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8 - Cardoso
8 - Cardoso
Carlos Cardoso
Introdução
Nas duas últimas décadas não têm faltado vozes a reclamar um lugar para as
ciências sociais e os Estudos Africanos no concerto das epistemologias
contemporâneas. Tal reivindicação parte do pressuposto de que no contexto da
globalização, sobretudo no do pós-Guerra Fria, enquanto no plano político-
ideológico se tem tentado impor um pensamento único, o campo científico
tem-se pautado por paradigmas ditados pelas ciências sociais ocidentais. Ao iniciar
esta comunicação, a pergunta que nos podemos colocar é se uma tal asserção
corresponde à verdade. Se sim, quais são as razões que explicam este estado de
coisas? Será possível alterar o status quo? Se sim, em que condições se fará uma tal
inversão? Resumindo: o que tem corrido mal na prática das ciências sociais no
continente para que África, também neste domínio, continue a ocupar um lugar
subalterno?
Nesta comunicação, parte-se do princípio de que algo vai mal nas ciências
sociais em África, e que este mal tem razões históricas profundas que importa
lembrar. Defendemos que, ao mesmo tempo que se reclama um lugar para as
ciências sociais praticadas em África, devemos voltar os olhares para as condições
de produção científica existentes no continente. A comunicação incidirá sobre
esta segunda dimensão, tentando mostrar que uma coisa é reconhecer a
indispensabilidade de uma epistemologia alternativa e outra é criar as condições
da produção da mesma, sendo, por isso, a questão maior a de saber como
produzir esta epistemologia. Tentaremos ressaltar que a produção de uma
epistemologia alternativa só ganha sentido quando for capaz de se integrar numa
‘episteme’ socialmente reconhecida e consequentemente pertinente, que seja
Dados da Universidade Cheikh Anta Diop revelam que dos 1.100 docentes
exercendo a sua actividade na instituição, apenas 22% publicam regularmente
artigos científicos, apesar de a pesquisa constar das missões das seis faculdades,
117 laboratórios (60 na Faculdade de Medicina, 13 na Faculdade de Ciências, 9
no IFAN, 11 na Faculdade de Letras, etc.) e 13 grandes escolas de formação, 12
Institutos e centros de Pesquisa e 47 formações doutorais. Apenas 40% dos
docentes investigadores publicam periodicamente e 35% deles não publica
absolutamente nada. 75% das publicações são co-escritas com investigadores do
Norte. 80% das publicações são feitas no exterior e 66% das aparições dizem
respeito ao domínio da saúde. Os resultados destas pesquisas são pouco
valorizados por falta de ligação entre a universidade e as empresas (Wal Fadjiri 29
de Junho de 2009, e le Soleil 8 de Agosto de 2009).
Embora variando de universidade para universidade, existe um grande
desequilíbrio entre o investimento feito na investigação em ciências sociais e nas
ciências naturais. Um estudo sobre 12 universidades africanas, concentradas
sobretudo na África do Leste e Austral, revelou que cerca de 45% de todos os
projectos de pesquisa nestas universidades eram feitos nos domínios de artes e
ciências sociais, e que apenas 6% dos projectos estavam relacionadas com a
engenharia (Mohammedbhai 1996:31). No entanto, sabe-se que os recursos
disponibilizados para cada uma das áreas são desproporcionais, sendo os
dedicados às ciências sociais geralmente muito mais limitados.
As condições da prática das ciências sociais em África são na maior parte dos
casos muito precárias. Apesar de a sua prática exigir investimentos muito menos
avultados do que as requeridas pelas ciências naturais, o seu adequado exercício
não deixa de exigir determinadas condições, incluindo infra-estruturais. Ora, além
das condições que caracterizam as universidades africanas e que foram referidas
atrás, a prática das ciências sociais em África sofre de constrangimentos
significativos que acabam por afectar o seu cabal desenvolvimento.
As faculdades de Letras e Ciências Humanas em muitas universidades são
consideradas ‘o lixo’ da universidade. Na Universidade Cheikh Anta Diop de
Dakar a Faculdade de Letras absorve cerca de 50% do efectivo de estudantes
matriculados (Wal Fadjiri 25 de Junho de 2009). Num contexto de escassez de
infra-estruturas adequadas, elas são as primeiras a sofrer, implicando, entre outros
efeitos, que as aulas decorram em condições extremamente precárias. A ausência
ou carência de revistas científicas nas bibliotecas que se pretendem especializadas
dificulta o acompanhamento dos debates e das ‘descobertas’ em certas disciplinas,
ao mesmo tempo que torna quase impossível a participação dos investigadores
africanos nestes debates. A falta de publicações científicas próprias torna a situação
ainda mais dramática. O nível de pesquisa académica em África permanece fraco
em parte devido à ausência de espaços de divulgação e disseminação dos
resultados de pesquisa. Em 1995, a região era responsável por apenas 5.839
é hoje uma realidade palpável na maior parte dos países africanos. Em termos
globais, as universidades gozam de uma relativa autonomia e a liberdade
académica, apesar de ainda conhecer restrições pontuais, faz parte da realidade
vivida na maior parte das instituições de ensino superior.
Contudo, apesar desta evolução globalmente positiva, continuam a colocar-
se restrições sérias ao livre exercício do metier do cientista social. Para além das
restrições financeiras impostas pela ausência de um engajamento consequente
por parte do Estado, a prática das ciências sociais, sobretudo em certas disciplinas
como a sociologia e a ciência política, e à qual fizemos alusão atrás, ainda é vista
com alguma desconfiança, se não mesmo com menosprezo, pelo facto de ser
capaz de questionar o poder instituído ou, segundo o julgamento deste, não
contribuir para o desenvolvimento socioeconómico do pais. Não são raros os
casos em que altos dirigentes de Estado se referem às ciências sociais em termos
depreciativos, com o argumento de que elas constituem um luxo para países que
se debatem com insuficiência de recursos financeiros, como é o caso de muitos
países africanos ao Sul do Sahara.
A dificuldade do exercício do metier de cientista social assume proporções
dramáticas em situações de instabilidade política crónica ou conflito armado.
Situações destas não são raras no continente africano. Num tal contexto, o que
verificamos é um bloqueio total da possibilidade de exercício, quer pela dificuldade
de movimentação dentro do território onde tem lugar o conflito, quer pela total
incapacidade de se escapar à perseguição do diálogo das armas. Escusado será
dizer que em situações idênticas, o funcionamento das instituições torna-se uma
miragem. Nestas circunstâncias, torna-se judicioso dizer que a violência exercida
pelo colonialismo face às ciências sociais, que no contexto colonial se traduziu na
repressão de todas as formas de conhecimento endógenas que não fossem
informadas pelas matrizes coloniais, é substituída por um novo tipo de violência,
desejada ou não, protagonizada pelas novas elites africanas no poder. A
intencionalidade imanente a cada um destes tipos de violência pode fazer a
diferença, mas o efeito perverso induzido permite no mínimo uma comparação
entre eles.
Marks (2000) dá-nos quatro razões para ensinar as ciências sociais nas
universidades sul-africanas, que podem ser generalizadas para o resto do continente
não só no que toca ao ensino em si, mas igualmente no que diz respeito à própria
prática das ciências sociais. A primeira é para refutar os mitos criados pela
conceptualização ocidental da África; a segunda, para reinterpretar a história em
África de uma maneira não-essencializante; a terceira, para estudar as ciências
sociais de uma maneira que não oponha as ciências naturais às ciências sociais
como se fossem diametralmente opostas; e a quarta, enfim, para nos darmos
conta que o estudo da África desestabilizou os instrumentos conceptuais ocidentais
e apelou à re-conceptualização da pesquisa, tanto africana como ocidental, no
domínio das ciências sociais. A estas quatro razões acrescentaríamos uma, que
consiste na necessidade de fazer das ciências sociais um instrumento de
transformação das sociedades africanas, sem as limitar a uma dimensão
instrumental, mas fazendo delas parte integrante de um projecto emancipador,
que para o ser precisa de se afirmar como uma epistemologia alternativa. Como
foi referido na introdução, para que as ciências sociais se possam afirmar como
uma epistemologia alternativa torna-se necessário que elas sejam não só socialmente
relevantes, mas que joguem um papel revolucionário/transformador no que
respeita às condições da sua própria produção.
O dramático, porém, é que muitas das iniciativas com vista à melhoria das
condições de produção do conhecimento científico, condição sine qua non para a
produção de uma epistemologia alternativa, continuam a estar ligadas ou são
globalmente controladas pelo Norte. Um exemplo é a Iniciativa Think Thank
(ITT) financiada pelo CRDI e pelas Fundações americanas William e Flora Hewlett
e Bill e Melinda Gates. Outro exemplo é a Iniciativa África/EUA para o
desenvolvimento do Ensino Superior em África, financiada pelo Departamento
de Estado norte-americano, e que existe desde 2008. Fica, assim, a sensação de
nos encontrarmos num beco sem saída. Será assim? Estará tudo perdido para as
ciências sociais em África?
pesquisadores de todas as partes de África nas últimas três décadas e meia. Muitas
das intervenções do conselho no meio intelectual africano durante os últimos
anos foram impulsionadas e moldadas por uma vontade de contribuir para o
reforço do sistema de ensino superior africano, particularmente das universidades
e centros de investigação avançada. Este objectivo de reforçar a base institucional
da produção de conhecimento no continente é uma das características centrais e
singulares da Carta constitutiva do conselho, e constitui uma missão que o destaca
entre todas as outras redes criadas, desde a sua formação.
Num artigo publicado pelo CODESRIA, Claude Ake analisa algumas das
condições necessárias para que haja progresso das ciências sociais em África
(Ake s/d), destacando o facto que “o estudo dos factores que influenciam a
qualidade das ciências sociais em África é mais premente que a compilação de
um inventário” (Ake s/d). Ele defende, por exemplo, que um tal estudo podia
debruçar-se sobre os programas das ciências sociais nas instituições de ensino
superior em África.
Conclusão
Fazer ciências sociais em África não só é possível como necessário. Esta
necessidade advém do facto de à sua dimensão cognitiva se associar uma
dimensão ética e política. As políticas públicas precisam de ser elucidadas pelos
resultados e contribuições do ramo das ciências que mais directa e imediatamente
afectam a vida da sociedade, as ciências sociais e humanas. Uma das vocações
das ciências sociais em África consiste, por isso, em contribuir para o
desenvolvimento das sociedades africanas, desde logo através da elaboração de
conceitos e teorias que sejam consentâneas com as realidades e os processos
transformativos em curso no continente, requerendo, por consequência, um
engajamento epistemológico.
Contudo, as ciências sociais não podem ser reduzidas à sua função utilitarista,
cabendo-lhes igualmente uma função crítica e filosófica. A assunção desta função
passa por uma desconstrução epistemológica que volte a sua atenção crítica para
as epistemologias desenvolvidas no Norte e que aspiram a uma universalidade
inquestionável. O que está no centro da desconstrução epistemológica é justamente
o questionamento de uma epistemologia que assume como universal os parâmetros
culturais, identitários, linguísticos e de poder desenvolvidos no Norte. Como
dizia Claude Ake, o que está em causa, no que diz respeito à dependência da
África em relação ao Ocidente, é menos uma questão de poder político ou
económico e mais uma questão de paradigmas, e os cientistas sociais têm um
papel central a desempenhar a este respeito. “Enquanto não lutarmos para um
desenvolvimento endógeno da ciência e do conhecimento, não podemos
emancipar-nos” adverte-nos Ake (1986). Além disso, segundo ele não se trata de
Notas
1. Para mais detalhes sobre a situação do ensino superior em África, ver o Plano Estratégico
do CODESRIA (CODESRIA s/d), e também, N’dri (2006).
2. Alguns interrogam-se, por exemplo, sobre a relação que existirá entre a UPA e o African
Institute of Science and Technology (AIST), um projecto nascido a partir da diáspora
africana com o objectivo de criar uma instituição de elite com campus em toda a África.
O primeiro deste campus foi aberto em Abuja, na Nigéria, e começou a funcionar em
2008. Outros defendem que a ideia de criar mais instituições pan-africanas, embora
pareça boa, pode resultar em mais “elefantes brancos”, sendo talvez preferível que os
chefes de Estado renovem a sua confiança e financiem pelo menos uma grande
universidade nos seus respectivos países, enquanto centros de excelência que, por sua
vez, seriam chamados a estabelecer uma rede de centros produtores de conhecimento
(http://www.scdev.net/en/suhharan-africa/opinions/africa-analysis-does-africa-
need...).
Referências
Ake, C., s/d, “Sciences sociales et développement”, Publication occasionnelle, CODESRIA,
Dakar.
Ake, C., 1986, Editorial: raison d’être, in African journal of Political Economy 1 (1): I-IV.
Bachelard, G., 2006, A epistemologia, Edições 70: Lisboa.
Bates, R., Mudimbe, V., e O’Barr, J., 1993, Africa and the Disciplines, Chicago: University of
Chicago Press.