se não seria um
erro para esse sex symbol machista interpretar o papel principal no filme dele. O herói do
roteiro de Bono é Tom-Tom, um zelador de hotel esquelético e semi-retardado que ninguém,
exceto a linda garota interpretada pela Winona – o olha por duas vezes. Uma grande acrobacia
para Mel! Gibson atuou em Hamlet para demonstrar que ele consegue trabalhar não apenas
em filmes de ação estilo Mad Max - Máquina Mortífera. Agora ele está pensando em
interpretar o imbecil feio para ampliar a sua área de atuação.

Gary Oldman, por outro lado, é o nome no topo da lista principal dos atores esqueléticos e
estúpidos. Nos filmes Sid & Nancy – O Amor Mata, Track 29 – Passatempo Mortal, Um Tiro de
Misericórdia e Rosencrantz & Guildenstern Estão Mortos, Oldman abrangeu o mercado dos
narcóticos, valentões e esbaforidos. Na indústria cinematográfica, quando se fala em pessoas
estúpidas e desequilibradas, fala-se em Oldman.

Winona é perfeita para a garota fantasmagórica vestida de preto, que se esconde da vida no
hotel pulguento. É uma continuação natural dessa talentosa atriz de rosto pálido logo depois
de atuar em obras como Os Fantasmas se Divertem / Minha Mãe É Uma Sereia / Edward mãos-
de-tesoura. Que elenco! Gibson para as mulheres, Ryder para os homens, Oldman para os
críticos! Tudo o que Bono tem a fazer é convencê-los para que atuem.

Bono considera a ideia de Mel de dar o papel principal para Oldman e deslizando para o papel
de detetive de polícia cabeça pontiaguda¹ que abala os habitantes do Million Dollar Hotel e
intimida o zelador idiota, o herói. Gibson pode não se sentir muito contente com a falta de
desafio ao interpretar outro policial durão, mas Bono espera convencê-lo que apesar de ele ter
interpretado policiais durões antes, ele nunca interpretou um policial durão com uma cabeça
pontuda.

Há um outro papel a ser preenchido. Quem vai dirigir? A primeira opção de Bono seria Roman
Polanski, mas, como ele foi exilado da América, isso significaria recriar Los Angeles na Europa.
Ele acha que Coppola é um grande pintor, um brilhante visualista, mas não sabe se ele iria se
ater à história. É claro que ele sonha com Scorsese, e é claro que ele nunca vai consegui-lo. Eu
sugiro Barry Levinson: Em Quando os jovens se tornam adultos ele provou que é maravilhoso
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¹ No original: pinhead, que pode significar cabeça pontiaguda, no sentido literal, ou tolo, palerma, no sentido
figurado.

3
dirigindo drama / comédia com múltiplos personagens - e em Rain Man mostrou que ele pode
se converter em um poeta de cretinos. Eu continuo citando nomes como se eu (assim como
Bono) realmente conhecesse essas pessoas e enquanto andávamos pelo saguão do hotel Bono
vê, esperando por ele, Phil Joanou, que dirigiu Rattle and Hum e depois Um Tiro De
Misericórdia com Oldman e Sean Penn e Desejos com Richard Gere. Um Tiro De Misericórdia foi
considerado não original, mas promissor; Desejos foi um desastre. Juntamente com o fracasso
de bilheteria do Rattle and Hum, isso coloca Joanou numa posição difícil. Durante o tempo que
o U2 passou fazendo o Achtung Baby, o jovem diretor passou de Menino Prodígio à Grande
Coisa Que Quase Deu Certo. Ele precisa de um tempo, e a chance de trabalhar com Mel Gibson
seria sua oportunidade.

Bono gosta de Joanou e acredita que ele acabará por se mostrar um grande cineasta - mas ele
teme que, se o Million Dollar Hotel for dirigido pelo homem que fez o filme da turnê do U2,
assim como o vídeo de “One”, parecerá um vaidoso projeto do U2, como se Bono tivesse
escrito um roteiro e contratado o diretor pessoal do U2 para filmá-lo. O nervoso diretor
encurrala Bono e pergunta se ele já ouviu alguma resposta sobre a tentativa de marcar uma
reunião com o Mel.

Bono diz que, absolutamente, isso vai acontecer.

Joanou pergunta a Bono se ele realmente está sendo considerado para o trabalho ou se é
simplesmente uma recomendação educada, porque se for, que lhe diga agora e o salve de
parecer um idiota. Não, diz Bono, ele é absolutamente a favor de que Phil seja o diretor - se ele
conseguir vender a ideia para o Mel.

À meia-noite, durante um intervalo da edição de TV, Bono se encontra para jantar com
Oldman e Joanou, que trabalharam juntos em Um Tiro de Misericórdia e em um episódio de
uma série de TV paga chamada Fallen Angels. Joanou também dirigiu a mulher de Oldman,
Uma Thurman, em Desejos. O diretor e o ator se conhecem bem. Joanou explica
detalhadamente a diferença entre ele e Francis Coppola; como Coppola nunca diz “Print”, mas
Joanou sempre grita “Print!” bem alto para que o elenco e a equipe saibam que fizeram um
bom trabalho. Bono apimenta a conversa com uma barulhenta e grotesca imitação da
performance de Oldman em Drácula. Todos na mesa dão uma boa risada, entretanto Oldman,
tão desconfortável quanto qualquer ator que tem um amador mastigando seu cenário, salta e
diz que vai fazer uma imitação: Phil Joanou dirigindo uma cena.

Oldman se inclina nervosamente, começa a mastigar rapidamente um chiclete imaginário e


empurra o cabelo para trás das orelhas repetidas vezes enquanto grita: “Print! Print!” Todos
riem muito, mas para mim parece uma atitude infantil de alunos que recém entraram para o
ensino médio.

Ambos, Bono e McGuinness me disseram várias vezes que Oldman é um grande fã de Joanou e
que ele o considera um verdadeiro diretor de atores com quem pessoas como Oldman e Penn
sentem-se seguras indo até os seus limites. Isso é verdade, eu me pergunto, ou Joanou é um
diretor que Oldman acha que pode dominar? McGuinness, que passou bastante tempo em
Hollywood como produtor do Rattle and Hum, diz que existe um jogo feroz de dominação

4
entre os atores mais importantes e os diretores, que parece brutal para quem vem de fora,
mas que deve ser respeitado para conseguir entrar no jogo.

Joanou olha para outra mesa, vira-se e diz. “Aquela garota ali olhando para nós, ela está no
Twin Peaks, mas não consigo lembrar o nome dela”. Todos olham discretamente. “Ah, sim, ela
é...?” e todos começam a listar as diferentes atrizes da série de TV cult. Joanou diz que vai
buscá-la. Ele faz isso, retirando-a do grupo em que estava e a coloca no meio das estrelas de
rock e do cinema. Ela cumprimenta com a cabeça, todos a cumprimentam de volta e retornam
para o que estavam discutindo como se ela não estivesse ali. Então a atriz começa a falar sobre
esse novo filme e o que seria perfeito para Joanou dirigir, que ela poderia atuar e há um papel
para Oldman e, de repente, Joanou grita: “Besteira! Isso é simplesmente bobagem de
Hollywood!” A atriz é pega de surpresa, mas Oldman olha para cima, impressionado. Ela diz
com sinceridade a Joanou: “Boa jogada, amigo”.

Bono diz que é hora de voltar ao estúdio de TV e convida todos para irem junto. Ele entra na
sala de edição, onde Godley tem passado os últimos dias, acompanhado por Oldman, Joanou e
a atriz de Twin Peaks. Godley olha para ele como se estivesse considerando as implicações que
colocar os dedos em torno do pescoço de Bono teriam na carreira dele. Bono lidera a sua
procissão até uma sala de exibição para verem alguns trechos de vídeos acabados. Oldman
salta numa cadeira de tamanho desproporcional, vibrante, parecida com um casulo e começa
a fazer imitações enquanto pressiona uns botões no braço da cadeira: “Você não conseguirá
escapar, Mr. Bond”. “Tenente Uhura!”

O telão da sala se ilumina com uma versão ao vivo de “Until the End of the World”. Na tela,
Bono está descendo a rampa até o palco B, através do que parece ser um campo de trigo feito
de braços levantados. O conceito dessa produção de TV é que, no verdadeiro estilo da Zoo TV,
o show vai pegar o controle remoto antes do espectador, então, enquanto Bono interpreta
suas emoções, a cena logo muda para uma loirinha perto da rampa sendo questionada se
havia chegado perto do Bono: “Não perto o suficiente!” e então a cena passa para uma cena
aérea de Bono levantando as mãos e cantando: “I reached out to the one I tried to destroy”, e
então – zap - uma camponesa desesperada em preto e branco e – zap - uma onda e – zap -
Edge tocando, e sob tudo isso Bono cantando: “You said you'd wait until the end of the world”.
Não há dúvida que toda essa edição extravagante quebra o feitiço da música.

Bono se vira para seus convidados, que estão esparramados pela sala flertando e conversando
e pergunta se eles não concordam que tantos cortes no clímax da música arruínam todo o
efeito. Claro que todo mundo diz: “Sim, hum, certo, eu estava pensando a mesma coisa”. Assim
fortalecido, Bono lidera as suas tropas de volta para a sala de edição onde o exausto Godley,
sua esposa, Sue, e seu produtor, Rocky Oldham, trabalham como escravos. São 3 da
madrugada, eles não parecem ansiosos para receber qualquer opinião.

Bono diz que acabou de acontecer uma coisa estranha: ele estava assistindo o vídeo com seus
convidados e todos eles disseram ter achado que o poder de “Until the End of the World”
estava sendo arruinado por todos aqueles cortes no clímax. Godley levanta a cabeça
tristemente. Os convidados do Bono balançam a cabeça e grunhem e dizem: “Hum, sim. Certo.
Eu também achei”.

5
Bono está numa posição embaraçosa: ao trazer um bando de intrusos para o estúdio, ele sabe
que está violando a etiqueta, mas a edição do filme está realmente sabotando a música e ele e
Godley terão que discutir sobre isso na frente dos outros.

“Quebra o feitiço”, explica Bono. “Tudo o que eu faço é criar um feitiço. Eu não pinto quadros.
Eu não escrevo livros. Tudo o que realmente fazemos é criar um feitiço e vendo isso eu me
vejo afundando... Então isso acaba comigo. O feitiço é arruinado. Eu não me importo em
receber um tapa na cabeça para me acordar quando tudo acabar - tudo bem - mas isso é coitus
interruptus”.

“Tudo bem”, diz Godley. “Eu entendo. Mas, se você continuar tirando todos esses cortes no
vídeo vai acabar apenas com um filme de show normal”.

Godley sugere que Bono e seu painel de jurados escutem a nova mixagem do áudio de “Until
the End of the World” antes de tomar uma decisão. A mixagem pode ser vista num monitor da
sala de edição. David Saltz, um produtor de programas de TV de shows de rock, foi contratado
pela banda para fazer comentários sobre o show - tipo um comentarista desportivo. Ontem à
noite, Bono estava explodindo com ideias e alimentando Saltz com frases como: "É um
dicionário acelerado!” Bono assiste “Until the End of the World” de novo, dessa vez, com a voz
de Saltz acrescentada falando muito rápido e ofegante numa descrição jogada a jogada,
enquanto na tela Bono caminha pela rampa: “Bono exorcizando the Edge! Exorcizando o
público! Exorcizando a si mesmo!”

“Está completamente, completamente errado”, Bono anuncia gravemente. “Está estragando


tudo. É como na escola quando você escreve uma história: “Ele a esfaqueou centenas de vezes
e depois a cortou e então cortou a cabeça dela, e daí ele acorda”.

O diretor e Bono se encaram. O produtor quebra o silêncio: “Na verdade, eu nunca escrevi
uma coisa dessas na escola”.

De repente, Bono ri e diz: “Então larga a faca!”

Eles mexem na edição por mais uma hora enquanto Oldman, a atriz e Joanou vão embora.
Finalmente, Bono diz boa noite e sai pela porta. O diretor e o produtor se olham furtivamente
e murmuram: “Coitus interruptus”.

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14. O Último Magnata

saltando do million dollar hotel / um momento existencial numa zona de guerra / t-


bone procura em los angeles um lugar para seu café da manhã / eu / gibson não diz
nada / o sinal confunde a instituição / o sistema de segurança é posto à prova

T-BONE BURNETT é um excelente cantor/compositor com vários álbuns aclamados pela


crítica que não vendem muito bem. Então ele faz sua fortuna como produtor de discos, tendo
realizado esse trabalho com Elvis Costello, Los Lobos, Roy Orbinson e muitos, muitos outros.
Ele é um cínico com um coração de ouro, um homem que conhece os detalhes internos de
tudo, desde o real significado de "Rosebud", em Cidadão Kane (era, T-Bone jura, o apelido que
William Randolph Hearts dava para o seu pênis), até quem assassinou JFK (T-Bone, um
texano, conhece o filho do proprietário da empresa petrolífera que diz que pagou pelo
disparo). T-Bone sabe onde todos os corpos estão enterrados, o que é uma das razões pelas
quais Bono gosta tanto de sair com ele. A primeira vez que eles se encontraram, no Hotel
Portobello, em Londres, em 1985, foram direto para o andar de cima e escreveram uma
música juntos: “Having a Wonderful Time, Wish You Were Her”.

Desde então eles têm gravado juntos. Ellen Darst trabalhou algum tempo como empresária de
T-Bone, e ele tem sido uma fonte regular de conselhos para a banda quando eles pedem e
também quando não pedem. Eu lembro de T-Bone me dizendo em 1986: “Você já ouviu essa
música que o U2 escreveu chamada ‘I Still Haven’t Found What I’m Looking For’? É fantástica,
vai ser um grande sucesso, é como uma música do Elvis Presley”.

Hoje, T-Bone e Bono estão unindo todo seu talento e inteligência para tentarem localizar um
lugar para tomar o café da manhã em Los Angeles às 2 da tarde. Bono ainda está tentando
acertar as coisas com o Million Dollar Hotel.

Um novo obstáculo surgiu. Com o tempo se esgotando antes da opção de Mel Gibson expirar e
o financiamento entrar em colapso, Gary Oldman anunciou as suas condições para interpretar
Tom-Tom: o filme tem que ser dirigido pelo seu grande amigo Phil Joanou. Sean Penn resolveu
também contribuir, com a opinião de que ninguém jamais teve um desempenho ruim em um
filme de Joanou. O exercício de equilíbrio de Bono está se tornando cada vez mais difícil.
Winona diz que está disposta a trabalhar com Oldman novamente, deixando de lado qualquer
tensão desenvolvida enquanto filmavam Drácula, mas agora Gibson tem que concordar em
usar Joanou. E Gibson não quer nem ouvir falar do nome de Joanou.

O mau cheiro causado pelo fracasso de Desejos realmente estragou a relação de Phil com
Hollywood. Mas, pode ter havido forças ocultas envolvidas nisso também. Certo ou errado,
Joanou acredita que Richard Gere, a estrela do filme, injustamente andou pela cidade
culpando-o pelo fracasso e disse a todas as pessoas do seu poderoso círculo para não
trabalhar com o diretor. Phil diz que metade das coisas que são citadas como razões pelas
quais o filme fracassou são coisas que Gere pediu, mas agora o ator colocou toda aculpa nele.

1
Joanou tem medo que esteja ocorrendo uma armação, mas isso é impossível de provar na
cidade do “Você coça as minhas costas e eu esfaqueio as suas”. No entanto, fica claro o
seguinte: Mel Gibson tem o mesmo agente de Richard Gere, e Gibson disse que se Phil está
dentro, ele está fora.

A posição de Phill tem sido: “Apenas me consigam um almoço com o Mel e deixem-me falar
com ele, apenas deixem-me apresentar o meu lado da história”. Bono conseguiu convencer
Gibson a se encontrar com Joanou para um almoço e lhe dar uma chance de falar. Se Phil não
conseguir convencer Mel a lhe dar uma chance, a única opção de Bono será convencer Oldman
a desistir de Phil, o que seria horrível. Bono está muito esperançoso que o encanto de Phil
possa fazer Mel ceder.

Depois de fracassar na nossa busca de ovos em restaurantes desde East Hollywood até
Beverly Hills, acabamos na cafeteria do Beverly Hills Hotel. Bono hesita antes de entrar. Ele
relembra T-Bone da vez em que foram expulsos do restaurante do hotel, juntamente com
Edge e Kris Kristofferson, por causa das suas roupas surradas. Bono disse: “Olha só, que tal
vocês ignorarem os jeans e a gente ignorar essas imitações ruins de pinturas
impressionistas?” Um minuto depois os quatro aterrisaram na calçada.

Depois de entrar na cafeteria, Bono inicia um diálogo com T-Bone - outro intelectual cristão na
tradição de Thomas Merton / C.S. Lewis / Billy Sol Estes - sobre arte, fé e a natureza do
conhecimento. (Ei, não se sinta preso por mim; pode pular diretamente para o capítulo sobre
o México, se desejar.) Bono diz que quando o U2 se juntou a Eno eles eram modernistas
porque eles queriam compor músicas e gravar discos como ninguém havia feito antes. Com
Achtung Baby eles entraram em sua fase pós-moderna porque estavam combinando o novo
com o velho, tomando referências de outras eras do rock, enquanto tentavam levar adiante.
Bono diz que logo depois do Rattle and Hum ele teve que parar e se perguntar por que, para
começar, ele queria estar em uma banda. “Era para salvar o mundo? Eu acho que não. Para ser
honesto, foi provavelmente porque vi Mark Bolan no Top of the Pops”. Então ele começou a
tentar trazer de volta essa essência enquanto experimentava novos sons.

Bono admite rapidamente que muitas das suas ideias são instintivas, não intelectuais - ele não
tem tempo para ser rigoroso pesquisando-as e testando-as. Uma das teorias que o envolvem
em grandes debates é o fato de ele acreditar que o modernismo começou com Lutero, na
Reforma, com o desmantelamento da iconografia da cultura e com a insistência no simples e
funcional. Bono diz que ele inicialmente seguiu a trilha do modernismo até The Shakers. Então
ele conseguiu que Frank Barsalona, que tinha uma coleção de mobília Shaker, o colocasse em
contato com uma autoridade que confirmou o palpite de Bono que os Shakers foram
influenciados por ideias europeias e que o movimento Bauhaus foi influenciado pelos Shakers.
Bono está convencido de que todo esse despojamento e direcionamento remontam ao
impulso Protestante, de volta a Lutero, e que os modernistas cometeram o grande erro de
aceitar a anti-religiosidade existencialista e se perderem no caminho. (É uma das maravilhas
do considerável intelecto de Bono o fato de ele ser capaz de construir uma teoria de campo
unindo todos os seus interesses - mesmo quando eles não têm nada a ver uns com os outros.)

2
O colaborador de Bono no The Million Dollar Hotel, Nicholas Klein, é um metafísico que usa a
lógica vigorosamente aplicada para mapear o futuro. Bono encontra um colóquio bíblico para
cada equação criada pelo seu amigo. Por exemplo, Klein ofereceu a seguinte proposição: “A
independência é o oposto de amor”. Bono ficou surpreso com essa idéia, mas seguiu-a e
decidiu que era a essência do problema de Deus com Satã. Não é o desejo por independência
que destrói os casamentos? O amor envolvente e incondicional de um pai por seu filho
dependente não azeda geralmente no momento em que essa criança se torna independente?

Como um velho jesuíta, Bono acredita que Deus pode ser encontrado através da pura lógica.
Vejam a palavra usada para “A Palavra” no evangelho de São João: Logos. No princípio era a
Palavra. No princípio era o Logos. No princípio era a Lógica.

Eu ressalto que ele pode estar usando a etimologia em sentido inverso - o desenvolvimento de
nossa linguagem pode ter seguido a religião e a filosofia do povo, criando essas conexões após
o fato.

“Eu acredito instintivamente”, diz Bono, “que se seguirmos a lógica até o fim, até o menor
ponto, iremos encontrar Deus”.

“Em cada grão de areia?" Eu pergunto.

“Exatamente”, diz Bono enquanto pagamos a conta. “Assim como as sementes contêm toda a
informação genética de uma árvore. Como uma célula contêm mais informação que qualquer
chip de computador”.

Dirigindo de volta pela cidade, essa espécie de seminário de estudos religiosos chega ao tópico
da teologia da libertação, o lado radical do Catolicismo praticado em algumas partes da
América Latina que encorajou as vítimas das ditaduras a pegar em armas contra seus
opressores. Bono diz que quando ele e Ali estavam na América Central, eles um dia viajaram
até uma área onde podiam sentir a terra tremer sob os pés devido à artilharia nas
proximidades e, numa ocasião, tiros passaram por cima de suas cabeças. Ali é destemida; ela
insistiu que seguissem em frente. Finalmente eles chegaram à cidade. Num dos lados de um
prédio alguém havia grafitado “Foda-se Jesus”.

Bono recuou. Então, aqui nas linhas de frente, é isso o que eles pensam sobre a teologia da
libertação, aqui se vê como eles se desesperaram com a misericórdia de Deus, aqui se vê como
eles perderam a fé no salvador dos seus pais. Ele falou tudo isso para o guia e mostrou-lhe a
blasfêmia.

“Não é Jesus Cristo!” O guia disse a ele. "Foda-se He-zus – é um cara que vive aqui perto!"

Nós chegamos de volta à Sunset Marquis, onde quatro garotos estão esperando do lado de
fora com câmeras e discos do U2. Bono se aproxima e agradece o apoio deles e que ficará feliz
em dar autógrafos e posar para fotos depois de shows, mas ele gostaria que eles não ficassem
por aí dias a fio na porta do hotel, porque isso faz com que ele se sinta uma celebridade e ele
não é uma celebridade: ele é apenas um cantor de rock ‘n’ roll.

3
"Isso soa bem, Bono”, eu digo, “mas se você não é uma celebridade, como você explica essas
oito adolescentes correndo pela rua em sua direção?" Bono levanta os olhos pouco antes de se
ver envolto em gritos e risadinhas.

Volto para o meu quarto e encontro um aviso para comparecer a uma sala médica especial da
Zoo para as minhas injeções pré-México. Eu me arrasto até a suíte indicada onde um médico
de aparência duvidosa está dando instruções para o pessoal da Zoo a se inclinar, baixar as
calças e arregaçarem as mangas. Uma comprida agulha na bunda para a hepatite e uma agulha
curta no braço para o tétano.

Há todo tipo de hitórias de terror rolando por aí sobre a disenteria no México. As pessoas
dizem para não beber água, nem mesmo comer frutas ou vegetais lavados na água. Edge diz
que foi alertado para não tomar banho. “Claro que”, ele diz, "isso pode servir para aumentar o
problema”.

Na hora do jantar eu saio para visitar o T-Bone numa mansão alugada onde ele está
produzindo o primeiro álbum para uma banda de São Francisco chamada Counting Crows. Eu
recebi uma fita demo produzida por eles mesmos há cerca de um ano atrás e diferente de
todas as outras demos feitas por eles, essa era realmente boa. Eu conheci o produtor da A & R
que assinou com eles e sabia que ele queria colocá-los numa casa para gravarem seu primeiro
álbum ao invés de em um estúdio. Eu fiquei surpreso ao descobrir que era nisso que o T-Bone
estava trabalhando e fiquei feliz com a chance de poder passar por lá e ouvir um pouco. A
mansão que eles alugaram é um daqueles grandes elefantes brancos, construída por milhões
durante a corrida do ouro dos anos oitenta para ser vendida por alguns milhões a mais, mas
não feita para as pessoas morarem. A piscina está rachando e a água está escorrendo pelo lado
da montanha, e há objetos pendurados muito baixos onde os membros da banda batem com a
cabeça enquanto andam por lá. Eu acertei no horário e cheguei na hora do jantar, fiquei um
tempo dando umas voltas por lá, e quebrei a chave na porta do meu carro alugado. Quando eu
consegui substituí-la e voltar para o Marquis, Bono, Adam e Larry já haviam saído para
trabalhar.

Ninguém consegue encontrar o Edge, mas o progresso no estúdio de TV continua avançando.


Há trabalho em três salas agora, em dois prédios diferentes. Larry e Adam estão em um,
supervisionando as nuances de mixagem de som que nenhuma caixa acústica de TV jamais
detectará. Eles estão ouvindo o momento antes da banda começar a tocar, separando e
definindo níveis ao ruído branco das telas da Zoo TV, ao ruído ambiente do público e o
barulho direto da audiência. “Há três grandes erupções de aplausos”, diz Larry. “A primeira
quando as luzes se apagam, a segunda quando as pessoas vêem a banda, a terceira quando
vêem a silhueta de Bono”.

Durante um rápido intervalo, Larry menciona a vitória de Clinton. “Eu estou animado”, ele diz.
“Acho que ele tem a chance de restaurar o equilíbrio. Essa é a minha filosofia para esse ano:
Equilíbrio”. Então ele volta a equilibrar o som.

4
Bono está na outra sala discutindo com o produtor que, para o horror de Bono, mostrou uma
edição crua do programa aos executivos da Fox TV, que se opuseram às cruzes em chamas em
“Bullet the Blue Sky” e ao uso de palavras como negro e bicha no monólogo de Burroughs.

“Este é um dos maiores poetas vivos da América!” Diz Bono. “Se eles vão censurá-lo haverão
grandes problemas! Eu vou cancelar o show. Eu achei que ele seria transmitido direto por
satélite, eu pensei que a Fox não teria controle sobre isso”.

Cansado, o produtor explica a Bono que o show será transmitido via satélite para o resto do
mundo, mas não nos EUA; que a Fox tem todo o direito, moral e contratual, de ver o show
antes de transmiti-lo; e eles podem ainda exercer o direito de não apresentá-lo.

Bono vai até o estacionamento, onde fica encantado ao ver o seu amigo que havia estado
perdido, the Edge. "Reg!" ele grita em voz alta e desajeitada, como garotos que se encontram
nas esquinas fazendo triplos mortais. “Por onde você andou?”

Edge diz que saiu para ver Ronnie Wood tocar num clube local e acabou passando o tempo
com uma atriz que está saindo com Ben Stiller, um comediante da TV que faz uma
desagradável imitação de Bono. “Diga a ele para parar de tirar sarro de mim, Edge!” reclama
Bono. “Diga a ele que pessoas glamourosas também têm sentimentos!”

Eles voltam para dentro, onde Larry está reclamando de um sample retirado de um noticiário
que fala sobre um serial killer atacando novamente. "É óbvio que está sendo tocado para ser
piada”, diz Larry, “e eu não me sinto bem com isso”.

"Edge se aproxima e agarra o braço de Larry e diz: “É verdade, ele não se sente bem”.

O produtor - realmente usando a hipérbole Hollywoodiana, se inclina para frente e insiste: “O


importante é que faça você sentir algo”.

Larry ri e se senta, mas aposto que quando o filme estiver pronto o serial killer terá sumido.
Os instintos de Larry são mais tenazes que as intelectualizações de outras pessoas.

A banda trabalha até cerca das 4 da manhã e então Bono diz que está indo para a cama. Eu
sento ao lado dele no seu carro de dois lugares alugado. Quando estamos nos afastando Edge
sai, pede uma carona e vai para o banco dobrável atrás da gente. Bono dirige como ele sempre
dirige, muito rápido e muitas vezes no lado errado da estrada.

“Devagar, Bono, eu não quero morrer!” grita Edge da sua cabine atrás do banco.

“Não se preocupe, Edge”, digo a ele, me colocando em posição fetal no banco do passageiro,
“você está num lugar seguro, você será retirado dos destroços! Eu estarei morto e todos os
jornais dirão BONO MORRE e no finalzinho da página, dirão que outro homem também
morreu”. Perto do final da semana em Los Angeles Bono pára num semáforo, olha para o
motorista no carro ao lado dele e vê Axl Rose acenando. “Eu sabia que era você”, a namorada

5
do Axl diz. “Eu reconheci seu brinco!” Bono queria não estar dirigindo um Mercedes: não é
muito rock and roll.

Na manhã de sexta-feira, a equipe da Zoo TV se prepara para partir para a Cidade do México,
enquanto a banda fica para trás para terminar o maldito especial de TV. Organizando os
planos de viagem está Denis Sheehan, o gerente de viagens do U2 de longa data.
Desorganizando-os está B. P. Fallon, o vibrante / deejay / guru que senta no seu Trabant no
palco B todas as noites antes do U2 aparecer, toca os discos e diz para a multidão da audiência
para se amarem uns aos outros enquanto usa uma capa e um enorme chapéu de palha. Não há
duas pessoas tão diferentes ao norte do equador quanto Dennis e Beep, e a relação deles vem
de longa data. Nos anos setenta, eles também estavam juntos na estrada, quando Dennis era o
assistente do gerente de viagens do Led Zeppelin e Beep era o agente de publicidade. Quando
Bono insistiu que Beep fosse recrutado para a Zoo TV, Dennis alertou, na sua maneira calma,
que Beep não era o mais indicado para trabalhar com ele. Dennis gosta de executar suas
operações como no exército e Beep é o típico irmão divertido e descontraído que gosta de
objetar a tudo.

No saguão, esta manhã, Beep, que pesa quase tanto quanto um canário, está lutando sob o
enorme peso de um carrinho de madeira carregado de uma pilha de malas de viagem, baús e
aparelhos de som, literalmente maiores do que o hippie com jeito de duende. Aparentemente,
ele não conseguiu arrumar todas suas coisas a tempo para a coleta das bagagens, então eles
partiram sem ele. Ultimamente, Beep tem estado sob provação. Ele tem a tendência de não
pagar as despesas adicionais de suas contas de hotel e empilhar seus baús e malas sobre os
cambaleantes rapazes carregadores do hotel, para os quais ele nunca dá gorjetas. Havia tanta
queixa do “Muquirana Fallon” da parte dos funcionários do hotel que Dennis recorreu à pena
máxima: o caso B. P. foi entregue a Larry “Juiz de Enforcamento” Mullen, que concordou em
deixar B. P. terminar o resto de 1992 com eles desde que ficasse fora de problemas. (Um novo
deejay será trazido para os shows de 1993.)

Desde então, Larry tem perseguido Beep para cima e para baixo nas hospedarias e
restaurantes da América, certificando-se que ele pague a sua parte nas contas. Larry também
ordenou que ele parasse de reclamar que cada quarto de hotel em que eles se hospedam é
inaceitável e para parar de ligar para o próximo hotel em que iriam se hospedar e dizer: “Aqui
é o Sr. Fallon, vou chegar na terça-feira e tenho uma lista de especificações para o meu
quarto”. A relação entre o sincero Larry e o astuto duende Beep é muito parecida com a
relação entre o Superman e o Mr. Mxyzptik, o travesso duende da quinta dimensão que
costumava voar ao redor de Metrópoles transformando o globo do Planeta Diário em um
balão gigante e Jimmy Olsen em Garoto Tartaruga até que Superman o enganasse fazendo-o
dizer o próprio nome de trás pra frente, o que o faria desaparecer de volta para a sua própria
dimensão. Ultimamente eu acho que tenho ouvido o Larry resmungando: "Nollaf P.B., Nollaf
P.B."

Eu deixo B.P. arrastando sua bagagem pelo saguão, como Sísifo¹, e dirijo-me ao aeroporto com
___________________________
¹ Na mitologia grega, Sísifo era considerado o mais astuto de todos os mortais. Mestre da malícia e da felicidade,
ele entrou para a tradição como um dos maiores ofensores dos deuses.

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Dennis para vê-lo fazer a ronda de segurança. Faz parte do seu ritual regular. Antes de o U2
entrar em qualquer aeroporto ou hotel Dennis já fez um reconhecimento, recolheu o esquema
do lugar, procurou os pontos mais críticos e explicou à equipe o que provavelmente
acontecerá quando o U2 chegar (fãs correndo em direção a eles, congestionamentos
aumentando nas filas de check-in ou nos detectores de metal) e tenta conseguir a cooperação
deles para garantir que as coisas corram da melhor maneira possível. Antes do início de uma
turnê, Dennis começa suas manhãs às 5 da madrugada e voa para três cidades por dia,
gastando algumas horas em cada, fazendo reconhecimento do aeroporto, hotel e no local do
show. Agora, Dennis e dois funcionários do LAX (Aeroporto de Los Angeles) estão na correria
dos preparativos para a saída da banda amanhã. Eles caminham para onde os carros deixaram
os membros da banda, onde passarão pela segurança do aeroporto, as escadas para a sala de
espera da primeira classe, o esquema daquela sala, as salas VIP especiais. Durante todo o
tempo em que memoriza esse mapa mental Dennis está também atendendo telefonemas dos
quatro membros da banda no seu celular, retransmitindo para Suzanne Doyle ou para o hotel
que Bono quer um carro para ir almoçar em meia hora ou Edge quer ir a uma danceteria
específica nesta noite.

Quando o pessoal do aeroporto nos leva de uma área para ir a outra, no caminho eu vejo uma
bola de confusão do outro lado do saguão. Alarmes estão soando e a segurança do aeroporto e
carregadores correm em direção a um pequeno hippie arrastando uma grande pilha de
bagagem num carrinho atrás dele. Ele acabou de passar pelo caminho errado através de um
detector de metais e está puxando sua mala para dentro do saguão através de uma porta de
saída.

Se Dennis se deu conta que Beep está espalhando o caos como Johnny Appleseed, ele não
deixa transparecer. Se limita a continuar o seu reconhecimento do terreno.

Dennis tem passado a sua vida adulta na estrada; ele perdeu grande parte do crescimento dos
filhos. Com o U2 ele lutou por concessões para a equipe que só poderiam ser sonhadas depois
de anos de vida dura. Por exemplo, cada membro da equipe tem seu próprio quarto de hotel -
um luxo caro quando 200 pessoas estão viajando, mas Dennis insiste que isso permite que os
trabalhadores se sintam seres humanos. “Você não tem que compartilhar quarto com um
fumante, você não precisa ir tomar um banho e não encontrar toalhas”. Dennis começou no
início dos anos setenta com bandas como Stone the Crows. Antes de se juntar ao U2, em 1987,
ele trabalhava com bandas punk, e passou uma temporada atrás de uma escrivaninha na
Arista Records, trabalhando com Patti Smith e Lou Reed. Mas, a sua carreira inicial foi
dominada pelo Led Zeppelin. O U2 não é a sua primeira aventura no topo.

Na época do Zeppelin, Dennis era o segundo no comando para Richard Cole, um notório e
selvagem roqueiro que ficou mais mal-afamado logo depois de ser a principal origem da
exposição de Led Zepppelin em Hammer of the Cods, e cobriu isso com a sua própria biografia
contando tudo. Dennis uma vez encontrou Cole, nu e fora de si, prestes a saltar da sacada do
quarto do hotel. Ele lutou para trazê-lo para dentro, certamente salvando-lhe a vida. Ele diz
que deseja o melhor a Cole com seus livros, mas ele nunca seria capaz de fazer aquilo, nunca
seria capaz de acompanhar e depois contar. “Havia nove coisas boas no Led Zeppelin que

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ninguém conhecia para cada uma das coisas ruins que se falava dele”, diz Dennis. “Mas, apenas
as ruins vendem livros”.

Nós verificamos a sala da primeira classe, onde o pessoal do Principle está sendo embarcado
no vôo para o México. Um representante do aeroporto com seu típico bigodão corre até
Dennis em estado de pânico e diz que há um problema: “Nós perdemos o Sr. Fallon!”

“Que ele se foda”, Dennis sugere.

O representante do aeroporto corre para outro lugar, falando excitadamente no seu walkie-
talkie. Eles atrasam a partida do avião tanto quanto podem enquanto os seguranças do
aeroporto são alertados para procurarem o VIP perdido. Dez minutos depois o homem do
bigode volta até Dennis, secando a testa e sorrindo triunfante: “Nós o encontramos, nós o
colocamos no avião e eles decolaram”. Dennis balança a cabeça e o homem acrescenta: "O que
quer que aquele cara esteja fumando, eu não quero nem um pouco."

“Ele é o nosso duende honorário”, explica Dennis.

De volta a Hollywood, encontro o U2 jantando perto do estúdio de edição, num lugar chamado
Formosa que eles descobriram durante os dias do Rattle and Hum. Uma garçonete mais velha
se aproxima de Larry e diz: “Você está se transformando em um belo homem”, enquanto ele
parece envergonhado.

Bono me oferece uma carona de volta para o estúdio. No caminho, começamos um tipo de jogo
de “tenta superar essa história” sobre os nossos pais. Nós dois perdemos nossas mães quando
éramos adolescentes e então passamos pela experiência cômica – típica de uma série de
comédia de TV - vivendo com nossos pais viúvos enquanto éramos jovens. “O meu pai é um
senhor engraçado”, sorri Bono. “Ele nunca me deu um elogio em toda a minha vida. Nem
quando eu o venci no Xadrez quanto eu tinha cinco anos, nem nos vinte anos seguintes.
Lembro-me de quando o trouxe para a América pela primeira vez para nos ver tocar. Foi uma
noite muito emocionante. Eu o apresentei do palco, apontei um holofote pra ele. Foi uma
performance muito emotiva. Naquela turnê eu fui o primeiro a sair do palco e ninguém me
seguiu até o camarim. Eu sempre preciso de uns minutos depois do show. Eu saí do palco e
meu pai estava bem atrás de mim. Entrei no camarim, virei para trás e ele estava me olhando
nos olhos. Ele estendeu a mão, pegou a minha mão na dele e eu pensei: ‘Ó, meu Deus,
finalmente, depois de todos esses anos...’ E ainda segurando a minha mão, ele disse: ‘Filho...
isso foi muito profissional’.”

Bono entra no estacionamento do estúdio rindo e balançando a cabeça. Ele se junta aos outros
lá dentro e eles olham uma edição bruta do especial de TV. Está marcado para ser transmitido
na quinta-feira. São duas da manhã de sábado. Eles balançam a cabeça e dizem, não, ainda não
está pronto. Eles se sentam e voltam ao trabalho.

Ah, você provavelmente quer saber o que aconteceu quando Phil Joanou foi almoçar com Mel
Gibson. Bem, Mel cumpriu cabalmente o seu acordo com Bono - ele disse que almoçaria com
Phil e o deixaria falar. Mel nunca disse que iria falar com ele de volta. Phil foi ao Beverly Hills

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Hotel, sentou-se com uma das pessoas do Mel, Mel apareceu, conversou com o outro cara, não
deu nenhum sinal de estar ouvindo o que Phil disse, levantou-se e foi embora. Gibson então
disse a Bono que a posição dele era imutável: Mel Gibson não fará Million Dollar Hotel com
Phil Joanou. Gary Oldman reitera que sua posição também é inalterada. Ele não fará Million
Dollar Hotel sem Phil Joanou. Além disso, Oldman precisa de que firme um compromisso
rapidamente ou ele terá que aceitar outra oferta. Bono vê o seu grande pacote Hollywoodiano
desaparecer na sua frente. Sem a produtora de Gibson ele não conseguirá o financiamento
necessário para pagar Oldman antes que ele caia fora, mas Oldman não trabalhará sem
Joanou, o que tira fora Gibson. The Million Dollar Hotel é engavetado. Oldman vai trabalhar
num thriller chamado O Sangue de Romeo. Gibson fará uma adaptação para a gravação de um
filme do clássico western de TV, Maverick. Ryder vai fazer Caindo na Real com o diretor
estreante, Ben Stiller – aquele mesmo comediante que tira sarro de Bono.

Bem-vindo a Hollywood, moleque.

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15. A Conquista do México
bono e edge desorientados pelo controle remoto / larry guarda ressentimentos da sua
imagem de motos e garotas / o reino escondido / os corretores do poder aparecem / amor
entre latinos / cada limusine, um carro de fuga

NÃO HÁ nada mais horrível do que acordar com uma chamada às 8 da manhã. O U2 trabalhou em
seu especial de TV até às 4 e depois arrastou-se de volta para o hotel. Agora, cinco horas depois,
os exaustos músicos estão resmungando em frente às suas xícaras de café, na cafeteria do Sunset
Marquis, os olhos fechados de tão inchados e os queixos cortados por se barbearem sonolentos.
Eles mordiscam bolinhos e bebem apenas café descafeínado para poderem dormir no avião para
a Cidade do México. Adam, com seu moicano loiro começando a crescer dos lados, está vestindo
um traje vermelho vivo “em homenagem ao México”. Dennis Sheehan já foi adiantado para o LAX
(Aeroporto de Los Angeles) para deixá-lo preparado. Uma limusine espera do lado de fora. Eles
ficam olhando para as paredes e murmuram, dão uma cochilada e balançam a cabeça, sentam-se
novamente e resmungam ainda mais.

Finalmente, Bono organiza os seus pensamentos o suficiente para exigir saber por que eles têm
que ficar aqui sentados esperando para partir.

“Dennis disse que teríamos que sair às nove ou perderíamos o show”, Larry diz amargamente.
“Agora vejam! São nove e meia”.

Todos resmungam e concordam. “E ele ainda se pergunta por que não acreditamos nele”, diz
Bono. Todos grunhem e concordam.

De repente, Edge abre um dos olhos. “Onde está o Dennis?” ele pergunta. “Ele foi para o
aeroporto”. Larry dá de ombros.

Há um velho ditado da Nova Inglaterra que diz: O amanhecer começa em Marblehead¹. Os quatro
membros do U2 se olham estupidamente. Finalmente Bono fala: “Estamos esperando por um
telefonema que nunca acontecerá?” Eles olham um para o outro. Finalmente, Bono levanta e vai
falar com o motorista da limusine. O motorista estava esperando pelo U2 enquanto eles,
acostumados a serem transportados como valiosíssimos pandas, estavam esperando que alguém
viesse pegá-los. Eles agora correm o risco de perder o único vôo que pode levá-los para a Cidade
do México a tempo para seu show de hoje à noite. Eles saltam e correm para o carro.

Eu acho que deveria haver música tocando e acho que teria que ser algo como “Aqui vamos nós,
descendo pela estrada...” ²

___________________________

¹ Originalmente em inglês “Dawn breaks on Marblehead”, essa expressão normalmente se refere ao ato de perceber
de repente algo que era muito óbvio, ou que todo mundo já sabia.

² Trecho da música Theme From The Monkees.

1
No carro, Bono sofre para conseguir que a TV mude os canais, mas ela fica emperrada em um
desses comerciais de auto-ajuda que duram meia hora. Finalmente, exasperado, Bono diz: “Edge,
você é o cientista, consegue fazer isso funcionar?” Edge se inclina e tenta mudar de canal. Cada
vez que ele consegue mudar, soa um click e a TV volta ao anúncio de auto-ajuda. Isso é muito
estranho. Edge se abaixa e mexe nos botões, com a testa tão enrugada de dedicação quanto Louis
Pasteur no seu bico de Bunsen, sem saber, assim como Bono, que Larry está sentado com um
controle remoto sobre a perna, mudando de volta para o canal cada vez que Edge consegue
mudá-lo.

Por fim, acabam desistindo e aceitam o info-comercial. “É uma pena não poder ter TV a cabo em
um carro”, diz Larry. Então o baterista pergunta se alguém já assistiu alguma vez o Canal de
Pesca. “Muita conversa sobre varas de pescar e anzóis e aquele peixe que escapou”.

Bono diz: “Eu prefiro o canal ‘passear de bicicleta, gostar de barcos e viver com a namorada há
doze anos.’”

Larry suspira e revira os olhos. Edge pergunta sobre o que eles estão falando. Larry explica que
Bono está resumindo a descrição da fotinho dele na última reportagem de capa da revista Vogue
sobre o U2. Mais uma vez uma jornalista que teve acesso a toda a banda foi para casa e escreveu
uma história repleta de Bono, com algumas poucas, sábias parábolas sobre Edge e dedicou a
Adam e Larry aproximadamente o mesmo número de palavras que aparecem na parte de trás de
uma figurinha de chiclete. Bono diz eufemisticamente: “Ela pintou Larry com traços ousados”.

Adam sorri e diz para o mal-humorado Mullen: “Pelo menos não foi você que ela chamou:
‘bonitão de um jeito feio’.”

No aeroporto, Dennis Sheehan cumprimenta o U2 em frente a um esquadrão de agentes de


segurança, do tipo que bate continência, não visto desde que Ferdinand Marcos atrelou sua
carruagem para levar uma estrela. O U2 passa apressadamente através de detectores de metal,
sobe por um elevador particular, para a sala da primeira classe e dali para uma espécie de super
exclusiva sala de espera privada, conhecida apenas por superstars ou espiões torturados. Lá eles
voltam a se reunir com o empresário deles (que nestas circunstâncias é referido simplesmente
como “M” ¹).

Não é uma longa espera - todos já embarcaram naquele avião para o México e ele está pronto
para decolar. A mulher encarregada de transportar celebridades pelo LAX aparece para escoltar
a banda até a cabine da primeira classe. Ela diz para Bono que foi até a Flórida para ver o
primeiro show e que ficou em pé em cima da cadeira no show de Los Angeles: “Eu acho que se
poderia dizer que sou uma fã”. No elevador, Bono percebe que deixou para trás os seus óculos
“the fly”. A mulher saca o seu walkie-talkie e põe o seu esquadrão de seguranças para vasculhar a
sala de espera, o banheiro, o lounge. Agora, tenha em mente que Bono perde tudo. À uma hora
atrás, Edge pegou o livro que Bono deixou no carro e, agora mesmo, McGuinness encontrou o
mesmo livro abandonado numa mesa no andar de cima. Então quando Bono diz que perdeu os
óculos: “Isso é inacreditável!”, seus companheiros de banda o corrigem.
___________________________
¹ M de manager.

2
“Não, Bono”, diz Larry, “não é inacreditável”.

Adam alega: “Não é incomum”.

Edge acrescenta: “Não é raro”.

Larry ressalta: “Não é nada surpreendente”.

O U2 é levado à primeira classe e Bono senta no corredor do avião, lamentando seus óculos “the
fly” perdidos. Há um burburinho entre o piloto e a tripulação da cabine, a porta do avião se abre
e a moça do aeroporto que adora o U2 entra correndo porta adentro, com os óculos de Bono na
mão erguida. Ele beija a mão dela e ela diz: “Eu te falei sobre Santo Antônio!”¹

Durante o vôo, McGuinness explica que esse não é apenas o primeiro show do U2 no México, é o
primeiro show deles em um país do Terceiro Mundo. O promotor local é um americano ligado ao
gigante do entretenimento MCA/Winterland que está tentando abrir a Cidade do México para
shows de rock regularmente. Ele fez certa pressão em Paul para que se realizassem esses shows.
Foi negada ao U2 uma apresentação em estádio ao ar livre - as autoridades mexicanas estavam
com medo. Em vez disso, eles irão tocar duas noites numa arena coberta.

Dormimos durante toda a viagem. Quando meu relógio diz que está quase na hora de aterrisar eu
presumo que algo está errado: não há subúrbios nem bairros de periferia, não há qualquer tipo
de vida no espaço árido abaixo de nós. Creio que devemos estar pelo menos a uma hora de
distância do nosso destino. Então passamos sobre uma abrupta erupção de altas montanhas,
atravessamos as nuvens, avistamos uma fumaça sagrada, e pudemos ver na bacia entre as
montanhas uma cratera aparentemente sem fim, preenchida com a maior área urbana que eu já
vi. E nós voamos sobre ela e voamos sobre ela e voamos sobre ela; parece não ter fim. Mesmo as
maiores metrópoles - Nova Iorque, Londres, Hong Kong - cobrem apenas uma pequena área
quando vistas de cima. Você sobrevoa cidades satélites e áreas semi-desenvolvidas por um
tempo, antes que a grande cidade apareça. Não este lugar! A Cidade do México é,
populacionalmente, a maior do mundo. Circundada por montanhas acidentadas, ela não tem
periferia. Você está num deserto e de repente você está na área urbana e a área urbana parece
não ter fim.

Parte dessa vastidão é resultado da falta de arranha-céus. É como se Deus tivesse alinhado Nova
York, Chicago, Houston e Toronto, como se tivesse cortado todos os edifícios altos até a altura de
três ou quatro andares e então os tivesse arremessado através do horizonte. A população aqui é
estimada em vinte milhões, mas ninguém finge ter uma ideia real; é incontável. Além de ser a
capital do México, é um imã para os refugiados que fogem de dificuldades políticas e econômicas
de toda a América Latina. A Cidade do México é o centro cultural de todas as nações entre o
Texas e o Polo Sul.

A cena no aeroporto é como o filme A Hard Day's Night, dos Beatles. Há fãs espremidos contra os
vidros do terminal, com vista para a pista, e umas vinte e cinco ou trinta garotas gritando - filhas
___________________________

¹ O santo das coisas extraviadas.

3
dos figurões que mexeram os pauzinhos - berrando pelo U2 na pista. A gritaria aumenta quando
o U2 desce as escadas para a pista. Há duas limusines que parecem ser de segunda-mão
esperando. Adam e Larry, como é seu hábito, vão direto para os carros, enquanto Edge e Bono,
como é seu costume, vão até lá, posam para fotos e dão autógrafos enquanto os abençoados
desmaiam eufóricos pela proximidade. (Larry uma vez acusou Bono de dar autógrafos para obter
um impulso ao seu ego, o que irritou Bono profundamente. “Sim, eu realmente aprecio dar
autógrafos e posar para fotos depois de viajar por sete horas”, Bono respondeu rispidamente. Ele
me disse: “Eu simplesmente acho impossível ignorar as pessoas que estavam esperando por você
e depois passar por elas numa limusine”.)

Ei, nenhum passaporte verificado ou bagagem examinada por aqui! Uma guarda de honra de
policiais locais em motocicletas antigas se aproxima para escoltar as duas limusines
exageradamente grandes pela pista e para fora do aeroporto. O primeiro carro arranca e o
segundo o segue - apesar de Paul McGuinness ter um pé dentro do carro e o outro fora,
pendurado na porta para sobreviver e saltando ao lado do carro enquanto Sheila Roche, do
Principle, grita para o motorista parar. Os carros são muito baixos e pesados para passarem
pelas lombadas que surgem a cada cem metros, de modo que, em cada lombada os policiais das
motos descem, sopram seus apitos, param o tráfego em cada direção e esperam enquanto as
limusines tortuosamente viram vinte e dois graus e atravessam calmamente os obstáculos
asfálticos, uma roda de cada vez. Eu me atreveria a dizer que poderíamos ir para onde quer que
estivéssemos indo mais rápido do que isso, entretanto isso privaria aqueles de nós, no segundo
carro, da diversão de assistir a tampa do porta-malas do primeiro carro abrir e fechar enquanto
várias malas de viagem do U2 saltam no ar como felizes appaloosas¹. McGuinness suspira e diz:
“Bem-vindos ao Terceiro Mundo”.

O tempo exige que o U2 arraste o traseiro direto para o Palácio dos Esportes, e para o show
dessa noite. Os carros abrem caminho através dos animados fãs, passam por um portão
guardado por muitos seguranças alertas, entram por uma porta de uma garagem que é aberta e
fechada rapidamente e vomitam o U2 no ventre empoeirado da raquítica e antiga arena. Pelo
lado de fora, o lugar parece uma enorme carapaça de tatu. Por dentro é sujo, feio e enferrujado. A
plateia no chão está amontoada em cadeiras baratas de plástico vermelho, do tipo que você
encontra numa apresentação do CPM (Círculo de Pais e Mestres) numa escola pobre... B.A.D., a
banda do show de abertura do U2, está sacudindo o lugar quando chegamos. Os corredores
estreitos estão cheios de bitucas de cigarro, embalagens de sorvete, e chicletes. Vendedores
caminham no meio da multidão gritando “sorvete” e “refrigerante” em espanhol, por cima da
música.

Eu vagueio pelas seções superiores do recinto enquanto B.P., esplendoroso em sua capa e chapéu
de Zorro, atiça o público entusiasmado com “Be My Baby”. Os assentos que sobem pelas laterais
da arena são velhos e balançam. Os banheiros são sujos. Parece ser um lugar onde alguém pode
se machucar. Eu volto para o piso de baixo, para um assento não muito longe da mesa de som,
bem na hora do U2 entrar. Quando as luzes se apagam, o público, já selvagemente estimulado,
___________________________

¹ Appaloosa é uma raça americana de cavalo, conhecida principalmente pelo padrão de sua pelagem, que por vezes
lhe confere o apelido de "cavalo-pintado".

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sobe em cima das cadeiras. Eu também subo. Lembro-me desse tipo de energia intensa e
sobrecarregada dos dias do punk e preparo minha cara de mau e os meus cotovelos, que
apontam para fora, preparados para duas horas de empurrões, insultos e olhares tortos.

E deixe-me lhes dizer uma coisa - eu estou cheio dessas bobagens sobre gringos. O U2 surge e
enquanto o nível de energia é tão alto e selvagem quanto em um dos primeiros shows do Clash, a
gentileza e a generosidade aberta do público me lembra o auge de Joni Mitchell. É realmente algo
para sentir. O pulso dos fãs deve estar triplicado, eles estão freneticamente entusiasmados -
mesmo assim eles são tão cuidadosos e atenciosos uns com os outros que eu me sinto o maior
cínico desde que duvidei de Thomas. Eu deveria ter vergonha de mim mesmo. Ainda bem que
encontrei a equipe da cozinha no backstage enchendo as garrafas de Evian com água local ou eu
teria julgado mal a natureza humana completamente.

Zapeando pelas telas da Zoo TV, Bono encontra uma partida de futebol e anuncia o placar:
“México dois, Costa Rica um!” A galera explode e começa a cantar uma música de torcida:
“México! México! México!” Quando Larry se levanta e tira a camisa, ele ganha muitos aplausos.
Quando ele veste a camisa da seleção do México os aplausos se transformam numa ovação.

No palco B, Bono está tão emocionado que começa a cantar “La Bamba” enquanto Edge o
acompanha e Larry e Adam simplesmente olham para ele. Quando o rosto de Lou Reed aparece
no telão durante “Satellite of Love”, Bono e Edge olham para ele como adoradores na estrada
para Damasco. Eu adoro este filme do Reed porque mostra seu rosto real, não jovem e bastante
gentil. Lou se esforça tanto para projetar uma imagem de homem durão que ver o seu lado
privado exibido em público é um prazer.

“Bob Marley era do México, certo?” Bono grita enquanto o público aplaude. “Bem, ele poderia ter
sido”. Bono toca “Redemption Song” enquanto milhares de isqueiros se acendem e apagam
juntos em perfeita sincronia. Então, durante “Sunday Bloody Sunday”, uma grande coruja voa
pela arena e pousa nas luzes de uma viga, olhando para baixo, para o espetáculo, como o próprio
Espírito Santo. Eu ouço vários membros maldosos da equipe fazendo planos para pegar um rato
amanhã e atá-lo ao chapéu do B.P. logo antes de ele entrar para ser DJ. Eles querem ver se a
coruja vai levá-lo embora.

Depois do show Bono está encantado. “Eu me sentia completamente vazio antes de ir para lá”, ele
diz, “mas é uma coisa engraçada. Aquele público me envolveu e nós viajamos na energia deles
como se estivéssemos surfando em uma onda. Disseram-me que os shows aqui irão melhorar a
cada noite, mas eu não vejo como isso pode ser possível”.

A nova personagem roqueira de Bono se estende ao encontro pós-show onde ele veste um
horrível casaco de smoking de pelos para se misturar com os influentes do show-biz que estão
esperando para comer batatas fritas e apertar sua mão. Esta noite, há muitos convidados.
Estrelas dos Estados Unidos, que voaram para o final da turnê de 1992 e para a primeira visita
do U2 ao México. Esperando na ante-sala está Chris Blackwell, o fundador da Island Records, o
selo do U2. Blackwell é um personagem lendário na indústria da música, um britânico loiro que
se apaixonou pela música jamaicana e criou uma gravadora inglesa para o reggae, trouxe Bob
Marley para o mundo e no final dos anos 60 e 70 ergueu um império para além do reggae com
artistas como Traffic, Free e CatStevens. Também nessa noite estão Frank Barsalona, o agente
5
americano do U2 e sua parceira Barbara Skydel. E aqui vem Rick Dobbis, presidente da PLG, a
nova companhia multi selos, formada pela Polygram, a multinacional que comprou a Island de
Blackwell há alguns anos atrás. Bem, há suficiente poder do mundo da música nesta sala para
ressuscitar Milli Vanilli e transformar o Kajagoogoo no próximo Led Zeppelin, caso esse poder
fosse corrompido pelo mal.

Essas figuras têm todos os motivos para fazer fila para acender o pequeno cigarro de Bono esta
noite. Com mais um show para acontecer antes do descanso de Natal, as estatísticas do U2 para
os primeiros dez meses de 1992 são assim: mais de 10 milhões de cópias do Achtung Baby
vendidas, 5 singles no topo, 2,9 milhões de ingressos vendidos para a Zoo TV tour (106 shows
em 84 cidades em 12 países), 87.894 km viajados até agora. Só as milhas do programa
passageiro frequente são suficientes para pagar por essa expedição. Após os indispensáveis
apertos de mão e os gracejos com os poderosos e dignatários locais, Bono e Edge se retitam para
ir lá fora na cerca onde os fãs estão esperando e dar autógrafos e tirarem fotos com eles. Então,
de volta para a limusine e para a noite.

A gente faz um pit-stop de vinte minutos antes de nos reagruparmos para uma noite na cidade. O
Hotel Nikko é elegante e alto, com vistas panorâmicas da cidade iluminada dos andares
superiores, uma teia de luzes girando em todas as direções. Existe um mundo completamente
secreto pela qual os famosos e poderosos viajam, delimitado pelas salas especiais e escoltas em
aeroportos e ainda mais pelos andares privativos de luxuosos hotéis. Num lugar como esse há
elevadores especiais que levam os privilegiados para à sua privacidade nos andares restritos
com seus próprios balcões de atendimento, seus próprios saguões, seus próprios mordomos -
para que os famosos e poderosos não tenham que se misturar com os que são só meramente
ricos.

Não tenho tempo para divagar sobre tais observações! Preciso escovar os dentes, trocar de
camisa e voltar lá para baixo sem ao menos quebrar o lacre da tampa da minha privada. Eu pego
a minha chave com o balconista na recepção secreta e encontro o meu quarto onde compartilho
uma emotiva reunião com a minha bagagem. O melhor de viajar com grandes personagens como
o U2 é que a sua bagagem desaparece do seu quarto de hotel em um país e reaparece em seu
quarto no próximo, sem que você a veja se mexer. O ruim é que algumas vezes, como me
aconteceu essa semana, minha mala foi pega e despachada junto com as bagagens do Principle e
da equipe, que veio para o México dois dias antes da banda, com quem eu tinha ficado junto.
Quando eu voltei para o meu quarto no Sunset Marquis me encontrei com nada além da camisa
que eu vestia. Eu caminhei até a única loja a qual se podia chegar caminhando e que estava
aberta a noite, uma loja de artigos esportivos especializada em agasalhos com imagens do
Charles Barkley. Estou feliz por ter de volta as minhas verdadeiras roupas; estou cansado de
bater nas mãos de garotos do basquete.

De volta lá embaixo, todo mundo se amontoa em carros e vans para irmos a uma área popular
que os Principles já tinham avistado. Nosso motorista arranca com a porta de trás aberta e um
membro da equipe com metade do corpo para fora, gritando.

“Eu estou muito impressionado com a Cidade do México, devo dizer”, declara Edge enquanto
viajamos, e ele disse uma grande verdade. Você sempre ouve sobre a terrível pobreza, a

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espantosa poluição e a feiura desse lugar - e sem dúvida há muito de tudo isso nessa eterna
(quilométrica) cidade. Mas, ninguém fala sobre as partes da cidade como aquelas que estamos
passando agora, que se parecem com o que Washington D.C. seria se roubassem uns dez ou vinte
dos melhores prédios de Roma. Há belos parques e avenidas separando grandiosos edifícios e
monumentos de pedras brancas. Há fontes e estátuas iluminadas e praças urbanas imaculadas.
Aqui se aprecia também uma grande influência do estilo mouro na arquitetura, sugerem
minaretes. Eu não acredito que estamos na América do Norte.

Suponho que a maioria dos relatos sobre o aspecto melancólico da Cidade do México vem de
turistas que vivem em comunhão com a natureza nos desertos e no litoral e então dirigem até
aqui por quilômetros através das favelas ou que apenas vêem a área em redor do aeroporto no
caminho para os resorts. Ou talvez seja apenas o preconceito do norte europeu contra a cultura
espanhola, transmitido do Velho Mundo para o Novo. Eu não sei. Só sei que a Cidade do México é
linda.

Acabamos sendo depositados num luxuoso restaurante/discoteca de vários andares, no que


parece ser a parte da cidade onde as coisas acontecem. Adam, Bono, Edge e Larry pegam uma
mesa juntos e sentam-se rindo e conversam por algumas horas. McGuinness, na mesa ao lado,
salienta que uma das coisas mais incomuns sobre o U2 é que os quatro ainda preferem a
companhia um do outro ao de qualquer outra pessoa, e depois de tantos anos juntos ainda não
lhes falta coisas para filosofar, rir ou encher o saco um do outro.

O U2 é colocado em frente a uma elaborada (e ouso dizer, intelectual) iluminada cena do


Nascimento. Preenchendo o quadro em tamanho natural, há esculturas enormes da Sagrada
Família acompanhada pelos usuais anjos e reis magos, mas acrescida aqui por um cowboy entre
os pastores, um elefante entre as ovelhas, e um grotesco demônio voador com asas de morcego
mostrando a língua para o menino Jesus. Agora, não seria difícil descobrir que quando William
Butler Yeats escreveu “A Segunda Vinda” ele não estava esculpindo uma grande metáfora
profética para o século XX, mas estava simplesmente bebendo em um restaurante mexicano
como este e descrevendo uma escultura como aquela? Improvável? Talvez, mas provavelmente
digno de valor para obter uma graduação avançada em algumas dessas pequenas universidades.
Os quatro membros do U2 sentam-se gargalhando, sem notar o quadro vivo em frente ao qual
são colocados. Vou lhes dizer, entretanto, que se o centro não for firme, aquele demônio voador,
no seu frágil fio, vai aterrisar exatamente na cabeça de Adam. Ele vai erguer-se do chão
perguntando: “Que tipo de besta selvagem é essa?”

O restante do Principle e da equipe da Zoo se espalha pelos salões, alguns comendo, outros
dançando, a maioria bebendo. Sheila Roche, uma imigrante ilegal irlandesa que trabalha para
Ellen Darst em Nova York, está triste porque Ellen lhe entregou um pedido de demissão. A
mulher que guiou o U2 através das turnês em clubes e entrevistas de rádio quando eles vieram
pela primeira vez nos Estados Unidos, que ensinou Paul McGuinness sobre o negócio da música
dos EUA e que pelos últimos oito anos tem estado encarregada da operação americana do
Principle, se cansou da estrada e aceitou um trabalho com a Elektra Records. Ela adiou a decisão
até o final da turnê americana, mas agora Ellen está dizendo adeus e Sheila, que se mudou de
Dublin para Nova York para trabalhar com Ellen, vai sentir falta dela. Keryn Kaplan, a segunda no
comando abaixo de Ellen por muito tempo, tomará o seu lugar. Um dos legados de Ellen é o

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número de mulheres no poder. “No escritório de Nova York temos apenas um homem”, Sheila
sorri. “O recepcionista”.

Apesar de todo o crédito dado ao U2 e a McGuinness por empregarem tantas mulheres, no


entanto, ouvi a opinião de uma minoria que diz que, enquanto todas as mulheres desempenham
papéis de apoio, funções delicadas, todas as decisões criativas são tomadas por homens. O
Principle mantém valores patriarcais sob o brilho de ser progressista e não-sexista. É difícil
resolver isso; é muita coisa para os olhos do espectador. Eu não vou negar que muitas das
mulheres ao redor do U2 são gentis, pessoas amáveis, mas o U2 também é. Há pessoas no mundo
da música que dirão a você que Ellen Darst e/ou Anne-Louise Kelly são os verdadeiros cérebros
dessa roupa e McGuinness costura a bainha. Sem dúvida há outras pessoas que assumem que
Paul, o cara, deve fazer todo o trabalho intelectual e as mulheres no comando são apenas
secretárias glorificadas. As pessoas vêem o que querem ver. Se o discurso contra as mulheres do
Principle é porque elas são muito gentis e amáveis, talvez elas tenham feito mais progresso ao
feminizar as percepções do U2 do que poderiam ter conseguido se tivessem adotado os
chamados valores masculinos.

Suzanne Doyle, a assistente do agente da turnê, surge indignada perguntando por Larry. Parece
que ele repreendeu um membro da equipe por algo que não foi, diz Suzanne, culpa do cara e ela
quer que ele se desculpe. É uma hierarquia incomum essa que o U2 criou, onde as pessoas que
trabalham para eles têm o direito de lhes dizer que eles estão se enchendo de vaidade e trazê-los
de volta a terra quando as suas cabeças grandes começam a interferir nas operações ou na
moral. Sempre me surpreendo que, longe de me tratarem como o garoto novo na escola, os
membros da equipe que eu mal conheci me cumprimentam pelo nome, me dão tapinhas nas
costas e me convidam para me juntar a eles quando vão à procura de diversão. Esse tipo de
generosidade é raro em turnês de rock.

“Isso vem de cima para baixo”, diz Sheila. "Bono me disse que se algum figurão alguma vez vier
ao backstage e me incomodar, posso mandá-lo se foder. Você tem idéia do tipo de alívio que isso
é? Algumas pessoas (Los Angeles é a pior quanto a isso) são tão grosseiras. São tão exigentes e
ingratas. Elas ganham ingressos de cortesia e se elas vêem alguém com ingressos de cortesia
melhores que os delas, ficarão chateadas conosco. O prestígio delas é determinado por quão bons
são os lugares grátis que elas têm!”

No quarto ao lado, Joe O'Herlihy, o técnico de som da banda, se agita com a música disco em seus
ouvidos. Joe está com o U2 desde 1979, antes de eles terem um contrato com uma gravadora.
Descontraído, simpático e dono de bigodes que fazem as barbas do ZZ Top parecem babadores
de bebês, Joe começa a contar a história de como ele fez para chegar até Dublin para o
nascimento do seu quarto filho. Joe perdeu a chegada dos seus três primeiros filhos anos antes,
porque ele sempre estava na estrada com bandas de rock. Ele prometeu à esposa que estaria ao
lado dela quando este bebê nascesse. O U2 estava filmando um show em Virgínia para o Rattle
and Hum quando chegou a notícia de que sua esposa na Irlanda havia entrado em trabalho de
parto. Joe mudou o rumo, mas o U2 estava preparado para uma evacuação repentina. Joe foi
levado às pressas para o aeroporto e voou para Nova York. Ele ligou do JFK e ouviu pelo telefone:
“Está nascendo!” Ele correu para o Concorde e passou as quatro horas do vôo supersônico
caminhando pelos corredores, olhando o indicador de velocidade e rezando: “Mais rápido, mais

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rápido, mais rápido!” Pousando em Londres, ele correu para outro telefone. “Ela está no hospital!
Depressa, Joe!” Ele correu para o portão de embarque para a Irlanda e pegou o próximo avião
para Dublin, correu para o hospital, recebeu um roupão sanitário para colocar por cima das suas
roupas fedorentas, invadiu a sala de parto, empurrou a atendente para o lado e disse à esposa
que ele estava lá. Dez minutos mais tarde, ele estava segurando sua nova filha nos braços,
chorando e chorando. Dois dias depois, ele estava atrás de sua mesa de som em Temple, Arizona,
mixando o U2.

“Essa foi a primeira vez em toda a turnê que a banda teve a chance de se sentar e contar uns aos
outros suas histórias de estrada”, Bono determina quando a festa começa a acabar. “Nós damos
um ao outro espaço na estrada e, quando voltamos para Dublin não nos veremos muito”.

“A única chance que temos de fazer isso é quando nós quatro viajamos numas pequenas férias
sem ninguém”, Adam concorda. “Então retornamos ao usual: Edge faz todos os planos, Larry
cuida do dinheiro e Bono é o relações-públicas - ele interage com as outras pessoas”. Eu não
pergunto, mas supomho que o trabalho de Adam é trazer as garotas.

Adam não é do tipo que deixa um bar enquanto as bebidas ainda estão rolando, mas às 3:40 da
manhã os outros três do U2 estão prontos para encerrar a noite. Quando eles saem, a rua está
cheia de garotos gritando, abanando folhas para ser autografadas, se empurrando em direção à
banda e batendo na limusine. Bono entra no carro primeiro e o motorista dá a partida,
espalhando os fãs e deixando Larry e Edge para trás, no meio da multidão. Bono grita para o
motorista reduzir a velocidade e voltar. Edge e Larry caem no carro com os fãs puxando-os.

Larry está limpando a bochecha.

Bono diz, “Alguém te beijou, Larry?” “Sim”. Larry está irritado. A garotada lá fora está gritando:
“Eu te amo!” Larry repete sarcasticamente e acrescenta: “Vocês nem me conhecem”.

Bono diz para Larry relaxar. Larry diz que amor é uma palavra poderosa. “Você é tão pedante”.
Bono sorri. Bono começa a baixar o vidro para apertar a mão de alguns dos garotos.

“Não, Bono, não!” Comanda Edge, como se falasse a um cão. “Alguém pode se machucar!”

Eu reconheço toda essa cena relembrando uma viagem com o U2 em uma turnê pelo sul da
França em 1984. Larry subiu no ônibus, incomodado porque algumas auto-intituladas bruxas
entre a garotada lá fora, haviam feito uma boneca vodu dele, o que ele não achou nada
engraçado. Bono estava acenando pela janela para os fãs franceses do U2 enquanto o ônibus se
afastava e continuou acenando para os pedestres confusos e mesas de restaurante nas calçadas
enquanto viajávamos lentamente através de Toulouse. Eu me lembro do Edge repreendendo-o:
“Bono! Pare de acenar para espectadores inocentes!” Tudo no mundo do U2 mudou desde então,
exceto a relação entre eles.

Outra coisa que provavelmente nunca mudará é o motorista mexicano que pensa que é Mario
Andretti. Enquanto a equipe do U2 está abrindo o porta-malas para colocar a bagagem de mão da

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banda lá dentro, nosso motorista novamente dá um golpe no acelerador, arrancando com o
porta-malas aberto e a equipe da Zoo TV agitando as malas, correndo atrás do carro rua abaixo.

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16. Rádio Fronteira
a arena se incendeia / as filhas dos dignitários são apresentadas à banda / um
passeio pelo pretenso bairro da luz vermelha / quem são os novos rolling
stones com comentários do sr. jagger / o u2 em meio aos judeus

COMO EM TODAS as cidades há uma multidão de garotos esperando por horas fora do hotel
onde está o U2. Como em todas as cidades, Bono e Edge se aproximam, fazem pose para as
fotos e dão autógrafos para eles, antes de sair para o local do show. Eu tive uma tarde cultural,
visitando os museus incas/aztecas/maias com a “em-breve-de-saída” Ellen Darst e Morleigh
Steinberg, uma dançarina/coreógrafa que preencheu a vaga de dançarina do ventre que ficou
aberta quando a Zoo Tour passou a ser em espaço aberto. Uma californiana que viaja pelo
mundo com a companhia de dança Iso, Morleigh conheceu o U2 em Los Angeles no final dos
anos 80. Eles a convenceram a fazer os shows de verão e ela acabou dando para a banda
sugestões de como se mover no palco para conseguir transmitir suas intenções até as fileiras
do fundo. Muito mais auto-suficiente e independente que a maioria do pessoal da Zoo,
Morleigh tem reservas reais quanto a colocar a sua carreira em espera para se juntar à turnê
europeia na próxima primavera e verão. Esta noite poderá ser a sua última dança do ventre.

Todos os membros da banda estão curtindo o México e aguardando ansiosos por outro show
como o da noite passada. Jantando com os membros da equipe, nos bastidores, Adam diz:
“Tem sido tão bom, faz você pensar na possibilidade de fazer uma turnê pela América Latina”.

O U2 surge no palco voando alto esta noite. Eles iniciam “Zoo Station” com todas as bandeiras
tremulando e Bono deslizando através do palco como o sobrinho pálido de James Brown. Eu
estou de pé com o B.P. Fallon ao lado do palco quando vejo o que parece ser um grande novo
efeito especial na audiência - duas linhas de uma chama vermelha convergindo para a
escuridão no fundo do recinto. B.P. agarra meu braço e aponta freneticamente enquanto me
dou conta que aquilo não é nenhum efeito especial! Aquilo é um incêndio! Os assentos estão
muito perto uns dos outros e eles não são retardadores de fogo. A faixa WELCOME U2 que
alguém fez com um lençol também não é. O lençol balançou no ar até a chama do isqueiro que
um garoto estava segurando desatentamente embaixo dele, e agora o lençol está pegando
fogo, partindo-se em fragmentos incendiados que flutuam pela multidão e caem sobre os
assentos e - oh, inferno - os assentos estão começando a pegar fogo.

Eu olho para a banda - os três da frente estão absortos, arrebatados pela própria música.
Apenas Larry, tocando sua bateria, está olhando com uma sombria concentração para o fogo
que está se espalhando e as pessoas entrando em pânico na parte de trás do recinto. Uma
figura passa voando por mim, correndo a toda velocidade do fundo do palco em direção a
multidão. É Jerry Mele, chefe de segurança do U2. Ele voa pelo salão cheio de gente, pelo meio
da apertada multidão de garotos dançando as músicas da banda e desaparece sob as
arquibancadas da parte de trás. Eu nunca vi alguém se mover tão rápido, mas o fogo se movia
ainda mais rápido. Edge acaba de ver, ele observa atentamente. Pessoas da parte de trás da
arena estão se empurrando e correndo para as saídas. De repente, Jerry está entre eles - ele
deve ter subido as escadas pelo lado de fora. Ele, com uma das mãos, orienta os assustados fãs

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para filas organizadas enquanto que com a outra mão bate com algo - um casaco ou toalha -
nas chamas e a prende com seus pés. Ajudantes locais e seguranças estão seguindo suas
ordens, fazendo o mesmo. Todos os focos de fogo são apagados antes de a música acabar.
Quando ele tem certeza que está tudo seguro, Jerry direciona os abalados fãs de volta para os
seus assentos enegrecidos. Bono está com as emoções a mil, absorto, enquanto Adam está de
pé perto do amplificador do seu baixo, sem prestar atenção a qualquer coisa para além dos
holofotes.

Larry, entretanto, viu tudo. Quando faz uma pausa, o baterista diz: “Eu pensei: ‘Agora é isso’.
Eu imaginei que o lugar inteiro se incendiaria”. Jerry Mele foi tão veloz e colocou as coisas sob
controle tão rápido que o fogo se transformou em nada mais do que um "e por falar nisso" no
final do show. As pessoas nos melhores lugares estavam prestando atenção à banda e não
notaram. Mas, se Jerry não estivesse lá, a grande viagem do U2 à Cidade do México poderia ter
se transformado em uma tragédia. É engraçado que os astros do rock são rotineiramente
chamados de heróis, enquanto personagens como Jerry Mele apenas se encarregam de abrir a
porta para eles.

Depois do show, o U2 tinha mesas reservadas para jantar no mesmo restaurante que eles
assombraram na noite passada. Dessa vez quando eles chegam - um pouco depois da 1 da
manhã - a banda e seus convidados têm todos os três andares do local para eles, exceto para
algumas poucas crianças filhos de VIPs esperando no bar para serem apresentados ao U2.
Bono assumiu o comando de uma mesa com a banda, os agentes, Blackwell, e outros figurões
quando McGuinness aparece e diz com certa seriedade e meio brincando: “Vocês estão prestes
a conhecer um antigo costume do Terceiro Mundo - as filhas dos chefes de polícia estão aqui.
Elas querem conhecê-los e elas ganharão autógrafos”.

As filhas dos chefes (ou talvez seja uma filha e uma amiga da filha - ninguém sabe ao certo)
são adoráveis. Bono tem falado em ir conhecer a parte da cidade que os turistas não vêem, e
quando conseguem chamar a atenção dele e apontá-lo para as filhas dos chefes, ele
inocentemente pergunta por detalhes sobre o bairro da luz vermelha. Quais os melhores
lugares para conhecer por lá? Até que horas o lugar fica agitado?

Bono não tem nenhuma intenção pecaminosa, mas isso pode não ter ficado aparente na
tradução. Edge, percebendo que uma pessoa não se apresenta às filhas de policiais em países
latinos perguntando sobre os bordéis, leva as duas jovens para outra mesa e as encanta por
algum tempo. Finalmente elas dizem boa noite e ele volta para o lado de Bono, dizendo: “Elas
me disseram que se alguma vez eu for preso no México, não há problema!”

Durante a refeição, outros jovens com bons contatos são escoltados para conhecer a banda e
então enviados embora de novo. O cara no comando - eu imagino que era o dono do
restaurante - vem frequentemente relembrar o U2 que, em honra a eles, ele fechou todo o seu
clube nessa noite, renunciando todo o dinheiro que faria para que o U2 pudesse comer e
beber sem ser perturbado. Depois da quarta ou quinta vez que ele faz esse anúncio, Larry,
preocupado, inclina-se para Bono e diz: “Eu me pergunto: quanto dinheiro ele está perdendo,
fechando o restaurante completamente?”

2
“É tudo balela”, Bono cochicha de volta. “Por lei, o local tem que fechar por volta da 1 hora nos
domingos à noite”. Larry ri às gargalhadas.

Larry conversa um pouco durante o jantar sobre os seus planos para o feriado de Natal.
Perguntaram-lhe se estaria interessado em fazer um teste para o papel de Pete Best, o
baterista deposto dos Beatles, em um filme sobre os dias dos Fab Four em Hamburgo, mas ele
teve que recusar porque entrava em conflito com a agenda da banda.

Edge me diz para experimentar umas deliciosas barras de nozes e acaba conseguindo que eu
coma um punhado de amigáveis gafanhotos.

Larry é vegetariano; ele me pede para provar os nachos e ver se há alguma carne neles. Eu não
mastigo nada nos nachos além de queijo e feijões, então digo para ele que está tudo limpo.
Larry dá uma mordida, engole e diz: “Frango! É a primeira vez que eu como frango em quatro
anos e a culpa é sua! Nunca esquecerei disso!”

“O que você acha que eu sou, o degustador da comida real?” Eu digo. “Não havia nenhum
frango no pedaço que eu comi”.

“Viu só, Larry”, diz Adam, “você deixou um estranho provar a comida para você. Eu não estou
sendo ciumento, mas se precisar de alguém para comer a comida do seu prato, você sempre
deveria escolher o seu baixista”.

Bono tem um grande problema com o iminente retorno a Dublin. Sua esposa não o quer de
volta. Bono admite que, depois de oito meses fora, a vida em turnê parece completamente
normal para ele. Se ele acha que está conseguindo tirar isso do seu sistema, não está
funcionando. “Por causa disso, minha adorável esposa sugeriu que eu não voltasse direto para
casa”.

“Adam vai ficar num hotel por uma semana”, diz McGuinness.

“Eu também”. Bono confirma com a cabeça.

“Em Dublin?”

“Sim”, Bono admite. “Eu não quero, mas a Ali diz que é melhor. Alguns dias depois de
voltarmos para Dublin teremos que estar num especial de TV. Só vai confundir as crianças se
eu for para casa e começar a trabalhar de novo de imediato, e ela diz que as crianças ficarão
magoadas se falarem comigo e eu não as ouvir. Então eu acho que vou passar a minha
primeira semana em casa num hotel”.

Eu sugiro que Bono vá para casa e fique no porão por uma semana. Seus filhos poderiam ir até
o topo das escadas e jogar comida para ele. Mas, claro, eles poderão continuar fazendo isso
depois que ele sair em turnê novamente, o que seria patético.

“É engraçado”, diz Bono. “Eu realmente não sinto vontade de parar”.

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“Bem”, eu digo, “talvez estes sejam seus cinco anos para trabalhar sem parar, fazer tudo o que
você tem para fazer, então parar e se tornar um pastor ou algo assim”.

"Eu já sou um pastor, Bill”, ele diz, sorrindo beatificamente. “Você não sabia?” Ele estende os
braços para os seus discípulos, apóstolos e cambistas reunidos, e diz: "E estas são as minhas
ovelhas”.

Alguns membros da equipe dizem béééééé.

Depois de uma ótima refeição e muitos apertos de mão e mais alguns lembretes por parte do
chefe que fechou o restaurante para o U2 essa noite, a banda se dirige para o outro lado da
cidade para onde nos disseram que fica o bairro da luz vermelha. Sei lá. O lugar onde nos
despejam é barulhento e divertido e há muitos bares e mulheres do tipo que se vê em bares,
mas eu não acho que seja realmente um bairro da luz vermelha. Paul McGuinness
caminha sem rumo absorvendo a atmosfera e puxando periodicamente uma máscara de
oxigênio portátil da qual ele inala profundamente. Quase como uma figura do Blue Velvet ele
pára de fazê-lo, também! Nos acomodamos num bar mariachi onde muitos do Principle
dançam (alguns dizem que nunca tinham visto Larry Mullen dançar antes - eu acho que o
descreveria como uma mistura do jovem Fred Astaire e do velho Jerry Lewis). Enquanto todos
bebem, Bono desaparece por cerca de meia hora e volta alegando que encontrou um
verdadeiro bordel. Tenho certeza que é uma mentira inventada para me torturar.

Enquanto a noite ameaça transformar-se em manhã, Adam e eu vagueamos pela Plaza


Garibaldi. Há bares montados e vendendo bebidas ao ar livre, bandas de mariachis errantes
tocando o que pedem, e libertinos tropeçando para fora de cada porta. Adam, que tem bebido
o suficiente para que qualquer coisa que ele diga, tenha que ser engolida com um pouco de sal
(e muitos copos de tequila), passeia pela praça e diz - não que alguém pense sobre si mesmo
nestes termos - que o U2 agora está na posição que os Stones preencheram em 1972.

Eu posso sinceramente dizer a ele que tenho pensado exatamente a mesma coisa. A turnê de
1972 do Rolling Stones foi - sempre parecerá para mim e para todos os da minha idade - a
melhor turnê de rock da história. Os anos 60 tinham acabado, os Beatles se separado, Bob
Dylan tinha feito de tudo exceto se aposentar, Hendrix estava morto - e os Stones tinham
acabado de se superar com uma ótima seqüência: Begger's Banquet, Let It Bleed, Sticky Fingers
e com a monumental, de partir a cabeça, Exile on Main Street. Quando eles saíram em sua
primeira turnê depois de três anos, cada jovem - menino ou menina - em todos os refeitórios
dos colégios queriam se parecer com Keith Richards. Esses eram a segunda geração de fãs dos
Stones. Os irmãos mais velhos, que curtiram todos os singles dos anos
sessenta – “Satisfaction”, “Ruby Tuesday”, “Paint It Black” - podem não ter dado muita bola
para o novo, mais pesado, mais grunge Stones, e por isso, os irmãos mais velhos sempre
metiam a banda no meio de toda uma jangada de grupos britânicos dos anos sessenta. Os
adolescentes em 1972 não sabiam ou se importavam com essa história; esse era o seu Rolling
Stones, renascido fora da sombra dos Beatles como a maior banda do mundo.

Dizem que o U2 falou seriamente a respeito de chamar o Achtung Baby de Cruise


Down Main Street, e a capa caótica e multi-imagem do álbum claramente evocou a capa de

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Exile. Eu digo para o Adam que eu concordo com a comparação dele com os Stones de 72: uma
década de singles de sucesso e garotas gritando. Agora vamos esquecer isso e pegar pesado.

“Joshua Tree foi um álbum pop”. Adam concorda com a cabeça. “Isso é rock”.

Ele menciona que já não existem muitas bandas reais por aí, bandas com quatro membros de
mesmo nível, todos a bordo desde o início, todos trabalhando juntos. Eu digo: “Bem, R.E.M”.

“Isso é uma coisa diferente”, diz Adam, ainda usando o vocabulário de 1972. “O U2 são os
Rolling Stones, R.E.M. são os Crosby, Still, Nash & Young”.

Quando eu volto para Nova York, com quem eu acabo falando senão Mick Jagger.
E o que vocês acham que Mick não parava de me dizer? Sobre todas essas novas bandas que
estão tentando soar como os velhos Stones, até se vestem como os velhos Stones. Ele
claramente se refere ao Black Crowes e àquela gente. Ele diz que pelo menos o U2 parece estar
fazendo algo novo. Ele gostou muito do Achtung Baby e apesar de ainda não ter visto a Zoo TV,
baseando-se em todas as descrições essa não é uma banda que está simplesmente olhando
para trás, e não segue aquilo que alguém fez há vinte anos.

Na verdade, eu digo, eu estava tomando uns drinques com um dos caras do U2 e - entendam
que isso foi apenas uma conversa de bar depois de algumas bebidas - ele estava comparando a
posição do U2 hoje com a dos Stones há vinte anos.

“Isso é realmente estranho”. Jagger ri. “Eu sei que isso foi dito depois de muitas tequilas ou o
que quer que seja, mas isso é bastante peculiar. As coisas eram tão diferentes naquela época,
com aqueles minúsculos amplificadores e outras coisas. Não havia nada parecido com o que
fizemos em 1972. Apesar de eu nunca ter realmente visto a Zoo TV Tour, ela não é nada
parecida com qualquer coisa que tenha vindo antes, o que é bom. Não é 1972, é 1992 e eu
gostaria que as pessoas se dessem conta disso. Eu não lembro de alguma vez ter dito: ‘Eu me
sinto como Buddy Holly!’”

Ai! Aqui está o comentário crítico. Eu acho que estou tendo uma idéia, apesar disso. Vou
simplesmente pegar os comentários do U2 de conversas de madrugada regadas a bebida e
apresentá-los para outros músicos. Eu ligo para o Peter Buck e pergunto se ele sente que o
R.E.M. são os novos CSN&Y: “Qualquer coisa menos isso!” ele exclama indignado.

Certa noite, na Cidade do México, Edge, Bono e eu nos envolvemos numa estranha e sinuosa
discussão, nascida de uma das piadas de humor negro do roteiro do Million Dollar Hotel: “Os
judeus não cometem suicídio; eles nunca precisaram”. Bono diz que os judeus em Hollywood
inventaram o mito de uma América onde todos são iguais e a religião não importa, e então
venderam esse mito para o país. Bono vê isso como um grande feito.

Edge pegou a ideia e disse: “No rock, os judeus são os melhores compositores por causa de seu
rigor intelectual impiedoso”.

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Bono amplifica a idéia: ele disse que a tradição intelectual judaica os leva a escavarem a
verdade não importando onde serão levados. Eles não estão interessados, como tantas outras
tradições estão, em provar que os virtuosos vencem ou que os triunfos coletivos se impõem
ou que o poder torna certo ou Deus está do nosso lado ou o nosso país fez a coisa certa: os
judeus seguem a verdade onde quer que ela os leve, e é por isto que os judeus são os melhores
compositores.

Ok, eu digo, Bob Dylan, Paul Simon. Quem mais?

Bono e Edge começam a recitar uma lista impressionante: “Dylan, Simon, Leonard Cohen, Lou
Reed”, e então Bono estraga tudo ao dizer: “Até o Neil Diamond uma vez ou outra…”

“Espera aí”, eu disse. “‘Longfellow Serenade’? ‘Song Sung Blue’? Alguma vez vocês ouviram
falar na vez em que Dylan encontrou Diamond na praia, em Malibu, e disse: 'Eu não ouvi você
cantando algo sobre ‘Forever in Blue Jeans’? e o Diamond negou”.

Bono menosprezou o meu sarcasmo e perguntou: “Você sabe sobre do que se trata ‘I Am, I
Said’?” [‘Eu sou, eu disse’].

“Sim, na verdade eu sei. Diamond estava em Hollywood fazendo sua estreia como ator no
papel de Lenny Bruce na sua primeira tentativa de filmar a história de Bruce. Me pergunto por
que teria dado errado. Ele estava passando por uma uma fase horrível, o filme não ia bem, e ele
se sentou no camarim e escreveu aquela música sobre se sentir deslocado em Los Angeles e
não fazer mais parte do Brooklyn de onde ele veio”.

Bono claramente teve a intenção de que sua pergunta fosse retórica: ele não estava esperando
que eu realmente soubesse sobre a gestação de “I Am, I Said” [“Eu sou, eu disse”]. Mas, agora
estávamos naquela espécie de competição na qual nenhum dos oponentes pode ceder um
milímetro, então ele tentou uma abordagem diferente: “Como Javé se identifica no Gênesis?”

Eu vi onde isso ia acabar. “‘Eu sou quem sou’”, eu citei. “Na verdade, essa é uma construção
gramatical interessante, sabe, porque..."

Bono me cortou: “Eu sou. Deus é descrito como o grande Eu sou. Então, naquela música,
Diamond está chamando por Jeová. ‘I am, I said’ significa: ‘Deus, eu disse’. Para quem? Para
ninguém lá em cima! E ninguém o ouviu, nem mesmo a cadeira! Consegue perceber? É uma
música de desespero e perda da fé de um homem chamando por um Deus que não estava
interessado!”

Cara, Bono vai dar uma grande volta para se esquivar de admitir que Neil Diamond não é um
dos grandes compositores do rock. Talvez agora, alguns de vocês leitores estão se
perguntando se este livro está fracassando, mas tenham paciência comigo. Se eu quisesse, eu
poderia encher centenas de páginas com estes diálogos ociosos, de olho no próprio umbigo,
entre o U2 e eu. Na maioria das vezes eu deixei de lado essas conversas fiadas de bar, porque
imagino que seja uma coisa irlandesa, que vocês não entenderiam. Entretanto, eu incluí esse
exemplo porque eu me interessei muito por essa noção politicamente volátil de que os judeus

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são os melhores compositores. Eu tento falar sobre isso com Aimee Mann, uma compositora
que eu admiro muito, e ela bate na mesa e diz: “Sim, sim! Absolutamente! Eu estou tão feliz
por mais alguém dizer isso! Randy Newman! Jules Shear! Steely Dan!” e então ela continua,
numa crítica severa sobre as mesmas virtudes da rigorosidade intelectual, não se
conformando com os clichês suaves, e correndo atrás da verdade pura através do buraco do
coelho do desapontamento e da angústia citados por Bono e Edge.

Cara, eu acho que estou descobrindo algo aqui. Para o inferno com o U2, eu vou escrever
elaboradas peças de pensamento para a Tikkun e vou ao show de Dick Cavett. Então eu paro e
me dou conta que as únicas pessoas que apoiam essas proposições são não judeus como eu.
Eu preciso conseguir um judeu rigoroso e rebater essa bola de teorias provocativas contra a
rígida parede do seu exigente intelecto. Então tento decidir para qual compositor judeu eu
deveria ligar e acredito que o melhor deve ser Randy Newman, aquele californiano cínico que
foi bastante citado no auge da febre do Rattle and Hum, por declarar que nunca soube que o
apartheid estava errado até ouvir do U2: “Então as escamas simplesmente caíram dos meus
olhos!”

“Você sabe, Randy”, eu digo enquanto ele tenta lembrar quem eu sou, “o U2 diz que os
melhores compositores de rock são judeus, e Aimee Mann também diz o mesmo”.

“Caramba”, diz Newman. “Eles disseram mesmo? Estou procurando uma defesa. Neil Young e,
hum, há muitos outros. Eu não sei nada sobre isso. Duas pessoas diferentes disseram isso?
Isso é estranho. Dylan, no seu auge, era provavelmente o melhor que se poderia ser, e Simon
tem sido tão consistente como ninguém. Não há dúvida quanto a isso. Sabe do que se trata? Os
judeus querem ser tão americanos! Pense em Irving Berlin compondo: “Newman começa a
cantar como Al Jolson: “‘Eu estou ligado ao Alabama!’ Ele nunca esteve no Alabama e se esteve,
eles o expulsaram de lá! Talvez ele estivesse ali de passagem. E meu material é tão americano
que isso me preocupa. É como eu queria ser. Eu pego estes cinco anos que passei em Nova
Orleans quando era bebê e me agarro a eles com todas as minhas forças como uma espécie de
prova de que eu sou americano”.

Isso é interessante, eu digo. Se a aspiração insatisfeita de soar como um verdadeiro americano


é o que faz um bom compositor de rock, isso explicaria os canadenses—Cohen, Young, Robbie
Robertson, Joni Mitchell. Isso explicaria todos os que vieram da Inglaterra e da Irlanda...

“Neil Young e Joni Mitchell estão entre os dez melhores de todos os tempos, com certeza”,
Newman diz. “Eles são realmente interessados e vêem as coisas de fora para dentro. Veja o
Prince, um dos melhores de todos os tempos. Há um que eles esqueceram. As letras do Prince
são muito boas”.

Bem, nós continuamos corajosamente com esse papo até o seu amargo desenredo.
Aparentemente, não é que os judeus sejam os melhores letristas de rock. É que os cristãos
americanos brancos são os piores.

7
17. Incêndios Caseiros
o u2 insulta phil collins e seus próprios pais / as origens de adam / espetando a
penúltima batata / os virgen prunes se reúnem sem os instrumentos / lendas de
mannix / uma audiência com os antepassados de Edge

O U2 RETORNA à Dublin para o inverno a tempo de fazer uma conexão de TV via satélite com
Los Angeles, onde Phil Collins está apresentando a cerimônia de entrega de prêmios da
Billboard Music Awards. Quando Collins anuncia que o U2 ganhou o prêmio de 1991 de
Artista de Rock Número Um da Billboard, entra, ao vivo, uma conexão via satélite com um pub
em Dublin chamado “The Docker”, onde Adam, Bono, e Edge estão bebendo Guinness e
parecem meio altos.

“Bom trabalho, rapazes!” Collins gritou do outro lado do oceano.

“Olá, Phil”, murmura o U2. São 1:30 da madrugada em Dublin e os moradores locais ainda
estão surpresos por verem um trailer de mais de 12 metros e uma antena de satélite de 6
metros estacionado em frente ao pequeno pub.

“Sua música ‘One’ ganhou o prêmio Faixa Número Um de Rock Moderno”, Collins anuncia.
“Bono, todo mundo diz que é sempre você quem fala. Eu quero saber onde está Larry. Larry
está aí? Vamos dar ao baterista uma chance”.

“Larry não está aqui, Phil”, Edge diz ao baterista-transformado-em-cantor. “Ele tem agido um
pouco estranho esses dias. Você sabe como os bateristas começam a ficar esquisitos quando
começam a cantar”.

“Eu entendo”, diz Collins, seguindo adiante. “A turnê Zôo TV também ganhou o prêmio da
Billboard de Turnê do Ano Número Um, o que significa que mais pessoas gastaram mais
dinheiro para ver vocês do que para ver qualquer outro artista. Portanto, se vocês precisarem
de alguém para a abertura dos shows, eu estou aqui, pessoal. Eu acredito que o barman,
Paddy, irá entregar-lhes os prêmios.”

O barman de cabelos brancos finca um troféu na frente de Adam, que diz à câmera: “Phil,
Paddy é um grande fã de sua música. Assim como todos os nossos pais”.

“Eu não sou tão velho”, resmunga Paddy, fazendo com que muitos no bar comecem a rir.
Collins começa a insinuar que a banda esta bêbada, mas Bono o interrompe, sorri e diz: “É
realmente muito bom estar em casa e nós tivemos um grande ano e todos nos mimaram
muito. Então, muito obrigado, nós realmente apreciamos tudo isso”.

“Nós previmos que vocês não poderiam estar sóbrios a essa hora da noite”. Collins diz, “então,
nós nos juntamos...”

1
Bono, sentindo-se mal por conta do insulto de Adam, interrompe Collins novamente, dessa vez
para atender um telefone tocando. “Desculpe, Phil, eu tenho George Bush ao telefone aqui. Não
tenho conseguido pregar o olho, ele tem me ligado desde que eu voltei para casa. Nós
encontraremos um emprego para ele em algum lugar”.

“Vamos rolar o clip”, Collins diz, e uma montagem dos principais momentos da Zoo TV Tour
aparece. Juntamente com as estatísticas (“A Zoo TV utilizou 4 megas telões de vídeo, 4 telas de
TVs Philips, 36 monitores de vídeo, 18 projetores, 12 reprodutores de laser disk… , 1 antena
de satélite, 1 seletor de canais, 1 vídeo confessionário, 11 quilômetros de cabos. O palco da
Zoo TV tinha 75 metros de largura e 24 metros de profundidade com a rampa para o palco B
de aproximadamente 46 metros de comprimento. O cenário incluía 11 carros Trabant usados
como canhões de luz. O sistema de som (P.A.) incluía 176 caixas de alto-falantes usando mais
de um milhão de watts de potência e pesando mais de 30 toneladas. A Zoo TV foi vista, ao vivo,
por mais de 3.000.000 de pessoas que compraram mais de 600.000 camisetas.”) e imagens do
show, há trechos de uma entrevista da MTV que o U2 fez com Kurt Loder em estúdio, falando
com os quatro membros da banda em monitores da TV.

“Uma coisa sobre as estrelas de rock & roll é que elas são maiores que a vida, maiores do que o
público, elas são quase intimidantes”, Loder diz à projeção em vídeo da banda. “Bem, toda essa
produção é assim. Isto não é repugnante? Isto não mata a intimidade?”

“Isso acontece, com certeza”, Bono concorda. “Mas você está ótimo”.

Corta para uma cena do Mirrorball Man gritando: “Ponha suas mãos sobre a tela!” Há mais
cenas do show e então de volta para Loder que pergunta: “Você acha que o público está
ganhando algo com isso tudo?”

“Sim”, diz Larry. “Estão vindo a um show de rock & roll e assistindo televisão. O que mais se
pode querer?”

As pessoas que assistem a premiação da Billboard em casa vêem as pessoas na TV aplaudindo


essa montagem que acabaram de ver na TV. Larry não quis tomar parte de tal bobagem. Ele
fez sua escapada habitual. Adam está contente de estar em casa em sua mansão nas colinas.
Ele vive em uma casa enorme em vinte acres em Rathfarnham, ao sul de Dublin, com vista
para ocolégio interno que o expulsou quando era adolescente. Há boatos que Neil Young ao
ver o castelo de Adam teria dito: “Essa é a casa do baixista?!” O baixista coleciona arte e às
vezes disponibiliza seu palácio para que os amigos artistas o usem como estúdio. Embora seja
o mais festeiro do U2, Adam tem um lado bucólico: não se importa em ser o Lorde da Mansão
Clayton.

“Adam é na verdade um cara bem pé-no-chão, um sujeito caseiro”, seu irmão mais novo
Sebastian observa. “Essa é a sua principal luta ou desvantagem. Ama o rock & roll e toda
aquela vida de rock star, mas também gosta, ele mesmo, de plantar um carvalho em uma
manhã ensolarada de domingo. Ele tem tentado duramente lidar com essa contradição.
Especialmente no último ano ou dois, penso que ele está achando isso muito difícil”.

2
A família britânica de Adam se mudou para a Irlanda quando seu pai, um piloto, aceitou um
trabalho na Aer Lingus quando Adam tinha cinco anos. Eles se estabeleceram em Malahide,
um belo subúrbio de Dublin que ainda parece e dá sensação de ser uma vila dos anos 1940. Os
Claytons tornaram-se amigos de uma outra família britânica de colonos na cidade, os Evans. O
jovem Adam ia à escola primária com o pequeno Dave Evans antes de ele ser conhecido como
Edge. Os meninos foram então separados pelo cruel conselho de diretores da escola. Depois
que Adam foi expulso por não dar a mínima para nada, ele aterrisou em um colégio onde
voltou a se juntar a Dave na Mount Temple School, onde conheceu Larry e Bono.

Bono conta uma história engraçada sobre ir com Adam, aos dezesseis anos, para invadir o
internato St. Columba, depois que Adam foi expulso. Sendo protestante, Bono tinha conhecido
algumas pessoas diferentes - Mount Temple era um colegio muito aberto com seus costumes e
aceitava garotos católicos e protestantes - mas como Adam não havia comparação, Bono não
conseguia acreditar. Eles pularam o muro e um amigo de Adam os convidou para ir ao
dormitório. Um sujeito bastante solícito, chamado Spike, enfiou a mão no bolso de sua jaqueta
e tirou um pacote de haxixe. O quarto estava decorado com pôsteres de Hendrix e eles diziam
coisas como: “você tem ouvido o álbum novo do Beck?” Então todos pegavam guitarras e as
tocavam com um estupor hippie, extasiados. Ali, imaginava Bono ao escutá-los, era onde
Adam aprendia todos aqueles termos técnicos - “gig”, “fret”, “jamming” – que tanto havia
impressionado Bono, Edge, e Larry que eles imaginaram que ele era algum tipo de gênio
musical e eles tinham que tê-lo na banda. Bono ficou impressionado ao perceber que todos
naquele lugar falavam daquele jeito!

O diretor descobriu sobre as aparições noturnas de Adam e enviou aos seus pais uma carta
educada, mas sutilmente ameaçadora, que está agora emoldurada acima do vaso sanitário na
mansão de Adam, a mansão de onde se avista St. Columba e onde as trilhas de caminhada e os
jardins fazem fronteira com a propriedade da escola, como um glorioso dedo médio sendo
mostrado à escola que o expulsou e um exemplo comovente a todos os garotos presos lá,
dando a entender que há pelo menos uma alternativa à perpetuação do sistema britânico de
aulas que a escola adota, com suas políticas.

A marca que St. Columba deixou em Adam, segundo seus companheiros de banda, era o
péssimo hábito do internato de ficar próximo à suja lixeira dos pratos, com um garfo
esperando para salvar as sobras de comida de outras pessoas. Edge diz que Adam espera pela
sobra de uma batata, com a vigilância de um falcão para espetá-la do lixo. “Mesmo agora”,
Edge insiste, “se Adam estiver andando por um corredor de hotel e ele vê algo deixado do lado
de fora, em uma das bandejas do serviço de quarto, ele vai estender a mão e pegar”.

“Eu o vi salvar a metade de um hambúrguer”, Bono argumenta, exaltado, “com a dentadura


postiça de um outro hóspede ainda nele!”

Entre os pintores que têm usado a casa de Adam como estúdio, há três artistas com
exposições iminentes: Paul Hewson, Fionan Hanvey, e Derek Rowan, que, em seus anos de
adolescência, apelidaram uns aos outros de Bono, Gavin Friday e Guggi. Guggi é um artista por
profissão e os cantores Bono e Gavin certamente se consideram homens de visão dignos de
serem compartilhados. Eles se comprometeram em fazer uma exposição conjunta em uma

3
galeria de Dublin na primavera e agora eles têm que produzir algumas obras de arte para
encher a galeria.

Quando eram adolescentes e com vinte e poucos anos, Guggi e Gavin lideraram os Virgin
Prunes, uma teatral banda de rock experimental, inspirada nos tempos da brilhantina e que às
vezes traziam também Adam, Edge e Larry como acompanhantes, e o irmão mais velho de
Edge, Dick Evans, como convidado na guitarra. Eles frequentemente tocavam com o U2 no
Project Arts Center de Dublin, uma galeria/espaço teatral dirigida por Jim Sheridan (que se
tornou um cineasta internacional com filmes tais como “Meu Pé Esquerdo”). Os provocadores-
confrontadores Virgin Prunes usavam maquiagem e vestidos e arriscavam ter suas cabeças
arrebentadas por garrafas toda vez que subiam no palco.

Às vezes tem sido duro para os amigos adolescentes de Bono manter a amizade com ele já que
o U2 cresceu - não porque Bono e Ali não dão atenção a eles, mas porque os amigos têm que
lidar com as críticas de outras pessoas, não tão ricas, chamando-os de aproveitadores e
perguntando por que estão andando por aí com um rock star. Isso exige esforço de ambos os
lados para não deixar que a fama e a riqueza não atrapalhem a amizade.

Gavin é mandão, extrovertido e sempre ligado. Ele é o conselheiro mais próximo do U2 que
não está na folha de pagamento do Principle. Quando a banda está tão atolada em trabalho
para decidir algo por si mesma, eles dizem: “Envie para o Gavin”.

Em seus próprios shows, Gavin usa um estilo cabaré dos anos 30 como ponto de partida para
a música que é irônica, assertiva, e provocadora, frequentemente na mesma música. Gavin
pode expressar a sua expressividade no palco ao sorrir largamente e oferecer a mão para
cumprimentar as pessoas que estão na frente, mas mesmo esse tipo de gesto alegre assume
um ar de ameaça depois de ele ter estado uivando e pulando alguns instantes antes. Em seus
álbuns (às vezes produzidos pelo recorrente Hal Willner) Gavin alterna ironia e atuação com a
ternura.

Juntos agora, Gavin, Guggi e Bono pertencem àquele grupo de amigos que se comunica com
acenos, grunhidos e gestos que, quem não pertence ao grupo, não consegue compreender.
Guggi (que fala suavemente e agora tem cabelos na altura dos ombros no estilo Hippie, que o
Prunes combateu até a morte) deixa Bono falar sobre seu recente encontro com o artista Jeff
Koons, um provocador pós-Warhol mais conhecido por esculturas em cerâmica de Michael
Jackson e seu macaco, e heróicos bustos dele mesmo olhando para o céu e com mamilos
inchados. Uma vez chamaram-no de afeminado, depois o chamaram de brega, então, pararam
de chamar. Bono diz que Koons está disposto a se envolver com o segundo ano da Zoo TV e
disse a Bono que o U2 estava sendo bem mais generoso nesses shows do que eram no
passado. Bono ficou surpreso com a afirmação e quis saber como a proposital superficial Zoo
TV era mais generosa que os acolhedores shows do passado. “Ele disse que no passado, nós
estávamos ditando as emoções para o público, agora nós estamos deixando em aberto para
eles decidirem, por eles mesmos o que sentir”.

A filosofia de Koons sugere que, com grande parte da cultura contemporânea dedicada a
tentar obter alguma resposta emocional das pessoas, a arte mais honesta é uma escultura de

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vidro de um filhotinho, ou uma daquelas pinturas de pequenas crianças de olhos grandes –
porque aquela óbvia, brega, simplória arte que põe a mostra sua intenção é a única arte que
não está oferecendo uma manipulação subliminar. Depois de descrever o discurso de Koons,
Bono espera por uma reação de Guggi, mas tudo que sai de sua boca é uma baforada de
fumaça. Finalmente Bono diz: “Você não acredita nisso, não é?”. Guggi diz: “Não”. Bono e Guggi
têm essa discussão há anos. Bono diz que arte é sobre ideias e Guggi diz que não, arte é sobre
pintura.

Parece-me que, quanto mais Bono traz sua filosofia de “arte é sobre ideias” para o U2,
particularmente no trabalho mais recente da banda, todas essas ideias não significariam nada
se a arte da banda não estivesse também na pintura, na música. A objetividade emocional, a
simplicidade, que o rock & roll tomou do blues e do country está sempre no coração da
música, no seu atrativo. Levou apenas alguns anos para que as pessoas se habituassem ao som
do rock & roll básico, antes que esta objetividade começasse a parecer um clichê. Então, novos
ângulos tinham que ser encontrados para surpreender o ouvido e manter a música fresca sem
corromper a objetividade do rock. Assim como tivemos os Beatles, que usavam harmonias não
convencionais para reviver os velhos clichês do rock & roll. Dylan fez isso com suas letras –
“Subterranean Homesick Blues” revitalizou Chuck Berry e “Like a Rolling Stone”, como
destacou Phil Specter, deu uma nova cor para “La Bamba”. De Hendrix ao country rock,
passando pelo reggae e pelos Sex Pistols, até chegar ao Achtung Baby, o rock & roll trouxe
inovações sonoras que nos permitem ouvir uma música simples como se nunca a tivéssemos
ouvido antes. Mas sempre, se a música em si não merece ser cantada, ninguém irá ouvi-la.
“One” e “Until the End of the World” e “Love Is Blindness” são grandes canções – a arte está na
pintura. As ideias que as tornam gravações inovadores são, no final, importantes apenas
porque elas nos permitem ouvir as músicas com ouvidos renovados.

Reunidos uma noite na Factory ¹, Edge e Bono estavam brincando com algumas músicas
novas. Ali permitiu que Bono voltasse para casa depois do México e deu-lhe um prazo até
janeiro para voltar ao normal. Não é uma tarefa fácil. Ele comparava notas com Edge, que não
tinha um lar para onde voltar e estava ansioso por uma distração. Eles estavam improvisando
ideias para novas músicas, gravando cassetes, e tornando-se ambiciosos com relação a
sessões de gravações no meio do inverno.

Eu sugeri para Bono, certa tarde que, se Edge queria trabalhar porque não tinha uma casa
para onde voltar, tinha sorte de poder contar com ele – o homem que nunca vai para casa.

“Mas, olhando de uma perspectiva bem diferente”, Bono diz bruscamente. “Eu posso deixar a
minha casa porque eu sei que ela ainda estará lá”.

___________
¹ Local de ensaios e trabalho do U2 em Dublin.

5
Pergunto a Bono se a jornada longe de seu casamento é o que tem motivado Edge a continuar
trabalhando. “Eu não sei”, diz Bono, de forma incômoda. “Eu acho que ele está tentando
descobrir o que ele quer. E eu não consigo imaginar o que é ...” Bono faz uma pausa e olha para
o meu gravador. Então ele diz: “Isso é uma coisa difícil de dizer para um civil, e aos quatro
ventos. Eu odeio essa ideia de trabalho pesado. Se você perguntar ao Edge ou a qualquer um
dos outros, nós não achamos que trabalhamos duro, realmente. Não comparado com muitas
outras pessoas. Mas nós temos uma certa tenacidade. Nós iremos nos agarrar ao calcanhar de
alguma coisa. Nós não vamos desistir”.

“Mas vamos supor, para o benefício desse raciocínio, que isso é trabalho pesado. Fazer todas
essas coisas e não ter apoio em casa é inimaginável. Eu não sei como, com o relacionamento
terminando, Edge deu um jeito de encontrar energia. E é justo dizer que houve momentos em
que ele certamente não conseguiu e não foi fácil para nós também. Definitivamente há
períodos em que as pessoas de distanciam de tudo e isso pode durar até um ano. Pode durar
muito tempo. Mas de uma forma geral eu acho que ele deu um jeito de se manter bem”.

Uma noite, Dick Evans, em visita de Londres, onde ele está finalizando seu doutorado, passou
na Factory para buscar o seu irmão Edge para jantar e dá de cara com Gavin e Guggi, que
estavam lá com Bono. A reunião dos Virgin Prunes não evoca quaisquer abraços ou
agradecimentos. Olhando-os jogar conversa fora fica difícil imaginar que esse artista de
cabelos compridos, esse impassível ator de clubes noturnos, e esse tranquilo acadêmico
estiveram alguma vez juntos em uma banda de rock – mas é isso que as pessoas em Liverpool
podem estar dizendo hoje de John, Paul e George, se Brian Epstein não tivesse aparecido.

As reminiscências que eles compartilham não são do Prunes ou dos novatos U2, mas daqueles
coloridos personagens que eles lembram ter circulado na cena dos clubes de Dublin nos anos
70. Todos eles contam fascinados, lendas sobre um personagem durão que chamaremos de
“F”, que levou os garotos para baixo de suas asas. Descrito por diferentes testemunhas como
um “poeta” e um “ator”, “F” também é engrandecido nessas lendas por resolver discussões
arremessando mesas através de janelas de restaurantes. Bono e Edge dizem que ele
conquistou a amizade deles nos primeiros anos quando uma banda punk chamada Black
Catholics, que costumava atirar garrafas no U2, tentou invadir um show do U2 no Project Arts
Center. “F” estava trabalhando na portaria, e brigou para manter os encrenqueiros fora
enquanto eles tentavam entrar. Finalmente, do palco, o U2 viu “F” desaparecer lá fora com os
Black Catholics, e ouviram o som de gritos e quebradeira. (Como eles ouviram os sons acima
dos amplificadores? Eu já ouvi essa história mais de uma vez e em cada uma delas os detalhes
se tornam cada vez mais vívidos.) Então “F” voltou feliz como um pássaro. O U2 perguntou a
ele o que aconteceu e ele sacou um facão e explicou: “Eu os familiarizei com a realidade da
violência”.

Eu pergunto se este é o mesmo “F” com quem Bono, Edge e Gavin estudaram mímica. “Sim,
foi”. Edge ri. “‘F’ em calças colantes era algo digno de se ver”.

Dick diz que viu “F” recentemente. De acordo com sua história, Dick e alguns amigos
encontraram “F”, que os convidou para darem uma passada em seu quarto no elegante
Shelbourne Hotel, na St. Stephen’s Green. Eles subiram e ficaram surpresos ao ver que “F”
tinha uma grande suíte na cobertura. O poeta deve ter vendido um soneto ou ganhado na

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loteria. “F” implorou para que os convidados ficassem e aproveitassem o serviço de quarto.
Então ele começou a pedir champagne. Quando, depois de horas de celebração, os convidados
estavam cansados e bêbados, “F” insistiu que todos dormissem lá, onde havia espaço
suficiente. Dick acordou no dia seguinte se sentindo um pouco atordoado e foi até o banheiro.
No espelho, “F” havia escrito: “Eu vejo vocês, antes de vocês me verem – ‘F’. “Dick percebeu
que tinham caído numa armadilha. “F” tinha saído do hotel e dito à gerência que os
cavalheiros na cobertura iriam acertar a conta. Dick e seus amigos tiveram que escapar pelo
elevador de serviço.

“É engraçado”, diz o pai de Edge. “Cerca de duas vezes por ano você lê nos jornais: ‘O U2 está
prestes a se separar’. Isso me faz rir, porque as pessoas que escrevem isso, obviamente, não
sabem nada sobre eles. Eles cresceram juntos. Eles às vezes têm suas diferenças, não há
dúvida, como teria qualquer família. Mas as arestas foram aparadas umas contra as outras.
Eles são uma extensão das famílias um do outro e eu devo dizer que eles aderiram muito bem
a isso. E eles também são caras fáceis de lidar. Eles não são iguais e se complementam, uns aos
outros. Eles são um bom time”.

Eu fiz aranjos para ir à Malahide e tomar um chá com Garvin e Gwenda Evans, duas pessoas
que irradiam decência e gentileza, apesar de terem gerado um U2 e um Virgin Prune.

“Acho que eu nunca os vi”, diz Gwenda sobre os Prunes. “Eles não me diziam onde os shows
deles aconteciam”.

“Eles nos indicavam os lugares errados”, explica Garvin.

Eles prestaram bastante atenção na banda de Dave. Garvin teve uma reunião com Paul
McGuinness para se certificar de que ele era um sujeito decente antes do U2 assinar com o
empresário. (Bono avisou seu pai para não tentar fazer a mesma coisa). Quando Edge
terminou em Mount Temple ele pediu permissão a seus pais para adiar o início da
universidade por um ano para dar uma chance ao U2. Eles disseram que tudo bem, e quando
aquele ano terminou o U2 tinha um contrato de gravação. Nesse ponto Edge disse a seu pai
para não se preocupar – mesmo que seu primeiro álbum fracassasse, ele poderia sempre
encontrar algum trabalho como músico de estúdio.

“Eu acho que eles foram realmente afortunados por ter a Island Records e Chris Backwell”, diz
Gwenda. “Ele deixou que eles se desenvolvessem à sua própria maneira. Eu não acho que ele
tenha exercido demasiada pressão sobre eles. A pressão veio da sua própria auto-motivação. E
eles sempre foram trabalhadores, Dave especialmente. Ele estava sempre trabalhando na
música”.

O lado negativo disso, dizem seus pais, é que quando a música para, é mais difícil para o Edge
do que para os outros três.

“Deixa um vazio maior em Dave”, diz sua mãe. “Ele talvez tenha estado mais envolvido nisso
do que os outros. É como seu pai, quando Garvin se envolve com qualquer coisa, ele se
envolve de corpo e alma. A primeira vez que fomos esquiar, ele comprou um livro sobre como
esquiar, ele queria saber como distribuir o peso. Eu sou mais instintiva, por isso eu caí

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algumas vezes. Garvin realmente quer ir a fundo e saber como tudo funciona, e o Dave é igual.
Creio que ele fica bastante envolvido mentalmente e acha difícil voltar para a vida normal, por
falta de uma palavra melhor. Seria muito bom se ele encontrasse um passatempo gratificante
ou começasse a jogar golfe”. A senhora Evans se dá conta que isso soa meio bobo e ri.

O senhor Evans, um golfista, não acha tão má ideia: “Por que não?”

“Eu não acho que ele tenha alcançado esse estágio”. Ela sorri. “Mas, você vê, essa é uma das
dificuldades para os quatro garotos. Eles não têm...”

“Anonimato”, diz o senhor Evans.

“Sim, Ele é muito bom em pintura, na verdade; ele gosta de desenhar. Mas esse é um tipo de
hobby solitário, na verdade. Eles têm que ser muito cuidadosos com o que escolhem, pois são
muito mais conhecidos agora”.

“Eu notei, estando na companhia de Dave, que a sua fama deu um salto quântico
ultimamente”, diz o senhor Evans.

“Anteriormente, eles eram conhecidos por todos que estavam envolvidos com o rock & roll,
fãs e pessoas jovens”, explica a senhora Evans. “Mas eu acho que agora isso acontece também
com o público em geral. Eles lêem toda essa bobagem nos jornais sobre os milhões que eles
supostamente têm”.

“A gente assiste coisas como o Top of the Pops”, diz o pai de Edge, e ri: “Não admira que eles
achem o U2 tão bom!”

***

Depois do Natal, o U2 é polido e enviado à Inglaterra para receber um troféu no Brit Awards.
Adam diz que pareceria ingratidão se eles não fossem, mas eles sempre têm que tentar deixar
claro nessa cerimônia em particular que o U2 não é britânico. Este ano eles foram indicados
em categorias “internacionais” e venceram o prêmio de Most Successful Live Act Award
(Apresentação ao Vivo de Maior Sucesso).

“Quando você está envolvido no negócio da televisão”, diz Edge ao aceitar o prêmio, “e esse é o
negócio em que nos encontramos hoje na Zoo TV, tudo se resume aos índices de audiência.
Muito obrigado”.

Bono, esplêndido em seu luxuoso terno vermelho de veludo e óculos, anuncia: “Nunca na
história das turnês de rock & roll tanta besteira foi criada para tantas pessoas por tão poucos.
Obrigado a toda equipe da Zoo TV e lembrem-se, crianças, o bom gosto é o inimigo da arte”.

Adam dá um passo a frente e diz: “Nos anos 80 costumávamos acreditar que ‘menos é mais’.
Eu acho que nos anos 90 nós descobrimos que mais é ainda mais”.

8
“Só uma última coisa”, diz Larry cortando a conversa fiada. “Gostaria apenas de parabenizar o
Greenpeace e seus apoiadores por finalmente, finalmente terem chegado a Sellafield ¹ e
colocado todos para correr. Obrigado”.

Este não é apenas o encerramento de 1992. É o sino de abertura para 1993.

__________
¹ Sellafield é o nome da usina nuclear, perto da cidade e da estação de trem de Seascale, Inglaterra.

______________________________________

9
18. Os Santos Estão Chegando
bob dylan por u2 / van morrison por bob dylan / u2 por van morrison / bob dylan por van
morrison / van morrison por u2 / bob dylan toca com van morrison & u2 / jantar e
bebidas com bob dylan, van morrison & u2

O INVERNO PODE SER longo na Irlanda, mas este é iluminado pela chegada consecutiva de duas
estrelas: Bob Dylan tocará no Point Theatre de Dublin na sexta-feira à noite e Van Morrison no
sábado. Hippies velhos estão chegando do interior e aspirantes a poetas místicos estão
entupindo os pubs. Bono conhecia ambas as lendas desde 1984, quando Dylan tocou no Slane
Castle em Dublin, Van apareceu para se sentar ali, e Bono (convidado para o show por Dylan)
recebeu a missão, fomentada pelos astutos editores da Hot Press, revista de rock de Dublin, para
usar sua influência para tentar conseguir uma entrevista coletiva com eles. A boa notícia era que
Bono conseguiu os dois premiados caladões para se sentarem juntos em frente a um gravador. A
má notícia era que Bono não estava interessado em bancar o repórter preparado e acabou
falando sobre os estúdios de gravação enquanto Dylan acrescentava comentários bem-
humorados do tipo: “Você conseguiu seu produtor, você conseguiu seu engenheiro, você
conseguiu seu assistente de engenheiro, geralmente seu assistente de produção, você tem um
cara carregando as fitas por aí”, e Van sentado pensando sobre Yeats e Lady Gregory e não
oferecia mais que um ocasional: “Eu penso o mesmo sobre tudo, no final eles eventualmente
voltarão para duas faixas”.

O fracasso do jornalismo foi a conquista do público de Dublin, no entanto, quando Dylan


convidou Bono para juntar-se a ele no palco, onde, diante do embaraçoso fato de que ele não
sabia a letra de “Blowin’ in the Wind”, Bono acabou inventando sua própria letra. Dylan se
divertiu com isso, e se Van não registrou entusiasmo, pelo menos ele não podia mais reclamar
quando fosse questionado sobre o U2, de que ele nunca tinha ouvido falar deles.

Mais tarde Bono perguntou a Dylan se ele jogava xadrez. Isso veio a ser uma paixão dividida
pelos dois cantores. Eles dividiram o tabuleiro, mas nunca conseguiram dar continuidade ao
jogo. Dylan perguntou a Bono se ele conhecia a música dos McPeaks, um grupo folclórico
irlandês, Bono admitiu que nunca tinha prestado qualquer atenção à música tradicional, e Dylan
disse a ele que aquilo era um erro: “Você precisa voltar atrás”. Bono levou o conselho a sério o
bastante para examinar minuciosamente a música folclórica irlandesa, a qual, ele mais tarde
disse, foi o primeiro passo no caminho para Rattle and Hum.

Entre os músicos, Dylan e Morrison continuam a ser os principais pássaros do ramo do rock que
disparam em direção aos mesmos valores que os grandes poetas e pintores. Esse ramo é
certamente culto, um tanto intelectual, mas de modo algum significa que não tenha um pé na
crueza e no instintivo. Aqueles que se empoleiram tão alto estão bem conscientes de quem mais
está lá em cima com eles. Uma vez perguntei a Dylan se ele sentia uma conexão especial com
Morrison, e Dylan disse: “Ah, sim! Sempre, desde o Them ¹, realmente. Não tem havido nada que
___________

¹ Then é uma banda de rock da Irlanda do Norte formada em 1964. Eles são mais conhecidos por criar a imensamente popular
canção Gloria, e por dois curtos anos contando com o famoso cantor Van Morrison, cujas primeiras composições ele
tocou. De 1964 para 1966, e dois álbuns, ele emergiu como um dos grupos de R&B’s mais influentes de seu tempo. Morrison
deixou a banda em 1966 e seguiu para uma carreira de sucesso como artista solo. Apesar de relativamente poucos singles, o
grupo de Belfast teve influência considerável em outras bandas, como o Doors.

1
Van tenha feito que não tenha me fascinado”. Uma vez pedi a Morrison para classificar Dylan.
Morrison – que juntou em suas letras fragmentos de poemas de Blake, Donne, Pound, Eliot, e
outros poetas suficientes para afundar um plano de estudos – disse: “Dylan é o maior poeta
vivo”.
Tanto Dylan como Morrison são estudantes do velho folk, gospel e blues, ambos têm passado de
vez em quando por buscas espirituais às vezes inquietantes, e ambos têm expressado desprezo
pelas tentativas de seu público para mantê-los em um tipo de estilo ou imagem. Ambos também
alcançaram grande sucesso enquanto ainda estavam em seus precoces vinte e poucos anos e
então, jovens, se estabeleceram no casamento, família e períodos de semi-retiro, só para
eventualmente voltarem à vida de solteiro, trabalho na estrada e viagens. Tanto Dylan quanto
Morrison escreveram canções de rock clássicas e gravaram discos de rock clássicos, mas a
carreira de nenhum dos dois pode remotamente ser contida nem mesmo pela mais generosa
definição do rock. Eles são maiores do que o gênero, o qual é bastante grande. Quando Bono os
conheceu, eles provavelmente representavam o que ele desejava se tornar.

Por volta daquela época Bono me disse: “Tem que haver um elo espiritual entre o U2 e Van
Morrison. Tenho certeza de que não é apenas o fato de sermos ambos irlandeses. Eu acho que é
algo mais. Ele provavelmente não gostaria de ser associado à nossa música, porque eu sei que ele
está ligado à tradição da soul music e do gospel. Como nós estamos um pouco mais alheios a essa
tradição, ele não pode se conectar a nós”. Bono chega a dizer que Van é um cantor de soul, “e
minha ambição é me tornar um cantor de soul”.

Eu tenho que acrescentar que quando eu fui conversar com o Edge sobre o Van, ele ouviu por um
tempo e depois perguntou se eu poderia recomendar um bom álbum do Morrison para iniciá-lo,
seu modo educado de me deixar saber que aquela não era a música com a qual o U2 tinha
amadurecido e eu não deveria presumir que Morrison os tivesse influenciado.

Na década desde aquela cúpula do Slane Castle, o U2 escalou o auge do estrelato do rock, até o
ponto em que coloca Bono na sala ao lado do Bob e do Van, não mais implorando a alguém que
descubra o que há de errado com essa imagem. Bono sente grande prazer na companhia deles.
Certa vez, ele os assistiu entrarem em uma competição amigável sobre quem sabia mais letras de
velhas e obscuras baladas folclóricas. (“Eles estavam impressionando o jovem com seus
conhecimentos”, Bono diz). Van dizia o nome de uma música e Bob recitava a letra. Depois Bob
dizia o nome de uma música e Van a recitava. Finalmente Van deu a tacada final. Ele pediu por
“The Banks of the Grand Canal” de Brendan Behan. Dylan pôs-se de pé e sacou uma dúzia de
versos. Van se rendeu. Bono sentado ali, ficou pasmo.

Deter-se em torno de artistas como Dylan e Morrison deu ao U2 a má impressão de que eles
deveriam se aproximar das raízes da música country, blues, e do R&B, como aqueles velhos
artistas buscaram. Desde Rattle and Hum o U2 tinha aprendido que o trabalho deles não era
explorar territórios que outra pessoa já havia estado, mas levar a música ao lugar seguinte, de
onde alguma outra banda jovem irá eventualmente apanhá-la e levá-la mais adiante.

Rattle and Hum contém uma música escrita por Dylan e U2 (“Love Rescue Me”), uma segunda
música na qual Dylan tocou órgão (“Hawkmoon 269”) e um cover de uma velha música de Dylan
(“All Along Watchower”). Eu perguntei a Dylan o que o atraiu ao U2 que ele não ouve em outras
bandas jovens e ele disse: “Há mais que só um fio condutor em sua música que me manteve
inspirado e dentro dela. Algo que ainda existe em um grupo como o U2 que eles se apegaram.

2
Eles mantém uma certa tradição. Eles estão realmente enraizados em algum lugar e eles
respeitam essa tradição. Eles trabalham dentro de um certo limite o qual possui um passado, e
portanto podem fazer suas próprias ideias em cima disso. A menos que você comece de algum
lugar, você só tem a possibilidade de inventar algo que talvez não precise ser inventado”.

“Mas isso é o que me atraiu ao U2. Você pode perceber quais grupos estão seriamente
conectados e” – ele riu – “seriamente desconectados. Há uma tradição para a coisa toda. Você
também é parte disso ou não. Se você não é, você não é e ponto, mas eu não sei como alguém
pode fazer algo e não estar conectado a algum lugar apoiado ali. Você tem de ter um
compromisso. Não pode qualquer um simplesmente se levantar e fazê-lo. Isso requer muito
tempo e trabalho e convicção”.

Uma noite Van e seu parceiro Georgie Fame estavam visitando a casa de Bono quando Van se
inclinou e com uma piscadela acusou Bono de plagiar uma de suas antigas músicas para o maior
sucesso de Rattle and Hum. “Aquela sua música, ‘Desire’ era apenas ‘Gloria’ de trás para frente,
não era?”

“Não”, Bono sorriu. “Eu acho que era Bo Didley, na verdade”.

“Ah, sim” Van disse. “Georgie, lembra quando aquela batida de Bo Didley surgiu por aqui pela
primeira vez? Todo mundo a estava usando, mas ninguém aprendia direito!” Significando
fortemente que o U2 também não. Bono provocou Van de volta, perguntando se o estilo muito
imitado de Van talvez não tenha sido só um pouco copiado de Ray Charles.

Ultimamente tenho visto Van no bar do Shelbourne Hotel igual ao Marshall Dillon em Dodge City.
Alguém deveria aparecer e pendurar uma medalha nele: O Maior Irlandês Vivo. Morrison deixou
sua casa em Belfast quando era um adolescente e desde então tem vivido em Londres, Nova
York, Boston, São Francisco e Londres novamente, lentamente trabalhando seu caminho de volta
para casa. Van está morando em Dublin ultimamente, percorrendo a cidade com os Chieftans,
Shane McGowan dos Pogues, e mais um recém-chegado, exilado por impostos, Jerry Lee Lewis.
Uma quadrilha de bandoleiros musicais desse tipo é difícil de se imaginar.

Eu acho que fiz Bono se sentir mal em uma noite enquanto estávamos admirando esses grandes
homens quando sugeri que ambos, Dylan e Van tinham sido atraídos para a fé em Deus, porque
após perderem suas famílias e depois eles próprios serem admirados como deuses, Deus era a
última grande coisa para a qual eles poderiam recorrer. Eu estava me entregando a especulações
ociosas, mas isso realmente parecia incomodar Bono. Ele é um firme crente em Deus e um
homem com suficientes estrelas para conduzir sua própria vida. Depois de várias bebidas, Bono
sugeriu: “É uma coisa engraçada que embora eles sejam crentes, parecem ver Deus muito à luz
do Antigo Testamento. Parece haver muito julgamento ali, e talvez não muita misericórdia”.

No Point, na noite de sexta-feira Dylan toca um set regional com um baixista, um baterista e um
segundo guitarrista. É uma espécie de personagem de Hank Williams para Dylan, depois de anos
de lamúrias em shows elétricos. Ele apresenta músicas que raramente canta em concerto – “She
Belongs To Me”, “Lenny Bruce”, “Tangled Up In Blue”, e “Everything Is Broken” – assim como as
esperadas “All Along The Watchower” e “Maggie’s Farm”. Depois do show Bono, MacGuiness e
algumas outras celebridades locais – Elvis Costello, sua esposa Cait O’Riordan, a cantora country
Nanci Griffith e a dublinense honorária Chrissie Hynde - vão com Dylan e sua comitiva para o
Tosca, restaurante de Norman, irmão do Bono. Chrissie quer saber o que Dylan acha do campeão
3
dos pesos-pesados Mike Tyson ser preso por estupro. “Eu acho que isso é uma vergonha
obscena, mas o que sei eu?” diz Dylan. “Há muitos desses caras na prisão”. Isso leva a
comparações com Muhammad Ali, que perdeu seu título porque se recusou a entrar para o
exército durante a Guerra do Vietnã. Chrissie pergunta a Dylan como ele escapou do
recrutamento militar em seus dias de protesto. “Eu estava em Nova York”, Dylan diz. “Ninguém
perdeu tempo com o recrutamento militar em Nova York”.

Chega a notícia de que a corte de Morrison está numa sessão de gravação perto da esquina no
Lillie’s Bordello. Dylan manda um recado convidando Van para vir e se juntar a ele aqui; Van
responde o recado dizendo que é Dylan que deveria vir e se juntar a ele. Os dois reis nunca fazem
concessões.

Na noite seguinte, porém, todos incluindo Dylan vão ver Van fazer um show eletrizante,
inspirado, talvez, por ter Dylan na casa. Ele volta aos anos 60 para “Sweet Thing” até a década de
90 para “Enlightenment” e faz muitas paradas nas décadas entre elas. Para o encore, Van intima
Bono para se juntar a ele em “Gloria”. Bono não está seguro de todas as palavras da música, mas
está incomodado pelo público estar sentado em seus assentos, só admirando, então ele
improvisa um discurso gospel relativo ao tema: “Isso não é uma igreja, mas isso aqui é solo
sagrado!” Aquilo resulta na multidão ficar em pé e pulando. Van olha para Bono, impressionado.

Van começa convocando os outros convidados famosos. Edge, tendo visões de si mesmo
batucando um pandeiro, se recusa a ir, mas Hynde e Costello sobem lá em um instante. Dylan
ainda está à espreita, fora do palco, escondido sob várias camadas de blusas encapuzadas e
casacos. Bono volta e o puxa, convocando Elvis e Chrissie para ajudar a tirar as camadas de roupa
de Dylan enquanto Van os conduz através de “It´s All Over Now, Baby Blue”, uma canção de
Dylan que Van gravou em 1966. Celebridades continuam subindo de forma contínua sobre o
palco e estão agora todos em volta de Morrison. Quem sabia que Kris Kristofferson estava em
Dublin? Como apareceu Steve Winwood atrás de um órgão? Este é um final surreal para um
extraordinário par de noites.

Van joga seu braço em volta do ombro de Bono e diz que ele se saiu bem em “Gloria”, com o
orgulho paternal de um pai que deixa seu filho de dezesseis anos pegar emprestado o carro da
família pela primeira vez e via ele retornar à garagem sem nenhuma avaria.

Há muitas mulheres bonitas no recinto e Bono é abordado pela ex-miss Irlanda, Michelle Rocca.
Van surge e diz ao Bono: “Essa é minha garota”. Van começa a apontar para todas as mulheres
mais bonitas do lugar, dizendo: “E aquela é minha garota, e aquela é minha garota, e aquela...”.

Bono está alegremente bêbado, assim como a maioria das outras pessoas que estavam enchendo
o bar do Van essa noite, mas através daquela névoa ele deseja saber somente o quão importante
é o álcool para o alcance da inspiração. A maioria das pessoas está satisfeita quando Van bebe
alguns drinks, relaxando e sacudindo a personalidade ranzinza de Morrison que normalmente
impede que até simpatizantes se aproximem. Quem irá dizer que ele não deveria entregar-se a
aquele impulso social? Mesmo assim a busca pela arte e fé de Morrison e Dylan parece ter levado
eles a tomar alguns caminhos estranhos e dolorosos. Bono está tentando manter seu equilíbrio
enquanto explora esses caminhos – tentando sentir o gosto da jornada sem abandonar a beira de
uma trilha na qual o mapa está sempre mudando. Ele frequentemente reflete sobre algo que
Dylan disse a ele: “Há apenas dois tipos de música: música de morte e música de cura”. Dylan e
Van estão duas décadas à frente de Bono na estrada, e talvez muito mais longe de curarem a eles
4
mesmos. Talvez Bono seja mais abençoado do que eles. Talvez ele tenha menos genialidade. Ou
talvez nós devêssemos esperar e ver onde ele estará em vinte anos antes de fazer quaisquer
suposições.

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19. Trocando os Cavalos
morte na família / a posse do clinton / adam e larry solicitam um novo cantor / tudo que o
don henley não gosta / bono e edge no teatro thalia / desabotoando o vôo do fascismo / o
que o presidente disse ao primeiro ministro

Existem dois importantes eventos marcados para acontecer nos Estados Unidos no final de
janeiro de 1993. O juramento de Bill Clinton como presidente em Washington e o jantar de
despedida que o U2 dará para Ellen Darst, em Nova York.

Embora o U2, como banda, não se sentir confortável em aceitar o convite para assistir ao
juramento de Clinton, Paul McGuinness e sua esposa, Kathy, vão. No último minuto, Adam e Larry
decidem se juntar a eles. Eles chegam em Washington e participam de diversas festas e
confraternizações junto com todos os convidados, famosos e dignitários que se amontoam na
cidade para a cerimônia e para os eventos que se seguem depois disso. Paul se encontra com
alguns dos seus contatos Democratas e está tendo bons momentos exercendo o seu poder
mediador entre aqueles políticos, quando lhe chega a notícia de que o seu irmão mais novo havia
falecido repentinamente de insuficiência cardíaca.

Paul, atordoado, começa a organizar um vôo de volta para a Irlanda. É uma terrível reencenação
de uma tragédia do passado. Treze anos antes, quando o U2 estava preparando o seu primeiro
álbum, o jovem empresário voou para a América para o seu primeiro encontro com Frank
Barsalona para discutir se o agente assumiria o U2. Quando o seu avião aterrisou em Nova York,
Paul recebeu a notícia de que seu pai tinha acabado de falecer de ataque cardíaco. Ele teve que
cancelar a reunião com Barsalona e entrar imediatamente em outro avião de volta para aIrlanda.
Nas duas vezes em que seus familiares morreram, ele estava na América tratando de negócios. E
tendo os dois falecidos da mesma maneira - o seu irmão mais novo ainda não tinha quarenta
anos - inevitavelmente fez com que Paul se perguntasse se ele não estaria marcado pela lista
negra da hereditariedade. Ele vai, faz suas malas e vai direto para o aeroporto. Ele perderá a
posse presidencial; o jantar de despedida de Ellen terá que ser remarcado. Ele voltará para casa
para o funeral, e para um luto em particular.

Adam e Larry foram deixados sozinhos, mas a fama deles é seu ingresso para várias festas. Onde
quer que vão, as pessoas os abordam, se apresentam e os convidam para algum outro lugar. Em
um clube eles se deparam com o Michael Stipe e com o Mike Mills do R.E.M., outra metade de
uma banda que estava envolvida com a campanha de eleitores e estão aqui para a posse. Stipe
diz a Adam e Larry que ele vai cantar com o 10,000 Maniacs no baile inaugural televisionado pela
MTV, e que ele e o Mills estão pensando em fazer uma versão acústica de “One” - será que o Larry
e o Adam gostariam de tocar com eles?

Larry e Adam olham um para o outro, hesitam um pouco, e explicam que eles realmente não
tinham ido pra lá pra se apresentarem. Mas após umas duas horas de socialização e celebração, a
relutância deles não resistiu e eles concordam em fazê-lo. E ainda mais, é uma música do U2. Eles
têm o Michael para cantar, o Larry na bateria e dois baixistas. O Mills se oferece para tocar
guitarra. Também parece logisticamente mais fácil se o Larry tocar congas ao invés de uma
bateria completa. “Simplifique, não complique”, disse Larry. “Há uma grande chance disso dar

1
errado, mas se eu tocar congas, não será muito alto, e podemos conseguir uma boa mixagem na
TV”. Eles se reunirão na tarde seguinte e ensaiarão. Agora, tudo o que eles precisam é de um
nome. Eles combinam o título do mais recente álbum do R.E.M., Automatic/or the People, com o
mais recente do U2 e surgiu o Automatic Baby.

A manhã seguinte está linda em Washington - ensolarada e clara. A segurança é tão pesada que
parece uma zona de guerra, mas o clima é bem festivo - e há tantos vendedores de
lembrancinhas nas ruas - que parece um carnaval. Eu cometi o erro de esperar um pouco demais
para atravessar a rua para o Capitólio para o início da cerimônia, e tive que enganar um policial
que mandava todo mundo esperar, ficar atrás das cordas, porque a carreata do presidente estava
chegando. Bem, é claro que eu não vou arriscar ser preso, então eu passo por baixo da corda, dou
a volta no policial e atravesso a rua. Quando eu cheguo às tendas, onde há os detectores de
metais que você tem que passar no caminho para o gramado onde a posse irá acontecer, eu me
viro para ver se estou sendo perseguido e, ao invés disso, vejo a limusine presidencial passar ao
meu lado. As pessoas se amontoam atrás da corda para ver o Bill Clinton acenando pela janela
traseira esquerda da limusine. Vejo George Bush do lado direito. As pessoas atrás das cordas
veem Al Gore sorrir e fazer sinal positivo com os polegares. Eu vejo Dan Quayle deprimido
pressionando sua cabeça contra a janela, olhando tristemente para o espaço vazio.

A cerimônia está sendo genuinamente contagiante. Um pódio repleto de altos funcionários do


governo dos EUA e dignitários visitantes estava situado debaixo da cúpula do Capitólio, que
estava sendo iluminado por um brilhante sol de inverno. Talvez seja apenas a pompa, talvez seja
uma associação com a infância, mas eu estou mais emocionado com isso do que quando assisti à
Old Yeller ¹.

Bono, assistindo pela TV, se emociona com a súplica do Reverendo Bill Graham e com o poema
lido por Maya Angelou no qual o solo da América implora que seus habitantes não estudem mais
a guerra e aprendam a canção que o Criador ensinou para a terra “antes que o cinismo se torne
uma marca sangrenta a queimar em sua fronte”.

Na verdade, Bono reuniu coragem para enviar uma carta para Clinton elucidando sua teoria
sobre a necessidade de que o novo presidente faça um discurso de expiação. Os assessores de
Clinton telefonaram e disseram que Bill adorou a carta e que talvez queira citá-la, mas isso não
acontece. Bono supôs que não era possível para o presidente fazer o tipo de ato público de
arrependimento que ele havia sugerido; isso só levaria as pessoas a dizer: “Você quer fazer as
pazes os índios? Ok, devolva a terra”. Mas assistindo aos discursos pela TV na Europa, Bono sente
que Graham e Angelou tinham tocado nos pontos importantes.

Graham diz em sua súplica: “Não podemos dizer que somos um povo justo, porque não somos.
Nós pecamos contra Ti. Nós jogamos nossas sementes ao vento e agora estamos colhendo um
turbilhão de crimes, abuso de drogas, racismo, imoralidade e injustiça social. Precisamos nos
arrepender de nossos pecados e nos voltar para a fé no Senhor”.
___________

¹ Old Yeller (em português, O Meu Melhor Companheiro) é um filme de drama americano de 1957 produzido por Walt Disney. É
sobre um menino e um cachorro vadio no pós- Guerra Civil do Texas. O pequeno Arliss (Kevin Cocoran) acha um cãozinho
perdido na fazenda de sua família e resolver dar abrigo, mesmo com a resistência do irmão mais velho, Travis (Tommy Kirk).
Logo, o cão passa a ser muito amado pela família, mas o seu tempo entre a família pode não durar muito.

2
Depois de fazer seu juramento de posse, Clinton faz um discurso que trata do fim do velho
mundo (“Eu agradeço aos milhões de homens e mulheres cuja persistência e sacrifício
triunfaram sobre a depressão, o fascismo e o comunismo. Hoje, uma geração que emergiu das
sombras da Guerra Fria assume novas responsabilidades em um mundo aquecido pelo calor da
liberdade, mas ainda ameaçado pelo antigo ódio e por novas pragas”.) e do nascimento de um
novo (“Os meios de comunicação e o comércio são globais, o investimento é móvel, a tecnologia é
quase mágica e a ambição por uma vida melhor agora é universal... Forças profundas e poderosas
estão sacudindo e refazendo nosso mundo. E a questão urgente da nossa era é se podemos
operar mudanças em nossos amigos e não em nossos inimigos.”).

Quando a cerimônia terminou, as pessoas caminharam desordenadamente pelo gramado como


se não estivessem preparadas para deixar o campo. “O que mais me impressionou”, diz Larry
com seu costumeiro cinismo, “e acho que isso acontece em todas as inaugurações, foi que houve
uma grande dose de emoção. Acho que particularmente dessa vez, porque havia uma presença
maciça de negros. Houve um sentimento real de mudança. Eu percebi que várias pessoas mais
velhas estavam incrivelmente emocionadas, havia lágrimas. Eu não estou acostumado com isso.
Eu não sei nada sobre como o sistema funciona. Mas do ponto de vista de um observador, foi algo
que eu não esquecerei. Há pessoas aqui que realmente acreditam que isso vai mudar as coisas.
Quando ele fez o juramento havia lágrimas escorrendo pelos rostos das pessoas. Foi bem
tocante”. Ele faz uma pausa e diz: “Havia algo lá. Eu senti isso de verdade”.

No entanto, Larry ainda tem sentimentos ambíguos sobre o estranho envolvimento do U2 com
Clinton durante a campanha e sobre a zombaria com George Bush durante os shows na América.

“Eu não tinha certeza se isso era algo em que devêssemos estar envolvidos”, ele disse. “Havia
opiniões diferentes na banda sobre estarmos envolvidos, sobre o fato de usarmos George Bush.
Eu estava um pouco preocupado com isso. Eu sou naturalmente cauteloso. Eu ainda não tenho
certeza se aquilo foi a coisa certa a fazer. Eu gostei da campanha, foi muito interessante vê-la por
uma perspectiva diferente. Encontrar Bill Clinton foi bom. Ele pareceu como ainda parece a
todos. Parece ser um cara legal. Mas eu não vivo na América. Eu não tenho que viver sob as
políticas administrativas dele. É por isso que isso me preocupava. Nós não vivemos aqui. Nós o
estamos apoiando? O que exatamente estamos fazendo? E a verdade é que isso era um gesto
ambíguo. Nós não estávamos o apoiando oficialmente e contudo, por outro lado, estávamos
dizendo Sim, ele é legal”.

“E zombando de Bush”, eu o lembrei.

“Sim”, diz Larry. “Foi tudo um pouco estranho”.

“Eu desconfio muito de um presidente dos EUA que anda por aí com estrelas do rock”, Adam diz.
“Mas na época Clinton não sabia que ia se tornar o presidente. É incrível como ele pôde fazer isso
e ser eleito. Os velhos da Rússia, da Inglaterra e da China nunca conseguiriam. Os líderes
coloridos da Europa sempre fizeram e sempre o farão”.

Caminhando em volta do Congresso Americano enquanto a multidão se dispersa, percebemos


uma repentina rajada de vento quando um helicóptero da marinha alça vôo. Lá na janela,
olhando para baixo e acenando, está George Bush sendo levado embora.

3
A medida que o dia avança, as festividades evoluem desde o profundo até o tolo. Minhas duas
favoritas são assistir aos convidados da inauguração enlouquecerem com o ator Henry Winkler
(“Fonzie! Olá, Fonzie! Assina isso para mim, Fonzie!”) e a ovação que acompanha o Presidente e a
senhora Clinton enquanto eles caminham pelo último trecho da rota de seu longo desfile do
Capitólio para o seu novo local, do outro lado, em frente a Casa Branca. Quando as pessoas, nas
arquibancadas exclusivas, montadas no lado mais distante do lugar do presidente percebem que
ele vai se sentar sem acenar para eles, todas elas gritam: “Mais uma quadra! Mais uma quadra!”
Bill e Hilary ouvem e voltam para fazer um grande aceno e sorrir e fazer reverências
presidenciais. Eles ainda fazem mais essa: Bill toca o ombro de Hillary, cochicha algo em seu
ouvido e aponta a um diferente ponto na arquibancada de convidados e então ela se surpreende
e acena para o lugar apontado, como se eles tivessem acabado de notar o Mais Importante
Convidado de Todos. Eles fazem isso mais ou menos a cada trinta segundos.

Depois do desfile, os Clinton se embonecam para o baile da posse. No momento em que eles
chegam e cumprimentam a multidão na festa da MTV, Adam, Larry, Mike e Michael tem "One" tão
bem preparada que é melhor Bono se cuidar para não o aposentarem. O pessoal da MTV está
altamente empolgado por esse triunfo, e está claro que a apresentação será somente esta noite,
por isso as metades dessas duas superbandas, deveria fechar a noite com sua única canção. A
única questão desconfortável que é levantada é: quem vai dizer a Don Henley, que era o
anunciado número de encerramento, que alguém mais virá depois dele? Isso é como na turnê da
Anistia de novo!

Agora, você pode pensar que isso não é grande coisa. Você pode dizer: Então, Henley faz o seu
show inaugural, como planejado, e então os outros caras aparecem, como um pequeno bis, e
cantam "One" - qual o problema? O problema é que Don Henley pode ser um grande cantor, um
bom compositor e um baterista bonitão, mas Don Henley não é um cara fácil. Ele é conhecido por
ter chiliques porque a arrumadeira do hotel pendurou o rolo de papel higiênico com a ponta para
fora, ao invés de para dentro. Ele é, para dizer educadamente, um perfeccionista. Ele não, para
dizer gentilmente, leva desaforo para casa. Ele era, para colocar isso de forma cármica, em outra
vida, o professor de ginástica que fazia toda a classe ficar depois da aula enquanto o gordinho da
turma não subisse até o topo da corda.

Esta noite Henley, o ex vocalista do Eagles, parece estar levando essa apresentação tão a sério,
que alguém suspeitaria que ele está tendo a impressão que essa performance no baile da MTV
determinará se Clinton irá ou não o indicar como Secretário da Justiça. Ele havia preparado uma
espécie de palestra musical sobre estudos sociais para os jovens, culminando com uma
performance de “Democracy”, de Leonard Cohen. Tom Freston, simpático CEO da MTV, é avisado
por seus subordinados que, como chefe, ele tem a desagradável tarefa de dizer a Henley que essa
super-banda R.E.M./U2 irá fazer o encerramento do show.

Eu não gostaria de estar no lugar de Freston! Alguns anos atrás eu dirigi com Henley de
Cincinnati até Detroit e me lembro dele balançando a cabeça por conta de algumas novidades no
mundo da música que ele simplesmente não entendia (no meu entender o que ele realmente
queria dizer era que ele simplesmente não gostava): uma delas era o U2 a outra era o R.E.M. e a
terceira era a MTV.

Freston vai até Henley e diz: Veja, Don. Você faz sua apresentação completa, encerra o show,

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então, depois que os aplausos terminarem esses outros caras aparecerão e apresentarão "One"
como conclusão.

Henley fica pálido - ele parece abalado. Ele relembra Freston que o combinado era ele encerrar o
show. Então ele se vira, entra em seu camarim e fecha a porta. Freston é deixado encarando a
porta fechada, imaginando se ele deveria bater, quando alguém aparece, entrega a ele um
telefone portátil e diz que há uma ligação. Freston atende e é repreendido por Irving Azoff, o
poderoso empresário de Henley, dizendo a ele que cometeu um grande erro e que agora Don não
se apresentará. Enquanto Freston está dizendo: Ahh, que isso, e tentando negociar, ele ouve uma
voz anunciando: “O Vice-Presidente dos Estados Unidos e a senhora Gore!” e de repente os
funcionários da MTV estão empurrando Freston, gritando que Ele tem que subir e saudar os Gore
agora. Freston está tentando explicar sua situação para Azoff, dizendo: “Irving, eu terei que te
ligar de volta, o Vice-Presidente está aqui”, e Azoff está exigindo saber quem é mais importante, o
Vice-Presidente ou Irving, e a equipe da MTV empurra Freston ao encontro dos sorridentes Gore
ouvindo o click de Azoff desligando o telefone.

Então, Automatic Baby foi antes de Don Henley, e executa "One" da maneira mais bonita como
nunca havia sido apresentada antes. Quando essa música apareceu no estúdio em Berlim, ela
parecia quase como um presente dizendo aos perturbados membros do U2 que eles podiam
confiar uns nos outros e baixar a guarda. Depois, ela se tornou a peça central de um álbum sobre
as desavenças de um casamento. Como um single em benefício da luta contra a AIDS, ela falou
das possibilidades de reconciliação entre aqueles que odeiam os gays e as vítimas desse ódio. Foi
a canção que trouxe Axl Rose para a perspectiva do U2 e que reconciliou David Wojnarowicz com
sua família pouco antes de sua morte.

Durante as gravações do vídeo no Nell em Nova York, “One” foi uma fonte de besteiras e risadas.
Mas hoje a noite, no baile inaugural televisionado, quando o Stipe canta: “We´re one but we’re
not the same, we get to carry each other” (“Nós somos um, mas não somos o mesmo, nós temos
que carregar um ao outro”), ele está usando a música para tentar – mesmo sem esperança -
implorar por uma mudança e fazer uma promessa para todo esse país.

Esse é um peso muito grande para uma música carregar! “One” é uma canção muito poderosa.

Enquanto uma metade do U2 está tocando para celebrar a democracia nos Estados Unidos, a
outra metade está tocando-a para impedir o fascismo na Europa. Bono e Edge, acompanhados
pelo violinista indiano, Shankar, estão cantando “One” no teatro Thalia, em Hamburgo, na
Alemanha.

Eles foram convidados por Vanessa Redgrave, atriz e ativista, para se apresentarem em uma
noite contra o fascismo no Thalia. Também estavam lá o escritor Gunter Grass, o ator Harvey
Keitel, o poeta e ativista nativo americano John Trudell (que declarou: “No que me diz respeito,
quando Cristovão Colombo chegou à América ele estava usando um uniforme fascista”), o velho
amigo Kris Kristofferson, e o diretor Robert Wilson, que está em Hamburgo para as filmagens da
nova versão de The Black Rider, com o roteiro de William Burroughs e música de Tom Waits.

Bono foi ver o The Black River, também no Thalia, e com todos os esforços para seguir a tradução
em alemão dos escritores americanos, o terror do conto folclórico alemão sobrenatural
reaparece. Na história, um jovem homem deve ser aprovado em um teste de tiro ao alvo para
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poder se casar com a filha do capitão. O diabo se oferece para ajudar o garoto, lhe dando balas
mágicas que, conforme garantiu, irá atingir qualquer coisa que ele mirasse - exceto por uma bala,
que atingirá o alvo secreto do diabo. O jovem rapaz fez o acordo, e a bala do diabo matou a sua
noiva (que negro coração decidiu que o Burroughs deveria adaptar essa história?). O ator
Dominique Horwitz interpreta o diabo - chamado Pegleg - como um sorridente demônio, mais
parecido com um artista de cabaré alemão do que um Mefistófeles tradicional. O show termina
com Pegleg sozinho no palco, usando um smoking, cantando, como um animador de clube
noturno, a sentimental “The Last Rose of Summer”, do Wait.

Um tipo diferente de diabo assombra a noite antifascista no Thalia, onde Bono faz um discurso
sobre o quão perigoso é esse engatinhar do Nazismo na nova Europa: “Nós estamos unidos não
apenas porque somos contra o fascismo, não apenas porque somos principalmente europeus,
mas porque como artistas, cineatas, escritores, tomos nós trabalhamos no reino da imaginação e
sabemos qual é a nossa melhor arma. Sugiro que é um erro nosso imaginar que ambos
permitiram, seja na arte ou em outras esferas, que esses últimos movimentos tenham chegado a
esse lugar”.

“A incapacidade de calçar os sapatos de outra pessoa é o ponto principal da intolerância”. No seu


romance The Book of Evidence, o autor irlandês John Banville, mostra o narrador e assassino
confessando o crime imperdoável de ter falhado ao imaginar como era ser a sua vítima. ‘Eu
poderia matá-la’, ele diz, ‘porque para mim, ela não estava viva’. Se queremos desafiar o ódio,
uma imaginação poderosa é primordial.

“Como sobreviventes do Holocausto, tanto Hannah Arendt quanto Primo Levi, nos imploraram
para ‘contar as nossas histórias’”. E nós devemos, não apenas tornar reais os oprimidos e os
opressores. Não apenas para acabar com a ideia da separação, que nós entendemos melhor. Não
apenas para não nos esquecermos! Nós contamos as nossas histórias para colocar carne e sangue
nas novas idéias - e para fazê-las funcionar, assim como a companhia de teatro do Thalia faz por
cento e cinquenta anos com tanta inteligência e estilo. Para eles, eu gostaria de dizer Muito
Obrigado.

“Nós precisamos pintar quadros e ver eles se mexerem. Eu penso nas telas do Helmur Hartzfeld,
que mudou o seu nome para John Hartfield em protesto contra os nazistas. Eu penso nos
dadaístas de Berlim, cujo movimento abriu o zíper das calças engomadas dos fascistas, expondo-
os como sérios - seriamente dolorosos - uns imbecis. Próximo do veneno você irá encontrar a
cura. Assim como um antídoto, o humor, o riso é a evidência da liberdade. Eu penso na escuridão
da negra comédia de Gunter Grass, a The Call of the Toas, ou no filme de Volker Schlondorffs
sobre o romance The Tin Drum do Grass. Foi de um filme do Mel Brooks chamado The Producers,
que o U2 pegou o nome do seu último álbum. No bizarro musical, um oficial da S.S. recebe um
cumprimento: ‘Achtung, baby!’ (‘Cuidado bebê!’) ao que ele responde: ‘Zefuhrer would never say
baby!’ (‘O nosso fuhrer nunca diria bebê!’). Está correto. O fuhrer nunca iria dizer bebê. Nós
somos escritores, artistas, atores, cientistas. Eu gostaria que fossemos comediantes.
Provavelmente surtiríamos mais efeito. ‘Ridicularize o diabo e ele irá fugir de ti’. ‘Temer o diabo
levará à sua adoração’. De qualquer maneira, para tudo isso: imaginação. Para contar as nossas
histórias, pintar quadros, se mexer e ficar parado, mas acima de tudo vislumbrar outra maneira
de ser. Porque nós precisamos descrever o tipo de mundo no qual vivemos, nós precisamos
sonhar com o tipo de mundo que queremos viver. No caso de uma banda de rock & roll isso é

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sonhar em voz alta, em alto volume, levar isso ao máximo. Porque nós adormecemos no conforto
da nossa liberdade.

O rock & roll é para alguns de nós um tipo de despertador. Nos acorda para sonhar! Isso me
impediu de me tornar cínico em momentos cínicos. Com certeza, esse é o cinismo herdado do
nosso pensamento político e econômico que contribui bastante para o desespero dos anos 90.

“Os fascistas, ao menos, reconhecem o vazio, sua pseudo-força os conduz à uma reação que
parece ser sem nenhuma liderança, sua análise simplista do racismo como sendo o que aflige a
economia e pelo qual há tanto desemprego como uma reação à confusa insensatez do nosso
governo, que nem mesmo o mais inteligente entre nós consegue entender...”

“Fascismo diz respeito à controle. Eles sabem o que não iremos admitir: que as coisas estão fora
de controle. Começamos este século com tantas ideias competitivas sobre como deveríamos
viver juntos. Nós o terminamos com pouquíssimas”.

“O machismo - e é o machismo - da Nova Direita tem muito a ver com a impotência de um


eleitorado que acha que, de qualquer forma, só têm uma verdadeira escolha. Tem muito a ver
com uma sociedade consumista que iguala a masculinidade ao poder aquisitivo. Machismo é uma
noção elusiva, distorcida, porém feita acessível e concreta pelos nazistas. Nós não deveríamos
subestimar isso. Os fascistas alimentam a cultura jovem, e se quisermos superá-los, devemos
entender seu sex appeal, ou para o que eles são atraídos. E qual é o nosso atrativo? Os
neonazistas têm um idealismo pervertido, mas nós temos algum idealismo? Em qual base nos
apoiamos politicamente? Economicamente? Espiritualmente?

“Eu não sei, mas sei que nos livros de história a democracia é excentricidade”.

“A democracia é uma coisa frágil e, embora ela tenha sido inventada pelos gregos, eles nunca
puderam vivenciá-la. A ideia judaico-cristã de que todos os homens são iguais perante os olhos
de Deus foi reprimida por toda parte. Isso elevou sua peculiar liderança. Obviamente, esse não é
um problema alemão. De fato, nós olhamos para pessoas que sobreviveram não a um, mas a dois
regimes totalitários nos últimos 60 anos. As centenas e milhares que participaram da marcha à
luz de velas por todo país no mês passado enviaram um sinal para o resto de nós que, a
Alemanha ‘não permitirá que isso aconteça de novo’. Mas para isso você precisa de nosso apoio,
porque, embora seja ótimo enfrentar a escuridão com a luz, é melhor tornar a luz mais
brilhante”.

“Eu gostaria de agradecer a Vanessa Redgrave e agradecer a vocês por estar ouvindo. Boa noite”.

De volta à Irlanda, os jornais relatam que quando o Primeiro Ministro Albert Reynolds foi
apresentado ao presidente Clinton, o presidente lhe disse que “aquele maravilhoso grupo U2”
desempenhou um papel importante na sua eleição. Bono fica assustado quando ouve isso. Ou
Clinton está dando mais crédito à banda do que eles merecem, ou está usando o U2 como um
atalho para impulsionar toda a campanha do Rock the Vote¹, ou está usando sua apresentação ao
líder irlandês como uma ocasião para demonstrar uma habilidade de bajular. Os jornais dizem
que Clinton disse à Reynolds que ele esteve tentando descobrir o sobrenome de Bono. “Depois de
uma hora com ele, eu percebi que ele não tinha um, mas isso não importava”.

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___________

¹ Rock the Vote é uma organização sem fins lucrativos, um grupo progressista nos Estados Unidos cuja missão declarada é
"engajar e construir o poder político dos jovens". A organização foi fundada em 1990 pelo vice-presidente da Virgin Records
America, Jeff Ayeroff, para incentivar os jovens a votar. Ele é voltado para aumentar o número de votação entre os eleitores com
idades entre 18 e 24 anos. Rock the Vote é conhecido por seus porta-vozes famosos e sua parceria com a MTV.

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20. Se aproximando de Naomi
O jantar de darst / bono banca o cupido / o amor está no ar/ os prêmios grammy / duas
boas razões para se indignar com eric clapton / um casamento quaker¹

O reprogramado jantar de despedida de Ellen Darst foi realizado no Water Club, um restaurante
no East River, Nova York, em fevereiro, um mês depois do cancelamento do jantar original por
causa de uma morte na família de Paul. Adam acha que levará um ano até que Paul supere o
choque da morte de seu irmão, mas o empresário está bastante sociável durante o coquetel de
hoje à noite. Adam e Larry estão presentes. Edge não pôde comparecer - ele está profundamente
envolvido em um projeto de gravação do que está sendo chamado de um EP, mas que pode se
estender até se tornar a trilha sonora de um filme, parte de um projeto interativo do U2 ou
qualquer outra coisa que alguém possa fazer com a música que Edge ouve debaixo de seu gorro.

Isso significa que quando todos se sentam para comer, a única pessoa que falta é Bono. Corre o
boato que o bem organizado cantor perdeu seu vôo e aparecerá a qualquer momento. Enquanto
isso, os convidados vão tomando seus assentos e ajeitam suas gravatas. Adam relembra o que
Ellen trouxe ao jovem U2 quando eles puseram os pés na América pela primeira vez. “Ellen
sempre foi uma grande comunicadora”, diz Adam. “Ela explicava para a gente porque nós
estávamos indo a essa estação de rádio, porque para aquela loja de discos, porque nós estávamos
encontrando aquela pessoa. Ela trouxe essa influência para a organização e isso continua”. Adam
aponta que uma grande parte dos sentimentos ruins em Berlim, durante o período de gravação
de Achtung Baby, veio por terem se esquecido das regras de Ellen.

Como mencionado anteriormente, Ellen também trouxe para o U2 uma inclinação para colocar
mulheres como responsáveis pelas suas operações. Eu pergunto a Adam se há alguma razão
específica para isso e ele diz: “Elas são as únicas mulheres que a gente conhece!” Quando
paramos de rir ele diz: “Eu acho que a gente sempre ficou um pouco desconfortável tendo em
volta homens que são parte dessa cultura rock & roll, essa coisa de machão. Muitos homens no
rock & roll tendem a ser dramáticos demais. Eles agem como rainhas, independentemente da sua
heterossexualidade. Eles parecem ser histéricos, ao invés de simplesmente estar felizes por
trabalharem em alguma coisa. E eu acho que existe uma necessidade de contato feminino dentro
desse nosso mundo. É um mundo muito dominado por homens e não nos sentimos confortáveis
com isso”.

Enquanto eu raspo minha tijela de sopa, me ocorre que o maior presente de Ellen para o U2 foi
fazer com que todos os DJs, jornalistas e promotores musicais sentissem que ele ou ela haviam
descoberto a banda. Ela é a prova de que não há limite para o que você consegue alcançar se você
não liga para quem leva o crédito. Paul anuncia que, como em todas as coisas relacionadas com o
U2, essa será conduzida como “um casamento Quaker”, o que significa que qualquer um, a
qualquer momento, pode ser chamado para se levantar e fazer um discurso.
___________

¹ Quaker é o nome dado a vários grupos religiosos, com origem comum num movimento protestante britânico do século XVII.
A denominação quaker é chamada de quakerismo, Sociedade Religiosa dos Amigos (em inglês: Religious Society of Friends). Eles
são conhecidos pela defesa do pacifismo e da simplicidade, rejeitando qualquer organização clerical, para viver no recolhimento,
na pureza moral e na prática ativa do pacifismo, da solidariedade e da filantropia.
1
A sopa já estava quase chegando ao fim quando uma grande comoção começa a tumultuar a
porta e atravessar o salão como uma daquelas bolas de poeira em desenho animado, sapatos e
barulho. É Bono, correndo pelo restaurante, puxando atrás de si Naomi Campbell, maior top-
model do mundo, de vinte e dois anos e ícone dos sonhos de Adam Clayton. Bono está sorrindo
como um maníaco, enquanto arrasta a confusa Naomi até a cabeceira da mesa, beija Ellen no
rosto e se joga em uma cadeira enquanto senta sua admirada companhia numa cadeira ao seu
lado.

Adam parece um garoto adolescente vendo a garota do pôster da parede de seu quarto tomando
vida. A sua paixão não correspondida por Naomi é uma piada corrente no Principle. Num
programa sobre a turnê do U2, é perguntado a cada membro da banda o que ele deseja e que ele
não tem. A lista de opções do Adam é “Naomi Campbell”. Ele a tem convidado para os shows do
U2 desde que ele tomou conhecimento sobre ela. Ela na verdade apareceu no Giant Stadium no
verão passado, mas Adam estava sem saber o que dizer e ela pareceu desinteressada. Mais tarde,
depois que Bono fez as fotos para a capa da Vogue com a amiga e companheira dela, a famosa
modelo Cristy Turlington, Cristy trouxe Naomi com ela para um encontro pós Brit Awards no
apartamento de Paul, em Londres. Adam ficou espantado quando Cristy trouxe Naomi para dizer
olá para ele, mas a conversa foi tão vaga que eles perderam o interesse e foram cada um para seu
lado. Duvido que tenha sido exatamente o que aconteceu, mas da maneira que ele conta, deixa
clara a habilidade dessa mulher para fazer emergir em Adam o já escondido vigor de um garoto
de treze anos.

Depois de um bate-papo de poucos minutos, Bono pergunta a Adam se ele se importaria de


trocar de lugar de forma que Bono e Larry pudessem finalizar uma conversa privada. Antes de
Larry dizer: “Privada? Que...?”, Bono está terminando o jantar do Adam e o Adam está ao lado de
Naomi.

Enquanto o novo casal conversa, Bono se inclina, transpirando satisfação, e diz em voz baixa: “Eu
quase não consegui entrar no avião para vir para cá! Eu fiquei com medo do vôo, eu não sei o que
foi isso. Não é comum em mim, devo dizer. Eu tenho estado tão relaxado ultimamente, tão feliz
com minha família. Foi muito, muito difícil entrar nesse avião hoje e voltar para tudo isso. Eu
acho que talvez esse seja o motivo pelo qual eu fiquei tão ansioso por causa do vôo. Talvez isso
fosse o que realmente se passava comigo”.

“Mas eu me recompus e fui para Londres pegar um vôo mais tarde. E nesse vôo eu encontrei
Naomi Campbell! Adam tem uma queda por ela. Então eu disse para mim mesmo: ‘Eu tenho que
trazê-la aqui para o Adam!’”

Eu vou ficando nostálgico ao recordar uma noite, dez anos atrás, quando Bono e Adam fizeram o
mesmo tipo de dança das cadeiras para se assegurarem que a mulher pela qual eu tinha uma
queda (também uma modelo da Ford que tinha vindo de Londres no Concorde, me veio ao
pensamento; também com Keryn Kaplan sentada à nossa frente, piscando, como se estivesse
piscando agora) se sentasse ao meu lado durante toda aquela noite. Na noite seguinte, quando eu
estava caminhando de volta para casa, vindo do meu primeiro encontro com ela, o U2 salta do
seu ônibus da turnê para me perguntar como foi! Foi demais! Nós nos casamos e ela está aqui
comigo essa noite, enquanto Adam dá uma volta com o sapatinho de cristal. Se essa coisa de

2
cantar se esgotar, Bono certamente poderia dirigir o The Dating Came¹.

Paul se levanta para começar os discursos. Um selo presidencial, provavelmente surrupiado da


cerimônia de posse, está pendurado no pódio, alterado para se ler IN E.D. WE TRUST².
McGuinness faz um brinde generoso no qual ele diz que ele aprendeu tudo no mundo dos
negócios da música com Ellen Darst e que ele inveja a Elektra Records pelo talento que eles
ganharam. Então ele pede a Bono para subir e dizer algumas poucas palavras.

“Inclinem suas cabeças em reverência”, começa Bono. “A razão pela qual eu não tenho um
discurso”, ele explica, “é porque eu passei a viagem de avião inteira tentando arranjar um
encontro para o baixista”. Todo mundo ri e Bono aponta para os dois lugares vazios de onde
Adam e Naomi haviam desaparecido. “E isso deve ter funcionado - ele dividiu o grupo!”

Bono prossegue fazendo um belo discurso no qual ele se refere à morte do irmão de Paul e de
como no mês passado deveria ter sido uma ocasião para celebração, e ao invés disso, se tornou
um momento de tristeza. Ele diz que sempre que você vai a um casamento, você revive seu
próprio casamento, e sempre que você vai a um funeral, você enterra seus entes queridos
novamente. Bono diz que seu próprio pai não o encorajava muito, talvez para resguardá-lo de se
desapontar. E sua maneira de se rebelar tem sido provar que ele pode sair e conquistar o amor
de todo o mundo. Mas essa é uma necessidade engraçada de compensação, diz Bono, que faz com
que você precise de cinquenta mil pessoas gritando que te amam para que você se sinta normal.
Através dos anos, a aprovação que ele mais procurou foi a aprovação da banda e a aprovação de
Paul e da Ellen. Ele sentiu desde os seus primeiros dias viajando pela América com Ellen que, se
ele tivesse essa aprovação, ele realmente teria alguma coisa.

Adam, nesse meio tempo, está lá fora cortejando sob a luz do luar (e se você alguma vez foi
cortejado em plena FDR Drive³, você sabe o quão romântico isso pode ser). Eles se lembram que
ele e Naomi estarão voando para Los Angeles, para o Grammy Awards, no dia seguinte. A má
notícia é que eles estarão em vôos diferentes. A notícia pior é que ambos têm compromisso:
Adam vai com Larry, Naomi vai com um proeminente guitarrista.

Eles passam a noite toda conversando. Nas primeiras horas do dia, Adam a deixa na porta do seu
apartamento com um beijinho no rosto, e ele observa, nenhum “Entre para um café”. Na manhã
seguinte Adam verifica as mensagens no telefone do hotel e há uma de Naomi Campbell: “Ligue
para mim; eu perdi meu vôo. Estou no mesmo vôo que você”. Adam salta para o telefone como
uma hiena sobre uma gazela e liga para a garota dos seus sonhos.

“Estarei no mesmo vôo que você”, Naomi diz a ele. “Se você chegar ao aeroporto antes de mim,
você reserva um assento para mim? E eu farei o mesmo por você”.

Oba, como diria o poeta, oba. Adam diz que tudo bem e então gasta mais energia que um nervoso
monge tentando fazer um metódico Larry Mullen se mexer para que cheguem ao aeroporto a
tempo. (Aposto que não tenho que dizer a você que eles acabaram chegando atrasados,
imaginando se iriam mesmo conseguir pegar o avião).
___________

¹ Trocadilho com Dating Game, algo como ‘Namoro na TV’.


² Substituindo “IN GOD WE TRUST” (Nós Acreditamos em Deus) para “Nós Acreditamos em Ellen Darst”.
³ Avenida Franklin Delano Roosevelt, em Nova York.

3
Quando eles entram no saguão do aeroporto, Adam se surpreende ao encontrar um monte de
funcionários da companhia aérea fazendo o tipo de confusão que normalmente termina com as
mãos dele algemadas atrás das costas. “Você é o senhor Clayton?”

“Sim”.

“A senhorita Campbell está no avião. Ela reservou um assento para o senhor! Ela quer que nós o
levemos imediatamente!”

“Isso é muito estranho”. Adam sorri enquanto é escoltado até o avião e Larry fica parado atrás
dele com um olhar de “O que é que ele tem que eu não tenho?”

Adam atravessa o corredor e chega até a área da primeira classe do avião, onde o casal se reúne
como Rhett e Scarlett em E O Vento Levou. Durante o vôo para a Califórnia, Adam e Noemi
conversam, dão as mãos e dormem um encostado no ombro do outro. E quando eles acordam, se
beijam.

Ao chegar em Los Angeles eles se despedem tristemente - eles não se encontrarão novamente
durante essa viajem; ela tem vários compromissos. Os integrantes do U2 voltam para o hotel, se
interam dos vários assuntos de trabalho relacionados com a apresentação da banda no Grammy
Awards, onde o Achtung Baby é indicado para várias categorias, incluindo o Álbum do Ano.

Assim que chegam ao Grammy, Adam e Larry se arrependem de ter ido. Eles tinham esquecido o
quão desconfortáveis eles tinham ficado com o frenezi do showbiz durante o Grammy quando o
Joshua Tree ganhou. Adam, de fato, tinha fugido daquela cerimônia mais cedo, surpreendido pela
pressa com que os ganhadores se arrastavam entre o discurso de recebimento do prêmio para
uma série de obrigações promocionais e sessões de fotos nos bastidores. Adam fugiu e voltou
para o hotel. Esta noite ele se lembra do porquê.

“Eu não tenho problemas com prêmios de mérito sendo entregues para quem quer eles
considerem dignos de reconhecimento”, Adam diz. “Mas há tanto exibicionismo sobre o Grammy
ser, de alguma forma, uma conquista artística significativa, e essa coisa toda me parece algo
ofensivo. É estupidez negar o efeito de uma boa atuação no Grammy, mas você não vai como um
artista - você vai como um intérprete, como um item de imprensa, como uma peça da televisão. E
essa é realmente a pior maneira de se receber alguma coisa pelo mérito do seu próprio trabalho.
Para nós, em comparação, é a pior maneira”.

Você sabe que, se uma ocasião como essa é aborrecedora para o calmo Adam, ela é
extremamente massacrante para o Larry, que odeia exageros. Seu veredicto é que ele não só
nunca mais irá novamente à um Grammy, mas nunca mais votará de novo nesses prêmios.

Arrested Developmente subiu ao palco para receber um prêmio que, como nota o Adam, foi
genial quando ganharam ano passado, mas por que eles deveriam ganhar novamente pelo
mesmo álbum? O Produtor do Ano vai para o Daniel Lanois pelo Achtung Baby. Existe uma
irônica mensagem subentendida nessa prolongada extração de um projeto de gravação. Esse é o
único prêmio de hoje a noite que não foi para o Eric Clapton, que ganhou uma pilha de troféus
por “Tears in Heaven”, um comovedor tributo que dedicou ao seu falecido filho de cinco anos.
Clapton está visivelmente envergonhado com o fato da comunidade de Hollywood parecer estar
4
tentando suavizar sua dor lhe dando o Grammy para todas as categorias que ele tinha sido
indicado. Chega o momento, o maior dos prêmios. Era a vez do Álbum do Ano, e Clapton já tinha
ganhado seis prêmios até então.

O envelope, por favor - o Grammy para o Álbum do Ano não vai para o Achtung Baby, mas para o
Unplugged do Eric Clapton. O próprio Clapton, cambaleando sob o peso de seus sete troféus, é
generoso o suficiente para dizer no seu discurso que o Unplugged não foi o melhor álbum do ano.
Isso não é novidade para Larry Mullen, que mal consegue esperar para lavar as manchas que esta
autocomplacencia deixou em sua calça.

O Adam não se importa. Ele só tem olhos para sua pretendente: Naomi Campbell.

Quando retorna para Dublin, Adam inaugura uma séria de longos telefonemas tarde da noite
para Naomi. A amizade deles cresce sem que eles mesmos se vejam. Se estivesse livre para fazê-
lo, Adam estaria viajando para o lado dela como Jonathan Seagull¹, mas aquele maníaco parecido
com o Mitch Miller², o Edge, tem a banda toda acorrentada ao estúdio improvisado montado na
Factory e não deixa ninguém fugir. As ligações telefônicas são tudo o que esses jovens
românticos têm.

Bono tem uma teoria sobre tudo isso: ele imagina que as modelos são, nos anos 90, o equivalente
as estrelas do cinema mudo. Nós as vemos, mas nunca as escutamos, então podemos projetar
nelas qualquer qualidade que quisermos. O Adam está tendo o problema oposto - ele a ouve, mas
nunca a vê.

Naomi é uma mulher muito famosa, e ela é famosa em todos os lugares pelos quais o U2 pouco
conhece - a imprensa dos tablóides, os jornais sensacionalistas e papéis de propaganda de
supermercados. Sempre tem histórias sobre a sua conturbada relação com o Robert De Niro ou o
Mike Tyson, ou quem quer que eles decidam que ela está se encontrando essa semana, seja
verdade ou não, esses jornais precisam de histórias. Então, inevitavelmente, rumores começam a
aparecer na imprensa que a bomba britânica estava se encontrado com o baixista do U2, depois
de sair com ele durante o Grammy Awards, enquanto se supunha que ela estaria ali para
consolar o enlutado Eric Clapton.
___________

¹ Jonathan Livingston Seagull, escrito por Richard Bach e ilustrado por Russell Munson, é uma fábula em novela sobre
uma gaivota que está tentando aprender sobre vida e fuga, e uma homilia sobre a auto-perfeição.

² Mitchell William Miller (4 de julho de 1911 - 31 de julho de 2010) foi um oboísta americano, maestro, produtor musical e
executivo da indústria fonográfica. Ele não era apenas um dos homens mais poderosos do mundo da música na maior parte do
tempo, como chefe de A & R (artistas e repertório) para a divisão pop da Columbia Records, mas também um dos artistas mais
populares da gravadora. por sua própria conta, responsável por dúzias de singles gráficos e uma série de LPs mais vendidos, e
também hospedou seu próprio programa de televisão de primeira linha para televisão em horário nobre.

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21. Elixir Vital
adam faz estremecer as vigas / o álbum que não ousa pronunciar o seu nome / suzy doyle
sonha com walkie-talkies / abba versus beegees / lição de filosofia do professor eno

Na Factory, em Dublin, há um pequeno aposento com um sofá, uma escrivaninha e um


refrigerador em um corredor entre o grande salão onde o U2 ensaia e a sala de descanso onde
eles relaxam, fazem reuniões e checam as correspondências. Hoje o aposento estremece com as
ondas vibratórias vindas do amplificador do baixo de Adam Clayton, que devido a alguns truques
da acústica daqui, retumba mais alto do que normalmente soa na sala de ensaios onde Adam
costuma tocar.

Suzanne Doyle, a impressionante jovem que coordena o transporte do U2 nas turnês, monta um
escritório temporário e tenta fazer malabarismo com a agenda, telefones e faxs enquanto as
grandes notas do baixo chacoalham os seus nervos e agita o seu cérebro.

“Sua cabeça está flutuando?” Suzanne me pergunta sobre o barulho enquanto eu entro e tiro meu
sobretudo.

“Sim!”

“Bem, você ainda não viu nada!”

Alguém tinha recortado uma manchete de jornal e pregado na parede: POR QUE VOCÊ ESTÁ
SEMPRE SE SENTINDO TÃO CANSADO? O subtítulo contêm um erro de escrita na palavra sun
[sol]: “Tem tudo a ver com o período do ano e a falta de pecados [sin]”.

Suzanne volta para seu trabalho apenas para encontrar uma nota musical particularmente forte
que estremece a parede e a sua cadeira. “Eu provavelmente nunca terei filhos”, ela suspira.
Suzanne ainda era uma adolescente em Dublin quando começou a trabalhar com Anne-Louise
Kelly, do Principle, durante a turnê do Joshua Tree em 1987. Ela aparentava ser uma linda garota
loira de algum conto de fadas irlandês, mas rapidamente se mostrou ser bem rápida e
competente e acabou nas turnês junto com a banda, como assistente de Dennis Sheehan, diretor
da turnê. Ela deixou a organização do U2 depois da turnê Love Town, em 1989, morando na
Austrália por um ano. Ela finalmente retornou à Irlanda para ir para a faculdade. Quando a turnê
da ZooTv começou, o U2 a convenceu para que retornasse, agora com uma maior autoridade.

Estar na estrada com o U2 é sempre muito divertido, ver a reação dos policiais e dos agentes de
segurança de diferentes países quando Suzanne desce do ônibus da turnê, com o seu walkie-
talkie e começa a dar ordens para que sejam abertos aqueles portões do aeroporto ou para que
essa fila de carros seja retirada. Para alguns é um grande choque cultural dar-se conta que essa
pequena garota está na realidade no comando de toda essa grande operação, e que ela sabe
exatamente o que está fazendo e espera que as pessoas com quem ela trabalha correspondam às
suas expectativas. Ao ver Suzanne lidar com policiais de fronteira ou agentes da polícia federal,
algumas vezes você vê complacência que acaba se tornando em confusão e se transformar de
forma surpreendente em respeito, com uma velocidade impressionante. Você também vê
portões dos aeroportos sendo abertos e filas de carros se movendo.
1
Não que exercer toda essa autoridade não tenha seu preço. Quando Suzanne retornou do México
para a Irlanda no final da primeira metade da turnê, ela ficou com a sua mãe por uns dias. Na
primeira noite, a Sra. Doyle ficou aterrorizada ao encontrar a sua filha sonâmbula andando pela
casa, com a sua mão direita no rosto, resmungando ordens em um walkie-talkie imaginário.

As paredes da Suzanne param de vibrar e um minuto depois Adam entra pela porta. Ele se dirige
à geladeira e pega uma pequena garrafa de uma bebida natural saudável chamada Elixir Vitae de
Purdey. Adam reclama que tem gosto de raiz e casca, mas é melhor do que beber Coca-Cola todo
dia. Edge acha que eles deveriam chamar o próximo álbum do U2 de Elixir Vitae. Adam vai para a
sala de descanso onde há outro sistema de amplificação de baixo montado e começa a fazer
barulho de novo, dessa vez um pouco mais baixo, enquanto ele tenta compor um trecho. Ele
começa a tocar devagar e desajeitadamente, mas continua fazendo mudanças até que cai em uma
hipnótica pulsação, como uma escalonada batida de coração.

A guitarra de Edge atravessa a parede do outro lado. Ele não pode escutar o Adam; ele está
tocando na sala de controle que possui uma vista panorâmica do grande salão de ensaios. O Edge
está dedilhando trance music, tentando conseguir alguns efeitos eletrônicos. No aposento entre
as duas salas onde Adam e Edge estão tocando, os dois sons começam a se encaixar. Eles estão no
mesmo tom, praticamente no mesmo tempo. Ao escutar o pesado baixo do Adam encaixando
com a cintilante guitarra de Edge, eu percebo que mesmo quando esses dois músicos não podem
se escutar, a combinação das suas inclinações musicais produz o som do U2.

Bem antes do esperado, Edge e Adam encontram o que eles estavam procurando. Bono chega ao
aposento e o U2 está pronto para começar a trabalhar. Eles mandam alguém buscar o Larry, que
tem vagado por ai. Alguns minutos depois, Larry chega com um humor arrogante, perguntando:
“O que pode ser tão importante que vocês tenham que interromper uma boa e perfeita cagada?”

“Nós precisamos de você tocando bateria”, responde Bono.

Larry diz: “Ligue para meu empresário”.

“Nós enviamos uma carta ao Sr. Paul MacGuiness”, Edge diz, “requisitando os seus serviços esta
semana para que toque um pouco de bateria”.

“É a música que estávamos tocando ontem à noite”, diz Bono. “Aparentemente você fez um
grande trabalho, mas, o restante de nós...”

Adam diz: “Surpreendentemente, você estava bem”.

“Nós nos defrontamos com um problema que nós já enfrentamos no passado”, Bono explica. “A
música não tem refrão”.

“Aha!” diz Larry.

“Então”, continua Bono, “temos que entrar agora e inventar um”.

Os quatro membros do U2 vão para o grande salão, pegam seus instrumentos e começam a tocar.
O produtor Brian Eno fica próximo deles bebendo Elixir Vitae. A música em que estão

2
trabalhando é chamada (pelo menos por hoje) de “Big City, Bright Lights”. Enquanto eles vão
tocando, Bono inventa letras sobre manchas de café, fantasmas e ruas.

Na mesa de mixagem da sala de controle, uma pequena luz vermelha se acende na cabeça de um
homem chamado Flood, outro produtor desse projeto. “Streets” (Ruas) é uma das palavras da
lista de clichês proibidos em musicas de rock do Flood, junto com, por exemplo, noite, magia e
segredo. Flood imagina que ideias novas começam com pequenas coisas. Enquanto Eno, Bono e
Edge debatem indefinidamente sobre ideias musicais e letras, Flood marca seus pontos pelo
cansasso. Ele se senta em silêncio enquanto os outros conversam entre eles e então ele faz o que
ele planejava fazer o tempo todo e espera para ver se eles notam.

Bono interrompe a música e sugere uma mudança de acorde para o Edge. O U2 começa a tocar de
novo. Bono tenta levar sua voz duas oitavas acima, o que torna a performance mais ousada. Ele
improvisa a letra: “Think about forever...think about the rain...desperate sea. Jacob’s ladder
rescue me”[“Pense sobre a eternidade...pense sobre a chuva...no mar desesperado. Escada de Jacó,
resgate-me”].

Há uma grande especulação em andamento no mundo lá fora sobre o que o U2 está fazendo aqui.
O que deveria ser uma pausa de quatro meses entre a turnê de 92 e a turnê de 93 se transformou
em uma maratona de sessões de gravação. Havia uma conversa vaga sobre a criação de um EP¹,
quatro ou cinco músicas para serem lançadas na turnê de verão na Europa. Mas todo mundo está
trabalhando duro demais para isso. Tem havido um monte de especulações de que eles estão
gravando uma trilha sonora, embora não haja nenhum filme real. Ninguém quer dizer em voz
alta que o U2 pode estar fazendo seu próximo álbum aqui, porque há muito pouco tempo e
ninguém quer colocar mais pressão sobre a banda. Pergunte ao Edge por que ninguém dirá a
palavra "A" e ele vai dar a você um monte de explicações sobre as sutis distinções entre álbuns e
trilhas sonoras e projetos, entre músicas, faixas e “vibes²”. Pergunte ao Adam e ele será mais
direto: “Eu não sei se o que estamos fazendo aqui é o próximo álbum do U2 ou um punhado de
esboços preliminares que em dois anos se transformarão em demos para o próximo álbum do
U2”.

A ideia de trabalhar durante suas férias pareceu tomar força quando Edge ficou ansioso ao voltar
para casa e ter que enfrentar uma casa vazia e a realidade do final de seu casamento. Ele
precisava de alguma coisa para fazer e manter a energia que ele tinha desenvolvido fazendo o
Achtung Baby e por ter se envolvido na turnê por um ano - e para manter sua mente desligada de
sua perda pessoal. Bono estava enlouquecendo, vagando em sua casa enquanto ainda estava
completamente ligado à turnê. Como ele sabia que o U2 ainda tinha um ano todo pela frente na
estrada com a turnê, ele ainda não estava preparado para psicologicamente reduzir a velocidade
que normalmente lhe permite relaxar e voltar à vida doméstica.

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¹ Extended play (EP) é uma gravação em disco de vinil, formato digital ou CD que é longa demais para ser considerada um single e
muito curta para ser classificada como um álbum musical. Normalmente, possui de 4 a 6 faixas, posicionando-se como um
intermediário entre um single (daí o termo “extended”, indicando que o EP é um single estendido, com mais faixas) e um álbum
(que, em geral, possui de 10 a 12 faixas).

² Vibe é a diminuição de vibration, que antes das músicas eletrônicas, eram utilizadas por pessoas que gostavam de reggae, onde
grupos jamaicanos criaram um tipo de música com uma mistura de reggae, ska, salsa e merengue, e as pessoas acabavam
contagiadas pela música, dançando e resultando em “vibrações positivas" ou "vibe positiva".

3
Então, quando Edge quis ir para o estúdio e fazer algumas gravações, Bono foi rápido em assinar
embaixo. Eno e Flood concordaram em se juntar e ver o que o U2 poderia realizar dessa vez. A
banda está de volta com seu método original de composição - os quatro dentro de uma sala,
tocando juntos até que uma música surja. Eno ou Edge, então, analisam as fitas, encontrando
partes que eles gostam e as editando adequadamente para formar uma música. Então a banda
ouve, sugere alterações e tenta criar letras e melodias para serem colocadas sobre a faixa já
editada. Bono ou Edge irão então cantar essas ideias de letras e melodias em um walkman
enquanto a trilha é tocada. Quando a música toma forma dessa maneira, o U2 escuta a fita, volta
para o estúdio e tenta tocá-la.

Eno, com organização acadêmica, monta um quadro branco em um tripé, no estúdio. Nele está
escrito, junto com os símbolos musicais para sustenidos e bemóis:

CICLO

SEGURA
PARA
MUDA
VOLTA

ABCDEFG

Às vezes, Eno gosta de ficar em frente a esse quadro branco com um pincel na mão, enquanto o
U2 toca, os direcionando quando ele quer que eles mudem para uma próxima seção ou mudem
para um acorde diferente. Isso é, na verdade, um sistema cômodo para trabalhar, mas vendo o
magro e careca Eno usar seu quadro e o pincel para dirigir uma banda de rock é hilário, é como o
Ichabod Crane¹ dirigindo os Rolling Stones. Me faz lembrar do velho episódio dos Três Patetas,
no qual Curly é confundido com um professor em um colégio de mulheres. Ele coloca um
daqueles chapéus quadrados de escola, um avental preto, pega um pincel e ensina os alunos a
cantar “B - I - bi, B – O - bo”, enquanto ele dança pela sala de aula. Eu fico esperando que Eno
deixe de lado seu comportamento pedagógico e grite: “Agita isso aí!”

O U2 começa outra música. Sam O'Sullivan, o técnico de bateria de Larry, entra na sala de
controle para perguntar à Flood qual é o nome dessa música. “If God Will Sent His Angels”, diz
Flood. Sam rapidamente folheia uma pilha de papéis e diz: “Nós não temos o compasso para ela!”

“Ela costumava ser chamada de ‘Wake Up, Dead Man’”, diz Flood calmamente. “Um vinte e oito
ficará bom. Um vinte e oito ou um vinte e sete”. Cada música do U2 tem seu ritmo marcado por
um temporizador eletrônico, uma faixa sonora com um click contínuo, que não só mantém o
ritmo estável, mas permite ao grupo retomar e editar seções de diferentes partes da música ou
ainda de diferentes tomadas. Quando eles executam as músicas no palco, Larry tem a opção de
usar esses clicks para encontrar seu lugar ou ainda definir o compasso. Ele decidiu anos atrás
que ele odiava ter um tick tick tick passando pelos seus fones de ouvido no palco e então, ao
invés disso, ele tem o som de um chocalho metrônomo ou uma maracá, que é alimentado
___________

¹ Ichabod Crane é um personagem fictício e protagonista do conto de Washington Irving, “The Legend of Sleepy Hollow”,
publicado pela primeira vez em 1820. Na cultura popular, essa história às vezes é renomeada como “O Cavaleiro Sem Cabeça”.
Crane é invariavelmente retratado, no trabalho original e na maioria das adaptações, como um indivíduo alto e esguio com um
efeito de espantalho.
4
suavemente através de seu monitor. Isso soa mais musical, é discreto, e se um pouquinho desse
som é captado pelo microfone, ele na verdade acrescenta um pouco de cor ao som. No estúdio, no
entanto, ele tem que usar os fones de ouvido e a trilha com o click - o que depois de oito ou nove
horas o deixa com uma tremenda dor de cabeça.

A banda não tem certeza se o compasso que Flood pediu é a melhor velocidade para “If God Will
Sent His Angels”. Eles tentam tocá-la mais devagar, eles tentam mais rápido, eles tentam bem
mais rápido. “If God Sent His Angels” vai do ritmo imponente de “Walk to the Water”, do U2, até a
energética marcha de “In a Gada Da Vida”, de Iron Butterfly, e dali até tropeçar na estrondosa
marcação de “Break on Through” do Doors. Isso não é progresso.

Edge adapta sua guitarra tocando para cada diferente compasso, encontrando algumas
inspiradoras alternativas ao longo do caminho, desde o baixo do funky wah-wah ao alto Phase-
Shifiting¹ de Ernie Isley, para algo como o zunido de um mosquito soando alto chegando ao
volume de uma serra elétrica. Finalmente ele aterrisa de volta aos tons do sonho que uma
geração de jovens guitarristas chamam de “The Edge”.

Eno está pressionando os botões de um sintetizador, procurando pelos arquivos. Bono se


comunica com a cabine através de seu microfone: “Nós estamos procurando pelos sons de ‘Dead
Man’ de Brian no teclado".

Enquanto eles estão procurando, Larry começa a tocar outra música. Bono entra nessa e se junta
a ele. Todo esse método Improvisa/Grava/Edita encoraja os músicos a manter suas veias
criativas fluirem - assim que eles ficam entediados com uma música, eles mudam para outra. A
seleção das músicas será feita mais tarde. Edge aparece com uma guitarra psicodélica. Bono
começa a cantar sobre escalar a mais alta colina, e então ele repete uma frase de uma de suas
inspirações literárias, Charles Bukowski: “These days run away like horses over a Hill” ["Esses
dias correm como cavalos sobre uma colina"].

“Dirty Day” surge como o título dessa música, embora Bono também tente algumas das palavras
que ele está usando em outra faixa, “Some Days Are Better Than Others”. As letras dessas duas
músicas podem soar abstratas (uma maneira cínica de dizer: sem sentido) fora dessa sala, mas
considerando o atual estado de espírito de Bono, elas fazem todo o sentido: “Some days you
wake up with her complaining”, “Some days you wake up in the army”, “Some days you fell like a
bit of a baby”, “Some days you can't stand the sight of a puppy”.[“Alguns dias você acorda com ela
reclamando”, “Alguns dias você acorda no exército”, “Alguns dias você se sente um pouco como um
bebê”, “Alguns dias você não aguenta ver um filhotinho”].

Isso é uma justa espreitada no atual estado mental de Bono enquanto ele anda pela sua casa,
tentando não tropeçar em seus filhos, com seu cérebro ainda cheio com a fumaça e os espelhos
da turnê Zoo TV. Ele está na estranha vizinhança mental onde a vida na estrada parece vibrante e
natural, e a vida em casa, a vida real, parece claustrofóbica e chata.
___________

¹ Wah-wah e Phase-Shifting [Deslocador de fase] são efeitos sonoros aplicados à guitarra através de filtros e distorcedores, entre
outros. Wah-wah é um pedal de efeito utilizado em conjunto com guitarras e eventualmente em baixos. Este efeito não muda a
nota tocada, e sim atenua algumas frequências. Seu nome é uma onomatopeia que faz referência ao som do instrumento, que
varia entre grave e agudo. Deslocadores de fase fornecem um deslocamento de fase ou atraso de tempo continuamente variável.

5
Bono está desde o início divagando, tentando nessas gravações, capturar a sensação que você
sente quando está deitado na cama de manhã, tentando dormir e a música dos desenhos
animados de seus filhos atravessa a parede. Sem ver os desenhos, Bono disse que as trilhas
sonoras são incríveis. Elas são desarticuladas, recortadas para acompanharem a ação de tal
maneira que desafia as regras da música, e você nunca sabe quando os violinos e trompetes
serão aumentados com um repentino grito, um trem de cargas ou a explosão de um tiro.

Seu dividido estado mental está afetando as composições do Bono. Uma música chamada
“Daddy´s Gonna Pay For Your Crashed Car” começa com “You´re a precious stone/ You´re out on
your own/ You know everyone in the world but you fell alone” [“Você é uma pedra preciosa/ Você
está por sua conta própria/ Você conhece todo mundo, mas se sente sozinho”]. Para mim, soa como
uma boa descrição do U2 em turnê pela América. Bono tenta me mostrar uma frase sobre a
música como uma metáfora religiosa (“Papai pode ser Deus”, ele diz, “mas ele também pode ser o
diabo”.) e eu digo: “Ah, qual é, Bono. Papai é Paul McGuinness. Papai é a organização que fornece
a você todos esses carros, aviões e refeições extravagantes e que paga a conta depois que você
vai embora, paga à instituição, caso você quebre alguma coisa”.

Bono diz que sim, isso é verdade – mas ele provavelmente teria respondido isso mesmo se essa
ideia nunca tivesse passado pela sua cabeça antes. Ele pode muito bem ter em mente metáforas
maiores e significados muito mais profundos para essas músicas do que uma vida como uma
estrela de rock, mas o fato dele estar tão envolvido na mentalidade da turnê enquanto escreve,
significa que ele está completamente informado por essa estranha perspectiva.

As novas letras estão cheias dessa incapacidade do U2 de se livrar dessas armadilhas mentais e
voltar ao que supostamente é a vida normal. E eu ouço tanto a apreensão quanto a excitação
diante dessa possibilidade. O Achtung Baby era sobre ser tentado a se livrar dos compromissos
convencionais pela excitação da vida noturna, mas o personagem do Achtung Baby sempre
soube onde ficava seu lar – ele estava testanto o quão longe ele poderia ir e depois ainda voltar. O
personagem dessas novas músicas perdeu seu rumo. Ele mal consegue lembrar como costumava
pensar ou quem ele costumava ser.

A música, no entanto, possui uma leve sensação de embriaguez. Eno e Flood estão conseguindo
sons parecidos com músicas submersas no pop convencional. Isso evoca o fato de que, quando
você está em um país estranho e ligeiramente bêbado, a pior disco music ou música pop pode
soar estranhamente atraente. Não é que você não saiba que ela é estúpida – é apenas que você
não se importa. Pode ter alguma coisa a ver com o fato de você ser, naquele momento e pelos
padrões do lugar, um pouco estúpido. (Durante o jantar ontem a noite, Bono fez um relato do
brilhantismo do Bee Gees: “Igual ao Abba, talvez ainda mais superior. ‘Tragedy’ é genial”).

“Crashed Car” começa com uma batida semelhante à uma bigorna – dura, barulhenta, cansativa –
e a medida que a música decola, ela é substituída por um som semelhante à um bumbo ouvido do
fundo de uma piscina. Leva pouco tempo para que eu me lembre o que aquela mudança de tom
me lembra: é como dirigir um carro com as janelas abertas, preso em um engarrafamento em
meio a uma barulhenta multidão, e então você levanta a janela do carro, deixando fora de sua
luxuosa redoma de vidro todo o pânico de toda aquela adrenalina e sente esse som baixo e
abafado.

Estruturalmente, as músicas do Achtung Baby eram convencionais – “One” ou “Who´s Gonna Ride

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Your Wild Horses” poderiam caber no The Joshua Tree. O que foi radical foi a produção –
submergindo o vocal de Bono com distorções em “Zoo Station”, por exemplo. No novo material,
no entanto, as estruturas das músicas explodem nas mais bizarras direções. Cabe ao Bono e aos
outros aparecer com letras e melodias que imponham algum senso de ordem nessas faixas
errantes. Em Achtung Baby, o U2 pegou faixas convencionais e as radicalizou; nesse material, o
U2 está pegando faixas radicais e as está cobrindo com uma capa convencional.

O U2 volta a trabalhar em “If God Will Send His Angels”. É otimista, um pouco trivial, mas
claramente ainda na tradição de grandes músicas do U2, o que pode dificultar a adaptação às
novas músicas mais desarticuladas. Essa música também precisa de um refrão, e Bono tem um
plano de como conseguir um. Ele quer que a banda pare em um certo ponto e repita uma frase
várias vezes enquanto ele canta a linha do título em cima dela. Bono pede ao Larry para tocar seu
chocalho de tal forma que afete essa grande mudança dinâmica. Edge e Adam estão tentando
descobrir o que eles devem tocar para reproduzir esse gesto dramático que Bono quer enquanto
ainda fornece a energia necessária para que o refrão alcance os ouvintes – e não o deixe cair
através de um súbito alçapão sonoro.

“Não precisa ser uma grande coisa”, diz o Eno. “Você poderia sustentar o E por mais duas horas”.

“Larry”, Bono diz, “tente uma das suas viradas no final dessa sequência”. Bono gesticula a batida
que ele quer rat-ta-tat-ta-tat e então canta, “OO-OOH, GO-OOOOOH”.

Eles tentam isso algumas vezes. Flood diz que funciona. Eles tocam de novo. Flood diz que eles o
estão perdendo – o refrão agora está em declínio: “Não é a inspiração que eu imagino que você
queira”.

Bono sugere que eles entrem na sala de controle e escutem as diferentes versões. Sentados no
sofá durante a audição, a banda concorda que a música não está funcionando. Bono diz que uma
progressão circular como essa precisa de uma grande parte de guitarra para elevar os acordes,
enquanto eles dão voltas ao redor. (Em outras palavras, deixe o Edge resolver o problema). Eno
diz que o problema pode ser o Bono. Ele está exigindo além de seu limite. Ele tem que subir
muito alto para o refrão, “Gritando”. Eno observa que a música está em E, um tom difícil para o
Bono.

“Sim”, diz Bono, “E é um tom difícil, mas guitarristas e baixistas amam essa nota e, infelizmente, o
U2 sempre começa com a música. É uma discussão que nós temos frequentemente”. Bono diz que
é bom em G, A e B, mas Edge e Adam não gostam de tocar nesses tons. Edge é impassível. Ele não
deixa que o Bono mude de assunto e escape da questão de seu problema vocal.

Depois de ouvirem diversas versões da música, Eno e Bono concordam que uma das primeiras
tomadas é melhor que as últimas, porque nessas todos sabiam exatamente onde eles queriam
chegar e as mudanças entre os versos e o refrão estavam definidos de forma bem clara. Enquanto
a versão mais antiga toca, Eno a elogia, dizendo: “Veja, ela é tensa sem ser agressiva. A maneira
como você a está cantando agora é tosca, sem graça”.

Estou impressionado com o uso da semântica de Eno para influenciar o julgamento musical. Um
produtor diferente ouviria a mesma versão e diria: “Veja, ela é nervosa sem ser ousada. A
maneira como você a está cantando agora tem fibra”.

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Com a trilha de fundo selecionada, Eno começa a exigir que Bono descubra como ele vai
solucionar seu problema com o tom, e encontrar “um personagem vocal real” para a música.
Bono evita o assunto, o que dá a Eno uma abertura para sua própria pauta. Enquanto fazia alguns
experimentos hoje mais cedo no estúdio, Eno reuniu diversos efeitos e obteve “um som vocal
novo e grandioso – fino e forte”. Ele acha que isso é exatamente o que Bono precisa para “If God
Will Send His Angels”. O cínico em mim suspeita que, com a descoberta de hoje, Eno acharia o
som perfeito para “What’s New, Pussycat”, “Nights In White Satin”, ou qualquer outra música que
Bono cantasse essa noite.

Bono pergunta, desconfiado, se esse novo som de Eno tem algo a ver com o Vocoder (um
aparelho para alterar vocais eletronicamente). Eno assegura-lhe que não. Bono tenta desviar do
assunto sugerindo que ele cante o refrão, “If God Will Send His Angels”, como um daqueles
evangelistas da TV americana ou como o Mirrorball Man, “em vez de como eu estou fazendo
agora, como um cantor de rock ruim”. Bono experimenta a ideia, soando como Foghorn
Leghorn¹. É uma tentativa escorregadia de usar uma caricatura para evitar sua responsabilidade
de verdadeiramente chegar ao tom necessário para a música.

Eno, sentindo a fraqueza de seu oponente, lança mais um golpe semântico: “Esse novo vocal que
eu encontrei é parecido com um... um...” ele finge procurar por uma descrição exata, mas ele sabe
muito bem o que vai dizer: “um evangelista psicótico!”

Os olhos de Bono se iluminam. “Isso é o que eu quero!” Primeiro round para Brian Eno.

Enquanto Eno está montando seu som, Bono diz a Edge que a guitarra deveria parar
completamente durante esse novo refrão pausado e estridente. “Não importa se você estiver
tocando acordes diferentes”, Bono diz, “se você tocá-los da mesma forma”.

“Os acordes são o contorno da música”, diz Edge, com sua postura zen. “Que forma você quer dar
para esse contorno?”

Enquanto Larry anda sem rumo até a piscina e Adam vai para casa, eu me sento no sofá entre
Bono e Edge, maravilhado com a complexa função altamente racional do U2, os dois hemisférios
do cérebro da banda – Edge à esquerda, Bono à direita – sentados elevados e orgulhosos sobre a
longa espinha dorsal do baixo e da bateria. Eno ocupa ambos os lados como se fosse um
superego. (Tim Booth do grupo britânico James, que Eno também produziu, destacou que o
nome de Brian Eno é um anagrama para “One Brain” [Cérebro Único]. Forte.) É um privilégio
assistir a cada um desses três gênios e articulados tentando explicar seus pontos de vista,
trazendo diferentes formas de retórica para o que são, na verdade, apenas questões de gosto.

Eno entra em cena falando como um professor de filosofia, usando uma aparente lógica para
ganhar seu caso. Contudo, sob rigoroso escrutínio, os silogismos de Eno são um pouco instáveis.
Ele não parte dos fatos para chegar a uma conclusão. Em vez disso, ele primeiro expõe a
conclusão (baseado em sua preferência, instinto ou conveniência pessoal) e depois, manipula
alguns fatos fazendo com que eles sustentem aquela conclusão. Então, quando Bono menciona
que quer cantar como um pregador de TV, Eno diz a ele que seu novo som vocal lembra um

___________

¹ Foghorn J. Leghorn é um personagem de desenho animado dos anos 50 que falava com uma voz estridente.

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“evangelista psicótico”. Aposto que se Bono tivesse dito que queria cantar como King Kong, Eno
teria descrito seu novo som vocal como “uma evocação de macacos gigantes”. Bono, igualmente
inteligente, tenta ganhar argumentos utilizando termos morais. Mesmo com o novo efeito de
Eno, Bono faz um trabalho ruim com sua voz de evangelista louco. Ele quer deixar isso de lado e
fazer outra coisa qualquer. Eno continua insistindo que ele o refaça, até que Bono, acuado em um
canto, declara: “Na verdade eu estou envergonhado deste vocal. Ele me constrange”. Ele faz uma
pausa para causar algum efeito antes de desferir um gancho de esquerda: “E talvez esteja certo
que eu me sinta envergonhado nesse momento. Talvez a vergonha seja o que essa letra exige!”

Aqui está um tipo de retórica que qualquer estudante atrasado com seu ensaio final apreciaria!
Bono constrói uma exigência moral a partir de seu desejo de evitar voltar a cantar a música, e
sugere que, como ele está sendo corajoso o bastante por se submeter à metralhadora de
humilhações do público por sua arte, o mínimo que Eno poderia fazer é fornecer cobertura.

Edge costuma escutar em silêncio, examinando minuciosamente os argumentos entre o


professor Eno e o mártir Bono, para depois estourar seus balões com sua própria lógica
talmúdica. Edge analisa as conflitantes propostas como um rabino e aguarda sua oportunidade
antes de concentrar sua atenção no ponto fraco onde os rodeios de Eno e o manifesto de Bono
possam ser destruídos.

Flood ouve tudo sem dizer nada. Quando todos os outros estiverem sem argumentos, exaustos,
em casa na cama, ele ainda estará aqui, fazendo com que a música soe do jeito que ele quer.

“Muitas das vezes eu pareço um sócio minoritário”, diz Flood quando os outros já foram embora.
“É praticamente como se você andasse com a vassoura atrás deles”.

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22. Fazendo Salsichas
composição por acidente / o crítico de cinema / um da coluna b / uma turnê com a câmera
pela nudez de adam / o serviço sujo de gavin / o ano do francês

Enquanto o U2 está explorando a sua alma e a adrenalina para passar por essas sessões de gravação,
a histeria da preparação da turnê já se espalhou ao redor deles. Há centenas de decisões a serem
tomadas, e todo mundo quer a atenção do U2. Na sala de estar da Factory, havia vários desenhos para
os gorros de lã do Edge dispostos para sua aprovação. Há uma marca de conferência ao lado de um
desenho de uma cobra mordendo o seu próprio rabo, junto com uma citação de um texto mitológico:
“Ouroboros: um nome gnóstico para a grande serpente do mundo”. Fintan Fitzgerald, o capitão do
vestuário, está tão desesperado em conseguir que a banda fique quieta tempo suficiente para poder
medir as suas cinturas, que ele convenceu Suzanne a pegar algumas calças jeans deles e mandar para
o a alfaiate em Londres para que ele pudesse cortar as suas roupas. O alfaiate terá que basear o seu
trabalho nessas calças surradas.

Há pilhas de faxes com mensagens escritas à mão, coisas como “Precisa da resposta hoje!”, a Suzanne
dizendo para os membros da banda que eles têm que concordar com os apelidos que vão usar para
suas reservas no hotel. Eles decidem usar o nome de famosas modelos irlandesas. “Eu quero ser o Sr.
Doody!”, diz o Bono. “Você não pode”, explica Suzanne, “O Edge já pegou esse nome”. O Edge diz que
ele será o “Sr. Rocca” em homenagem à ex-Miss Irlanda, que agora está saindo com Van Morrison. O
Bono então pode ser o Doddy.

O U2 quer focar a sua atenção em coisas grandiosas. Eles querem que a turnê Zooropa, os shows em
estádios europeus, sejam diferentes do que eles fizeram na América. Bono tem certeza que eles
podem ampliar ainda mais os limites da experimentação na Europa mais do que nos Estados Unidos.
Eles se reúnem na sala de estar para assistir um vídeo com cenas que serão exibidas nos enormes
telões da Zoo TV durante os shows. Os homens responsáveis pela montagem dessas imagens são Ned
O’Hanlon e Maurice Linnane, e Resencrantz e Guildenstern, da poderosa empresa U2. Ned e Maurice
dirigem a Dreamchaser, uma companhia de vídeo de Dublin que, embora dependa do U2 para grande
parte de sua receita, não é, na verdade, uma subsidiária do U2. Em outras palavras, apesar do U2 ser
um dos maiores clientes de Ned e Maurice, e apesar do Ned e do Maurice estarem muito próximos do
centro de ações da turnê Zoo TV, o Ned e o Maurice não são funcionários do U2. (Apesar de que a
esposa do Ned é Anne-Louise Kelly, a diretora do Principle Management em Dublin). Essa
independência se manifesta em pequenos detalhes, como por exemplo, o Ned e o Maurice não tendo
que assinar um contrato de confidencialidade, enquanto que os funcionários do Principle precisam, e
no meio desta confusa conduta, os dois homens são capazes de lidar com a tradução e execução das
ideias intermináveis do U2 sobre as imagens dos vídeos.

Enquanto Ned e Maurice trabalham com uma grande televisão e preparam sua mais recente
apresentação em vídeo, Adam está em uma cadeira arrumando o cabelo para a iminente turnê. A sua
cabeça está com uma toalha enrolada e o seu cabelo está arrepiado com alguma horrível gosma roxa.
O Adam olha por baixo de seu turbante e pergunta ao Maurice se ele viajou durante as suas últimas
férias.

“Sim, fui para uma ilha grega”.

1
“Aquela para gays?”

“Não”.

O Bono entra na sala dizendo: “O Larry foi lá uma vez. Ele não podia acreditar no que via. O pesadelo
da sua vida. Tudo o que já tinha acontecido com ele desde que tinha doze anos de idade, multiplicado
por mil”.

Edge e Larry entram. Ned e Maurice colocam a montagem do filme que abrirá o show. Há um cantor
de ópera que é cortado para um dançarino dos anos 50 que é cortado para um membro de uma tribo
africana que é cortado para o Bono com seus óculos de mosca falando em uma confusão de diversos
idiomas europeus.

Bono manda parar o vídeo. Ele não quer aparecer dentro dele. “Isso ainda não está bom, não tem
conteúdo”. Ele se opõe à ideia engraçada da própria imagem. Ned e Maurice não deixarão isso passar.

“Isso vem do homem que subiu no palco e disse: ‘Curve-se, São Francisco!’?” pergunta Maurice.

“O homem que disse: ‘Seig heil, Berlim!’?” pergunta Ned.

O Bono não arreda o pé. Ele também quer que coloquem os membros da tribo africana em outro
lugar – na forma como o filme está editado agora, eles aparecem logo depois de uma série de imagens
ridículas. Bono acha que vai parecer que o U2 está zombando deles.

Ned e Maurine suspiram e anotam as mudanças. O próximo é o vídeo que aparecerá nas telas
enquanto o U2 toca “With or Without You”, uma longa e lenta atmosfera de luzes através das
montanhas e vales do corpo nu de Adam Clayton. “Uh-oh”, Adam diz enquanto desenrola sua cabeça
para revelar um cabelo loiro fosforescente. “Talvez eu devesse assistir esse vídeo sozinho primeiro”.

“Isso será visto por milhares, Adam”. Bono ri. “Não é hora para modéstia”.

O filme continua. Na tela, um Adam nu, em posição de sentido, coberto em profundas sombras e luzes
vermelhas enquanto a câmera lentamente o filma por completo. A cinematografia é artística, o foco é
difuso. É de um bom gosto que chega a ser até demais. “Não existe narcisismo nisso”, Bono me
explica enquanto assistimos o vídeo. “A ideia é erotizar o corpo masculino ao invés do feminino. A
princípio você não tem certeza que tipo de corpo é”.

O filme foi uma reação à objeção levantada por Catherine Owens, uma artista amiga da banda,
pintora dos Trabants, e membro da equipe da Zoo TV, que insistia que a turnê precisava de um eros
masculino para contrabalançar a dançarina do ventre e a garota-escolhida-da-audiência-para-
dançar-com-Bono. E como sempre, Adam “Corpo Duplo” Clayton foi escolhido para as tomadas.

Quando a banda acaba de assistir o vídeo, Bono comenta que não há nenhuma nudez frontal
completa.

“Nós podemos arranjar uma aparição particular”, Adam oferece.

A decisão mais sensível que o U2 tomou foi ir para a Europa com cenas de propaganda nazista do
2
filme O Triunfo da Vontade e Olympia, da cineasta alemã Lent Riefenstalh. Em parte, é um comentário
sobre os rumores do ressurgimento do fascismo na Europa atual, em parte um comentário sobre o
ambiente de shows de rock em estádios gigantes, e em parte apenas para fritar o cérebro das
pessoas. Bono acha que no momento em que o U2 projetar O Triunfo da Vontade nos telões no
Estádio Olímpico de Berlim, a tensão cultural poderá ser rompida. A Europa está em uma fase de
mudanças. A ordem da Guerra Fria com a qual crescemos desapareceu. Os europeus continuarão no
caminho da unificação econômica e cultural ou irão se fragmentar em tribalismos étnicos onde o
fascismo impera. O U2 quer golpear a cabeça do seu público europeu com a ideia de quão extremas
são essas escolhas.

A TV emite um som que parece uma batida tribal africana e a tela se enche com uma cena do Olympia,
onde um garotinho alemão, vestido no que poderia ser um uniforme da Juventude Hitlerista, bate
furiosamente em um tambor de marcha militar. Essa imagem de dissolve em Joseph Stalin, em
Margaret Thatcher e no ditador romeno Nicolae Ceausescu.

“É muita coisa!” Bono protesta. “A única música que pode acompanhar isso é ‘The End of the World’.
Não dá para ir disso à ‘Zoo Station’. É um corte muito difícil. Se eu estivesse num estádio e visse isso e
depois uma banda de rock aparecesse, eu me revoltaria!”

E assim vai. Ned e Maurice têm trabalhado dia e noite para deixar essas imagens prontas e agora eles
sofrem com os milhares de cortes enquanto Bono faz suas objeções e ordena mudanças. Em anos
trabalhando com o U2, Ned e Maurice memorizaram uma longa lista de tabus. Nenhuma cena do
Edge sem o seu gorro. Evitar mostrar os pés de Bono – ele acha que eles são muito pequenos (“Eu
não tenho pés – as minhas pernas simplesmente acabam!”). Se você conseguir pegar uma tomada de
Adam no palco sem o seu queixo no ar, saboreie isso.

Certa vez a banda deu o aval para um comercial de TV do U2 que Ned e Maurice haviam feito. Uma
semana depois que ele foi ao ar, Larry decidiu que tinha uma cena dele que ele não tinha gostado. O
que fez com que o Adam dissesse que se eles fossem reeditá-lo de alguma forma, havia também uma
tomada dele que ele gostaria de mudar. A discussão aumentou, até que Bono anunciou sobre o clipe
comercial: “Na verdade, eu detesto aquilo”.

“Mas na semana passada você disse que adorou”, Ned protestou.

Eles juram que a réplica do Bono foi: “Quando eu disse que tinha adorado, na realidade o que eu
queria dizer era, que eu tinha odiado”. Ned e Maurice estão acostumados a serem mandados de volta
à prancheta.

Agora, o U2 tem que voltar para a mesa de mixagem. Os membros da banda se reúnem na cabine de
controle juntamente com Eno, Flood e o engenheiro Robbie Adams. Eles têm blocos de papel e lápis.
É hora de ouvir diversas sessões de gravações editadas e atribuir-lhes notas. Talvez dessa forma eles
possam descobrir quais as malditas músicas eles têm de finalizar antes de preparar as malas e ir
embora. A primeira faixa é reproduzida. Bono (que uma vez o Eno descreveu como “a Madre Teresa
das músicas abandonadas”) acha que isso tem muito potencial. Os outros desistem.

“Eu dou à essa um ou dois de cinco”, diz o Flood.

“Quatro de dez”, diz Eno.


3
“Mas a atmosfera é tão incomum”, Bono protesta. “Essa é no mínimo cinco de dez!”

Eles ouvem outra faixa. Eno diz que é uma ótima gravação, mas a guitarra fazendo cha-chaaang na
terceira batida a torna muito reggae. Ele quer alterar o baixo e acelerar a bateria em uma batida para
compensar – mantendo o baixo alinhado em um ao invés de dois. Adam sorri e diz: “E eu que
trabalhei tão duro para não tocar em um”. Todos lembram que a última música reggae que o U2
decidiu tentar tocar se transformou em “I Still Haven’t Found What I’m Looking For”, um de seus
maiores sucessos. Eno diz que a banda deve marcar o horário de 7 às 9 para improvisar mais durante
esta noite.

Robbie protesta que a essa altura do campeonato mais improvisações parece ser uma perda de
tempo. Eno diz: “Na verdade esse tempo será eficiente”. Edge, Adam e Larry podem seguir
improvisando, criando coisas novas – enquanto Eno e Flood fazem a mixagem dos melhores
improvisos e Bono finaliza as composições e as melodias.

Bono chama isso de “composição por acidente” e diz a Robbie que o que eles precisam decidir no
momento é se o álbum será um disco de músicas (como o The Joshua Tree) ou um disco de vibes¹
(como o The Unforgettable Fire). E como o U2 pode tomar essa decisão? Já para o quadro negro!

Logo a banda e seus produtores estão estudando um catálogo de suas opções que parece um
cardápio chinês:

Músicas: Vibes: Trilha sonora:


Babyface Numb Piano: Poem
Wandering If God Will Landscape
Sinatra Crashed Car Lemon
Zooropa Jesus Drove Me Sinatra
Wake Up, Dead Man Cry Baby

First Time Indian Jam

Kiss Me, Kill Me Sponge

Velvet Dress Lose Control

Wandering I. Nose Job

Bono se pergunta em voz alta se eles devem editar pequenos trechos de várias faixas diferentes,
criando uma montagem. Ele elogia o último álbum dos Beastie Boys. Ele odiou os raps, mas amou a
forma como as músicas entravam e saíam umas das outras. Flood diz que isso ocorreu porque eles
não conseguiam tocar seus instrumentos com precisão suficiente para manter o mesmo ritmo
___________

¹ Vibe é a diminuição de vibration, que antes das músicas eletrônicas, eram utilizadas por pessoas que gostavam de reggae, onde
grupos jamaicanos criaram um tipo de música com uma mistura de reggae, ska, salsa e merengue, e as pessoas acabavam contagiadas
pela música, dançando e resultando em “vibrações positivas" ou "vibe positiva".
4
durante uma música inteira. Mas Bono diz que isso não importa. “Isso está trazendo uma
mentalidade DJ para o rock & roll. E já era tempo”.

Ele diz que os rappers gravam álbuns numa velocidade super rápida. “De La Soul fez um álbum em
uma semana! Todos põem as mãos na massa e fazem de tudo, inclusive as composições. Esses caras
não são graduados em eletrônica, mas sabem quanto custa o tempo de permanência no estúdio. Nós
precisamos de um pouco disso”.

Quando banda começa a improvisar novamente, Bono me pede desculpas pelo tédio: “Fazer discos é
como preparar salsichas”, ele diz. “Você provavelmente vai apreciá-los mais se não ver como são
feitos”.

O U2 mergulha no improviso partindo de uma linha de baixo similar à de “This Is Radio Clash”. Edge
toca um único acorde, pressionando seus pedais para experimentar diferentes tons enquanto Eno, no
sintetizador, goteja pequenos acentos eletrônicos que flutuam ao redor de um ritmo agradável como
satélites musicais. Quando eles terminam de tocar Eno diz que gostou de verdade dessa
improvisação.

“Sim”, diz Edge, “você gosta porque ninguém nunca muda sua parte!”

“Nada muda”, diz Eno. “Meu sonho! Eu ouvi vinte e quatro faixas virgens hoje. Foi um êxtase.
Aumentem o volume dos assobios”. Todos riem.

Na hora do jantar, o Adam precisa ir embora; ele vai aparecer no show de premiação na TV da Irish
Recorded Music Industry para apresentar um prêmio para o R.E.M. Edge e eu entramos no
restaurante da Factory para pegar um pouco de comida indiana para viagem. Ele volta sua atenção
para um assunto que tem deixado todos os membros do U2 melancólicos: todos eles analisaram suas
expectativas financeiras para o próximo ano. O custo monumental de manutenção da turnê Zoo TV
na estrada durante a primavera e o verão na Europa e no outono na Austrália e no Japão consumirá
quase todos os lucros, isso se a turnê for um sucesso e se os ingressos se esgotarem na maioria das
datas. Se a Europa tiver um verão chuvoso o U2 poderá perder milhões. Um ano atrás, quando a
banda estava aqui mesmo, sonhando com o show de rock mais extravagante de todos os tempos, o
dinheiro parecia ter sido feito para ser queimado. Mas depois de doze meses, de um total de vinte e
quatro meses na estrada, a emoção de abrir novos caminhos não parece ser tão valiosa.

“Nós nos colocamos em um beco sem saída”, diz Edge. “Eu não entendo como podemos trabalhar por
um ano sem recebermos nada”. Eu pergunto se isso é literalmente a realidade. “É bem próximo”,
Edge responde. “O orçamento é tão apertado que se alguma coisa grande der errado, lá se vão os
lucros.”

Na TV, Adam está entregando uma premiação à Mike Mills do R.E.M (e do Automatic Baby).

Bono está na outra sala suportando uma entrevista ruim. Um jornalista de uma revista francesa havia
chegado. Ele é esperto e cheio de perguntas perspicazes. Mas infelizmente ele não está conseguindo
fazê-las porque o editor da revista (ou algum chefe equivalente – o U2 não sabe exatamente quem
exatamente ele é) o acompanhou e está dominando a conversa com assuntos muito desagradáveis,
falando no que parece ser uma paródia da rudeza gaulesa.

5
“Rock een roll!” ele diz para Bono. “É tudo uma grande besteira, não?” Então ele dá um ronco através
de seu longo nariz e zurra como um burro emitindo um haw haw haw. Toda vez que Bono tenta falar
sobre as intenções do U2, esse francês pançudo faz uma careta e o interrompe, geralmente para dizer
algo como: “Pare aí mesmo, seu fedelho!” e depois cai na gargalhada. Ocorre a Bono a ideia de que
essa deve ser uma técnica – uma rotina tipo policial bom/ruim para fazê-lo baixar a guarda durante a
entrevista. Ou talvez esse cara seja apenas um idiota. “Eu gosto de você”, diz o boca grande. “Eu não
estou dizendo nada contra você, mas rock & roll é uma grande besteira, haw haw haw”. Ele faz com
que Bono saiba que o U2 é bastante influenciado por sua educação católica, alheio ao fato de que
Bono, Edge e Adam foram criados como protestantes. Bono tem uma tática para escapar de situações
como essa, e seu nome é Gavin Friday. Gavin supostamente está vindo jantar com Bono, Eno e o
escritor. Gavin percebe a situação e intervém tirando os jornalistas das mãos de Bono. Gavin está
acostumado com essa rotina que já se repetiu centenas de vezes. Essa é mais uma que Bono deve a
ele.

De pé na sala de estar, esperando a hora de sair, o gaulês descarado diz a Gavin que ele não quer “ir a
nenhum desses lugares da moda! Vamos a um autêntico pub irlandês!”

Gavin diz a ele que conhece o lugar exato. O francês pergunta: “Haverá porcos pelo chão?”

Gavin se surpreende, mas tenta manter uma expressão séria. “Não, não haverá porcos lá. Os
dublinenses não são fazendeiros. Dublin é outra coisa”.

O francês diz a Gavin o quanto a Irlanda é pobre. “Não tem prédios altos!”

“Existem duas razões para isso”, Gavin explica. “Primeiro, os britânicos levaram todo o nosso
dinheiro e não devolveram nenhum. Segundo, a religião. A Igreja queria que as torres e as cruzes
fossem os pontos mais altos”.

Eles saem para jantar com o francês vomitando insultos e idiotices (ele está empolgado por estar na
terra do grande escritor irlandês Dylan Thomas) até Gavin estar pronto para sufocá-lo. Eles
caminham por toda Dublin, o francês ofegante suplicando por um táxi enquanto Gavin diz: “Não, não,
nós, pobres camponeses irlandeses, andamos a pé por toda a parte”.

Finalmente Gavin conduz seus dois convidados do continente até um clube privado que ele conhece,
um bar britânico monarquista com quadros da rainha pelas paredes e Orangemen¹ brindando ao
Império. “Isso”, Gavin diz ironicamente ao parisiense, “é um verdadeiro pub de Dublin!”

___________

¹ A Loyal Orange Institution, mais comumente conhecida como a Ordem Laranja, é uma ordem fraternal protestante baseada
principalmente na Irlanda do Norte. A Ordem Laranja foi fundada no Condado de Armagh em 1795, durante um período de conflito
sectário protestante-católico, como uma fraternidade de estilo maçônico que jurou manter a Ascendência Protestante. Seu nome é uma
homenagem ao rei protestante holandês William de Orange, que derrotou o exército do rei católico Jaime II na Guerra Guilherme -
Jacobita (1688–1691). Seus membros usam faixas laranja e são referidos como Orangemen. A Ordem se vê como defensora das
liberdades civis e religiosas protestantes, enquanto os críticos acusam a Ordem de ser sectária, triunfalista e supremacista. Como uma
sociedade protestante rigorosa, ela não aceita não-protestantes como membros, a menos que eles se convertam e adiram aos
princípios do Laranjismo, nem aceita protestantes casados com católicos. Embora a maioria das marchas de Orange não tenham
incidentes, as marchas por bairros nacionalistas predominantemente católicos e irlandeses são controversos e muitas vezes levaram à
violência.
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6
23. A Sangue Frio

adam reagrupa a caravana / uma lição de estudos sociais sérvios / bono recita seu mais recente
poema / o tio do autor tem uma audiência com a mãe abençoada / esperando pelo fim do mundo

Estou fazendo minhas compras em uma loja na Baggot Street numa manhã, sem prestar atenção à
conversa fiada das donas de casa de Dublin e um pouco mais no rádio tocando baixinho na prateleira do
homem atrás do balcão. A notícia continua, dizendo algo sobre voluntários irlandeses que trabalham em
associação com a Anistia Internacional que estão tentando conduzir uma caravana de suprimentos, com
comida e medicamentos através das linhas militares sérvias que sitiam enclaves muçulmanos e croatas
na Bósnia, no que costumava ser a Iugoslávia. Cara, na minha opinião, esses voluntários devem ser
santos! E como santos, eles serão martirizados. Os nacionalistas que tomaram o controle da Sérvia
querem sangue. Eles estão cortando o caminho através dos territórios croatas, muçulmanos e
multiétnicos desde o momento em que o comunismo desapareceu da Europa Oriental. Os sérvios têm os
restos da máquina militar iugoslava (os croatas reclamam que os sérvios são simplesmente os
comunistas tentando assegurar seu poder levantando a bandeira do antigo nacionalismo; os sérvios
respondem, “Ah é? Bem, seu pai foi um nazista!”) e o Ocidente se recusou a se envolver, exceto por
aprovar resoluções nas Nações Unidas (ONU) que recusam a permitir o fornecimento de armas para
ambos os lados. Como os sérvios já estão fortemente armados, isso teve o efeito de deixar os croatas
(que no mínimo eram parte da ordem estabelecida no país que desapareceu) em desvantagem e os
muçulmanos (uma minoria religiosa dentro de uma nação oficialmente formada sem Deus) indefesos.

Este é um exemplo horrível da prática errada da diplomacia, mas a atitude não declarada do Ocidente é:
“Você não faz um omelete sem quebrar alguns ovos. Temos visto revoluções pacíficas simultâneas em
uma escala nunca vista quando as ditaduras na Polônia, Checoslováquia, nos Bálticos, Alemanha
Oriental e - quem poderia imaginar - na própria União Soviética, foram varridas. Mudanças políticas que
poderiam ter custado tanto sangue quanto a Segunda Guerra Mundial, aconteceram de forma pacífica e
rapidamente. Agora, se as pessoas, digamos, da Romênia, querem arrastar um ditador e sua esposa para
diante de uma corte ilegal e atirar neles, isso é horrível - mas é, de longe, menos horrível do que teria
sido uma Terceira Guerra Mundial. Então, claro, haverá demonstrações de força e disputas étnicas
acontecendo aqui e ali enquanto novas nações se assentam. É triste, mas é inevitável, e tudo o que
podemos fazer é negar a eles mais armamentos para que isso não se arraste por muito tempo”.

Talvez ninguém no Ocidente esperasse que os croatas fossem contra-atacar. Mais provavelmente,
ninguém esperava que os sérvios-bósnios fossem tão sanguinários. Eles não querem conquistar os
croatas e os muçulmanos, eles querem destruí-los. Eles também viram a execução dos ditadores da
Romênia e a lição que eles aprenderam foi exterminar seus rivais antes que eles exterminem você. Os
irlandeses têm liderado os esforços para arrecadar dinheiro para o alívio das cidades sitiadas e para as
“áreas seguras” do que era a Iugoslávia. Os ingleses e franceses têm se escondido embaixo de suas
mesas, na esperança que tudo isso passe; os EUA têm sido indiferentes - a maioria dos americanos não
conseguiu achar a Bósnia em um mapa. Muito em breve, isso não será um problema, porque do jeito que
as coisas estão indo, ela não estará mais no mapa. Mas o que fez com que eu deixasse cair minhas
compras no chão do mercado é quando ouço na rádio o que parece ser uma conversa sobre o U2 liderar
esses esforços humanitários para romper o bloqueio sérvio. Eu não poderia ter ouvido direito, poderia?
Como eu só tenho o U2 na minha cabeça, certamente o locutor disse “UN” [Nações Unidas], não “U2”.

1
Eu me apoio no balcão, tentando captar as notícias com todo o barulho da loja e, sim, é o Adam Clayton
falando sobre a necessidade de assumir o risco de levar esses suprimentos para além das armas sérvias:
“É inaceitável que no mundo em que vivemos, essas coisas ainda possam acontecer sem que sejam
desafiadas!” Eu não posso acreditar nisso. Caminho de volta à Factory desnorteado. Estamos mesmo
indo para a Bósnia? Estamos realmente indo para a guerra? O U2 acha que os seus ascensoristas de
palco irão conduzi-los em segurança através da artilharia Sérvia?

Enquanto as atrocidades sérvias cresciam nessa primavera, houve um momento quando o presidente
Clinton estava pressionando a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] para enviar suas
tropas, mas naquele momento, os croatas, de repente, se voltaram e começaram a atacar a população
muçulmana também, como se dissessem aos sérvios conquistadores: “Esqueçam de nós, vamos
tripudiar o novato!” Quando isso aconteceu, a confusão lá fora atingiu o seu auge sobre de qual lado
eram as vítimas, e Clinton era incapaz de reunir apoio para uma intervenção do ocidente.

Tem se especulado (não só da parte de grupos muçulmanos, mas também, por exemplo, de Richard
Nixon) que o Ocidente não está disposto a defender os muçulmanos do genocídio como defenderia os
cristãos e os judeus.

O Adam já está no estúdio quando eu chego. “Eu ouvi você no rádio agora a pouco”, digo a ele na sala de
estar. “Diga-me que não estamos indo para a Bósnia”.

“Não, não”, diz Adam. “Nós não podemos, temos essa turnê! Estamos envolvidos no financiamento dessa
caravana de mantimentos que está entrando, mas nós mesmos não iremos. Eles me pediram pra ir lá e
falar hoje de manhã, pra ajudá-los a conseguir publicidade para isso tudo. É só isso”.

“Isso é um alívio”, eu digo. “Eu chequei o meu seguro de viajem aéreo. Ele não possui validade em uma
zona de guerra”.

Adam diz muito seriamente: "Eu acho que, se não estivéssemos em turnê, eu também iria. Todos nós
sentamos e assistimos essas coisas na televisão e dizemos: ‘Por que alguém não faz alguma coisa?’ Eu
acho que se você tiver a chance de fazer algo, você deve fazê-lo”.

Quando você lê isso em um livro, pode soar como palavras vãs, mas quando o Adam diz isso para mim
em uma sala em Dublin, não tem nada de vão, é completamente sincero. Se ele estivesse livre das suas
obrigações com os outros, eu acredito que o Adam estaria disposto a arriscar sua vida, não pelo tipo de
paixão religiosa do Bono, mas por um velho senso britânico de que essa é simplesmente a coisa certa a
se fazer. Há algo contraditório no Adam, que, como Bono diz, ele acha que está na meia-idade desde que
tinha vinte anos, mas que também parece um jovem rapaz determinado a mostrar que ele não tem
medo, que não irá isentar-se de nada, que ele fará o que for preciso e que não fará alarde sobre isso.
Quando você encontra o U2 pela primeira vez, você pensa que o Adam possui a personalidade mais
compreensível que qualquer um deles, mas eventualmente você percebe que ele é o mais complicado.
Ele registra tudo; Eu acho que ele sente tudo. Mas não demonstra praticamente nada.

Ao contrário de Bono, que mostra tudo o que ele está sentindo no seu rosto, o que está pensando nas
suas palavras, e o que comeu no café-da-manhã na sua camisa. O Bono não disfarça as suas
complexidades. Eu vou para a sala de controle e Bono está martelando no seu computador pessoal, que
se tornou a sua salvação depois de uma vida inteira perdendo as suas letras.

2
“É tão difícil assistir as notícias vindas da Bósnia”, diz Bono. “Era difícil não sentir-se acusado. Um
trabalhador voluntário olhou para mim, e para cada um de nós, dizendo: ‘Vocês são uns idiotas por não
fazerem nada’. Isso tornou muito difícil minha decisão sobre continuar trabalhando nisso” – ele fez um
gesto apontando para o estúdio ao seu redor – “importante”.

Bono leu para mim o que ele estava escrevendo:

Uma vez eu li um livro chamado "A Sangue Frio"


Sobre um assassinato no bairro
As páginas com os fatos não me fizeram nenhum bem
Eu li isso, como um homem cego, com o sangue frio
Então a história de uma criança de três anos de idade
Estuprada por soldados embora ela já estivesse morta
Fez a mãe assistir ela ser estuprada na lama
Eu estou lendo a história agora com o sangue frio
Agora há mais coisas surgindo
Cidade cercada, a pira funerária
A vida é mais barata do que falar sobre isso
As pessoas se engasgam com o vômito dos seus políticos
Na TV à cabo eu vi uma mulher chorar
Ao vivo, via satélite, de uma rua inundada
Garoto confundido com um caixote de lixo
Corpo em que uma criança costumava viver
Eu vi explosivos plásticos e um relógio despertador
Homens errados sentados no banco dos réus
Karma é uma palavra que eu nunca entendi
Como Deus pode levar uma criança de quatro anos de idade a sangue frio?
Eu vivo perto de uma praia, mas parece Nova York
Ouço falarem sobre dez assassinatos antes de chegar ao trabalho
O que vai ser, Senhor, fogo ou dilúvio?
Um ato de misericórdia ou à sangue frio?

“Estou pensando em recitar isso no álbum, apenas com a bateria”, diz Bono. "Trazendo uma nota da
brutal realidade. Você acha que isso é demais?"

Eu sugiro que descrever soldados violentando uma criança vai marcar tudo o que vier depois – isso vai
interferir no álbum de uma maneira que não se conseguirá recuperá-lo depois.

Bono diz que talvez ele deva fazer isso no palco – uma explosão da crua verdade por todo o campo, pós-
modernismo e ironia. Ele vai para outra sala para uma entrevista com Joe Jackson, da revista irlandesa
sobre música Hot Press, e ele continua falando sobre a Bósnia e em quão pequenos parecem os
problemas do U2 quando são comparados com isso.

Ele lê “A Sangue Frio” para o Jackson e então diz: “Algumas vezes, no meio de toda a cafonice, você tem
que arriscar tudo. Mas essa letra, também, é sobre a sobrecarga e eu quero usá-la ao vivo, mesmo
achando que ela possa ser apenas amostras ou linhas, eu gosto. Mas isso não é tanto sobre o sangue frio
envolvido nos vários atos que eu descrevo. É sobre a maneira como nós respondemos à essas coisas”.
3
O símbolo do terror no que era a Iugoslava é o contínuo cerco à Sarajevo, um grande centro cultural,
bastante ocidental à sua maneira, e agora cercada pelas armas sérvias. Sarajevo representa o que está
em jogo nessa guerra, porque ela não é um enclave étnico, é uma cidade moderna. Os muçulmanos não
são fundamentalistas, eles são tão seculares quanto os cristãos britânicos ou os judeus americanos.
Sarajevo é uma cidade – assim como Nova York ou Londres – onde a origem étnica não é um grande
assunto entre os cidadãos. É importante entender que os sérvios nacionalistas, que estão lançando
morteiros contra Sarajevo, não estão apenas atirando em muçulmanos, eles também estão atirando em
croatas e sérvios. Os muçulmanos, croatas, judeus e sérvios da cidade estão se juntando, tentando
descobrir por que esses fanáticos retrógrados estão tentando matá-los e por que o resto do mundo não
está se importando. Imagine a sua própria cidade sendo atacada por grupos de fanáticos
fundamentalistas cristãos e você terá uma ideia do que eles estão passando. De fato, é essa mistura de
diferentes tribos, a ausência de barreiras étnicas, que os reacionários Chetniks [nacionalistas fanáticos]
do exército sérvio querem punir e destruir.

Eu suspeito que a relutância do Ocidente em defender Sarajevo tenha raízes tão profundas que nem
Sigmund Freud ou Big Bad John poderiam escavá-las. Sarajevo, afinal, é o ponto exato onde o século XX
saiu dos trilhos. Foi em Sarajevo, em 1914, que o nacionalista bósnio, Gavrilo Princip, foi capaz, apesar
de sua incompetência chaplinesca, assassinar o arquiduque Ferdinand na terceira tentativa, dando
início à Primeira Guerra Mundial, que por sua vez, como um efeito dominó, fez estourar a Revolução
Russa e a disseminação do comunismo, o nascimento do nazismo na Alemanha, a Segunda Guerra
Mundial e o desenvolvimento e a utilização da bomba nuclear, dos quais descenderam todo o terror e
mais do que algumas maravilhas do nosso século. Todo estadista que toma decisões agora, aprendeu
quando criança nas aulas de história que o mundo seguiu pelo caminho errado por causa dessas
alianças embaraçosas – porque todos os países da Europa eram malucos o suficiente para permitir que
fossem arrastados para uma disputa na longínqua Sarajevo.

Hoje, parece que toda essa sequência de eventos durante esse século foi uma grande aberração
histórica e que, à medida que os anos 1900 vão chegando ao fim, todos esses erros estão sendo
desemaranhados para que o próximo século possa começar normalmente. Os últimos anos têm sido
como uma gravação do século XX exibida ao contrário, de trás para frente, desfazendo todos os desvios
das décadas transcorridas desde que o arquiduque morreu: zap, lá vai o liberalismo, zoom, lá vai a
revolução sexual, Santo Deus!, o muro de Berlim acaba de ser derrubado, a Europa Oriental está livre,
oh, há esses nazistas podres, o comunismo evapora, uau, lá se vai a própria União Soviética, a subclasse
dickensiana¹ retorna, e aqui estamos nós, de volta à guerra nos Bálcãs e todo o mundo tentando evitar
ser sugado para dentro da confusão em Sarajevo. Caramba, diz o maltratado século XX, foi aqui que eu
peguei o caminho errado! O “amplo giroscópio” que Yeats² descreveu em “A Segunda Vinda” acaba de ter
um botão de retrocesso.
___________

¹ Dickensiano: adjetivo que teve sua origem no nome de Charles Dickens (1812-1870), escritor inglês. É usado para descrever algo
grotesco, espirituoso, ridículo, socialmente marginalizado e até mesmo como uma referência para todo o século XIX.

² William Butler Yeats, muitas vezes apenas designado por W.B. Yeats (Dublin, 13 de junho de 1865 — Menton, França, 28 de
janeirode 1939), foi um poeta, dramaturgo e místico irlandês. Atuou ativamente no Renascimento Literário Irlandês e foi co-fundador
do Abbey Theatre. “A Segunda Vinda” é um poema de sua autoria escrito em 1919. O poema usa imagens cristãs sobre o Apocalipse e a
Segunda Vinda, alegoricamente, para descrever a atmosfera da Europa do pós-guerra. É considerado um grande trabalho da poesia
modernista

4
Ainda mais, por trás de toda essa bagagem histórica e política, eu acho que há outra razão pela qual o
Ocidente tenha tanto medo em meter o seu nariz coletivo na Bósnia. Superstição. Qualquer um que
tenha alguma lembrança infantil do livro de Apocalipse tem pequenas contorções de pavor ao pensar
sobre a iminente aproximação do ano 2000. Certamente, Ronald Reagan não fez segredo sobre sua
crença na proximidade de um confronto apocalíptico entre as forças da justiça divina e o império do mal
satânico. Ele falava alegremente sobre isso até que seus conselheiros o advertiram para calar a boca, ele
estava assustando os cavalos. Bill Clinton afirma também professar essa antiga religião americana
Batista. Assim como Jimmy Carter fez. Apesar do que pensam os sofisticados pseudo-intelectuais da
mídia em geral, essa coisa não é apenas a ocupação de ignorantes e marqueteiros. Deus ou seus
impostores se escondem atrás da mente de todos, desde Washington a Teerã, desde Waco a Jonestown,
e sempre que um século termina Ele começa a cantarolar alto e a limpar a garganta. Quando termina um
milênio? Até mesmo Fidel Castro checa a sua Água Benta.

Existem apenas dois lugares onde Deus (vivo ou morto) não é considerado um fator nos eventos
humanos – Inglaterra e no mundo acadêmico. Em qualquer outro lugar, Ele figura na maioria das
equações ao lado do dinheiro, sexo, propriedade e poder. No ocidente, durante esse século, o principal
mito do Fim do Mundo tem sido a lenda do Terceiro Segredo de Fátima. Segundo a história popular (que
simplifica ou ignora uma série de ambiguidades do relato verdadeiro), a Santíssima Mãe apareceu para
três crianças camponesas portuguesas durante a I Guerra Mundial e previu que (I) a guerra em
andamento iria terminar em breve, mas uma guerra ainda maior viria em sequência e (II) a menos que a
Rússia fosse convertida, o mundo mergulharia no Armagedom na segunda metade do século.

Uma terceira previsão foi selada e supostamente seria tornada pública em 1960. Isso nunca aconteceu -
uma história apócrifa dizia que o Papa João XXIII a abriu, leu e caiu morto. (Talvez isso fosse uma piada
metafísica prática, talvez tenha sido dito: “o Papa João morrerá quando ele ler isso”). Tem havido todo
tipo de especulações sobre o que é o Terceiro Segredo de Fátima. O mais comum é o rumor que ele dá a
data do fim do mundo, e a Igreja teme que, se eles disserem ao público, as pessoas desesperadas
acabarão se perdendo em orgias e abandono. O que na realidade não faz sentido algum, porque
qualquer um que acreditasse em uma previsão do fim do mundo dada pela Virgem Maria ao Papa seria
obviamente alguém que passaria todo o seu tempo restante em confissões e pagando indulgências
planárias¹ - e não festejando como se fosse 1999. Pela reação da Igreja, parece mais provável que a
terceira carta de Fátima previsse a ordenação de mulheres ou o fim dos benefícios fiscais ao clero ou
qualquer outra coisa que realmente aterrorizasse a cúria.

Assim como as aparições de Fátima seguiram de perto a primeira crise de Sarajevo, a crise atual foi
acompanhada por relatos de visões de Maria em Medugorje, uma aldeia iugoslava nas montanhas, cerca
de cento e cinquenta quilômetros de Sarajevo. Diz-se que a Santíssima Mãe teria começado a aparecer
para crianças nesse local em 1981. A notícia se espalhou rapidamente e os fiéis começaram a inundar a
Iugoslávia em trens, aviões e automóveis.

Eu tenho toda a informação sobre Medugorje do meu tio Gus, que viajou para lá em um avião carregado
de peregrinos americanos. Quando ele voltou, perguntei ao Gus o quão sagrada foi sua hégira². Ele disse
que foi difícil deixar para lá a atitude arrogante dos seus companheiros de fé. “Quando chegamos lá, um
___________

¹ Indulgência plenária: remissão completa, concedida pela Igreja Católica, de todas as penas temporais merecidas pelo pecado.

² Hégira: A fuga de Maomé de Meca, sua cidade natal, para Medina, no ano 622 da era cristã. Em sentido figurado significa Êxodo; qualquer
tipo de fuga, de saída de um lugar para outro.

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cara começou a amaldiçoar todos os cidadãos locais que não falavam inglês. Ele gritava: ‘Esse lugar está
cheio de estrangeiros!’ Então, entramos na sala onde as crianças estavam ajoelhadas. Nós ficamos ali
observando por um tempo. Todas, de repente, começaram a sorrir. Seus olhares se moveram em
uníssono para um lado da sala. ‘A Santíssima Mãe está aqui’, disse o nosso tradutor. As crianças falavam,
conversando com alguém que não conseguíamos ver. Então eles perguntaram se qualquer um de nós,
visitantes americanos, tínhamos qualquer dúvida que gostaríamos de perguntar à Virgem Maria”.

“Caramba, Gus”, eu disse, “essa foi uma tremenda oportunidade. Espero que você não a tenha
desperdiçado perguntando sobre corridas de cães”.

“Não, a princípio ninguém sabia o que perguntar a ela. Então, uma senhora levantou a mão e disse:
‘Existem gatos no céu?’ O tradutor nos explicou que, na verdade, as crianças não iriam querer
incomodar a Mãe de Deus com esse tipo de pergunta e se nós tínhamos algo realmente importante para
perguntar. Então, em seguida, um homem levantou a mão e perguntou: ‘Existem pessoas negras no
céu?’”

O tradutor se deu por vencido e, então, Gus considerou que talvez grande parte da humanidade tenha
boas razões para se preocupar em ser lançada no inferno. Eu acho que a Madona Negra da Czestochowa
não fazia parte do itinerário desse grupo.

Apesar de o país em torno do santuário ter sido destruído pela guerra, peregrinos continuam chegando
em Medugorje, e as crianças que dizem ter visto Maria haviam recebido uma missão secreta a ser
cumprida. Para se preparar para o que, ninguém sabe - talvez eles estejam recolhendo mantimentos
para a próxima Última Ceia.

Não pense que essa busca por sinais do fim é apenas propriedade dos católicos romanos! Protestantes
fundamentalistas começaram a se ajoelhar como jesuítas após o acidente de Chernobyl, a usina nuclear
ucraniana, em abril de 1986. O desastre de Chernobyl foi, em muitos aspectos, a primeira evidência
pública do iminente colapso do império soviético. Os níveis de radiação atingiram lugares tão distantes
como a Noruega, onde as renas receberam a radiação. Os leitores da Bíblia enlouqueceram ao saber
pelas notícias, que Chernobyl traduzido para o inglês (Wormwood) significa “absinto”. O livro de
Apocalipse prediz que um dos sinais do fim do mundo será a poluição de rios e nascentes por uma
grande estrela flamejante: “O nome da estrela era Absinto; e um terço da água transformou-se em
absinto, e um grande número de homens morreu porque as águas estavam envenenadas”.

Na próxima segunda-feira, a esposa do Bono, Ali, irá à Chernobyl passar três semanas com um grupo do
Greenpeace para fazer um documentário sobre os efeitos da radiação por lá. Ela ignorou as
preocupações de Bono sobre o perigo, dizendo que ele está mais exposto à radiação estando toda noite
no centro de todos os campos elétricos do palco da Zoo TV, do que ela estará em Chernobyl.

Eno tenta acalmar a ansiedade de Bono dizendo a ele que, de acordo com uma teoria, o desastre de
Chernobyl foi exagerado pelos ucranianos a fim de constranger as autoridades soviéticas e acelerar a
separação da Ucrânia da URSS. É uma boa teoria, mas não explica por que Rudolph (a Rena do Nariz
Vermelho) já não é mais a única rena que brilha.

Desde a queda do comunismo, tem havido todo tipo de mau agouro no ar. Enquanto o U2 está lutando
para capturar em vídeo os contraditórios sentimentos de alívio e apreensão, as nações da Europa
Ocidental estão abrindo suas fronteiras e debatendo sobre a fusão das sua respectivas moedas. Todo o
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empreendimento da Zoo TV está acontecendo enquanto o túnel do Canal da Mancha, que ligará a
Inglaterra à França, está sendo escavado. Cabos estão sendo passados, satélites estão subindo, paredes
estão vindo abaixo. É sem dúvida o fim de um mundo. O burburinho de ansiedade que atravessa a
cultura é sobre o que virá depois disso.

Ocorre-me que poderíamos aprender algo se descobríssemos quando esses eventos chegaram ao seu
ápice. Vamos ver, 1914 a 1994 é um agradável arrumado período de oitenta anos. Corte-o ao meio e isso
significa que o ponto culminante deste século cacofônico ocorreu em ... 1954. Bem, é evidente que sim!
Você sabe e eu sei qual foi a única coisa importante que aconteceu em 1954, não é mesmo? Foi o ano em
que o caminhoneiro Elvis Presley entrou no Sun Studios pela primeira vez e misturou música country
com rhythm-and-blues¹. Esse ano foi o começo do rock & roll! O marco, no meio do caminho, entre
Sarajevo de 14 e Sarajevo de 94 é “Milk Cow Blues Boogie”. Woo hoo, como dizem os estudiosos, é isso
ai.

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¹ Um estilo de música desenvolvido pelos afro-americanos que combina Blues e Jazz.

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24. Não entre quando a luz vermelha estiver piscando
uma música para squidgy / o sal na ceia de nero / uma bolsa de dinheiro no banco de trás de um
táxi / adam vivencia uma oscilação de humor / the edge em seu ambiente

O U2 está improvisando de novo, criando músicas o suficiente para lançar coletâneas e boxes por anos
depois que seu avião cair. Observando-os trabalhar dessa maneira, é realmente impressionante quantas
músicas frequentemente creditadas somente ao Edge dependem exclusivamente de Adam e Larry.
Adam costuma tocar com um som de base vibrante e cheio, como o de um baixista jamaicano, que
preenche o grande espaço sonoro com o menor número de notas. Larry, que aprendeu a tocar bateria
por conta própria e, consequentemente, aprendeu algumas coisas tecnicamente erradas, toca com uma
rigidez marcial, mas usa sua bateria de uma maneira que um baterista devidamente treinado nunca
faria. Ele tem tom-toms em cada um de seus lados, caindo no hábito de sair da caixa (snare drum) para
os tom-toms, que é contrário a como muitos percussionistas usariam esses tambores. Não estamos
falando sobre grandes inovações técnicas aqui; estamos falando sobre hábitos peculiares pessoais de
mais de quinze anos que se solidificaram, fazendo com que grande parte do que o U2 faz sempre soe
como o U2, não importa o estilo musical que eles estejam tocando. É também por isso que bandas que
imitam o U2 nunca conseguem acertar, e o porquê guitarristas que tentam tocar como Edge acabam
soando pouco convincentes; sua sessão rítmica nunca soa como Adam e Larry.

A grande piada é que o modo como Adam e Larry tocam reflete perfeitamente suas personalidades.
Larry está ditando o ritmo, um pouco adiantado – como seria de esperar de um homem tão ordenado e
pontual em sua vida. Adam toca um pouco atrás do ritmo, esperando até o último momento para entrar,
o que combina com a personalidade casual e despreocupada de Adam. O grande baixista e compositor
Charles Mingus disse que os músicos não devem pensar no ritmo como um ponto que se deve pousar
precisamente, mas como um círculo no qual se pode pousar em qualquer lugar. Adam e Larry, que
aprenderam a tocar seus instrumentos juntos desde que eram estudantes, estão trabalhando em
exemplos do ponto de vista de Mingus. Eles tocam juntos por tanto tempo que parece que o ritmo se
propaga entre eles. E eles criam uma camada no qual repousam os acordes de Edge.

Flood diz: “Larry e Adam estão constantemente empurrando e puxando, mas eles se conhecem tão bem
que sabem onde cada um deles pode chegar e trabalhar dentro disso. E você tem essa estranha tensão
no ritmo das faixas. É uma espinha dorsal tão forte que permite ao Edge uma certa liberdade para
mover-se em primeiro plano”.

A banda termina de tocar uma caótica jam [improvisação] e depois se encontra com os produtores na
sala de controle para que eles a ouçam. Edge pega um marcador de texto para adicionar a música à lista
no quadro branco. “Como vamos chamá-la?” Edge pergunta. “Slidey”, Bono sugere.

Edge começa a escrever e Eno, sorrindo, diz: “Squidgy”¹. Todos começam a rir. “Sim!” Bono diz.
“Squidgy!” Edge escreve. Squidgy é o nome carinhoso pelo qual a princesa Diana é chamada por seu
suposto amante em uma suposta gravação de uma de suas supostas conversas telefônicas que os
tablóides britânicos (e de fato jornais por todo suposto mundo) conseguiram e publicaram. Bono quer
saber: “Podemos obter as fitas?”
_________
¹ Eno faz um jogo de palavras com Slidey e Squidgy, que basicamente têm o mesmo significado: Escorregadia.

1
Edge diz que os atores representando a princesa e seu amante leram as transcrições na TV na semana
passada. “Ótimo!” diz Bono. “Vamos consegui-las!” Rapidamente surge a ideia para que o diálogo entre
Di e seu namorado seja a letra dessa faixa. O U2 e seus parceiros estão dando cambalhotas em êxtase
com o brilho malévolo da ideia. “Nosso je t’aime para a família real!” Bono diz.

Edge diz que concordou com o príncipe Charles pela primeira vez quando ele disse à sua amante, em
outro telefonema gravado, que ele desejava poder reencarnar como um par de calças femininas. Bono
anuncia que esta faixa ‘Squidgy’ deve ser vista como uma declaração de apoio a Charles. As pessoas
reviram os olhos e tossem alto depois dessa.

Finalmente o integrante geneticamente inglês do U2 começa a falar. “Você percebe”, diz Adam, “que se
formos em frente com isso minha mãe nunca vai me perdoar? Pop star ou não pop star você não entra
nesta casa!” “Ela é monarquista?” Edge pergunta. “Sim. Ela está além da lógica”. “De quem ela gosta?”

“Charles. Ela acha que Diana se perdeu. ‘É óbvio, ela perderá as crianças…’”

“Anne se tornou a mais popular agora”, diz Edge. “Ela é o Bruce Springsteen da realeza. ‘Temos que dar
crédito a ela, ela está se expondo!’ Considerando que Charles é agora o Sting”.

“Eu acho”, Larry diz, “que isso faz da Fergie a Madonna”.

É hora de tentar tocar a música novamente. Eno intima Larry e Adam para voltarem para seus
instrumentos, exclamando: “Envie aos encanadores!” Adam – cometendo um terrível erro – pergunta
em alto e bom som de onde vem a palavra encanador. Isso faz com que Eno comece um tutorial de uma
hora de duração sobre a origem da palavra encanador que deriva da mesma raiz latina de chumbo, que
o leva a histórias entrelaçadas de encanamentos e envenenamento por chumbo, de volta à Roma antiga.
Eno teoriza que a queda do Império Romano pode ser atribuída ao envenenamento por chumbo (Larry
e Adam largam seus instrumentos e pegam o telefone para pedir comida indiana) causado por um
encanamento ruim afetando a sanidade dos antigos italianos.

Logo depois nós estávamos no salão do bar abrindo pacotes de tandoori¹ enquanto Eno continua sua
exegese e Edge lança uma pergunta de vez em quando. Enquanto come, Eno explica que um historiador
moderno recriou uma refeição servida a Nero a partir de uma receita encontrada em um recipiente
encontrado em uma escavação e descobriu que a comida resultante era tão cheia de sal que era
literalmente intragável. “Agora”, Eno diz, levantando o seu dedo indicador, tão triunfante como uma
bandeira de batalha, “qual doença tem como um de seus sintomas a perda da capacidade de sentir o
salgado?” Um silêncio recai sobre a mesa. “Envenenamento por chumbo!”

Depois dessa conversa todos deixaram de lado o saleiro que estava na mesa do U2 essa noite! Quando
terminamos de comer, Bono olha em volta do refeitório e diz: “Isso parece com o lugar onde nós
fizemos as nossas primeiras apresentações, mas aqueles lugares eram ainda menores”.

Larry pergunta se os outros lembram onde foi o lugar que Bono teve que cantar em cima de uma mesa
de sinuca. Ele diz que outro dia estava se lembrando quando eles viajaram para um show em algum
lugar no sul, com o carro do Paul McGuinness... Bono se mete na conversa: “Você ficava chutando as
___________

¹Tandoori é um prato preparado com frango assado marinado em iogurte e especiarias em um tandoor, um forno de barro cilíndrico. O
prato é originário do subcontinente indiano e é popular em muitas outras partes do mundo.
2
costas dele com o seu joelho na parte de trás do banco – e ele pensava que você estava fazendo isso de
propósito!”

Larry ri às gargalhadas: “Ele achou que eu não gostava dele! Existe um grande livro a ser escrito sobre o
início da carreira do U2!”

Edge olha pra mim e diz: “Oh, não, não existe”.

Bono conta a história de quando Barry Mead, o primeiro agente de turnês do U2, foi pela primeira vez
aos Estados Unidos. Ele estava nervoso porque carregava U$ 10.000 de lucros no banco de trás de um
táxi em Nova York preso no tráfego, quando um ladrão que fugia de um assalto de U$ 70, pulou para
dentro do táxi, colocou a arma na cabeça do motorista, e gritou: “Se manda!”

“Não podemos nos mandar!” o motorista disse. “Estamos presos no trânsito!” Antes que a discussão
pudesse continuar, os policiais correram e detiveram o rendido ladrão. Eles então arrastaram o abalado
agente da turnê à delegacia para explicar a sacola de papel cheia de dinheiro.

A banda volta ao trabalho. Bono ainda está tentando encontrar uma abordagem vocal para “If God Will
Send His Angels” e não consegue chegar a lugar algum. Ele está experimentando diferentes melodias,
cantando um artigo de jornal sobre um escândalo envolvendo uma estrela do cinema, procurando por
uma letra à medida que avança. De repente, Bono dá um salto, sua comida tandoori demanda
evacuação. “Eu já volto!” ele uiva. “Um indiano está atrás de mim!”

Enquanto ele está fora, Larry, que ouvia silenciosamente enquanto Bono improvisava, diz que tem uma
ideia para uma melodia. Ele canta e Eno, Edge e Flood acham que está boa. Quando Bono retorna, Larry
canta novamente para ele, e então Bono começa a tentar trabalhar com isso. Ele está distraído. Bono
tinha prometido passar algum tempo em casa com Ali antes dela viajar pra Chernobyl e até agora ele se
mostrou ser um grande mentiroso. Logo ele irá embora. Eno levanta acampamento com o engenheiro
Robbie Adams e vão para o estúdio do Windmill Lane, logo dobrando a esquina, onde eles montaram
uma segunda oficina para manter o bom funcionamento da linha de montagem do disco.

Enquanto o Edge trabalha com mais algumas fitas, Adam e eu vamos à sala de estar pra conversar.
Pergunto ao Adam se ele também estava tão abalado quanto Bono por causa da reação negativa ao
Rattle and Hum e ao beco sem saída a que ele os levou.

“Todo mundo entendeu o que tinha acontecido com o filme”, diz Adam. “Eu não acho que no fundo
realmente machucou tanto ao Larry, a mim mesmo, ou ao Edge. Acho que nós sentimos: ‘Ok, é bastante
justo’. Mas a banda fez um grande esforço para compor novas músicas para a trilha sonora do álbum e
trabalhou muito duro para fazer com que soasse bem no filme e no próprio álbum. O Edge estava
fazendo todo tipo de diferentes mixagens: tinha uma para o filme em estéreo, uma para o vídeo cassete
em mono, uma terceira para o álbum, e ainda por cima, produzindo algumas novas faixas maravilhosas,
um trabalho de ótima qualidade. Todo mundo ficou bem irritado por ter sido criticado após todo esse
esforço para fazer algo de que todos nós estávamos orgulhosos e era de grande valor para os nossos
fãs”.

Então, a banda estava para baixo e sentindo-se sob intensa pressão por estar indo para a Alemanha
começar o Achtung Baby. Eu lembro a Adam sobre a insistência de Larry para que os quatro cruzassem
os seus braços antes de terminar o álbum no primeiro processo que nasceu em Dublin.
3
“Mais do que terminar o álbum”, diz Adam, “isso tinha que ver com sermos capazes de estar juntos na
estrada pelos próximos dois anos. Certamente, o espírito com o qual nós saímos para a estrada [depois
de gravar o disco em Hansa] era muito mais saudável”.

“Em Berlim, éramos dependentes da companhia uns dos outros e tínhamos que decidir o quanto
gostávamos um do outro. Não estou dizendo que isso foi facilmente resolvido. Provavelmente levou
todo o período de gravação do álbum para que todas as questões fossem resolvidas. Acabo de me
lembrar que todo mundo se apoiava em todos os outros para resolver os seus problemas. O que quer
que saísse de errado era sempre culpa da outra pessoa”.

“Os problemas surgiram porque a visão não estava clara. Dan, como produtor, estava enraizado na
maneira antiga daquilo que fizemos, adicionando atmosferas e texturas ao que tocávamos. Isso era
muito frustrante para Bono porque não estava lhe dando a inspiração que ele precisava. Então, ele
estava tipo que lutando em todas as frentes. Bono estava tentando invadir Leningrado e proteger a
Europa ao mesmo tempo”.

“Havia um problema geral de comunicação entre todos. Houve um mal-entendido sobre a quantidade de
esforço e coesão que eram necessários para se ver além desse projeto. Considerando que com esse
projeto provavelmente há menos músicas do que existiam ao iniciar o Achtung Baby, a comunicação é
bem clara e nós não temos muito tempo. No Achtung Baby tínhamos tempo e aquilo foi uma espada de
dois gumes. Possibilitou-nos não fazer face ao problema, apenas para continuar com a frustração.
Quando em dúvida, o Edge faria outro overdub de guitarra. Ele faria qualquer coisa para manter a
sensação de momento constante. Fazer overdubs de guitarra por uma semana lhe daria essa sensação.

“Quando Edge consegue um bom desempenho, ele de fato entra em um ciclo. Ele está sempre feliz por
continuar. Eu acho que seu processo de sempre continuar, mesmo que seja prejudicial numa forma
pessoal, permitiu que ele fizesse grandes progressos, e isso tem sido a coisa certa para a sua carreira.
Ele fez um tremendo progresso, ele é um ótimo guitarrista”.

Você achou que nos últimos dias em Berlim a banda poderia ter acabado?

“É difícil falar depois do acontecido, mas eu me sentia otimista. Sentia que essa ideia estava lá apenas se
pudéssemos deixar isso acontecer. Eu não sentia que estávamos muito distantes disso como o Bono
achava. Faltavam apenas algumas decisões corajosas tomadas de forma que todos contribuíssem para o
consenso. E o Bono, através da sua própria frustração, raiva e alienação com todos, chegou a um ponto
onde ele não estava preparado para ouvir o ponto de vista de mais ninguém. Talvez ele estivesse sobre
uma pressão tão grande que o seu próprio ponto de vista tenha se desgastado, e ele precisou exagerar
isso para conseguir seguir em frente”.

O novo U2 que emergiu de toda essa tensão é amplo o bastante para conter muitas contradições. Apesar
de toda confusão sobre o que eles estavam tentando extrair com o Achtung Baby, em retrospecto, o
álbum provavelmente salvou a carreira do U2. Embora ninguém tenha previsto isso naquela época,
todos os contemporâneos do U2 da década de 80 que recentemente lançaram álbuns mantendo seus
estilos usuais – Springsteen, Dire Straits, INXS, Gabriel, Petty – sofreram grandes quedas nas vendas.
Verificou-se que estava havendo uma mudança cultural na música pop que poderia ter afundado um
Joshua Tree 2, do mesmo modo como atingiu esses outros artistas. Toda uma safra nova de bandas que
iam de Pearl Jam à Smashing Pumpkins tinha dominado as rádios, a MTV e as vendas de discos. Ao

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adiantar apenas um minuto à frente dessa nova cultura, o U2 se estabeleceu como o primeiro desses
novos grupos, e não como o último dos antigos.

“Tivemos a sorte de ter sido uma banda jovem”, Adam me lembra. “Eu sou o mais velho e tenho trinta e
dois anos. Muitos de nossos contemporâneos ainda estavam lutando nessa idade. Quando chegam a
seus quarenta anos talvez seja um pouco tarde demais para que eles possam voltar a estaca zero”. Os
erros que cometemos no começo – não entender o que era ser legal, não entender a atitude, roupas e
cortes de cabelos – eram porque tínhamos dezessete e dezoito anos e os nossos ídolos, como o The
Clash, The Jam e The Police, que tinham toda essa merda, estavam gravando os seus primeiros álbuns
aos vinte e sete ou vinte e oito anos. Estávamos gravando o nosso primeiro disco quando tínhamos
vinte anos! Então, sim, eles tinham sua imagem de grupo. Levamos quinze anos para conseguir montar
a nossa imagem de grupo, ou de fato, para perceber que a imagem é importante”. Adam sorri. “E não
importante”.

Finalmente Edge chega com uma fita cassete dentro de um aparelho de som, de uma sessão do U2,
senta-se no piano e começa a tocar acordes no piano juntamente com a música. O Adam se levanta e
volta para a sala de controle. Já se passaram das 11 da noite e Flood é o último da equipe que ainda
permanece no estúdio. Adam e Flood conversam sobre as sessões. Um dos aspectos mais estranhos
desse método de trabalho é que quando os 4 membros do U2 ensaiam juntos eles surgem com músicas
que soam como se fossem de qualquer era da banda – do Boy ao The Joshua Tree. Mas as regras do novo
U2 exigem que tais sons familiares sejam descartados ou contestados. Para Adam, às vezes isso é um
exercício de intelectualização que não necessariamente produz a melhor música possível.

Ele diz a Flood que não virá amanhã – ele vai ao casamento de um velho amigo e que está realmente
precisando de uma folga. Adam diz que se lembra do “buraco negro” em que o U2 entrou depois do The
Joshua Tree. “Gravar o The Joshua Tree foi descontraído, muito divertido”, diz Adam. “Depois tudo
explodiu. Aquela turnê foi uma merda. Rattle and Hum foi uma merda. Fazer o Achtung Baby foi uma
merda”. Adam, obviamente, está falando sobre a atmosfera do trabalho e não sobre o trabalho
propriamente dito.

Flood se solidariza: “Eu me lembro de uma reunião feita para agendar uma reunião para decidir sobre
tomar uma decisão”.

“Foi somente na Zoo Tv que as coisas se acertaram de novo”, Adam diz com tristeza. “E agora aqui
estamos, de volta ao estúdio, fazendo tudo novamente por nós mesmos”.

“Mas vocês cumpriram o que propuseram fazer”, diz Flood. “Quando uma banda está se reinventando,
como o U2 está, deve haver muita teorização. Daqui para frente vocês terão que carregar esse fardo
extra”.

Não é difícil entender a frustração de Adam com o método socrático para a gravação de um álbum.
Quando há um desentendimento sobre qual caminho seguir com uma música, o argumento que mais
tem probabilidade de ganhar é o feito por aquele que marca mais pontos no debate sobre qual música
soa melhor. É lógico que se todos concordam que uma determinada música soa melhor, não haverá
debate.

Adam diz que fazer os três primeiros álbuns do U2 foi divertido. Eles foram feitos em semanas. “October
foi nosso suor e sangue, esperando pelas letras. Para o War nós tínhamos todas as músicas e foi fácil.
5
Unforgettable Fire foi difícil. Os mesmos buracos negros, esperando pelas letras. Nós tínhamos seis
músicas, então Brian surgiu com ‘Elvis Presley and America’ e ‘4th of July’ e nos deu algo para amarrar o
álbum”. Ele senta tristonho, melancólico, refletindo sobre o peso da bagagem que foi atrelada a uma
banda que costumava apenas entrar em uma sala e tocar.

A cabeça de Edge aparece na porta. “Telefone para você Adam. Acho que é Naomi”.

Adam vai para o aposento adjacente atender a ligação e Edge entra para tocar para Flood o trecho do
piano que ele acabou de gravar no aparelho de som. Flood ama o trecho. “Vamos encontrar uma faixa de
apoio sem acordes”, diz Edge, “e colocá-la no papel. Vamos tocar para o Bono algo que ele nunca ouviu e
então damos a ele um microfone”.

Adam retorna com um grande sorriso no rosto. “Adivinhem quem eu terei como hóspedes em minha
casa nesse fim de semana”, ele anuncia. “Naomi Campbell e Christy Turlington! Elas acabaram de
decidir! Estão indo direto para o aeroporto”.

As duas supermodelos estão presas em Paris, chegaram tarde demais para embarcarem em um avião,
então Adam se oferece para alugar um jatinho e enviá-lo para trazê-las até o seu castelo.

Flood olha para Adam, cujo humor negro da banda o havia transformado, e diz: “Vida dura”.

Adam sai para preparar seu apartamento de solteirão para as visitas. Esta é a hora da noite em que
Edge e Flood vão para o trabalho como elfos sapateiros, indo até altas horas da madrugada, de modo
que, quando os outros retornam na manhã seguinte, ficam impressionados com as criações expostas
diante deles.

O técnico de guitarras de Edge, Dallas, aponta para seu chefe e sorri: “Esse cara nunca vai pra casa”.
Dallas já trabalhou para vários cachorros grandes do negócio da música, desde Eagles até Prince, mas o
U2, ele diz, é diferente. Dallas afirma que eles geralmente entram no estúdio sem uma música,
improvisam juntos e você pensa que nada está acontecendo, e de repente – bum – uma música aparece.
E eles mudam qualquer coisa. A maioria das bandas se restringe a tocar uma música de uma mesma
maneira. O U2 irá trabalhar e trabalhar em alguma coisa, quase terminar, e então um dos caras de
repente mudará a parte que estava tocando e os outros o seguirão para uma direção completamente
diferente, Bono começará a cantar uma melodia diferente e você pensa: “O que eles estão fazendo?
Estava quase pronta! Terminem logo!” Mas geralmente, diz Dallas, essa nova parte os levará a algo
melhor do que o que eles tinham antes.

Parece-me que o U2 tem mais fé na força de uma música em si do que muitas outras bandas. Vários
artistas tratam suas músicas como objetos frágeis que podem ser facilmente destruídos. O U2 sabe que,
quando um experimento falha, o original ainda estará lá e é possível retornar à ele.

Edge coloca sua nova demo para tocar e a ouve. Ele pergunta se Larry ainda está no prédio. “Não”,
responde Flood, “O Larry foi para casa”. Edge se levanta e vai para a sala grande, se senta em frente a
bateria do Larry e começa a golpeá-la numa batida sem ritmo enquanto toca sua demo. Ele intercepta

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um roadie¹ que está arrumando uma mala de viagem e pede para ele vir até a bateria e continuar
tocando. O roadie faz o que ele pede, e Edge vai para o teclado, adicionando um outro trecho.

Flood grava tudo e, em seguida, Edge volta a ouvi-la. Ele acha que dá para formar uma música, mas
gostaria de escutá-la com uma estrutura diferente – é só usar esse trecho como introdução, repetir o
verso duas vezes, repetir a introdução até entrar no refrão final. Ele pensa sobre isso por um tempo e
então pergunta a Flood se seria possível pegar uma amostra de cada seção da música e introduzí-la no
teclado, de modo que quando uma tecla fosse pressionada tocasse apenas o refrão, outra tecla apenas a
introdução, outra tecla, o verso. Flood assegura que sim. Ele extrai um sampler² e começa a fazer isso.

Quarenta e cinco minutos depois, Edge está no Paraíso do Edge, sentado no sofá do estúdio diante de
um teclado, cobrindo as teclas com fitas adesivas, etiquetando as diferentes partes de sua música. Ele
pode tocar uma dúzia de variações da faixa com apenas um dedo. Flood grava tudo capturando as
diferentes versões, enquanto Edge experimenta um refrão no início, usando a introdução como
encerramento da música, e todos os outros rearranjos estruturais que ele possa imaginar. Ele não está
pensando em prazos, lançamentos de álbuns, ensaios para turnês ou problemas familiares agora. Edge
está perdido em sua música, e ele permanecerá feliz, por estar ali durante toda a noite.

___________

¹ Roadie é um técnico responsável que acompanha uma banda para todos os espetáculos. Apoia os músicos nas montagens e
desmontagens dos shows, garantindo que fique tudo tecnicamente bem ligado e como os músicos gostam. Entre outras
coisas, o roadie é responsável por: descarregar e carregar os carrinhos com o material, montagem de todos os
equipamentos no palco, apoiar as montagens, afinações e programação da iluminação do show, apoiar as montagens de
cenografia, coordenar as ligações de vídeos, afinar instrumentos. Durante o show, também está disponível para qualquer
eventualidade ou problema em cima de palco. Estará sempre em contato com os técnicos de som de frente, som de palco,
iluminação e vídeo para que possa resolver de imediato possíveis problemas. Para ser roadie é necessário um conhecimento
transversal dos meios técnicos e de música.

² Teoricamente a técnica da sampleagem é extrair de uma gravação algum trecho da construção musical e utilizá-la para a
construção de uma nova música. Em parte ou em seu todo. "Sample", em inglês, significa "amostra". Um sample de bateria,
por exemplo, é uma amostra de som "tirado" desse instrumento, via gravação digital, por exemplo. Quando alguém
"sampleia" um som, este alguém (ou algo) está gravando amostras de áudio para uso posterior ou não. Exemplos: 1) Baixo
do "Under Pressure" do Queen, virando base para a música "Ice Ice Baby" do Vanilla Ice. 2) Sample da versão da Andrew
Oldham Orchestra para a música dos Rolling Stones, "The Last Time" virou "Bittersweet Symphony" do Verve.

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25. Stay

assistindo bono escrever uma canção / crítica típica do baterista / a grande decisão de ir em
frente com um álbum / a perspectiva de flood / bono, a babá / o grande debate sobre wanderer

Bono e Edge estão em frente ao quadro, estudando sua longa lista de músicas e montando possíveis
sequências para o álbum. Existem pontos de diferentes cores ao lado de cada título, significando o quão
distante do final cada faixa está. Um ponto vermelho significa que a música está quase lá, um ponto
verde, que a melodia está terminada, um ponto azul, que a letra está pronta. Um X significa “mixar a
danada”. Eles estão discutindo com Larry uma faixa que estão ouvindo e que se chama “Sinatra”. Como
esse título sugere, a música foi escrita pelo Edge, em uma tentativa de imitar as estruturas clássicas de
canções do estilo pop de Tin Pan Alley¹. Num certo momento, Bono estava até cantando versos de “the
wee small hours”² em cima da melodia. Bono está tentando encontrar novas palavras e Larry dando os
seus palpites. Larry diz que há palavras improvisadas em demasia, linhas cheias de inúteis “ands” [es] e
“thes” [os/as]. Bono deveria encurtar essas linhas. Larry também acha que há alguma coisa fora do
ritmo.

“Percussão?” pergunta Edge.

“Não”, diz Larry, “o baixo”. Todos eles riem. Adam tinha saído com Naomi e é bom ele ficar atento se
quiser que suas batidas permaneçam quando ele estiver de volta. Na verdade, Larry diz que ama a parte
do Adam, mas detesta o efeito fantasmagórico que os produtores colocaram, utilizando eco, que altera a
linha do baixo.

“Então, basicamente”, diz Edge, “a sua crítica é: muito baixo, muitas palavras, pouca bateria”. Todos se
racham de rir com a crítica típica do baterista. Bono diz que o que Larry realmente deseja é ser o cantor,
Bono quer ser o guitarrista, e Edge é um baterista frustrado. “Adam só quer tocar o baixo”.

Edge e Larry saem para tomar algumas decisões sobre a turnê e o Bono volta sua atenção para a faixa
em progresso. Um monitor de TV foi trazido para dentro da sala e ele coloca uma sequência do filme
que o Wim Wenders está fazendo, uma continuação de “Asas do Desejo”, que será chamada “Far Away,
So Close” [Tão Longe, Tão Perto]. A cena mostra um anjo no alto, sobre Berlim, olhando para baixo
contemplando a terra. O anjo salta de sua plataforma, trocando a divindade por mortalidade. Enquanto
assistimos, Flood coloca “Sinatra”, uma melancólica faixa instrumental. Bono começa a cantar junto:
“Green light, 7-Eleven³/ You stop in for a pack of cigarettes/ You don't smoke, don't even want 'em/
Check your change”. [Farol verde, 7-Eleven/ Você para e compra um maço de cigarros/ Você não fuma,
nem mesmo os deseja/ confira seu troco].

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¹ Tin Pan Alley é o nome dado ao grupo de produtores musicais e compositores, baseados em Nova York, que dominou a música popular
dos Estados Unidos no final do século 19 e começo do século 20.

² In the Wee Small Hours of the Morning: canção gravada por Frank Sinatra, em 17 de Fevereiro de 1955, e publicada em 1955 como o
faixa principal do álbum In a Wee Small Hours.

³ 7-Eleven é uma marca internacional, licenciada, e operadora de lojas de franquia, a maior cadeia de lojas em todas as categorias. Suas
lojas são encontradas em 18 países.

1
Isso está assombroso, solto e leve. Bono pergunta o que eu penso e digo a ele que está muito bom. Ele
tenta mais alguns versos. Ele canta: “And if you hit me, I don't mind/ ‘Cause when you hurt me I feel
alive”. [E se você me bater, eu não me importo/ Porque quando você me machuca eu me sinto vivo].
Então ele diz que seria melhor se ele mudasse a perspectiva para: “And if he hits you, you don't mind”.
[E se ele te machuca, você não se importa].

Sim, eu digo, isso é muito mais concreto. Numa linguagem mais informal, o you [você] na primeira
versão soa como one [um]. Alterar para he hits you [ele te machuca] torna-a mais vívida. Juntamente
com um verso que diz que a vítima está “dressed like a car crash” [vestida como um acidente de carro]
você está criando um personagem real. Eu digo a Bono que isso me faz pensar em um garoto gay de uma
cidade pequena. Ele diz que está imaginando uma mulher, não um homossexual, mas é ótimo que se
possa interpretar de maneiras diferentes. Ele se senta em um sofá na sala de controle e canta com um
microfone de mão, inclinando-se para frente para colocar toda a sua emoção, apertando seus olhos
fechados, levantando o seu braço nos versos principais. Bono cantando no sofá do estúdio não se
comporta muito diferentemente do Bono cantando em um estádio de futebol. Ele tenta gravar duas
vezes, em duas versões diferentes, sobre a faixa base, uma lenta e taciturna, outra mais rápida e mais
forte.

Cantando sobre a faixa base mais forte, ele decide que a música não é mais sobre o anjo de Wenders,
então ele deveria mudar uma linha do refrão, que é agora: “Stay – as the angel hits the ground”. [Fique –
como um anjo que atinge o chão]. Qual é a frase melhor? Ele pede sugestões, parando em “Stay and the
night will be enough” [Fique e a noite será suficiente]. Ele diz que a música agora é forte o suficiente
para ir em frente. Ele canta o refrão com essa frase, tentando diferentes pontos, desde a primeira linha
do refrão até a última. Quando ele a canta como conclusão, ele realmente faz uma grande declaração,
levantando a mão direita no ar e clamando: “Stayyy – and the night will be enough”. [Fique – e a noite
será suficiente].

Flood é cauteloso em realação ao melodrama; está ficando um pouco romântica demais para o seu
gosto. Quando Bono tenta cantar: “Stay – with your secrets sleep in grough” [Fique – com os seus
segredos dormindo aborrecida]. Flood bate o pé. Secrets [Segredo] é uma das palavras que faz o seu
detector de anticlímax vibrar. Conforme a música vai ganhando uma personalidade grandiosa, Bono faz
pequenos ajustes em outras partes. Para entrar no contexto de Wenders ele tem o verso: “Farway, so
close, up with the static and the radio waves” [Tão longe, tão perto, junto com os ruídos e as ondas de
rádio]. Ele havia dito “radio waves” [ondas de rádio], a fim de ser deliberadamente não-romântico, mas
agora que a música está tomando outro rumo, ele vai tirar a palavra waves e cantará mais ao estilo Van
Morrison, “Up with the static and the radio”.

Bono deveria estar onde Ali está, onde Adam está, no casamento de um amigo. Ele disse à sua esposa
para ir na frente, ele iria encontrá-la lá, depois de uma rápida parada no estúdio. Isso foi há horas atrás.
Quando Flood diz: “Que tal outro take?” Bono diz: “Que tal um divórcio?”.

Edge chega para ouvir o que o Bono tinha feito com “Sinatra”. Ele ouve, aprova, e eles brincam com um
efeito de fade-out¹, bababa... indo para o final da melodia. Eu digo que isso soa como “My Cherrie Amour”
e Bono me garante, com um olhar ameaçador, que ele não está familiarizado com essa música, mas que
ele, com certeza vai comprar uma cópia amanhã e verificar.

___________

¹ Efeito de gravação em que a música vai terminando com a diminuição do volume enquanto os músicos continuam tocando e cantando.
2
“Ela está ficando bem californiana”, diz Flood.

“Sim”, diz Bono. “Parece ser como... quem é aquele compositor que vive na praia em Malibu e escreve
todas as músicas que soam parecidas com esta?”

Edge: “Sting?”

Burt Bacharach é o nome que Bono está procurando.

Edge vai embora e Bono continua trabalhando nas faixas, mudando a letra ligeiramente a cada vez. Ele
diz a Flood para alterar o título da música listada como “Sinatra” para “Stay”. Embora, ele considera, que
ele deveria tentar obter alguma referência ao filme de Wim. Ele decide chamá-la de “Stay (Faraway, So
Close!)”. Falando sobre Sinatra, Bono diz que ele ouviu que Frank vai gravar seu primeiro novo álbum
em quase dez anos. Sinatra disse a Quincy Jones: “É hora de agitar os cidadãos”. Bono ainda está
sonhando em enviar ao Chefe uma cópia de “Two Shots of Happy”.

Ele não quer repetir o erro que cometeu com “Slow Dancing” para Willie Nelson. Ele estava tão animado
com a música que, um dia depois que a escreveu, ele disse a um entrevistador de TV que ele tinha
acabado de escrever uma música para Willie Nelson. Antes de ter feito qualquer contato com Nelson. A
MTV pegou a declaração e a divulgou.

“Você pode imaginar?” diz Bono. “Willie Nelson, um dos maiores compositores vivos, me ouvindo na TV
dizendo que eu escrevi uma música para ele. Sem ele ter pedido por isso! Ele provavelmente deve ter
pensado: ‘Bem, foda-se’”. Bono estremece só de pensar. Então, ele diz: “Johnny Cash disse que
provavelmente Willie nunca viu essa gravação”. Ele disse: “Bem, Bono, o Willie já tem um monte de
problemas”.

Sim, eu digo, algum representante do IRS¹ provavelmente está curtindo a sua música agora mesmo.
Bono dedilha seu violão e eu peço que ele cante “Slow Dancing”. Eu não a ouço desde o meu aniversário
na festa em Kitty O’Shea’s, há mais de um ano. Ele canta a música lindamente. Apesar de sua
simplicidade regional, “Slow Dancing” aborda todos os mesmos conflitos das músicas do Achtung Baby:

And I don’t know why a man search for himself in his lover’s eye. And I don’t know why a man sees the
truth hut needs the lie.

[E eu não sei por que um homem procura por si mesmo nos olhos de sua amada. E eu não sei por que um
homem vê que a morada da verdade precisa da mentira].

Quando Bono termina, eu digo: “Isto não soaria grandioso depois de passar por todas essas vibrações e
estruturas distorcidas do Eno?”

“Essa é uma ótima ideia”, diz Bono, e então ele se dirige ao Flood: “Você quer gravar isso?”
___________

¹ O Internal Revenue Service (IRS) é um serviço de receita do Governo Federal dos Estados Unidos. A agência faz parte do Departamento
do Tesouro, sob a direção imediata do Commissioner of Internal Revenue. A IRS é responsável pela coleta de impostos e pela aplicação e
interpretação Internal Revenue Code, o órgão do direito tributário nos Estados Unidos.

3
Flood responde: “Você acha que eu não ia querer?”. Ele aponta para o microfone que está na frente de
Bono e depois para o equipamento de gravação. Bono canta mais uma vez, o violão em seu colo e seus
lábios tocando levemente o microfone. E então ele diz que precisa ir se encontrar com sua esposa.

Do lado de fora da Factory ele percebe que deixou o carro da Ali destrancado. Ele procura o telefone que
estava no carro para fazer uma ligação, mas não o encontra. Ele está em apuros novamente. Duas
garotas inglesas que voaram para Dublin na esperança de encontrá-lo aparecem com blocos para
autógrafos, enquanto Bono se esforça para lembrar se havia deixado o telefone em algum lugar – ou
será que ele havia sido roubado?

Ele insiste em me levar para casa, como faz todas as noites. É muito gentil da parte dele, mas como Bono
sempre se distrai e esquece onde está indo, uma carona dele torna a viagem duas vezes mais longa do
que se ela fosse feita a pé. Enquanto fazemos um cruzeiro por Dublin fugindo de sinais vermelhos e
entrando na contramão em ruas de mão única, Bono diz: “Adam está andando por aí com duas
supermodelos no braço! Naomi e Christy Turlington, a garota que está comigo na capa da Vogue. Adam
está tendo um bom fim de semana”.

“Sim”, eu digo. “Você realmente fez um favor a ele quando sequestrou Naomi para a festa da Ellen”.

“Eles estão saindo juntos agora!” Bono diz, com os olhos arregalados. “Eles estão apaixonados!”

“Ele está te devendo essa”.

“É o que eu acho”.

“Bono! Aquela era a minha rua!”

No dia seguinte, sábado, todos deveriam estar de folga, exceto Flood, que assumiu a tarefa de fim de
semana de reunir todas as músicas prontas em uma ordem lógica para provar que há um álbum em
meio a todos aqueles experimentos. Ele fala sobre a evolução de “Sinatra” para “Stay”.

“Eu acho que Bono seria o primeiro a admitir que compor uma música não é algo que flui facilmente”,
diz Flood, “porque isso tem muito a ver com o quanto ele despe a sua alma. Não importa se é para um ou
para cinquenta mil. Quando ele está escrevendo uma letra, ele pode ter três ou quatro ideias em
ebulição. Esta música foi particularmente difícil porque ele tentou três ou quatro vezes. A primeira coisa
e a mais importante é que ele precisa entender de onde a música está vindo. Ele vai continuar
procurando até que ele tenha algo concreto. Essa é a primeira coisa com a qual se deve lidar. Você veio
na noite passada, você ouviu e seu ponto de vista foi diferente do modo como nós a estávamos ouvindo.
Aquilo o estimulou. Então ele vai um estágio adiante e corta um pedaço aqui, corta um pedaço lá, até
que ele esteja noventa por cento satisfeito. Então, ok, há um par de versos que não estão legais, ele pode
ir embora e eu vou deixá-los fora. Ele pode deixar aquilo até o dia seguinte. E obviamente muitas vezes
Bono se preocupa com sua performance tanto quanto com a sua composição”.

Pergunto como esse pequeno projeto de gravação durante o intervalo da turnê se transformou em uma
situação de tanta pressão.

“Edge conversou comigo algumas vezes durante a turnê no ano passado sobre ir ao estúdio e fazer um
álbum de forma rápida”, diz Flood. “Havia a suposição de que iríamos para o estúdio, eles teriam as

4
músicas prontas e nós simplesmente gravaríamos, sem adicionar sons ao material original. De qualquer
forma, eles vieram aqui não para fazer um álbum descartável, e sim um álbum rápido. E devido à sua
natureza, agora eles estão achando difícil fazer algo que é, em última análise, um álbum dispensável. O
que é bom, eu acho que é bom que eles estejam se esforçando”.

“Digamos que o Joshua Tree foi o auge número um. Houve uma pequena queda com o Rattle and Hum.
Tudo bem, você aprende com seus erros. Então, uma decisão positiva é tomada: ‘Temos que fazer algo
diferente’. O resultado final disso é: ‘Nós nos reinventamos’. Então, agora eles estão em uma situação
onde eu acho que deve ser difícil desafiar a si mesmos. Eles foram grandes, eles declinaram, eles
retornaram ao topo com algo diferente e agora – eles têm que fazer tudo de novo?”

Eu não sei ao certo se eles têm, eu respondo. Eu acho que uma vez que eles tenham se reinventado com
sucesso na primeira vez, eles têm passe livre de agora em diante. Nenhuma banda jamais teve uma
imagem tão sólida para desfazer quanto os Beatles, quando eles decidiram enterrar os quatro
penteados mop-tops com o Sgt. Pepper. Mas depois que eles fizeram isso, depois que todos eles
deixaram os bigodes crescerem, vestiram uniformes psicodélicos e cantaram sobre LSD, eles ficaram
livres para fazer o quisessem. Eu acho que o U2 está no mesmo barco agora.

“Uma das coisas que me agrada no U2 é o fato de que eles nunca descansam sobre suas glórias”, diz
Flood. “É brilhante que uma banda desse patamar esteja preparada para tentar qualquer coisa, mas, por
outro lado, eu acho que agora as pessoas ficarão esperando por mudanças. O limite do tédio das pessoas
está ficando cada vez menor. São tempos muito estranhos. Então eu posso ver o quão difícil será se eles
não conseguirem fazer um álbum que poderá se tornar apenas um desperdício”.

Bem, eu digo, uma coisa é certa – o grande risco de reinventar a eles mesmos com o Achtung Baby
acabou sendo sua salvação comercial. Foi muito bom o U2 mudar, fazendo isso na hora certa.

“Definitivamente”, diz Flood. “Além disso, o Achtung Baby brotou das almas deles. A alma decidiu ser
diferente”.

Sobre a decisão de fazer ou não um álbum a partir deste projeto, Flood acha que o U2 já ultrapassou o
ponto do retorno. “Se você não tem um ponto definido para focar, então o que você vai fazer? Você está
essencialmente fazendo uma seleção de demos ou está ensaiando para experimentar algumas ideias.
Um single/EP não é uma área muito desafiadora. Então por que não dizer: ‘Vamos fazer um álbum?’
Você só precisa dizer, bem, se você não fizer isso, não vai ser o fim do mundo. Mas nós poderíamos
conseguir um álbum! Ontem uma decisão foi tomada; definitivamente nós estamos caminhando para
um álbum”.

Quem mais poderia aparecer vagando pelo estúdio senão Bono, o homem que não consegue ficar em
casa. Em um consenso com a domesticidade, ele está acompanhado por sua pequena filha Jordan. Eu
fico imaginando se ele contou a Ali que eles estavam indo ao parque. “Ali não precisa de mim”, diz Bono.
“Ela está arrumando as malas, ela está muito feliz. Ela é completamente auto-suficiente. Isso é muito
desanimador”. Pelo menos ele achou o telefone do carro dela. Ele tinha deixado embaixo do banco. Ele
canta “Stay” mais algumas vezes, lendo linhas diferentes de um bloco amarelo. Seu amigo Guggi aparece
e senta, ouvindo silenciosamente. Finalmente Ali chega para recolher Jordan.

“Você vai para Chernobyl segunda-feira?” Guggi pergunta a ela. “Sim”. Ali sorri. “Vou sair para tomar
alguns raios”.
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Bono trabalha até tarde no sábado a noite. No domingo ele consegue ficar em casa, deixando Flood
trabalhar na sequência do álbum.

Segunda-feira pela manhã Suzzane Doyle é, como de costume, a primeira a chegar. Ela está colocando
flores frescas por todo o estúdio (“Eu sou como as senhoras da Sociedade do Altar do Rosário”¹)
enquanto os membros da banda e os produtores chegam e sentam-se na sala da Factory para escutar
pela primeira vez a versão do seu novo álbum. Eles sorriem, eles franzem a testa, rabiscam anotações.
No final do Lado Um, os experimentos sonoros dão lugar a um violão. A versão de Bono de “Slow
Dancing” surge nos alto-falantes, surpreendendo Eno, Edge, Larry e a Adam, que não sabiam que ele
havia gravado aquilo. “O que vocês acham?”, Bono pergunta.

“Eu gosto”, Eno diz, “mas receio que ela se torne um grande sucesso. Nós temos de mexê-la de alguma
maneira, para de alguma forma prevenir isso”.

Bono continua, à procura de aprovação: “Vocês não se importam que ela mude todo o humor do
álbum?”

“Nah”, Adam diz. “Não há nada de errado com um pouco de ‘obla-diobla-da’”. Edge e Larry riem e
resmungam sobre o comentário. “Obla-di” é a famosa e mais fácil canção de McCartney que algumas
pessoas pulam quando toca esse lado do Álbum Branco dos Beatles. “Slow Dancing” pode não conseguir
fazer esse corte.

Nem Flood nem Eno têm alguma coisa para dizer sobre isso, será a versão de uma música chamada “The
Wanderer” que Bono quer usar. Flood colocou nesta fita a sua versão preferida, com Bono cantando sua
música sobre um homem que dá as costas para sua família e sai à procura de Deus em meio ao mundo
secular e pecaminoso. A versão de Bono para a música é, os produtores sentem, a peça central do
álbum, uma nova direção para o U2 ainda está enraizada em seu passado.

O problema é que Bono quer usar uma versão da música cantada por Johnny Cash, gravada aqui,
quando o Homem de Preto passou por Dublin duas semanas atrás. Desde então tem havido discussões.
Eno e Flood sentem que, apesar dos méritos da música, a presença e personalidade de Johnny Cash são
tão fortes e cheias de associações tão vívidas para os ouvintes que podem tirar todo o equilíbrio do
álbum. Assim que surge o barítono, todo o ambiente e a ambiguidade que o U2 havia conquistado, vão
embora pela janela. A versão de Bono para a música, em contraste, une todos os outros temas.

Bono defende fortemente o outro argumento; que escutar o Johnny Cash cantando sobre uma faixa
alucinante e distorcida sobre vagabundear em uma terra perdida ‘sob um céu atômico’ é o mais bizarro
que se pode fazer, e muito mais apropriada para essa música, que é sobre um tipo de personagem de
Sangue Sábio², um peregrino que revela a si mesmo, durante o curso da letra, como alguém
extremamente fora de si.

___________

¹ A principal missão católica da Sociedade do Altar do Rosário é difundir a devoção a Maria através da recitação do Rosário e obras de
caridade. No Natal e na Páscoa, os membros ajudam nos arranjos florais e na decoração da Igreja.

² Romance de Flannery O´Connor, de 1952. O roteiro diz respeito a um veterano da Segunda Guerra Mundial que, assombrado por uma
crise de fé ao longo da vida, resolve formar um ministério anti-religioso de forma excêntrica,

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Há muito mérito em ambos os argumentos, mas eu suspeito que nenhum dos dois contam a história
real. Eu acho que a verdadeira razão pela qual Bono não quer cantar “The Wanderer” (o título é um tiro
consciente ao macho arrogante da canção “The Wanderer” de Dion) é porque quando Bono a canta, a
música surge como se fosse sua culpa por todo brilho e fachada que o U2 vem criando nos últimos dois
anos. Quando o Bono canta “The Wanderer” parece ser uma confissão pública que sob a sombra da
mosca [the fly], ele ainda tem esperança de encontrar Deus, o procurando através do brilho e do lixo.

O personagem da música usa a exortação de Jesus para deixar sua esposa e filhos e seguí-lo como uma
desculpa para não cumprir com suas responsabilidades. Ele está brincando com a antiga heresia
antinomiana que você pode pecar durante o caminho para a salvação (“I went out there in search of
experience/ To taste and to touch and to feel as mush as a man can before he repentes”) [Eu fui embora
à procura de experiências/ Para provar e para tocar e para sentir o máximo que um homem pode antes
dele arrepender-se]. Ao ter Johnny Cash cantando a música, Bono erige outra face falsa. A parte do
público que compartilha do seu lado espiritual (assim como a parte que entende o quão séria é a figura
do Johnny Cash) vai entender a mensagem mais profunda, e aqueles que querem pensar que isso é
ridículo, vão se amarrar vendo o U2 moldando Johnny Cash como Hazel Motes, o personagem de Sangue
Sábio.

Então Flood e Eno podem discutir o dia todo sobre como é perturbador ter o The Boy Named Sue
fechando de forma grandiosa o mais polêmico, mais vanguardista e mais sistematicamente
desordenado álbum do U2. Eles não vão ganhar essa. Bono tem outro plano.

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26. Macphisto
larry injeta sangue de touro / eno propõe um sistema de arquivo / fintan vai comprar sapatos /
as músicas são remendadas / bono pinta seu rosto / começa a turnê zooropa / esperança para os
homens ricos entrar no paraíso

Bono pega um sanduíche do pub do estúdio e escapa para a sala de descanso para devorá-lo. Um minuto
depois, se escuta um uivo do outro lado da porta. Bono aparece com as mãos no rosto. Ontem ele foi ao
dentista por causa de um abcesso no dente e pensava que estava tudo sob controle, mas o abcesso
acaba de reaparecer. Ele está cambaleando de tanta dor. Suzanne pega alguns analgésicos e ele os
engole. Nesse momento, Bono entra em contato com o seu dentista por telefone, as pílulas estão
diminuindo o desconforto, e então ele decide continuar com o trabalho. Ele vai fazer os vocais hoje com
dor de dente. Semana passada ele estava trabalhando com uma perna machucada, ferida enquanto ele
corria pela praia perto da sua casa. Fazer esse tipo de coisa pode deixar suas sequelas.

Bono não quer que Larry saiba que ele está machucado, se ele souber vai acabar lhe dando um sermão e
uma receita. Larry se interessa muito pelos problemas médicos das pessoas. Ele é conhecido por
carregar sacolas de vitaminas, energéticos e pílulas – uma cura portátil para qualquer doença. Larry
toma muito cuidado com a sua saúde, mas mesmo assim ainda tem tido vários problemas – problemas
com os tendões da sua mão têm ameaçado a sua carreira de bateirista. Além disso, ele foi amaldiçoado
com uma hérnia de disco que arruinou as suas costas terrivelmente. Bono diz que Larry tentou
diferentes médicos sem sucesso até que ele foi em um alemão que lhe trouxe a cura holística que
começou a dar injeções de sangue de touro no Larry. Esse foi o truque! O médico irlandes de Larry se
recusa a fazer isso – e quando olha para o raio-x da coluna encurvada de Larry, diz que é impossível que
esteja recuperado, mas Larry se sente bem. Ele viaja regularmente para a Alemanha para receber as
injeções de sangue de touro.

De sua mesa, Suzanne pergunta: “O Larry está cheio de sangue de touro?”. “Isso explica muita coisa”.

Mais tarde, quando pergunto ao Larry sobre essa cura milagrosa, ele dá menos ênfase nas injeções do
que nas séries de exercícios que ele faz para fortalecer a musculatura em volta dos discos lesionados. Os
músculos, estando mais fortes aliviam a pressão sobre a coluna. Tipicamente, Larry diz que seu
problema foi resolvido através de disciplina, enquanto Bono prefere uma explicação sobrenatural.

De volta à sala de controle, está tendo uma discussão sobre segurança. Cada um dos quatro membros da
banda está levando para casa fitas-cassete com as sequências do Flood, e tanto Edge quanto Robbie
Adams estão preocupados com os bootlegs. Fitas dos ensaios e sessões de composição do Achtung Baby
estavam nas lojas antes dos álbuns serem lançados, e isso trouxe muitos problemas para o U2. Edge diz
que tem de haver uma penalidade tão severa que nenhum membro da banda ousaria perder sua fita.
“Todos deveriam assinar alguma coisa dizendo que quem perder a sua fita, perderá a sua casa. Ou um
dedo!”

Eno sugere instituir um sistema de arquivamento, onde “um dos seus homens de confiança” guarda
todas as fitas e qualquer membro da banda que queira uma delas, deve assinar que pegou emprestado.
Essa sugestão é muito ridicularizada.

1
A proximidade da data limite imposta para o início da turnê europeia está dando uma forte sacudida na
criatividade do U2. Bono tem sido incapaz de terminar a letra para uma música chamada “Lemon”, sua
tentativa de escrever uma música ao estilo Prince. Diante de tal bloqueio, Eno e Edge trazem à tona e
cantam uma nova melodia e uma nova letra (“A man makes a picture/ a moving picture/ throught light
projected he can see himself up close”) [Um homem faz um quadro/ uma imagem em movimento/
através da luz projetada ele pode se ver tão perto"], que foi rejeitada por ser muito parecida com os
Talking Heads. Essa segunda letra é sobre a produção de filmes e cita o diretor John Boorman, que uma
vez deu emprego ao jovem Paul McGuinness como diretor de produção e que costuma dizer que ele
ganhava a vida “transformando dinheiro em luz”. Edge e Eno colocam a música do filme junto com o
tributo de Bono ao Prince e o resultado não soa nada parecido nem com Prince, Talking Heads ou U2.

O mesmo tipo de justaposição acaba por ser a salvação de “Numb”, uma faixa no estilo Kraftwerk que o
Edge mantém viva desde as sessões do Achtung Baby em Berlim. Bono tinha tentado encontrar uma
saída para “Numb” cantando com uma voz alta de Eartha Kitt, que ele usava para fazer os backing vocals
de “The Fly”, mas isso não o levou à lugar algum, ninguém conseguia chegar a uma nova melodia forte o
suficiente para carregar a música, e “Numb” quase foi posta de lado novamente. E então Edge sugeriu
que talvez ela não precisasse de uma melodia tanto quanto precisava de um ritmo. Talvez as palavras da
música pudessem ser usadas como percussão, como uma conga. Então ele veio com uma lista de ordens
("Don't grab. Don't clutch. Don't hope for too much. Don't breathe. Don't achieve. Don't grieve without
leave.") [Não agarre. Não trave. Não espere demais. Não respire. Não consiga. Não se aflija sem licença]
e emitia-as em um tom monótono, enquanto Bono pontuava ao fundo com a voz de uma cantora negra e
essas duas abordagens contrárias, juntas, criaram algo estranho e interessante. Larry veio com uma
melodia para “I feel numb” [Eu me sinto entorpecido] (o verso de gancho) e cantou-a como uma
marcação. “Numb” é a primeira música do U2 com três diferentes membros da banda cantando
diferentes partes. Avaliação de Bono: “Não consigo acreditar que isso funcione”.

“The First Time” é uma música gospel que o U2 faz rapidamente e a deixa de lado por considerá-la
inapropriada. Eno os surpreendeu dizendo: “Eu amo essa canção; ela deve entrar no álbum”. Bono
destaca que a música - sobre um filho pródigo que vagueia em uma vida de pecados e então retorna
para o perdão de seu pai - parece algo mais para Rattle and Hum do que para este projeto. Mas a banda
confia no instinto de Eno, então eles tentam tocá-la de uma forma desconexa que descaracteriza sua
forma gospel. Bono canta sobre uma amante que o ensina a cantar, um irmão com o qual sempre pode
contar, e então sobre um pai que “me deu as chaves do seu reino, me deu um cálice de ouro. Ele disse
que eu tenho muitas mansões, e há muitos quartos para ver ...” De repente, Bono não consegue, ele
mesmo, cantar as linhas que escreveu sobre retornar à casa de seu pai. Em vez disso, ele termina o
verso: “I left by the back door and I threw away the key” [Eu saí pela porta dos fundos e joguei a chave
fora].

As questões levantadas em Achtung Baby ainda não haviam sido resolvidas. Bono não está pronto para
prometer que ele retornará desta jornada em Nighttown em que ele está apenas na metade do caminho.
Eu pergunto a ele se ele está familiarizado com a heresia sobre estar pecando no caminho da salvação.
“Sim”, diz Bono. “Encontrando Deus através da indulgência da carne”. Ele então diz que quando Jesus
disse que era mais difícil para um homem rico entrar no reino do céu do que um camelo passar pelo
buraco de uma agulha (eye of needle), ele não estava - como a maioria das pessoas supõe - dizendo que
isso era impossível. Ele estava se referindo ao estreito portão em Jerusalém chamado Needle's Eye.
“Para passar por ele”, diz Bono, “você tem que se curvar”.

2
Eles estão chegando nos últimos dias antes dos shows europeus. Os ensaios para a turnê estão
acontecendo simultaneamente com as sessões de gravação. O U2 percebe, com certo desconforto, que
eles não estão aptos a apresentar ao vivo qualquer uma dessas novas canções em performances no
palco quando o novo o álbum for lançado. Com alguma esperança, eles terão a chance de praticá-las nas
passagens de som e adicioná-las a medida que a turnê avança, mas a turnê Zooropa começará sem
nenhuma música do novo álbum que eles decidiram chamar de Zooropa.

Os aspectos extramusicais do show serão bem diferentes dos da turnê do ano anterior. Assim como Ned
e Maurice atualizaram os vídeos dos telões para refletir a confusa situação atual da Europa, Bono está
construindo um novo personagem para representar no palco durante os encores [bis]. O Mirrorball Man
que fechava os shows de 1992 era um evangelizador de TV americano/vendedor de carros
usados/apresentador de um concurso, com um chapéu de cowboy que jogava dólares para o alto. Não
faz sentido usar esse personagem na Europa. Então Bono começa a tentar criar um equivalente europeu
e começa a cantar “Desire” com uma voz que soa como um velho britânico apresentador de auditório ou
um decadente ator shakespeariano que se apresenta percorrendo as províncias.

Fintan Fitzgerald tem procurado o figurino certo para este velhote e um dia ele aparece com um hilário
par de botas plataforma, anos 70, dourado reluzente, pintadas com spray. Bono começa a fazer livres
associações. Talvez esse velho sujeito seja o último rock star, arrastando-se por mais alguns anos no
futuro, recriando as joias da genial música do século 20 para outras pessoas da terceira idade. Mas é
claro, isso não é tudo que ele é. Bono se lembra de como ficou impressionado com a performance de
Steven Burkoff em Salomé, de Oscar Wild, no qual o ator diminuía o ritmo de todas as falas à metade da
velocidade. Bono tentava falar como Quentin Crisp ficando quase sem bateria e isso cria uma estranha
angústia. “Oooh. Euuu commpreeeiii esstesss nooovosss sapaaatosss. Vocêêê gooostooouuu deeelesss?”
Parece como um velho tentando manter-se só consigo mesmo.

Mas é Gavin Friday que contribui e fornece a metáfora unificadora. Ele exige saber - sem alegorias -
quem esse personagem realmente está representando? Quem realmente deveria ser o Mirrorball Man?
Bono diz: “Bem, o diabo”.

“Então”, diz Gavin, “ele deveria usar chifres”.

Bono acha isso ridículo, que isso é muito óbvio. Mas Fintan segura alguns chifres vermelhos e quando
Bono os experimenta com a cara branca, batom, sapatos plataforma e a voz do velho britânico, ele gosta
do que vê:

Mr. Macphisto - o diabo como a última estrela de rock.

Bono puxa todos os tipos de sinais orbitais para finalizar a criação do personagem Macphisto. Ele pega
de um mágico que viu em Madrid os movimentos abruptos, quase cômicos - como um senil especialista
em karatê, tentando alguns velhos golpes. Ele tira do personagem do diabo de “O Cavaleiro Negro” [The
Black Rider] o comportamento de um mestre de cerimônias e o duro caminhar de alguém escondendo
um casco fendido. Ele usa a personagem de Joel Grey em Cabaret, como uma pedra de toque para
representar a decadência da qual o fascismo europeu floresceu. Macphisto é Satã como o cruzamento de
Elvis, Sinatra e uma estrela de cabaré de Berlim dos anos trinta. Ele também é, é claro, o Mefistófeles de
Goethe, aquele símbolo proto-europeu da grande arte e tentação. Assim como Bloom em Nighttown (ou
como Eva no jardim), o Fausto de Goethe arriscou sua alma imortal em troca de conhecimento. Essa é
uma negociação que fascina o U2.
3
A estreia pública de Macphisto é no primeiro show da turnê europeia, em Rotterdam. Nos bastidores
Bono procura por entre os diversos trajes que Fintan trouxe para ele e escolhe um dourado, para
combinar com seus sapatos. Ele pinta seu rosto, passa o batom e vai até o camarim da banda para ver a
reação de Adam, Edge e Larry. Eles ficam paralisados. É muito mais assustador do que ele esperavam.

Macphisto surge no bis para cantar “Desire” e então se apresenta para a plateia, clamando: “Vejam o que
vocês fizeram comigo!” A multidão grita e aplaude este satânico Bono. “Vocês me fizeram bastante
famoso”. Eles riem. “E eu agradeço por isso. Eu sei que vocês gostam que seus pop stars sejam
excitantes, então, eu comprei isso”. Ele levanta uma perna e exibe seu sapato plataforma. Grandes
clouse-ups dos sapatos nas telas da Zoo TV. O público ama tudo isso. Durante o restante do bis (o que na
verdade é o quarto set, depois do set Achtung/Fly, o set acústico no palco B, e do set de grandes
sucessos do U2) Macphisto perde seus chifres (“Fora com os chifres, segue com o show!”), mas não sua
persona diabólica. No entanto, na hora que ele executa “Love is Blindness” na beirada do palco B com a
maquiagem branca escorrendo de seu rosto, a linha entre Macphisto e Bono se torna indistinta. Ele
finaliza cantando “I Can't Help Falling in Love With You” sozinho, depois que cada um dos membros do
U2 sai do palco. Então, a versão original de Elvis Presley da música sai dos alto-falantes, misturando a
última estrela de rock com a primeira, e Macphisto caminha lentamente pela longa rampa através da
plateia, voltando ao palco principal, e desaparece.

“Desde a introdução de Macphisto, tudo isso é um cabaret”, diz Bono. “Macphisto é The Fly no final da
carreira. Quando ele canta em falsete em ‘Can’t Help Falling in Love’, é o jovem garoto dentro do homem
corrupto se libertando por um momento. Assim como naquele horrível vídeo do Elvis gordo
balbuciando essa canção, há um momento em que ele canta um pequeno trecho corretamente, e você
ouve o espírito do Elvis se libertando. Isso é o que eu estou tentando atingir”.

“Sentimos realmente uma sensação bizarra e um pouco assustadora vê-lo ali”, Edge diz. “Era tudo o que
nós tínhamos discutido. Foi muito perturbador, muito irracional, e não tinha nada a ver com
entretenimento. Era uma coisa muito mais pesada. Eu achava que a ideia dos chifres era muito
exagerada, mas de fato ela funcionou”.

O U2 não tem muita chance de apreciar o quão bem lhes caiu Macphisto. Eles ainda estão viajando no
seu avião particular da Zoo Tour de volta para Dublin para terminar o álbum. Flood e Eno estão
trabalhando fora, mixando e editando para que o trabalho da banda fosse minimizado quando eles
voltassem para o estúdio. Eles finalmente tomam uma decisão que confere uma inesperada unidade em
todo o projeto: eles descartaram todas as músicas de rock, todas as faixas baseadas na guitarra como
“Wake Up, Dead Man” e “If God Will Send His Angels” e fazem do Zooropa um álbum inteiramente
desarticulado, um pop experimental. Agora toda a operação é de apenas uma peça. Sonoramente,
ironicamente, o álbum finalizado está muito mais parecido com o trabalho que Eno e Bowie fizeram no
Hansa em Berlim no final dos anos setenta, do que com o Achtung Baby se tornou.

“Dar-se conta de que, ‘Oh, esse não é um álbum de rock’, isso é um grande alívio”, Bono diz. “O mundo
está cansado de machão, cansado de grunge. Precisamos dar uma perspectiva feminina”.

Edge compartilha os créditos de produção com Eno e Flood, não só porque ele merece isso por todo o
trabalho que ele colocou nisso, mas porque, Bono racionaliza, com a evidente falta de guitarras de rock,
eles iriam se questionar onde o Edge tinha entrado.

4
Quando as mixagens finais estão completas e os cassetes estão sendo produzidos, Des Broadbery, o
técnico de teclados, está encantado em ouvir algumas das ideias que ele tinha sugerido – uma pequena
sequencia cantada em “Babyface”, alguns samples em “Numb” – que tinham sido adotadas no álbum
finalizado. Larry Mullen tem um certo orgulho sutil no fato que a parte do baixo que ele sugeriu numa
noite, quando Edge estava trabalhando em ideias para a guitarra, tinha permanecido na música-título:
Larry é o baixista na introdução de “Zooropa”.

Eu sugiro que Zooropa evoca a loucura e desorientação de estar em uma turnê de uma forma que causa
um impacto especial nos músicos. “Eu acho que isso é verdade”, Adam diz com um sorriso meio
escondido. “Parece que há muitas músicas com as quais os músicos se identificam. Mas eu odiaria
pensar que nós fizemos uma versão dos anos noventa para Running on Empty”¹.

10 de maio é o 33º aniversário de Bono. Ele agora é tão velho quanto era Cristo quando morreu, tão
velho – de acordo com a tradição da igreja – quanto todos os nossos corpos ressucitados serão depois
do final do mundo. Bono entra em seu quarto no dia do seu aniversário e encontra um presente que
Gavin Friday tinha deixado sobre a sua cama: debaixo da inscrição, “Saudações Bono, Rei dos
Zoológicos”, está uma cruz de três metros, pintada de azul, e grande o suficiente para Bono carregar.

___________

¹ Running on Empty, lançado em 1977, é o quinto álbum do cantor e compositor americano Jackson Browne. Apresentando músicas com
tema de vida na estrada, o álbum inteiro foi gravado em turnê, ao vivo no palco ou em locais associados a turnês, como nos bastidores, em
ônibus de turismo ou em quartos de hotel.

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27. Semana de Negócios
o fim da indústria fonográfica e outras boas notícias / como o u2 acabou ganhando tudo
apenas por serem caras legais / a realidade virtual de ossie kilkenny / o novo contrato do
u2 / mcguiness para a performing rights society: tire suas mãos do meu bolso

Terminar o álbum Zooropa tem um benefício secundário para o U2. Terminadas as obrigações
contratuais da banda com a Island Records (e com a Polygram, a multinacional que agora é dona
da Island), Paul McGuiness e a Island vêm trabalhando em um novo contrato, mas ter em suas
mãos um álbum inesperado para colocar sobre a mesa, coloca McGuiness em uma posição ainda
mais poderosa do que a que ele já estava. Aqui está o chamariz – um novo álbum da sua maior
banda para negociar um melhor contrato, dois anos antes do esperado. Aqui está o passaporte –
agora o U2 está livre para ir aonde quiser.

Não que alguém esteja pensando que isso vai acontecer. O chefe da Polygram, Alain Levy,
conversou com McGuiness sobre as intenções do U2 antes da Polygram comprar a Island, e
McGuiness disse a ele que o U2 e a Island eram grandes amigos e a Polygram não tinha motivos
para temer que o U2 fosse embora tão cedo.

Chris Blackwell, o dono da Island, sempre tratou o U2 muito bem. Como crianças ingênuas, o U2
presumiu que era assim que todas as gravadoras se comportavam com artistas bem-
intencionados, mas à medida que ficavam mais velhos, eles compreenderam o quanto a decência
de Blackwell era rara. A Island nunca tentou forçar o U2 a fazer concessões artísticas. Eles até
mesmo deram ao U2 o controle completo sobre a arte final do álbum. As únicas duas vezes em que
a Island discutiu sobre uma decisão da banda foram: (1) quando o U2 disse que queria que o Brian
Eno fosse o produtor e (2) quando a gravadora enviou um infeliz emissário até Dublin para
sugerir ao grupo que a foto que eles tinham escolhido para a capa de seu segundo álbum, October,
não era muito boa. O U2 e McGuiness estraçalharam o pobre rapaz. Como se atreve ele, um mero
empresário, a interferir em uma decisão tomada por artistas! O representante da Island foi
enviado de volta e Blackwell permitiu o U2 lançar sua capa. O que, a banda concorda atualmente,
foi uma capa horrível. A Island estava absolutamente certa.

Em agosto de 1986 o U2 estava terminando o The Joshua Tree, o álbum que, eles sabiam, tinha
grande chance de fazer deles superstars, quando McGuiness e Ossie Kilkenny, o contador do U2,
comunicaram que a Island estava com grandes problemas. A gravadora estava à beira da falência.
Eles nem mesmo podiam pagar ao U2 o dinheiro que já lhes devia – que eram cinco milhões de
dólares.

McGuiness e Kilkenny ficaram atônitos. Eles se sentaram em uma sala e se amaldiçoaram por
terem perdido todo o dinheiro do U2 sendo idiotas o suficiente para pensar que a gravadora era
como um banco – você poderia deixar a grana lá parada e aparecer para pegá-la a qualquer
momento. Desconsiderando toda essa perda, se a Island falisse agora, o que aconteceria com o The
Joshua Tree? O álbum com o qual o U2 estava contando para subir ao topo seria vítima de uma má
distribuição e da falta de promoção? As lojas conseguiriam pelo menos encomendá-lo?

Aqui está a pior parte de todas: se a Island falisse, alguma grande companhia poderia aparecer

1
para comprá-la, junto com o contrato do U2. E se a banda acabasse trabalhando para alguém que
eles odiavam?

Graças a Deus, o U2 havia recuperado da Island, em uma renegociação no ano anterior, o direito
sobre a publicação de suas músicas, que a Island tinha obtido no primeiro contrato do U2, quando
a banda não estava em posição de discutir (e – francamente – não sabiam o que estavam
oferecendo). Antes disso, qualquer pessoa que comprasse a Island poderia vender “I Will Follow”
para um comercial da Toyota ou “Sunday Bloody Sunday” como o tema de publicidade para o
Band Aid, e o U2 não teria meios para impedi-los. Eles sabiam que Chris Blackwell nunca faria algo
assim, mas agora o U2 entendeu que Chris Blackwell nem sempre era o homem que tomava à
frente nas decisões.

Eles queriam mantê-lo lá por quanto tempo pudessem, então, depois de um dia de pânico e
recriminações, o U2 concordou em socorrer a Island, entregando o The Joshua Tree, desistindo de
cobrar o dinheiro que pertencia à banda, e até mesmo emprestando à Island mais dinheiro para
ajudá-la a sair do buraco. Isso foi muito generoso e típico da abordagem de negociação do U2 –
que valoriza as relações pessoais e as obrigações acima de dólares e centavos. Assim que as coisas
se ajeitaram, Chris Blackwell respondeu à altura com duas negociações diferentes: (a primeira
durante a crise da Island em agosto de 1986, e a segunda seis meses depois) o U2 conseguiu duas
coisas que significavam muito mais do que o dinheiro que lhes era devido.

A primeira foi a eventual reaquisição de todas as cópias originais das gravações de seus álbuns
para o U2. Isso significava que agora a Island estava apenas arrendando os direitos de lançar os
álbuns do U2 por um número determinado de anos, mas se algum dia o U2 deixasse a gravadora,
seus álbuns iriam com eles. Este é o tipo de contrato que os Rolling Stones têm desde 1971, e esta
é a razão pela qual a cada sete ou oito anos o catálogo pós-1971 dos Stones é reeditado por outra
gravadora. É também por isso que os Stones ainda são capazes de conseguir um progresso
gigantesco em sua velhice; quando uma gravadora contrata os Rolling Stones, ela não fica apenas
com os álbuns que a banda fará nos próximos anos; ela fica com “Brown Sugar”, “Exile on Main
Street”, e com mais vinte anos de hits também. O U2 nunca mais ficaria na posição de se preocupar
que o trabalho de uma vida inteira pudesse ser vendido sem a autorização deles.

A outra provisão que eles conseguiram por salvar a Island, no entanto, foi a verdadeira razão pela
qual McGuiness não teria desencorajado a Polygram a pagar uma fortuna pela gravadora: O U2
conseguiu uma considerável participação do capital da Island. A quantia normalmente informada
era de 10 %, embora provavelmente fosse um pouco mais. Ossie Kilkenny diz que a décima parte
era o que Blackwell pensava que devia ao U2, os cinco milhões que pertenciam à banda, pois
Blackwell achava que a companhia valia 50 milhões de dólares. Ossie e Paul achavam que a Island
valia algo próximo de 34 milhões de dólares (o que daria ao U2 o direito sobre uma sétima parte
da empresa). Seja qual for a imagem que eles pintaram em 1987, tornou-se a barganha do século
quando, menos de dois anos depois, a Polygram comprou a Island por mais de 300 milhões de
dólares. Essa foi mais uma vez (assim como quando eles escolheram o Eno para produzir o The
Unforgettable Fire) em que o U2 decidiu fazer algo financeiramente arriscado e suspeito por
razões pessoais, e terminaram quebrando a banca em todo caso.

Então, quando McGuiness põe o Zooropa sobre a mesa de centro da Island/Polygram, ele surge de
uma posição de poder supremo. Não há dúvida de que a Polygram irá desembolsar uma fortuna
para manter a joia de sua coroa. O único debate é sobre quanto. McGuiness entreteve um pouco o

2
seu velho amigo Jimmy Iovine sobre a possibilidade de contratar o U2 para a bem sucedida
Interscope, sua nova gravadora nos EUA, mas ele nunca considerou fazer isso seriamente. Essa
discussão pode ter sido simplesmente uma cortesia a um dos aliados mais próximos do U2 nos
negócios, o homem que produziu o Rattle and Hum, mas eu aposto que McGuiness queria fazer a
Polygram suar um pouco fazendo parecer que o U2 estava comparando preços.

Como foi o caso na renegociação com a Island sete anos atrás, os termos deste acordo podem
significar mais do que só dinheiro para o U2. Porque, embora praticamente ninguém do mundo da
música compreenda isso na primavera de 1993, as rápidas mudanças que estão acontecendo na
tecnologia irão, na próxima década, redefinir completamente a forma como a música é entregue ao
público e o que as gravadoras irão fazer.

O fim do velho mundo é tão evidente na indústria do entretenimento quanto no mapa da Europa.
A tecnologia para a distribuição da música - e também televisão, filmes, informação de
computador, correspondência e serviços de telefonia - estão todos se fundindo em um único
sistema de distribuição em domicílio que revolucionará a indústria da informação e talvez uma
grande parte da economia internacional, juntamente com eles.

Artigos que estão sendo escritos em revistas populares sobre a chegada da “super via da
informação”enfocam como será, do ponto de vista do consumidor, ter todos os tipos de opções de
entretenimento doméstico na ponta de seus dedos. Mas ninguém está falando sobre como essa
revolução irá abalar as empresas que estão agora no negócio da distribuição de informação e
entretenimento usando os métodos tradicionais. As gravadoras temem que o efeito sobre elas dos
novos métodos de distribuição em domicílio tenha o mesmo efeito que o crescimento dos
automóveis teve sobre o negócio das charretes.

Lojas de discos podem se tornar obsoletas com a música sendo distribuída por transmissões via
cabo, fios telefônicos, ou via satélite, diretamente nas residências dos consumidores. Isso cria
imensas possibilidades. Uma delas é que, no próximo século, as melhores bandas, como o U2, não
precisarão mais de gravadoras; eles poderão gravar seus próprios discos e vendê-los diretamente
a seu público por transmissão direta. Tanto a BellCore (empresa de pesquisas e desenvolvimento
da Bell Telephone em Linvingston, Nova Jersey) quanto a Philips (a empresa que é dona da
Polygram, gravadora do U2) criaram protótipos de sistemas de distribuição de música em
domicílio, conectando gravadores de CDs a linhas telefônicas de fibra ótica. Imagine um futuro
onde o U2 termina de fazer um álbum no estúdio, e então simplesmente vai até o computador,
coloca-o on-line, e espera pelos fãs digitarem os números dos cartões de crédito e baixarem as
músicas para suas casas. Sem lojas de discos, sem gravadora, sem ninguém para tomar aqueles
80% de lucro.

Este é o motivo pela qual está havendo uma súbita onda de fusões entre empresas de
entretenimento e empresas de sistemas de distribuição (como telefone, TV a cabo e satélite).
Assim como na Bósnia, ninguém está seguro sobre quem finalmente terá controle sobre aquele
território, de modo que todos estão tomando tantas propriedades quanto puderem. A menos que
os governos decidam intervir e limitar o acesso aos sistemas de cabo, telefone e satélite (o que
poderia colocar todo o poder nas mãos dos fabricantes de hardware) parece provável que, como
Bono diz, este novo contrato será o último contrato de gravação que o U2 fará da forma
tradicional.

3
Há uma competição de território intelectual tão real quanto qualquer corrida do ouro no passado.
O U2 sabe que essa corrida será vencida pelo hardware que executar o software¹ que os
consumidores mais desejam. E o U2 é, neste jogo, um precioso software.

“Nós achamos que”, diz McGuinness sobre as negociações do novo contrato do U2, “estamos
preparados para um futuro no qual o meio que transporta o som desaparecerá”.

Quão perto está essa revolução? Dizem os rumores que Pete Townshend está negociando um novo
acordo - com a companhia britânica de telefonia. Prince anunciou que ele não fará mais discos – a
partir de agora todo seu trabalho será audiovisual (é claro que o Prince faz anúncios apocalípticos
regularmente e raramente os mantém). O U2 tocou com a ideia de fazer do Zooropa uma
apresentação audiovisual interativa, descartando o CD e as fitas cassete completamente, mas o
prazo limite imposto pela turnê fez com que eles abandonassem esta ambição e o lançasse como
um álbum do jeito tradicional.

Kilkenny vê o futuro do entretenimento como um ambiente audiovisual, onde a música é menos


provável que seja uma obra completa em si mesma, já que ela corresponde à metade de uma
apresentação de som-e-imagem ou mesmo como um componente de menor importância, como o
fundo para um jogo de vídeo game ou para uma apresentação de realidade virtual. De qualquer
forma, se um aparelho em sua sala de estar pode tocar tanto música como imagem, ou música sem
imagem, quantas pessoas iriam escolher “sem”? Assim, em seu novo contrato, o U2 está
oferecendo à gravadora o direito de vender o som que eles fazem, mas reservando a si mesmos o
direito de vender qualquer imagem que os acompanham. Isso, a banda imagina, dará a eles o
controle absoluto sobre qualquer evolução do seu trabalho em mídias futuras – bem como uma
grande quantia de dinheiro que qualquer futura mídia (passiva ou interativa) possa gerar.

O que Kilkenny pensa que dificilmente será ganho nessas negociações é uma concessão da
gravadora que limitaria os direitos da Polygram de vender os álbuns do U2 somente em cópias
físicas (CDs, cassetes, discos, mini-discos) - deixando o U2 livre para vender sua música por meio
de transmissões via cabo e via satélite. Kilkenny diz que não há uma grande gravadora no mundo
que concordaria em assinar com o U2 por nada menos do que o direito total de vender o produto
musical através de qualquer meio disponível - porque se limitar a cópias físicas em face a essa
vindoura revolução seria conspirar para sua própria extinção.

Eu digo a Killenny que se eu fosse ele, negociando pelo U2, eu ofereceria às gravadoras o direito de
fabricar CDs, fitas e outras cópias físicas da música do U2 - mas reservaria para a banda o direito
de transmitir e comercializar a mesma música por meio de distribuição eletrônica. Ele revida: "Se
eu estivesse no negócio discográfico eu diria: ‘Não vou negociar com você! Porque eu estou no
negócio de áudio e eu acredito que sempre estarei no negócio de áudio’. Você não pode negar às
pessoas na indústria fonográfica o direito de promover aquilo para o qual elas têm direitos sobre
qualquer nova mídia de áudio. Então, você teria duas operações de mercado concorrentes
comercializando o mesmo produto! Não teria qualquer sentido. E essas empresas - Polygrams,
Sonys, Virgins, Warners – são as que estarão nesse negócio. Elas estarão na exploração dos
direitos de áudio, em qualquer formato possível”.
______

¹ O conceito de recursos de hardware engloba todos os dispositivos físicos e equipamentos utilizados no processo de informações.
O software é a parte lógica, o conjunto de instruções e dados processados pelos circuitos eletrônicos do hardware.

4
“Se você quer ser profissional”, continua Kilkenny, “você não pode negar a uma pessoa o direito de
comercializar seus discos. Se discos estão em formato de áudio, então você deve dar a essa pessoa
o direito do uso do áudio em qualquer forma em que esse uso esteja disponível. Nós estamos
acostumados com formatos - sejam discos ou fitas – que são físicos. A grande incerteza que existe
lá fora é: quais são as novas tecnologias? Será a cabo? Satélite? Seu telefone? Nós não sabemos se
isso será cobrado por transação ou pagar-para-ouvir. Então, com essa incerteza, tudo o que você
pode dizer para a pessoa é: ‘Ok, nós lhe concedemos o direito sobre o áudio, então você tem o
direito de vender discos ou seus substitutos de formato de áudio. O que nós não sabemos é: pelo
que devemos ser pagos?”.

O que o U2 fez neste novo acordo com a Island/Polygram foi deixar a divisão de lucros de futuros
sistemas de transmissão flexível, para dizer com efeito, aqui está a parte do U2 em um CD, mas nós
concordamos em deixar a parte do U2 sendo transmitido via satélite sem resolver até que isso
ocorra, de forma que ambas as partes possam avaliar um justo valor de mercado neste sistema de
distribuição.

Ao adiar a divisão do dinheiro recebido por sistemas que ainda não existem, o U2 espera evitar o
tipo de soco nos dentes que eles e todos os outros artistas levaram quando o CD substituiu o vinil,
e as bandas descobriram que aquela cláusula “nova tecnologia”, padrão em contratos de gravação,
dava aos artistas apenas metade dos direitos em novos formatos “experimentais”. Por alguns anos,
na década de 1980, as gravadoras realmente ganharam muito, cobrando dos consumidores o
dobro por um CD em relação aos discos de vinil, enquanto pagavam aos artistas apenas a metade.
Todos os artitas e empresários do mundo gritaram: “Nunca mais!”.

Enquanto toda essa negociação sobre o novo álbum e especulação tecnológica estão acontecendo,
McGuinness também está tentando preparar o terreno para o que vem por aí travando uma guerra
contra os direitos de apresentação das organizações europeias, uma velha e arcaica rede de
agências encarregadas de coletar royalties¹ de apresentações de músicas tocadas na TV, rádio e
em shows, e distribuir o dinheiro para os compositores.

Ou seja, toda vez que alguém toca uma música por dinheiro – seja o U2 em um estádio de futebol
ou um disco de sucesso tocado na rádio ou um cantor sussurrando “Tie a Yellow Ribbon” em um
bar – o promotor ou o dono do bar ou a estação de rádio deve pagar uma pequena quantia para o
autor da música. As sociedades de direitos autorais cobram taxas das estações, clubes e casas de
shows e então pagam o valor apropriado para os editores da música, que pagam para os
compositores. Ninguém pretende que o sistema seja preciso, mas pelo menos nos Estados Unidos
o fato de que há uma competição entre duas agências privadas de arrecadação faz com que elas de
alguma forma se tornem responsáveis. ASCAP e BMI colocam todo o dinheiro que arrecadam
dentro de um chapéu e, usando uma fórmula baseada nas vendas dos álbuns, reproduções nas
rádios, e verificações in loco em estabelecimentos, calculam uma aproximação de quantas vezes as
músicas dos diferentes compositores são tocadas e os pagam de acordo.

______

¹ Royalties consiste em uma quantia que é paga por alguém ao proprietário pelo direito de usar, explorar ou comercializar um
produto, obra, terreno, etc. No mundo da música, os royalties são um valor pago ao autor ou compositor de uma determinada
música, para ter o direito de usar ou reproduzir a música em questão.

5
Na Europa, por outro lado, uma rede de sociedades nacionais de arrecadação tem um monopólio
funcional. E McGuinness afirma que, embora isso possa ter sido uma triste necessidade no velho
mundo, nesse novo pós-Guerra Fria, pós-Tratado de Roma, pós-Maastricht de economias
europeias unificadas, o U2 deveria ter o direito de arrecadar o seu próprio dinheiro por suas
próprias apresentações, de suas próprias músicas. Em fevereiro, McGuinness e o U2 deram
entrada em um processo na Suprema Corte de Londres, declarando que as regras da Sociedade
Britânica de Direitos de Execução [British Performing Rights Society] não podem ser aplicadas sob
as leis da União Europeia.

“Existe um espantoso sistema de arrecadação através das organizações como a Performing Rights
Society e seus equivalente nacionais em cada país europeu”, diz McGuinness. “Essas organizações,
algumas vezes comerciais, algumas vezes regulamentárias, arrecadam em benefício dos
detentores dos direitos, produtores, artistas e compositores, da televisão, rádio, promotores de
shows e assim por diante. Todo o sistema é incrivelmente aleatório e inconsistente em cada país, e
a comunidade europeia não está fazendo nenhum esforço sério para resolver o problema. Nós
estamos no meio de um processo contra a Performing Rights Society na Grã-Bretanha, onde
basicamente nós estamos dizendo a eles: ‘Vocês alegam que poderiam arrecadar dinheiro em
nosso nome. Agora, parece que vocês são absolutamente incapazes de arrecadá-lo, mas também
não admitem isso’. Nós esperamos fazer muito dinheiro com a Performing Rights Society [PRS]
por causa disso”.

“Basicamente esse caso é também uma atitude britânica em que a PRS exerce algum tipo de
função benevolente coletando e distribuindo uma grande quantidade de dinheiro para
compositores que de outra forma não receberiam nenhum dinheiro. Agora, infelizmente, se você
tiver escrito uma música e ninguém a está tocando ou ouvindo, você não tem direito a nenhum
dinheiro. E em nome dos meus clientes, não estou preparado para aceitar uma situação onde a
PRS parece arrecadar em nosso nome de forma ineficiente e depois distribuir nosso dinheiro para
um monte de perdedores e sem-esperança! Se eles precisam de dinheiro, eles deveriam estar
recebendo isso de uma sociedade genuinamente benevolente ou do estado ou de algum outro
lugar. Eu não vejo razão porque eles deveriam estar tirando dinheiro dos nossos bolsos”.

McGuinness pode estar perseguindo a PRS através dos tribunais europeus durante muito tempo,
mas no final ele provavelmente ajudará a romper esse ultrapassado sistema – e abrir o caminho
para o U2 seguir sua trilha e arrecadar seu próprio dinheiro (ou entregar esse trabalho para a sua
gravadora – que terá que fazer alguma coisa caso ela não o produza fisicamente e distribua os
álbuns). Os intermediários estão vendo suas bases de poder desaparecendo no novo mundo. Deve
ter sido assim que se sentiram cem anos atrás, quando ninguém tinha certeza sobre se o futuro
seria com o motor de combustão interna, motores elétricos ou a vapor – mas já estava claro que os
cavalos estavam em apuros.

Enquanto o U2 inicia sua turnê europeia, McGuinness, Keryn Kaplan, chefe do escritório da
Principle em Nova York, e Anne-Louise Kelly, chefe do escritório em Dublin, viajam para a
conferência do diretor da Polygram em Miami, Florida, para informar à assembleia de executivos
da gravadora que eles têm dois anúncios felizes para eles: o U2 rescindiu o seu contrato com a
Island/Polygram, para um contrato de longo prazo, de seis álbuns, e o U2 acaba de entregar um
novo álbum de estúdio, Zooropa, que a gravadora poderia lançar imediatamente.

6
Os executivos da Polygram pularam de alegria com a notícia, o que provavelmente significa que
suas sacolas estariam cheias com o bônus de Natal. Publicações comerciais no negócio da música
no mundo todo começam a anunciar a história aos quatro ventos. O New York Post estima que esse
acordo vale 200 milhões de dólares para o U2.

A Newsweek publica uma foto de Bono no palco como Macphisto e escreve:

“Há ainda outro mega-negócio no mundo da música, desta vez entre os roqueiros irlandeses do U2
e a Island Records. No que pode ser o aperto de mão mais caro desde Michael Jackson com a Sony
em 1991, o U2 garante 10 milhões de dólares por álbum e uma elevadíssima taxa de 25% dos
royalties. ‘O U2 vendeu mais de 50 milhões de discos pra nós’, diz um porta-voz da companhia. ‘Eu
acho que isso fala por si só’. De fato, mas isso vai abafar as vozes de bandas menores? Achtung,
baby”.

McGuinness não confirmará o valor, sob a alegação de que não é bom para pessoas que têm muito
dinheiro ficar se gabando sobre isso em um mundo onde tantas pessoas não têm nada. A coisa a
ter em mente, porém, é que todas as grandes cifras que as gravadoras adoram jogar fora quando
assinam com superstars são conversa fiada, porque todas as ofertas são baseadas em
apresentações e a maioria dos avanços são recuperáveis. É um grande exagero dizer que a Virgin
pagou 50 milhões de dólares por Janet Jackson ou a Elektra pagou 25 milhões pelo Motley Crue
(ninguém é tão estúpido assim, não é?), mas isso não quer dizer que esses artistas alguma vez vão
reter esse dinheiro. O auge de tamanha tolice foi quando Michael Jackson rescindiu com a Sony há
alguns anos e o chefe da Sony Music, Tommy Mottola, disse que o contrato poderia ter rendido
bilhões de dólares, e a imprensa correu e divulgou isso! Eles esqueceram a palavra-chave: poderia.
Isso seria como eu dizendo que consegui um contrato de bilhões de dólares por esse livro. Eu
teria... se ele vendesse 500 milhões de cópias.

______________________________________

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28. O Dadaísmo é um Conforto
o estado de alerta dos seguranças do u2 / neo-nazistas poluem a alemanha / larry desce ao
submundo / macphisto assusta o empregado do hotel / uma monografia teológica por cyndi
lauper

Bono está sentado a uma mesa no salão privativo do andar reservado de um hotel em Colônia
quando Larry aparece e vê os ovos, torradas e batatas que Sheila Roche, do Principle, havia pedido
mas teve que abandonar quando o dever a chamou pelo walkie-talkie. “Ótimo!” diz Larry, puxando
uma cadeira. “Eu só estava me perguntando como eu iria conseguir tomar o café da manhã!” Larry,
mal tinha levado o primeiro garfo à boca quando entra um garçom com a conta de todos cafés da
manhã consumidos naquela mesa enquanto Larry estava dormindo. Bono faz um sinal pedindo que o
garçom entregue a conta ao Larry, que olha para a quantia, levanta uma sobrancelha e assina. Então
eu peço uma garrafa de Evian e começo a assinar por ela. Bono diz: “Não, Bill, não, não!” Isso é
demais para Larry. “Deixe-o pagar a água, Bono! Eu paguei pelo desjejum de todos vocês!” Eu assino
e Larry diz: “Tenho certeza de que um adiantamento vai cobrir isso”.

Adam entra, suando depois de malhar no ginásio do hotel, e puxa uma cadeira. McGuiness aparece
um pouco depois e pergunta ao Adam se ele e Naomi realmente vão se casar em 15 de setembro.
“Bobagem”, Adam responde. “Pura bobagem”. “Mas eu estou lendo isso em todos os lugares”, diz o
empresário. “Provavelmente é você que está contando isso a eles”, Adam replica.

Bono sai para se vestir e retorna alguns minutos depois com roupas pretas, o cabelo penteado para
trás, e óculos olhos-de-inseto do The Fly. Todo o seu comportamento muda quando ele está vestido
assim. Ele se levanta e caminha com as costas retas e ombros rígidos de um coronel inspecionando
suas tropas.

Quando todos estão reunidos, nós descemos de elevador até o saguão de entrada, e Edge e Bono
praticam seu ritual de dar autógrafos para as crianças que os estavam esperando do lado de fora do
hotel, enquanto Larry e Adam praticam o ritual de esperar por Bono e Edge. Finalmente, a procissão
de carros pretos se arranca. Larry está pilotando sua moto para o show hoje, o que aumenta a
sensação de que estamos em um comboio de veículo diplomáticos. McGuiness observa pela janela do
carro, estudando a estranha mistura arquitetônica de Colônia, uma cidade com algumas magníficas
estruturas antigas cercadas por prédios modernos – o resultado da maior parte da cidade antiga ter
sido destruída pelos bombardeiros Aliados. O pai de Paul foi um piloto da RAF [Força Aérea
Real] que bombardeou Colônia.

No estádio de Mugersdorfer, o U2 se acomoda em seu camarim e Edge tenta tocar “11 O’Clock Tick
Tock”, uma música da época inicial do U2 e que eles não tocavam há dez anos. Adam pergunta em
que nota ele está e Edge subitamente se lamenta: “Não consigo me lembrar do solo”.

Bono diz: “Isso até pode ser bom”. Bono diz que, embora nunca se soube disso, “11 O’Clock Tick
Tock” foi concebida como o tipo de música de cabaré cantada nos últimos dias da República de
Weimar, mas Martin Hannet, o primeiro produtor do U2, não conseguia aceitar a música daquele
jeito, e por isso foi dada a ela a roupagem rock & roll do U2 daqueles dias. Agora Bono está
interessado em ressuscitar a versão embrionária. Em Macphisto, ele finalmente encontrou um

1
personagem de cabaré para cantá-la. (Edge, por outro lado, diz que essa história é pura balela e que,
para provar isso, ele tem a primeira demo da música no estilo rock & roll de “11 O’Clock Tick Tock”.
Bem, eu sugiro, talvez na cabeça de Bono ela era ao estilo Weimar.)

Na passagem de som, sob uma chuva leve, o U2 toca “I Will Follow” pela primeira vez na turnê, e
decide incluí-la no setlist de hoje à noite. Assim que eles terminam a checagem de som, a multidão
começa a lotar o estádio e o primeiro número de abertura se inicia. Entre os artistas de abertura, o
U2 convidou um grupo teatral chamado Macnas (“loucura”, no irlandês) para animar o público. Eles
vestiam cabeças gigantes dos membros do U2, fazendo uma paródia em mímica dos 4 membros da
banda; como se o U2 tivesse se juntado ao Mickey e Donald na Euro-Disney. A cabeça gigante do Edge
é especialmente grotesca – parece com o Mercador de Veneza. O sujeito que interpreta o Larry imita
a postura reta e máscula dele; o que faz o papel do Adam imita uma postura altiva com seus ares de
nobreza, e o ator representando o Bono fala e se emociona como um ordinário Hamlet que se
pendura no balcão de um teatro. Há uma sensação real de bobos da corte zombando dos reis. O
público ama isso. Uma coisa engraçada no público alemão, no entanto, é que eles vibram em voz
baixa, criando um som amistoso, mas que de algum modo soa meio ameaçador.

Os guarda-costas do U2 estão nos bastidores, falando através de seus walkie-talkies, compartilhando


sinais. Adam passa por dois dos seguranças a caminho da barraca do serviço de bufê e eles
transmitem para seu agente no andar inferior: “Número três descendo!”

Adam se junta a Larry no bufê para fazer uma entrevista para a TV. Edge e Bono ainda estão lá em
cima no camarim. Do lado de fora da barraca, um dos membros da equipe se aproxima de Willie
Williams e pergunta se a banda está por perto. “Os cabelos extravagantes estão aqui embaixo, os
boinas estão lá em cima”.

“Como está o humor de Bono?”

"Bom, mas não 100%. Mas está melhorando desde ontem”.

Caramba, eu digo, parece que vocês estão emitindo um boletim metereológico:

Número um parcialmente nublado, melhora esperada para mais tarde. Número três nublado.

“Acredite em mim”, diz o membro da equipe. “Vale a pena saber”.

Outro roadie¹ está importunando um dos seguranças, segurando um walkie-talkie imaginário e


dizendo: “O número um está indo ao banheiro! O número um está fazendo o número dois!”

______

¹ Roadie é um técnico responsável que acompanha uma banda para todos os espetáculos. Apoia os músicos nas
montagens e desmontagens dos shows, garantindo que fique tudo tecnicamente bem ligado e como os músicos gostam.
Entre outras coisas, o roadie é responsável por: descarregar e carregar os carrinhos com o material, montagem de todos
os equipamentos no palco, apoiar as montagens, afinações e programação da iluminação do show, apoiar as montagens
de cenografia, coordenar as ligações de vídeos, afinar instrumentos. Durante o show, também está disponível para
qualquer eventualidade ou problema em cima de palco.

2
Adam e a maior parte da equipe que não está trabalhando se juntam para assistir ao show de
abertura dos Stereo MC’s, cuja música, “Connected”, parece estar tocando em todas as discotecas,
lojas e cafés na Europa. Todos na turnê amam os Stereo MC’s – o que não aconteceu com a banda de
abertura que o U2 despediu na semana passada. Einsguzende Neubauten, uma banda industrial
alemã que “toca” ferramentas e bate-estacas, foi expulsa da turnê depois que um deles jogou uma
barra de aço em espectadores holandeses que estavam atirando neles alguns vegetais. A barra
atingiu uma garota que teve que ir para o hospital. Willie Williams observou: “Apresentações
artísticas de alemães furiosos não combina com estádios de futebol no meio da tarde”.

Nesta temporada, os alemães que demonstram muita agressividade estão particularmente


suscetíveis de serem atingidos por críticas de europeus hipersensíveis. Os vizinhos estão irritados,
pois a velha pátria está recuperando seu status de superpotência. No período de um ano e meio
desde a reunificação, a Alemanha tem lutado para fazer enormes ajustes sociais. Um milhão e meio
de imigrantes entraram no país desde o colapso do comunismo, e na semana passada o parlamento
decidiu impor alguns limites. A Alemanha Ocidental tinha uma política de asilo amplamente aberta
desde a Segunda Guerra Mundial, uma reparação exigida pelos países que haviam absorvido ondas
de refugiados do Nazismo. Obviamente, nos anos que seguiram à Segunda Guerra Mundial, não havia
um desejo generalizado das pessoas de migrarem para a Alemanha. Agora, a Alemanha é a terra
prometida para imigrantes dos países comunistas em colapso e do Terceiro Mundo. Fechando os
portões agora, o governo alemão pode estar simplesmente tentando proteger a sua economia, já
tensa, por ter que absorver toda a falida Alemanha Oriental de uma única vez. Mas o efeito é para
aparentemente ratificar uma crescente xenofobia alemã.

Pode ser injusto que outros países enxerguem o espectro do fascismo por trás de cada demonstração
de nacionalismo alemão, mas tem sido dada grande atenção na recente onda de violência contra
pessoas não-arianas na Alemanha, particularmente contra a população turca. Neo-nazistas estão nas
manchetes desta semana em Solingen por queimar a casa de uma família turca e pintar suásticas
nela. Duas mulheres turcas e três garotas foram mortas durante esse ataque. Em novembro passado,
uma avó e duas garotas foram assassinadas em Mollnem num ataque similar. Em resposta aos
assassinatos da última semana, os turcos viraram carros e quebraram vitrines por toda Alemanha. O
que é difícil para pessoas de outros países compreenderem é que a cidadania alemã não é concedida
pelo nascimento, mas sim pela etinia. Assim, uma pessoa de descendência turca, nascida na
Alemanha, não é considerada um cidadão alemão, embora para uma pessoa descendente de alemães
nascida em outro país lhe seja facilmente concedida a cidadania alemã. O chanceler Helmut Kohl foi
amplamente acusado de apaziguar, em vez de resistir aos intolerantes. Ele não compareceu a
nenhum dos funerais das vítimas de assassinato turcas, e declarou que “a Alemanha não é um país
para imigrantes”.

No palco hoje à noite, Bono apresenta “One” dizendo em alemão: “Essa música é para os imigrantes
na Alemanha”. Ele recebe sólidos aplausos, mas não muito intensos. “Until The End of the World”
despeja uma carga política nesta atmosfera, que é duplicada pela inserção de “New Year´s Day” logo
em seguida, uma música pelo menos parcialmente inspirada e associada à ascenção do Movimento
Solidariedade na Polônia dez anos atrás. Durante o set acústico no palco B, Bono canta “Redemption
Song”, música de Bob Marley, como introdução para uma versão inesperada – e apaixonada - de
“Sunday Bloody Sunday”, uma música sobre os problemas na Irlanda do Norte. O clima dela
permanece pairando no ar enquanto a banda volta para o palco principal para “Bullet the Blue Sky”, a

3
sua evocação explosiva das guerras na América Central. Hoje a noite, o U2 é tão político quanto o
Clash. O clímax disso tudo chega quando Bono, como Macphisto, pega o telefone para fazer sua
ligação noturna à alguma celebridade.

“Mais ou menos nessa hora eu costumo fazer uma ligação telefônica”, ele diz na voz cadenciada de
um cafetão promíscuo. “Geralmente é para o presidente dos Estados Unidos, mas não hoje à noite.
Hoje eu ligarei para o chanceler, Mr. Kohl”. A multidão aplaude enquanto Bono aperta os números e
explica: “Quando você fica muito famoso, as pessoas lhe dão o seu número de telefone”. Uma
secretária atende e Bono diz: “Olá, eu gostaria de falar com o chanceler, Mr. Kohl, por favor”. Ela lhe
pergunta seu nome. “Aqui é Mr. Macphisto”. Então, brincando com a plateia, os telões se iluminam
com seu rosto diabólico, e ele diz ao telefone: “Ele é um velho amigo meu, um amigo próximo!”

“Você sabe que horas são?” a voz pergunta.

“Eu sei muitas coisas”, Macphisto resmunga, brincando com o seu lado satânico da sua persona com
chifres. “Eu poderia então deixar uma mensagem pra ele?”

"Diga!"

“Você poderia apenas agradecer ao chanceler por me deixar entrar novamente no país?” A multidão
solta um suspiro, espantada, e o diabo continua, tagarelando: “Eu estou de vooooolta! Estou de
voooolta!”

O U2 está cumprindo a sua promessa de desafiar os limites na Europa. Se você lhes der uma chance,
Bono e Edge esquentarão sua orelha falando sobre os dadaístas, o movimento artístico sem-noção
que surgiu na Europa após a Primeira Guerra Mundial. A inspiração do U2 nos dadaístas provém da
tentativa deles de conter a aparição de movimentos fascistas através da zombaria, e isso faziam
recusando-se a aceitar o vocabulário que estava sendo usado para subordiná-los, erguendo uma
defesa moral sob o pretexto de tolice anárquica. O U2 vê a Zoo TV em geral e Mr. Macphisto em
particular como devedores e seguidores do dadaísmo. Que os nazistas se puseram a limpar do mapa
os dadaístas é visto por Bono como uma prova da sua potência. (Embora o fato de que os nazistas
tenham conseguido derrubá-los, pode sugerir também um bom argumento para sua impotência a
longo prazo. Lembre-se da observação de Woody Allen que indica que contra os nazistas a sátira
mordaz é mais inútil do que bater com tacos de baseball).

Nem todas as tolices que acontecem durante o show possuem um tom tão sério. Enquanto Bono faz
seu solo na introdução de “One” hoje à noite, Larry desliza para o vasto mundo sob o palco para
esticar as suas pernas. Um dos membros da equipe tira seu fone de operador e o entrega a Larry, que
o coloca e ouve os diretores de vídeo conversando entre si, pedindo tomadas, ordenando close-ups, e
em geral, certificando-se que as telas de TV gigantes estejam funcionando. Larry liga para Monica
Caston, a diretora de vídeo ao vivo, e fala com um sotaque arrastado americano, como se fosse da
equipe de segurança: “Monica, eu não gosto dessa tomada de Bono”.

Com voz agitada ela responde: “O que você quer dizer com não gosta disso? O que está errado?”

“Ah, não sei, apenas não gosto. Por que você não muda isso?”

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“Vai se lixar!”

“Monica”, Larry diz, voltando para a sua própria e típica voz séria: “aqui é o Larry”. O grito dela quase
estorou alguns fones. Rindo, Larry volta para trás da sua bateria.

No hotel, após o show, todos se reúnem na suíte de Bono, na esperança de encontrar algo para
comer. O serviço de quarto parece ter desaparecido. A equipe está, como um deles descreve, se
arrastando por aí, em busca de comida, parecendo um rebanho de gado migratório. Por volta de 3 da
manhã todos estão segurando suas barrigas e queixando-se. Sheila Roche, Suzanne Doyle e a
publicitária Regine Moylett sentam em um sofá perto do telefone e ligam para a cozinha a cada meia
hora ou menos. Toda vez elas recebem a mesma resposta: “Em dez minutos”.

Finalmente, Bono decide intervir. Ele grandiloquentemente pega o telefone e murmura: “Olá! Aqui é
Mr. Macphisto. Eu pedi batatas fritas e sanduíches há uma hora e meia, e se eu não os receber
imediatamente eu irei...” e aqui ele se degenera em uma sequência de murmúrios incompreensíveis
que devem soar ainda mais ameaçadores na imaginação tradutora do serviço de quarto alemão do
que em seu próprio palavreado nativo. De qualquer forma, isso funcionou. Em poucos minutos,
bandeja após bandeja de batatas fritas é trazida pelos funcionários com caras assustadas e a equipe
da turnê cai nelas famintos. Eu sussurro para o Bono enquanto ele enfia uma batata na boca: “Eles
provavelmente cuspiram nelas”.

De algum jeito que eu não sei, a nossa festa foi agraciada com a presença da cantora pop Cyndi
Lauper, que também está hospedada nesse hotel, além de um par de garotas de sua banda. Cyndi
começa a discursar para Bono e Larry, em seu amplo sotaque do Queens sobre as desvantagens da
religião deles (e, na verdade, de todos os outros também). Cyndi dá uma lição de moral no Bono
dizendo que todas as principais religiões são “patrilineares”¹. “Ela adora essa palavra, e a repete mais
de uma vez. Ela diz que ela mesma era uma Hare Krishna quando criança, até perceber que eles
esperavam para se sentar em suas bundas gordas enquanto as mulheres faziam todo o trabalho, e as
mulheres deveriam esperar até que os homens acabassem de comer e só então se permitia a elas comer
na cozinha como se fossem cachorros! Aí está uma palavra, Cyndi diz, para esse tipo de
comportamento: “Patrilinear!”

Sheila Roche senta-se calmamente no sofá e diz para Suzanne e Regine: “Alguém está lendo Camille
Paglia...”

Vou para a cama antes do amanhecer, mas eu não consigo achar um botão que desligue a música
ambiente que invade o meu quarto. Eu não estou brincando – é “Girls Just Want to Have Fun”.

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¹ O que Cyndi Lauper quer dizer é que, segundo ela, as religiões são usadas como artifício para os homens se aproveitarem das
mulheres, por isso o uso deste termo, derivado de patriarcal, um sistema social em que homens adultos mantêm o poder primário e
predominam em funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. No domínio da família, o
pai (ou figura paterna) mantém a autoridade sobre as mulheres e as crianças.

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