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A CORRUPÇÃO

MORAL DA
HUMANIDADE

A pintura na capa deste e-book é de


Benjamin West e retrata a expulsão de Adão e Eva
do Paraíso conforme a revelação registrada por
Moisés em Gênesis. Alguns detalhes na pintura vão
além do relato escriturístico, mas ainda assim ela
preserva a questão crucial: o pecado causou a
ruptura no relacionamento entre Deus e o ser
humano. A doutrina do pecado original relata que os
efeitos do pecado não ficaram restritos ao casal no
Éden, mas atingiu a toda humanidade. Herdamos
desde o nascimento a natureza corrupta do primeiro
Adão e, por conseguinte, também somos
considerados culpados diante do tribunal divino. E
antes que alguém replique que isso é injustiça e que
tal doutrina é uma invenção de Agostinho de
Hipona, argumentamos que podemos estar seguros
de sua base bíblica. Sendo assim, veremos como
essa doutrina está presente na Bíblia e depois como
ela foi reafirmada pela Reforma protestante, além de
definir com maior precisão o que vem a ser pecado
original e depravação total.

DEFINIÇÕES E BASE BÍBLICA

O Dr. R. C. Sproul (1939-2017) define


pecado original da seguinte forma: “Pecado original
não indica primariamente o primeiro ou original
pecado cometido por Adão e Eva. O pecado original
refere-se ao resultado do primeiro pecado – a
corrupção da raça humana. Pecado original refere-se
à condição caída em que nascemos”.1 O teólogo da
velha Princeton, A. A. Hodge, por sua vez escreve:

A expressão pecado original é


empregada às vezes no sentido de
incluir tanto a imputação judicial da
1
SPROUL, R. C. O Pecado Original. Monergismo. Disponivel
em:
<http://www.monergismo.com/textos/pecado_original/o-
pecado-original_sproul.pdf>. Acesso em: 7 janeiro 2018.
culpa do pecado de Adão, como
também a corrupção moral
hereditária, que é uma das
consequências dessa imputação. Mais
restritamente, porém, a expressão
pecado original designa somente a
corrupção moral hereditária comum a
todos os homens desde o seu
nascimento.2

Charles Hodge, também um teólogo


princetoniano e pai de A. A. Hodge, afirmou: “Os
efeitos do pecado de Adão sobre sua posteridade são
declarados em nossos padrões como: (1.) A culpa de
seu primeiro pecado. (2.) A perda da retidão
original. (3.) A corrupção de toda a nossa natureza, a
qual (isto é, a corrupção) recebe comumente o nome
de pecado original”.3 O teólogo holandês Herman
Bavinck escreveu: “Na verdade, por pecado original
ou hereditário, só se entende a depravação moral que

2
HODGE, A. A. Esboços de Teologia. São Paulo: PES, 2001. 445
p.
3
HODGE, C. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001.
652 p.
as pessoas levam consigo desde o momento de sua
concepção e nascimento, proveniente de seus pais
pecaminosos”.4

Podemos perceber nas citações acima que o


pecado original é ensinado com base na revelação
divina que narra em Gênesis 3 a Queda da
humanidade e a propagação hereditária da corrupção
moral a partir de Adão e Eva. Apesar de Gênesis 3
não falar do pecado no Éden em termos de herança
das gerações futuras, Romanos 5 estabelece os
contornos dessa doutrina.

No capítulo 5 da epístola de Paulo aos


Romanos encontramos dois representantes federais
de uma raça: Adão é o cabeça federal da raça
humana e Cristo é o cabeça federal da raça eleita.
Como cabeça federal da humanidade, Adão foi
criado originalmente justo: “Eis aqui, o que tão-
somente achei: que Deus fez ao homem reto, porém

4
BAVINCK, H. Dogmática Reformada. São Paulo: Cultura
Cristã, v. III, 2012. 104 p.
eles buscaram muitas astúcias” (Ec 7:29). Tendo
sido criado justo, Adão tinha a liberdade volitiva
para escolher o bem ou mal. A escolha que ele
fizesse como cabeça federal afetaria todos os seus
descendentes. Adão foi colocado nessa posição de
representante da humanidade pelo próprio Deus.
Como nosso representante Adão caiu do seu estado
de justiça original e nós caímos juntamente com ele.
Ou seja, nós herdamos a corrupção moral de Adão,
não fisicamente, mas por imputação. Deus, o
soberano Juiz, imputa o pecado de nosso
representante a nós. Imputar é creditar algo na conta
de uma pessoa: “Concluindo, da mesma forma como
o pecado ingressou no mundo por meio de um
homem, e pelo pecado a morte, assim também a
morte foi legada a todos os seres humanos,
porquanto todos pecaram” (Rm 5:12). O paralelismo
nessa passagem indica que: 1) por um homem
(Adão) o pecado entrou no mundo; 2) a
consequência do pecado (a morte) foi imputada a
todos os homens. É importante ressaltar que quando
Paulo fala da morte “passando” a todos os homens
ele introduz a frase com a expressão: “assim
também” (no grego, καὶ οὕτως). Essa expressão
indica que a operação da “morte” é análoga a de
algo já mencionado pelo apóstolo. E o que ele
menciona anteriormente é o pecado que entrou no
mundo. Para deixar mais evidente o ensino paulino
aqui podemos destacar que: a) por meio de Adão o
pecado foi legado a todos os homens; b) assim
também a morte foi legada a todos os homens, isto é,
pela representatividade de Adão.

Ainda falando da solidariedade da raça


humana com seu representante federal, Paulo
escreve: “Pois assim como por uma só ofensa veio o
juízo sobre todos os homens para condenação...”
(Rm 5:18). Dessa maneira, Deus estabeleceu Adão
como cabeça da humanidade e quando ele caiu a
humanidade caiu. Essa representação é federal, o
que significa dizer que as consequências da Queda
de Adão nos atingem não em virtude de nossa
relação física com ele, mas em virtude de nossa
relação pactual. Herdamos sua corrupção moral não
por geração física, mas por imputação legal. O
pecado original é desde a concepção, porém não por
causa da concepção. Isso significa que a imputação
do pecado de Adão ocorre num ato judicial perante o
tribunal divino e não em um ato sexual, como se o
sexo em si fosse algo pecaminoso.

Além de Romanos 5:12-19, podemos citar


outros textos que fundamentam essa doutrina:

 “Porque assim como a morte veio


por um homem, também a
ressurreição dos mortos veio por um
homem. Porque, assim como todos
morrem em Adão, assim também
todos serão vivificados em Cristo”
(1 Co 15:21,22).
 “Reconheço que sou pecador desde
o meu nascimento. Sim, desde que
me concebeu minha mãe” (Sl 51:5).
 “Desde o nascimento se rebelaram
os ímpios e se desviaram do
Caminho certo todos aqueles que
vivem mentindo” (Sl 58:3)

A doutrina da Depravação Total é uma


implicação direta da doutrina do Pecado Original.
Tendo explicado a definição de pecado original
como a herança proveniente de Adão, por
imputação, de uma natureza moralmente corrompida
e tendo demonstrado sua fundamentação
escriturística, vejamos a definição de Depravação
Total e sua base bíblica.

A expressão “depravação total” (em inglês,


total depravity) pode ser enganosa e, por isso,
precisamos entender corretamente aquilo que é
ensinado por ela. Por essa expressão alguns podem
entender que se ensina que o ser humano, por causa
do pecado, é tão mal e corrupto quanto poderia ser,
sendo incapaz de praticar qualquer ato cuja
aparência externa é de bondade ou de justiça.
Todavia, não é esse o conteúdo exato da doutrina.
Antes, para esboçar corretamente o que se quer dizer
por “depravação total” faremos um breve esboço da
antropologia bíblica.

O termo “antropologia” (gr. ἄνθρωπος,


anthropos, “homem” e λόγος, logos, “razão”,
“pensamento”, “discurso”, “estudo”) diz respeito,
dentre outras coisas, à investigação sobre a natureza
do ser humano. De acordo com as Escrituras, o ser
humano é uma unidade psicossomática, ou seja, o
ser humano é formado por uma parte imaterial
(denominada alma, espírito, coração, mente, etc.) e
por uma parte material formada a partir do barro
(denominada corpo, carne, etc.). Existe na parte
imaterial do homem, isto é, em sua alma o que é
frequentemente chamado de faculdades. Apesar de
haver grande disputa filosófica sobre a quantidade
de faculdades que há na alma, iremos endossar aqui
a divisão do reformador João Calvino, pois cremos
que ela está de acordo com as Escrituras, não
obstante contrariar a visão de muitos filósofos. Não
iremos aprofundar essa questão aqui, pois ela não é
o foco de nosso estudo, embora se relacione com a
questão.

Segundo João Calvino as faculdades do


homem são: 1) inteligência; 2) vontade. Ainda de
acordo com o reformador genebrino: “A inteligência
é para discernir entre todas as coisas que nos são
propostas, e julgar o que devemos aprovar ou
condenar. A função da vontade é escolher e seguir o
que o entendimento tiver julgado bom, e, ao
contrário, rejeitar e evitar o que tiver reprovado”.5
Enquanto a razão é o guia da volição, ambas (razão e
volição) devem, por sua vez, governar o corpo.

Tendo feito esse breve resumo sobre a


antropologia bíblica, agora podemos definir mais
claramente o que queremos dizer por depravação
total. Com essa doutrina afirmamos que o pecado
original, herdado de nossos pais por imputação, afeta
tanto nossa razão como nossa volição. Por

5
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I, 2006.
93 p. Edição Especial.
depravação queremos significar a corrupção moral e
pelo termo “total” expressamos a abrangência dessa
corrupção no ser humano. O pecado corrompeu não
somente a razão, deixando a vontade intacta, como
se o homem ainda tivesse livre-arbítrio, isto é, a
capacidade de se inclinar em sua volição tanto para o
bem como para o mal. Também a corrupção não
afetou apenas o livre-arbítrio, deixando incólume a
razão, como se o homem pudesse discernir sozinho o
conselho e o plano de Deus, independente da
revelação divina, sendo apenas incapaz de escolher
seguir por esse caminho. Antes, a corrupção afetou
todas as faculdades do ser humano, deixando em
mau funcionamento tanto sua razão como sua
volição. Steven J. Lawson declarou:

Toda humanidade nasce


espiritualmente morta em
transgressões e pecados. O homem
caído é totalmente depravado. O
pecado afetou radicalmente o homem
total. Quer dizer, cada parte do
homem – sua mente, suas emoções, e
sua vontade – está contaminada pelo
pecado. Sua mente está obscurecida, o
que o torna incapaz de ver a verdade
acerca de Deus, de Cristo e de si
próprio. Seu coração está
contaminado, e não deseja Deus, mas,
em vez disso, ama o seu pecado. Sua
vontade está morta e é incapaz de
escolher o que é certo. Praguejados
por essa incapacidade total, os
pecadores se acham sujeitos ao
pecado como seus escravos, incapazes
de mudarem e se tornarem realmente
bons. Estando espiritualmente morto
em seu pecado, o homem nem sequer
consegue buscar o que é certo e justo.6

A doutrina da depravação total, portanto,


diz respeito à corrupção moral que afeta todas as
faculdades do ser humano. Essa doutrina não diz que
o ser humano é tão mal quanto poderia ser, mas que
o pecado afetou sua natureza por inteiro. Tendo
definido a doutrina, vejamos sua base bíblica.

A passagem de Gênesis 3 narra a Queda da


humanidade de seu estado de justiça original e de
seu relacionamento correto com o Criador. O
mandamento de Deus era para que Adão e Eva não

6
LAWSON, S. J. Fundamentos da Graça: longa linha de vultos
piedosos. São José dos Campos: Fiel, 2012. 48 p.
comessem do fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal. A sanção para a desobediência a esse
mandamento era a morte. Ainda assim, quando
tentados pela Serpente, Adão e Eva comeram do
fruto que lhes fora proibido comer. A morte física
não foi uma consequência imediata dessa
desobediência, porém a morte espiritual ocorreu no
dia em que eles comeram. Por morte espiritual
queremos dizer a separação do Criador, bem como a
corrupção das faculdades discutidas acima. Isso não
significa que Adão e Eva e seus descendentes
perderam a alma, assim como suas faculdades. Eles
ainda eram constituídos de corpo e alma, sendo as
faculdades da alma o intelecto e a volição. No
entanto, o relacionamento correto que eles tinham
com o Criador foi rompido e as faculdades da alma
foram manchadas.

Alguns dos pais da igreja falaram do


orgulho como a raiz de todos os pecados. O monge
agostiniano Martinho Lutero identificou o motivo
básico desse ato pecaminoso como a incredulidade.
Adão e Eva duvidaram da Palavra de Deus e isso foi
a ruína da humanidade. O teólogo reformado
François Turretini acompanha Lutero, mostrando
que a incredulidade antecede o orgulho, mas
insistindo que ambos caminham juntos:

Mas a incredulidade não podia ter


lugar no homem, a menos que antes,
por irreflexão, ele cessasse de levar
em conta a proibição de Deus, sua
verdade e bondade. Se ele tivesse
continuamente direcionado seriamente
sua mente para ela (especialmente no
momento da tentação), nunca poderia
ter sido demovido de sua fé nem dado
ouvidos ao tentador. Por isso, pois,
surgiu primeiro a incredulidade ou
desconfiança. Por isso o homem não
exerceu fé na palavra de Deus, à qual
ele estava obrigado, mas a princípio
livrou-se dela, pondo-a em dúvida, e
em seguida a negou, deixando de crer
que o fruto lhe era proibido ou que
morreria.7

Aqui Turretini demonstra com clareza que a


origem do pecado reside na interioridade e os atos

7
TURRETINI, F. Compêndio de Teologia Apologética. São
Paulo: Cultura Cristã, v. I, 2011. 752 p.
pecaminosos físicos são precedidos por atos
pecaminosos no pensamento. Esse ensino está de
acordo com as palavras de Jesus: “Porque do
coração procedem os maus pensamentos, mortes,
adultérios, fornicação, furtos, falsos testemunhos e
blasfêmias” (Mt 15:19). O coração (gr. Καρδία) nas
Escrituras é o centro interior da vida do ser humano:
“Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu
coração, porque dele procedem as fontes da vida”
(Pv 4:23). Ele é a sede da vida espiritual e a fonte
dos pensamentos, das afeições, dos propósitos, etc.
Ainda na terminologia bíblica o coração pode ser
chamado de alma, mente, espírito. Esse coração é,
segundo as Escrituras, tremendamente corrupto:
“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas,
e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?”
(Jr 17:9). Estando o ser humano contaminado em sua
raiz ele não pode dar bons frutos.

Paulo descreve esse estado de


pecaminosidade da seguinte forma:
Em que noutro tempo andastes
segundo o curso deste mundo,
segundo o príncipe das potestades do
ar, do espírito que agora opera nos
filhos da desobediência; Entre os
quais todos nós também antes
andávamos nos desejos da nossa
carne, fazendo a vontade da carne e
dos pensamentos; e éramos por
natureza filhos da ira, como os outros
também (Ef 2:2-3).

O termo grego σάρξ (sarx = carne) pode


descrever a parte material do homem, mas também
pode ser usado como um termo que expressa a
disposição moral que permanece ativa na escravidão
ao pecado. Quando usado da primeira maneira, a
carne ou o corpo não carrega nenhuma conotação
má. O cristianismo não pode ser confundido com
maniqueísmo ou com gnosticismo. Essas duas
filosofias pagãs identificam o mal com a
materialidade. Na visão gnóstica a matéria é
inerentemente má. Não é essa a cosmovisão cristã.
Se a matéria fosse inerentemente má, a Bíblia não
ensinaria a ressurreição do corpo. No entanto, o
termo “carne” pode aparecer na Bíblia com o
segundo sentido mencionado acima. Se essa for a
conotação, então geralmente estará associada ao
pecado. Paulo diz que, atuando sob a depravação
total, nós andávamos nos desejos da carne, fazendo a
vontade da carne e dos pensamentos. Descrevendo
em outro lugar nossa inabilidade moral, Paulo
afirma:

Porque os que se inclinam para a


carne cogitam das coisas da carne;
mas os que se inclinam para o
Espírito, das coisas do Espírito.
Porque o pendor da carne dá para a
morte, mas o do Espírito, para a vida e
paz. Por isso, o pendor da carne é
inimizade contra Deus, pois não está
sujeito à lei de Deus, nem mesmo
pode estar. Portanto, os que estão na
carne não podem agradar a Deus (Rm
8:5-8).

Quando o apóstolo diz que os que andam


segundo a carne não podem estar sujeito à lei de
Deus ele não está falando de uma barreira exterior
ao homem que impede aqueles que tentam se
aproximar de Deus de alcançá-lo. Na realidade, esse
“não pode” expressa a inabilidade moral que flui do
interior do ser humano. Essa corrupção faz com que
o homem se incline para as coisas da carne e o
impede de se sujeitar à lei de Deus. Por isso
ninguém será justificado por obras da lei.

Cogitar das coisas da carne é fazer do


pecado objeto do pensamento. Pudemos ver que o
intelecto dirige a volição. Tendo feito do pecado
objeto do pensamento, o intelecto pode dirigir a
vontade na direção da carne. Essa direção, contudo,
é diametralmente oposta àquela do caminho de
Deus. Se inclinar em direção à carne é se separar
cada vez mais de Deus. E a separação de Deus já é
um tipo de morte: “no dia em que dela comeres,
certamente morrerás” (Gn 2:17). Por causa disso,
Paulo diz que o pendor da carne, ou seja, a
inclinação em direção ao pecado dá para a morte.

Esse não é o único lugar em que Paulo fala


da inclinação para o pecado e da consequente
separação do Criador como morte. Quando escreveu
aos Efésios ele disse: “E vos vivificou, estando vós
mortos em delitos e pecados” (Ef 2:1). E uma vez
que “toda Escritura é divinamente inspirada” (2Tm
3:16) não há antítese entre o ensino de Paulo e o
ensino de Jesus como alguns querem propor. Jesus
também fala dos pecadores como estando mortos:
“Jesus, porém, disse-lhe: Segue-me, e deixa os
mortos sepultar os seus mortos” (Mt 8:22).

Uma das formas em que essa morte se


expressa, conforme vimos, é a incredulidade. A
incredulidade é primariamente concebida no
intelecto. Turretini demonstrou isso quando disse
que a incredulidade é precedida por irreflexão. A
irreflexão, assim como a reflexão, tem seu lugar na
mente. Quando a mente deixa de considerar a
Palavra de Deus e em seguida passa a negá-la, a
incredulidade começa a tomar forma. Essa
incredulidade causa uma ruptura no relacionamento
correto com Deus, pois o homem afastado da
Palavra se inclinará para as coisas da carne. Paulo
diz: “... tudo o que não provém da fé é pecado” (Rm
14:23).

Dentre as consequências dessa ruptura de


relacionamento entre a criatura e o Criador está a
inimizade. A criatura começa a reger sua vida de
uma maneira que o Criador desaprova. Essa maneira
de conduzir a vida pode ser descrita como
transgressão da lei. A lei é o padrão para a
conformidade da mente, da vontade e do
comportamento corporal. O pecado, portanto, é a
transgressão voluntária ou qualquer falta de
conformidade à lei. Embora muitos possam estar
familiarizados com a primeira definição, a segunda é
tão importante quanto à primeira. Se restringirmos a
definição de pecado à transgressão voluntária da lei
então a doutrina bíblica do pecado original será
esmaecida. Agora a segunda definição é mais
abrangente, podendo compreender a primeira. Por
isso usaremos a segunda definição doravante.

A falta de conformidade à lei de Deus


suscita a Sua ira, pois, nas palavras do profeta, “Tu
és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a
opressão não podes contemplar” (Hc 1:13). Sendo
Deus eternamente santo e justo, o desvio de Seu
padrão moral não pode ser visto com indiferença.
Ele se ira perante cada injustiça cometida na terra. O
cálice do Seu furor se enche diante da maldade da
humanidade: “E viu o Senhor que a maldade do
homem se multiplicara sobre a terra e que toda a
imaginação dos pensamentos de seu coração era só
má continuamente” (Gn 6:5). Essa maldade contínua
do ser humano, fruto da incredulidade, coloca o ser
humano em oposição a Deus. É isso que a Bíblia
chama de inimizade: “Adúlteros, não sabeis que a
amizade do mundo é inimizade contra Deus?
Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo,
constitui-se inimigo de Deus” (Tg 4:4). A amizade
brota do amor e da confiança. Não é possível haver
amizade aonde a desconfiança predomina e o amor
está ausente. Ser amigo do mundo é confiar em suas
promessas e amar os seus prazeres. No entanto,
esses prazeres são fugazes e tais promessas são
falaciosas. A pessoa que é amiga do mundo perde o
prazer verdadeiro e duradouro:

Não ameis o mundo, nem as coisas


que há no mundo. Se alguém ama o
mundo, o amor do Pai não está nele;
porque tudo o que há no mundo, a
cobiça da carne, a cobiça dos olhos e
a vaidade da vida, não vem do Pai,
mas sim do mundo. Ora o mundo
passa e a sua cobiça; mas aquele que
faz a vontade de Deus, permanece
para sempre. (1 João 2:15-17).

O amor, sendo uma afeição que expressa


apreço e valor por seu objeto, é um ato da volição. A
volição, contudo, é guiada pelo intelecto. Estando o
intelecto corrompido pelo pecado, ele fará do mundo
e não do Criador seu objeto de consideração,
guiando a vontade a escolher o mundo e a rejeitar o
Criador. Esse é o pendor da carne, o estado de morte
espiritual em que jaz o ser humano após a Queda.
Suas afeições estão desordenadas.

O estado caótico das afeições faz com que o


ser humano inverta seus valores e suas prioridades.
Paulo fala acerca disso em Romanos 1: “Porquanto,
tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como
Deus, nem lhe deram graças, antes em seus
discursos se desvaneceram, e o seu coração
insensato se obscureceu” (v. 21). O estado de
pecaminosidade é descrito pelo apóstolo como
disposição insensata e condição de loucura.
Desprezar Jesus Cristo é insanidade mental. Essa
insensatez leva o homem à idolatria: “E mudaram a
glória do Deus incorruptível em semelhança da
imagem de homem corruptível, e de aves, e de
quadrúpedes, e de répteis” (Rm 1:23). É importante
notar que a idolatria não é apenas adorar imagens ao
invés de dar glórias somente a Deus. Antes, idolatria
é colocar qualquer coisa no lugar do Criador: “Pois
mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram
e serviram mais a criatura do que o Criador, que é
bendito eternamente. Amém” (Rm 1:25).

Novamente, a Bíblia narra o movimento do


pecado do interior para o exterior. Os homens, sendo
totalmente depravados, transformaram a verdade de
Deus em mentira. Esse é um ato pecaminoso do
intelecto. Quando esse ato pecaminoso foi cometido
na mente, eles prosseguiram e honraram mais a
criatura do que o Criador. Todo pecado físico é
precedido por um pecado na mente e ainda que
muitos pecados não se expressem na dimensão física
isso não significa que a pessoa é sem pecado, pois o
que ela articula em seu coração também é
considerado pecado por Deus: “Vocês ouviram o
que foi dito: ‘Não adulterarás’.
Mas eu lhes digo: qualquer que olhar para uma
mulher para desejá-la, já cometeu adultério com ela
no seu coração (Mt 5:27-28). Aqui Jesus diz que o
adultério não ocorre somente na esfera física. O
desejo impuro é um pecado cometido na mente, isto
é, no coração.

Essa descrição bíblica não reflete a perdição


apenas de algumas pessoas. Na verdade, a Bíblia
descreve a situação de corrupção moral da
humanidade como um todo, com exceção de Jesus.
A essa realidade chamamos universalidade do
pecado. Isso significa que toda humanidade está na
condição de perdição e de escravidão ao pecado.
Esse caráter universal da depravação total é relatado
em Romanos 3:10-18:

Como está escrito: “Não há nenhum


justo, nem um sequer; não há
ninguém que entenda, ninguém que
busque a Deus. Todos se desviaram,
tornaram-se juntamente inúteis; não
há ninguém que faça o bem, não há
nem um sequer”. “Suas gargantas são
um túmulo aberto; com suas línguas
enganam”. “Veneno de serpentes está
em seus lábios”. “Suas bocas estão
cheias de maldição e amargura”.
“Seus pés são ágeis para derramar
sangue; ruína e desgraça marcam os
seus caminhos, e não conhecem o
caminho da paz”. “Aos seus olhos é
inútil temer a Deus”.

As palavras “não há nenhum justo, nem um


sequer... não há quem entenda, ninguém que busque
a Deus” demonstram que a corrupção atingiu a
humanidade em sua totalidade. Esse desvio no
entendimento – não há quem entenda – tem reflexo
nas ações: a língua enganadora, os lábios venenosos,
os pés que se dirigem para o mal.

Há muitas outras passagens nas Escrituras


que estabelecem essa doutrina, mas cremos que
essas são suficientes para esse estudo introdutório.
Passemos agora a uma breve análise dessa doutrina
nos escritos dos reformadores e nas Confissões.

A REFORMA PROTESTANTE E A
DEPRAVAÇÃO TOTAL

Um dos textos mais evidentes de Lutero foi


escrito na sua controvérsia com o humanista Erasmo
de Roterdã acerca do livre-arbítrio, a saber: De
Servo Arbitrio. Talvez seja anacronismo dar a
alcunha pós-moderno a Erasmo, mas seu espírito é
anti-dogmático. Isso se faz claro na abertura de seu
texto, quando diz que não se deleita com
“asserções”.8 Além disso, Erasmo parece discutir

8
ERASMO. Livre-Arbítrio e Salvação. São Paulo: Reflexão,
2014. 64 p.
esse assunto como se fosse algo trivial.9 Após breve
introdução, na qual discute a presença do Espírito
Santo e a autoridade dos concílios e dos pais da
igreja, Erasmo fornece sua definição de “livre-
arbítrio”: “Entendemos aqui por livre escolha um
força da vontade humana que capacita o ser humano
a dedicar-se às coisas que levam à salvação eterna
ou voltar as costas a ela”.10 Embora a definição de
Erasmo não deixe antever sua visão sobre a graça, o
humanista católico romano acreditava que a graça e
a voluntas trabalhavam juntas para produzir a
salvação (sinergismo).

A resposta de Lutero foi um ataque


contundente a tal visão. Para Lutero a vontade não
poderia cooperar com a graça, pois seu estado era de
escravidão ao pecado. Lutero retoma o ensino
bíblico do pecado original para argumentar acerca da
vontade cativa. Sendo o pecado uma realidade

9
Ibid, p. 77.
10
ERASMO. Livre-Arbítrio e Salvação. São Paulo: Reflexão,
2014. 79 p.
universal, o homem não pode voltar por si mesmo a
Deus e tampouco cooperar com a graça. O poder do
evangelho sozinho vence a ignorância do pecador e
lhe convence da verdade (monergismo). Lutero
afirmou:

A conversão de qualquer pessoa


acontece quando Deus vem até ela e
vence-lhe a ignorância ao revelar-lhe
a verdade do evangelho. Sem isso,
ninguém jamais poderia ser salvo.
Ninguém, durante toda a história
humana, concebeu por si mesmo a
realidade da ira de Deus, conforme ela
nos é ensinada nas Escrituras.
Ninguém jamais sonhou em
estabelecer a paz com Deus por
intermédio da vida e da obra de um
Salvador singular, o Homem-Deus,
Jesus Cristo. De fato, o que ocorre é
que os judeus rejeitaram a Cristo,
apesar de todo ensino que lhes foi
ministrado por seus profetas. Parece
que a justiça própria alcançada por
alguns judeus ou gentios os levou a
deixarem de buscar a justiça divina
através da fé, para fazerem as coisas à
sua própria maneira. Portanto, quanto
mais o “livre-arbítrio” se esforça,
tanto piores tornam-se as coisas.11

O argumento de Lutero é devastador! O ser


humano mal consegue conceber seu estado de
perdição, quanto mais o caminho para restabelecer a
paz com Deus sem a graça! Ele é dependente da
graça até mesmo para saber que há um caminho de
reconciliação em Cristo. Ele continua seu ataque ao
livre-arbítrio apelando para a culpabilidade universal
da humanidade:

Não somente são todos os homens,


sem qualquer exceção, considerados
culpados à vista de Deus, como
também são escravos desse mesmo
pecado que os torna culpados. Isso
inclui os judeus, os quais pensavam
que não eram escravos do pecado
porque tinham a lei de Deus. Mas,
visto que nem judeus nem gentios têm
se mostrado capazes de
desvencilharem-se dessa servidão,
torna-se evidente que no homem não
há poder que o capacite a praticar o

11
LUTERO, M. Nascido Escravo. 2ª. ed. São José dos Campos:
Fiel, 2007. 20 p.
bem. Esta escravidão universal ao
pecado inclui até mesmo aqueles que
parecem ser os melhores e mais retos.
Não importa o grau de bondade que
um homem possa alcançar; isso não é
a mesma coisa que possuir
conhecimento de Deus. O que há de
mais admirável é sua razão e sua
vontade, contudo, é forçoso
reconhecer que esta mais nobre
porção dos homens está corrompida.12

A profundidade exegética e argumentativa


de Lutero no debate com Erasmo pode ser explicada,
em parte, pelo seu entendimento acerca da
importância desse tema. Para Lutero, a questão do
livre-arbítrio não é uma questão trivial, mas de
magnitude vital, conforme expressa Jean-Marc
Berthoud:

De fato, para Erasmo, a questão da


capacidade ou incapacidade humana
de se salvar (i.e., a de seu “livre” ou
“servo” arbítrio), se encontrava entre
as questões inúteis, secundárias que
poderíamos ignorar ou deixar de lado.
12
LUTERO, M. Nascido Escravo. 2ª. ed. São José dos Campos:
Fiel, 2007. 21 p.
Mas para Lutero tratava-se de uma
questão relacionada à vida ou morte
eterna; para ele era absolutamente
capital saber se a presciência de Deus
era contingente, isto é, dependente de
eventos futuros variáveis, ou se era
absoluta, necessária, imutável.13

Para Lutero a Queda não erradicou a


vontade, mas a tornou cativa ao pecado. A vontade
ainda é uma faculdade da alma, mas sua inclinação é
para os ídolos. O luterano Robert Kolb resume bem
a visão de Lutero: “A vontade humana permanece
ativa, mas é movida pela própria recusa de olhar
para Deus a fim de encontrar a fonte de identidade
fundamental e, em vez disso, busca abrigo seguro
nas criaturas de Deus, recriadas como ídolos por
esses pecadores”.14

13
BERTHOUD, J.-M. O Combate Central da Reforma. Brasília:
Monergismo, 2017. 40 p.
14
KOLB, R.; TRUEMAN, C. R. Entre Wittenberg e Genebra.
Brasília: Monergismo, 2017. 121 p.
Na mesma linha de Lutero, João Calvino, o
reformador de Genebra, afirma a depravação de
nossa natureza. Ele define assim o pecado original:
“Diremos, então, que o pecado original é uma
corrupção e perversidade na nossa natureza, que nos
faz culpados, primeiramente, da ira de Deus, tendo a
seguir produzido em nós as obras que a Escritura
chama ‘obras da carne’”.15 Vê-se aqui que para o
reformador genebrino os pecados que cometemos
são em virtude da corrupção da nossa natureza. Em
outras palavras, pecamos porque somos pecadores
ao invés de sermos pecadores porque pecamos.

Após definir a expressão “pecado original”


como a corrupção de nossa natureza, Calvino se
propõe a analisar a questão do livre-arbítrio. Ele nota
com perspicácia que, embora essa expressão fosse
comumente utilizada, poucos definiam o que queria
dizer por livre-arbítrio. Dentre esses poucos que
apresentavam alguma definição, Calvino constatou

15
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 87 p. Edição Especial.
que a definição nem sempre era clara, encerrando
ambiguidades, e nem sempre correspondia à
verdade.

O que queremos destacar aqui, entretanto, é


sua concordância com Lutero acerca da escravidão
da vontade. Em um trecho das Institutas Calvino diz:
“Um coisa fica resolvida – que o homem não tem
livre-arbítrio para praticar o bem, a não ser que seja
ajudado pela graça de Deus, e pela graça espiritual
ou especial, dada tão somente aos eleitos, mediante a
regeneração”.16 Aqui Calvino fala de uma graça
geral, que foi denominada posteriormente como
graça comum, e de uma graça especial. A graça
comum explica porque os homens, mesmo que não
tenham sido regenerados, são capazes de demonstrar
algumas atitudes moralmente boas, tais como
honestidade, obediência civil, etc. Isso não significa
que essa bondade moral corrobore a bondade da
natureza humana. Antes, Calvino atribui isso à graça

16
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 97 p. Edição Especial.
comum de Deus. Por graça comum podemos
entender as dádivas imerecidas que são dispensadas
por Deus tanto a crentes como a incrédulos. A graça
comum não é salvífica. A graça especial, por outro
lado, é dispensada apenas aos eleitos, mediante a
regeneração, e é, consequentemente, salvífica.

Contudo, a parte da graça de Deus, seja a


graça comum ou especial, Calvino diz que o homem
é incapaz de qualquer bem em virtude de sua
natureza corrupta. Isso pode ser reforçado com essa
citação:

Se a carne é tão perversa que toda a


sua inclinação a leva a exercer
“inimizade contra Deus”; se ela não
pode consentir com a justiça divina;
em suma, se ela não pode produzir
coisa alguma senão morte, agora,
sendo pressuposto que na natureza
humana não há outra coisa que não
seja carne, como poderemos tirar dela
sequer uma gota de bem?17

17
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 117 p. Edição Especial.
Quando fala de nossa natureza como
marcada pela “carne” Calvino não fala do corpo,
mas da própria alma no estado de perdição: “... a
alma, submersa como está no abismo da iniquidade,
não somente é defeituosa e má, mas também é vazia
de todo bem”.18 Embora já tenhamos alertado, faz-se
mister ressaltar que a doutrina aqui exposta afirma
que o pecado afeta todas as faculdades da alma e
esse é o sentido de total em “depravação total”.
Todavia, isso não significa que a natureza humana
seja “totalmente” má, incapaz até mesmo de
bondades naturais. O próprio Jesus nos impede de
concluir isso: “Se vós, pois, que sois maus, sabeis
dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso
Pai celeste dará boas coisas aos que lhe pedirem”
(Mt 7:11). O que Jesus diz é que, a despeito da
natureza do ser humano, ele ainda é capaz de dar
boas dádivas aos seus filhos. Se quisermos ir
adiante, lembremos que o apóstolo Tiago identificou

18
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 119 p. Edição Especial.
a origem de toda boa dádiva no Pai das luzes (Tg
1:17). Ou seja, mesmo os pais que têm uma natureza
má só dão boas dádivas aos seus filhos por causa da
graça comum de Deus.

Dissemos acima que a graça comum pode


ser entendida como as dádivas imerecidas que são
dispensadas por Deus tantos aos incrédulos quanto
aos crentes (veja Mt 5:45). Essa definição está
incompleta, pois demonstra apenas os aspectos
positivos da graça comum. Há um aspecto negativo
dessa graça deveras relevante, isto é, a restrição do
pecado. Isso explica porque o ser humano não
demonstra nessa vida todo o potencial de sua
maldade. Calvino afirmou: “Cabe-nos, porém,
considerar que, na corrupção universal de que
falamos, a graça de Deus tem seu lugar, não para
corrigir a perversidade da natureza, mas para
reprimi-la e restringi-la no íntimo”.19

19
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 119 p. Edição Especial.
Sendo assim, é preciso ter em mente que
Calvino distingue entre dois modos de operação da
graça de Deus. Na graça comum, a qual Calvino às
vezes chama de especial ou de natural, Deus atua
sobre o ser humano corrupto, seja ele um eleito ou
um réprobo, dando dádivas naturais ou restringindo
sua corrupção. Já na graça espiritual, que Calvino
também chama de especial, podendo confundir o
leitor desatento, Deus atua apenas sobre os eleitos
dando-lhes vida, mediante a regeneração ou novo
nascimento, e expurgando-lhes a maldade e não
apenas restringindo-a.

Também na ordem do intelecto Calvino faz


duas distinções: há o entendimento das coisas
terrenas e há o entendimento das coisas celestiais.
Essas duas espécies de entendimento, segundo
Calvino, estão dispostas em níveis, sendo o
entendimento das coisas celestiais de nível superior.
Na primeira espécie – o entendimento das coisas
terrenas – contam-se: “a doutrina política, a maneira
de governar bem a casa, as artes mecânicas, a
filosofia e todas as disciplinas chamadas liberais”. À
segunda espécie, por sua vez, “pertencem o
conhecimento de Deus e da sua vontade, e as normas
pelas quais o homem pode conformar a sua vida à
vontade de Deus”.20

Tendo feito essa distinção, Calvino


reconhece que o pecado não afetou totalmente as
capacidades naturais do intelecto para compreender
as coisas terrenas. Ele afirma que está presente no
homem uma lei natural, bem como noções gerais
acerca da política. Além desses princípios éticos e
políticos, Calvino reconhece “que há uma
apercepção universal da razão impressa
naturalmente em todos os homens”. Essa apercepção
universal da razão tem sido chamada de
conhecimento inato e Calvino afirma que tal
propensão que há na natureza caída do homem em
buscar a verdade é um ornamento da graça divina.
Essa luz que ilumina o intelecto, dando certa

20
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 104 p. Edição Especial.
compreensão das coisas terrenas, “é dada
naturalmente a todos como um benefício gratuito da
sua [de Deus] generosidade para com cada um dos
seres humanos”.21

Essa faculdade do entendimento, sendo um


dom da graça comum a todos os homens, permite a
compreensão das coisas terrenas. No entanto, essa
faculdade do entendimento e da inteligência, tendo a
capacidade de entender certas coisas no mundo
corruptível, “é coisa frívola e sem nenhuma
importância perante Deus, quando lhe falta o firme
fundamento da verdade”.22 Como diz o apóstolo:
“Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos
sábios, E aniquilarei a inteligência dos inteligentes”
(1 Co 1:19). E acrescenta: “Visto como na sabedoria
de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua

21
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 105 p. Edição Especial.
22
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 107 p. Edição Especial.
sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela
loucura da pregação” (1 Co 1:21).

Calvino prossegue então e mostra que, se o


pecado não teve tanto impacto no intelecto no que
diz respeito ao entendimento das coisas terrenas, a
corrupção da natureza humana arruinou de tal modo
o intelecto no que tange ao entendimento das coisas
celestiais que os melhores dos homens não passam
de cegos nesse assunto quando prosseguem sem o
auxílio da revelação divina. No máximo, eles têm
alguns lampejos da verdade por causa do
conhecimento inato de Deus e por causa da luz da
natureza, que revela os atributos de Deus. Esses
lampejos, todavia, não são suficientes para tirar o
homem de sua ignorância e cegueira espirituais.

Para não nos delongarmos nesse ponto, faz-


se mister dizer que Calvino, após considerar de que
modo o pecado afetou o intelecto, obscurecendo o
entendimento das coisas celestiais, ele considera de
que modo o pecado afetou a vontade, aniquilando
sua liberdade. Ao comentar o texto de João 8:34, que
diz que “todo aquele que comete pecado é escravo
do pecado”, Calvino afirma: “Ora, como todos nós
somos pecadores por natureza, segue-se que estamos
sob o jugo do pecado. E mais, se todos os homens
estão presos à servidão do pecado, é necessário que
a vontade, que é a principal parte da constituição do
seu ser, seja apertada e amarrada com laços
firmes”.23 Em outras palavras, Calvino concorda
com Lutero: a vontade não é livre, mas está cativa ao
pecado, a menos que Cristo nos liberte! E em seu
comentário a Efésios 2:1, Calvino diz que “Como a
morte espiritual não é outra coisa senão o estado de
alienação em que a alma subsiste em relação a Deus,
já nascemos todos mortos, bem como vivemos
mortos, até que nos tornamos participantes da vida
de Cristo...”.24

Antes de passar as Confissões, vejamos


ainda como o teólogo reformado François Turretini

23
CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, v. I,
2006. 116 p. Edição Especial.
24
CALVINO, J. Efésios. São José dos Campos: Fiel, 40 p.
(1623-1687) expôs essa doutrina da depravação
total. Ao investigar se o pecado original, herdado de
Adão, constitui mera privação ou uma certa
qualidade positiva, Turretini evitou os papistas que
tratam dos efeitos do pecado como mera privação.
Para o romanismo, a justiça original era um dom
sobrenatural acrescentado à natureza humana
(donum superadditum). Quando o homem pecou,
esse dom da justiça original foi perdido, mas suas
faculdades naturais, como o intelecto e a vontade,
permaneceram intactas. Nesse sentido, o pecado
original era visto como privação da justiça original,
não afetando, contudo, as demais faculdades do
homem. Turretini, por outro lado, apela para as
Escrituras no intuito de demonstrar que o pecado
não se constitui apenas de privação, mas de
qualidade má presente de modo inerente ao homem.
Ao definir o pecado como qualidade, Turretini quer
mostrar que ele é distinto da substância a qual se
liga, isto é, distinto da essência do ser humano. Ele
corrompe a essência, mas não é em si a essência do
ser humano. E como qualidade que corrompe a
natureza humana, o pecado não apenas priva o ser
humano da retidão original, mas condiciona o
homem em sua inclinação para a injustiça:

Os homens não são somente


destituídos de retidão, mas também
são saturados de injustiça; não
somente apostatados de Deus, como o
bem imutável e eterno, mas também
voltados para a criatura e inclinados a
todo vício... Ele [o pecado] introduz
uma desordem universal (ataxian) na
natureza e em todas as suas
faculdades, e geralmente é descrito
como loucura, cegueira e ignorância
na mente; perversidade e contumácia
ou rebelião na vontade; e desordem ou
dureza (pōrōsin) nas afeições, pelas
quais o homem é não somente avesso
a todo bem, mas também propenso a
todo mal.25

Turretini, assim como Calvino, distingue


entre assuntos terrenos e assuntos celestiais nessa
questão. Para ele, os pecadores ainda são capazes,
com o auxílio da graça comum, de virtudes cívicas e

25
TURRETINI, F. Compêndio de Teologia Apologética. São
Paulo: Cultura Cristã, v. I, 2011. 791 p.
do bem externamente moral. Todavia, o homem
pecador, espiritualmente morto, foi afetado por uma
inabilidade moral para o bem “espiritual e
sobrenatural, agradável e aceitável a Deus”. A
vontade do pecado não-regenerado não se inclina
para esse segundo bem, pois está escravizada ao
pecado.

CITAÇÕES DAS CONFISSÕES

Confissão de Fé de Westminster, Capítulo


VI:

II. Por este pecado eles decaíram da sua retidão


original e da comunhão com Deus, e assim se
tornaram mortos em pecado e inteiramente
corrompidos em todas as suas faculdades e partes do
corpo e da alma.

Gen. 3:6-8; Rom. 3:23; Gen. 2:17; Ef. 2:1-3; Rom.


5:12; Gen. 6:5; Jer. 17:9; Tito 1:15; Rom.3:10-18.

III. Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o


delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos; e
a mesma morte em pecado, bem como a sua
natureza corrompida, foram transmitidas a toda a sua
posteridade, que deles procede por geração
ordinária.

At. 17:26; Gen. 2:17; Rom. 5:17, 15-19; I Cor.


15:21-22,45, 49; Sal.51:5; Gen.5:3; João3:6.

IV. Desta corrupção original pela qual ficamos


totalmente indispostos, adversos a todo o bem e
inteiramente inclinados a todo o mal, é que
procedem todas as transgressões atuais.

Rom. 5:6, 7:18 e 5:7; Col. 1:21; Gen. 6:5 e 8:21;


Rom. 3:10-12; Tiago 1:14-15; Ef. 2:2-3; Mat. 15-19.

Confissão Belga, Artigo 14 (trechos):

Tornando-se ímpio, perverso e corrupto em


todas as suas práticas, ele perdeu todos os dons
excelentes5, que tinha recebido de Deus. Nada lhe
sobrou destes dons, senão pequenos traços, que são
suficientes para deixar o homem sem desculpa6.
Pois toda a luz em nós se tornou em trevas7 como
nos ensina a Escritura: "A luz resplandece nas
trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela"
(João 1:5). Aqui o apóstolo João chama os homens
"trevas". Por isso, rejeitamos todo o ensino
contrário, sobre o livre arbítrio do homem, porque o
homem somente é escravo do pecado e "não pode
receber coisa alguma se do céu não lhe for dada"
(João 3:27).

Confissão Belga, Artigo 15:

Cremos que, pela desobediência de Adão, o


pecado original se estendeu por todo o gênero
humano1. Este pecado é uma depravação de toda a
natureza humana2 e um mal hereditário, com que até
as crianças no ventre de suas mães estão
contaminadas3. É a raiz que produz no homem todo
tipo de pecado. por isso, é tão repugnante e
abominável diante de Deus que é suficiente para
condenar o gênero humano4. Nem pelo batismo o
pecado original é totalmente anulado ou destruído,
porque o pecado sempre jorra desta depravação
como água corrente de uma fonte contaminada5. O
pecado original, porém, não é atribuído aos filhos de
Deus para condená-los, mas é perdoado pela graça e
misericórdia de Deus6. Isto não quer dizer que eles
podem continuar descuidadamente numa vida
pecaminosa. Pelo contrário, os fiéis, conscientes
desta depravação, devem aspirar a livrar-se do corpo
dominado pela morte (Romanos 7:24). Neste ponto
rejeitamos o erro do pelagianismo, que diz que o
pecado é somente uma questão de imitação.

1 Rm 5:12-14,19. 2 Rm 3:10. 3 Jó 14:4; Sl


51:5; Jo 3:6. 4 Ef 2:3. 5 Rm 7:18,19. 6 Ef 2:4,5.

Cânones de Dort, Capítulos 3 e 4:

3. Portanto, todos os homens são


concebidos em pecado e nascem como filhos da ira,
incapazes de qualquer ação que o salve, inclinados
para o mal, mortos em pecados e escravos do
pecado. Sem a graça do Espírito Santo regenerador
nem desejam nem tampouco podem retornar a Deus,
corrigir suas naturezas corrompidas ou ao menos
estar dispostos para esta correção.

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