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ell tg Ke) ro Martins Amatuzzi 2° edicéo PATE eeu Cee eMC Se Rc) confianca irrestrita do potencial de cada um para Ct Oe ee Ce) uperacio de suas dificuldades. A contribuico isica do psic como de qualquer pess ne Rec ecu relagdo as suas questdes pessoais, ay eR uu ee ant a) Pea Ce aco Ve ttn REM COM CCE Cura vigentes, de atendimento levou isso tao a sério.O pr > das outras formas é de que soment Ce ee ce MR a Ca Cm ea ea Dee eM eM Cet LOR comportamento e de li trazer luz para a pessoa ed een Sed rcs Comer de ajuda. que ele fazia,na pratica,era facilitar a Crete CS e auras? eer Eee Brea Cee eo CeO n ans NO I os Pee oes Co) OEM CoB Scent Ce eR ee ea) te eee ne ET ek Reece Oe cae Oe] Patera Co aba sendo come eT Oem Met EC ord Be ee cee Ie sc cd Te ea OE SOE Re CeR eSCae eueer mento € 0 préprio cliente; existe uma Sr a eu Re Coes SOS Reece IY COR cent) Pea ats RE cu ROGERS ETICA HUMANISTA E PSICOTERAPIA 28 Edicio ROGERS ETICA HUMANISTA E PSICOTERAPIA Mauro Martins Amatuzzi ee Alinea DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENAGAO EDITORIAL Willian F. Mighton COORDENAGAO DE REVISAO E COPYDESK Helena Moysés REVISAO DE TEXTOS Adriana Maria Jorge Patricio EDITORAGAO ELETRONICA Fabio Diego da Silva Tatiane de Lima CAPA Paloma Leslie Dados Internacionais de Catalogagio na Pul (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ‘Amatuzzi, Mauro Martins Rogers : ética humanista e psicoterapia / Mauro Martins Amatuzzi. - - Campinas, SP : Editora ‘linea, 2012, 2° Edigao Bibliografia 1, Btica humanista 2. Psicologia humanista 3. Psicoterapia 4, Relagdes humanas 5. Rogers, Carl R., 1902-1987 I. Titulo. II. Titulo: Btica humanista e psicoterapia. 10-01846 CDD-150.198 indices para Catalogo Sistematico 1, Psicologia humanista 150.198 ISBN 978-85-7516-530-0 Todos os direitos reservados 4 Editora Alinea Rua Tiradentes, 1053 — Guanabara — Campinas-SP CEP 13023-191 — PABX: (19) 3232.9340 ¢ 3232.0047 www.atomoealinea.com.br Impresso no Brasil Para Held, com amor. Sumario A Abordagem Centrada na Pessoa como Etica das Relagdes Humanas Abordagem Centrada na Pessoa e Psicoterapia.... Referéncia: A Abordagem Centrada na Pessoa como Etica das Relagées Humanas ee preciso dizer que estou redesco- brindo a genialidade de Carl Rogers, figura do século 20 (1902-1987) que precisa ser resgatada. Ele realmente trouxe algo novo e revolucionario para a pratica do atendimento psicolégico, que consiste, basicamente, em uma postura de confianga irrestrita no potencial de cada um para encontrar os melhores caminhos de superagio de suas dificuldades. Um mergulho nessa fonte inesgotavel que é 0 ser humano. A contribuigdo basica do psicdlogo, como de qualquer pessoa disposta a ajudar alguém intrigado com questdes pessoais ¢ recursos subjetivos, é oferecer uma caixa de ressondncia na qual a prépria pessoa possa se ouvir ¢, assim, enxergar um caminho. Nenhuma das formas anteriormente vigentes de atendimento levou isso tio a sério como Rogers. O pressuposto dessas outras formas era de que o psicélogo fosse detentor de um saber capaz de trazer a solugdo que, supostamente, a pessoa no conseguia ver; ou, ao menos, que o psicdlogo fosse capaz de penetrar no misterioso mundo das causas escondidas do comportamento e de 14 trazer a luz para a pessoa em sofrimento, Uma espécie de vidente cientificamente ilustrado, O pressuposto de Rogers foi totalmente ROGERS: ética humanista e psicoterapia 17 12 diferente. Sem negar o valor dos saberes psicoldgicos, ele deu um outro sentido a relagao de ajuda. O que ele fazia, na pratica, era facilitar ao outro o recurso as suas proprias fontes interiores. Estava convencido de que apenas isso era suficiente para desencadear profundas transformagées. No inicio, pensava em transformagées pessoais, mas logo percebeu que isso nao ficava no ambito individual: adotou a mesma postura com grupos e com comunidades ¢, assim, inaugurou um novo modo de ser social e cultural. Ele foi radical nessa postura, a ponto de gerar afirmagoes paradoxais do tipo: * o saber do psicdlogo de nada serve; * o psicodiagnéstico é uma forma de dominagao e acaba sendo contraproducente na ajuda ao cres- cimento; * na relagio de ajuda, devemos abandonar todas as técnicas ¢ procedimentos padronizados, todas as estratégias pré-fabricadas; * quem sabe o momento de encerrar 0 atendimento é 0 proprio cliente; * existe uma sabedoria que emerge quando as pessoas se encontram na comunicagio aberta e plena etc. O auditério deu gargalhadas quando ele disse que nao pretendia ser um revolucionério (Rogers, 1978). Estava sendo. E 0 reconheceu depois. Apenas acrescentou que se tratava de uma revolucio silenciosa. E poderfamos comentar: sem estardalhagos, sem armas, porém efetivamente transformadora. Acredito que isso continua sendo de uma atualidade de vida ou morte. Rogers acreditou que o que ele tinha a fazer era oferecer as pessoas uma relacao acolhedora, compreensiva e honesta. Ele praticou isso com uma coeréncia radical ¢ mudou a vida de muitas pessoas. Envolveu-se, com esse modo de ser, em trabalhos de grupo, até chegando a reunir partidarios opostos em conflitos internacionais e, assim, aproximou pessoas hostis ou mesmo inimigas. Minha pratica de psicdlogo, de professor, de supervisor, de assessor de grupos, tem confirmado essas perspectivas. O que Rogers trouxe nao foi uma nova técnica para a mesma finalidade. Ele trouxe outra finalidade, e atitudes consequentes com essa outra finalidade. Ele nfo descobriu um procedimento mais eficaz para solucionar os problemas das pessoas: ele mudou 0 modo de se conceber os problemas ea relagao de ajuda. Nesse sentido, sua contribuigao nao foi tecnoldégica, mas ética: ele nao trouxe meios novos ¢ sim fins novos. Mudanga de paradigma. Essas propostas, faceis de entender em suas formulagées, nao sao faceis de praticar consistentemente. Esbarram com hébitos muito arraigados na maneira de ser de pensar, decorrentes da formacao recebida e da maneira como fomos construindo nossa visio de mundo. Mencio- no dois desses habitos que me tocam mais de perto. Quando estamos diante de um problema, nossa tendéncia “espon- ténea” (mas, na verdade, construida), é analisarmos a Situagdo objetivamente, esperando dessa andlise uma Mauro Martins AMATUZZ1 13 14 solugéo. Exercemos um modelo empirico-analitico de pensamento, deixando de lado outras fontes mais integradoras da agfio (que nao excluem o pensamento analitico, mas o situam em outro contexto). Rogers entendeu isso quando disse, por exemplo, que a ciéncia s6 existe em pessoas e, poderfamos acrescentar, na subjetivi- dade de pessoas concretas. Embora a ciéncia tenha suas leis formais (que garantem a correcao dos raciocinios), ela s6 existe no contexto concreto de pessoas que enfrentam desafios em suas vidas; ¢ é desse esforco de enfrentamento que saem as energias capazes de mobilizar e orientar as pesquisas. Enquanto essa conexdo com a vida nao for feitae levada a sério, o saber cientifico se tornaré cada vez mais abstrato ¢ irrelevante. E, afinal, enganador, como poderia dizer Paulo Freire. Um outro habito, é o de nos sentirmos sempre portadores de uma missio salvadora como se nao fossemos parte do problema. Ent&o, somos impelidos a formar rapidamente uma ideia completa sobre a situagio e sua solugao, e desejamos agir com base nessa ideia. Isso, na verdade, é uma heranga do século XIX, quando o espirito do tempo era racionalista: a solugao para os grandes problemas sociais era construfda de antem&4o em um raciocinio abstrato (e solitario), e a partir dai montava-se uma estraté- gia de imposigao da solugio salvadora. Esse padrao de criatividade racionalista abstrata, por nao ser acessivel a todos, deixava a grande maioria na posigao de seguidora de lideres portadores das solugées. A esses seguidores cabia, entdo, a iniciativa (incentivada) de se filiarem a partidos politicos também previamente pensados pelos mesmos lideres. Rogers aponta em outra diregao, Um sinal disso: ele jamais gostou da ideia de se fazer uma associa¢io rogeriana internacional que vigiasse pela ortodoxia de ideias e praticas transformadoras. Ele poderia ter dito: ‘é caminhando que se faz o caminho’. O que temos na cabega nao sao detalhes do que iremos encontrar, mas uma diregao, um instinto, uma certeza na qual podemos confiar. Nos tiltimos anos de Rogers, com a atengao voltada a pessoas em situacdo extrema e as experiéncias com grandes grupos de aprendizagem comunitéria, a confianga nos recursos internos do ser humano mostrou, para ele, ser um aspecto de uma confianga mais ampla nos processos da vida, tais como eles existem até mesmo para além da espécie humana (Rogers, 1980). De minha parte, ao reconhecer a reviravolta de perspectivas proposta por ele, sou também levado a acertar as contas com velhos habitos meus e maneiras de pensar. Pergunto-me seguidamente se sou mesmo capaz de confiar em mim como um todo orginico (parte de outros conjun- tos maiores) e nao apenas como fonte de pensamentos analiticos (e impessoais). Sou capaz de confiar no movimento interno de grupos no interior dos quais, participando ativamente, também me defino? Sou capaz de confiar irrestritamente no movimento interno das pessoas que atendo profissionalmente ou com quem convivo em relacio construtiva? Sou capaz de confiar naquela forca ROGERS: ética humanista e psicoterapia LS, 16 presente no universo, que atravessa o ser humano, mas 0 extrapola? Junto com esses questionamentos pessoais, é possivel ser sensivel também a perguntas mais teéricas. A proposta de Rogers nio conduziria a um espontaneismo sem critica €, portanto, nao suficientemente aparelhado diante dos complexos problemas que temos em nosso mundo atual? Nao conduziria sua abordagem a um sentimentalismo romantico e ingénuo? Entretanto, acredita-se que esse juizo, que muitas vezes somos levados a fazer sobre sua proposta, decorre de nao termos efetuado a mudanga de ponto de vista que ele propde. E, entéo, usamos velhos paradigmas para fazermos a avaliacio. E preciso experi- mentar uma outra maneira de ser para depois avaliarmos seu valor. Qualquer avaliacio a priori seri baseada em velhas maneiras. O que sera dito aqui pretende orquestrar essa intuigdo de varios pontos de vista e, ao mesmo tempo, convidar o leitor a participar dessa construg40, ao menos verificando em sua experiéncia se isso pode fazer sentido. ot A luz dos pensamentos e da pratica de Rogers, o proprio humanismo torna-se mais claro. Podemos equa- cionar isso da maneira como segue. Existem formas de atendimento psicolégico que partem de um pressuposto determinista. O ser humano é pensado como algum tipo de mecanismo: suas decisdes sao, na verdade, determinadas por causas identificdveis e manipulaveis (e essas causas podem ser internas: cognig6es, representagdes sociais, motivacdes inconscientes, residuos da histéria passada; ou externas: estimulos do meio ambiente fisico ou social, isoladamente ou em configura- ges complexas). No contrato de trabalho para a prestagio de servigos psicolégicos, certamente nao se nega a liber- dade: ela é respeitada dentro de uma postura ética. Mas sabe-se que, no nivel do pensamento cientffico, essa autonomia do ser humano é iluséria. O atendimento pressupde um olhar analitico da situagado, o qual se configura como um diagnéstico. Valendo-se dele, uma estratégia de intervengao é montada para dirigir a ago e os efeitos sio esperados como consequéncias naturais. As pesquisas cientificas, quando a servigo dessa forma de trabalho, visam estabelecer ligagdes genéricas de causali- dade (para esclarecer o que se passa nos casos particulares € orientar a intervengio) ou visam quantificar a distribuicado de determinado fendmeno em um determinado campo (orientando as decises no plano de uma politica de satide mental, remediativa ou preventiva). O pressuposto humanista ¢ diferente: é 0 pressuposto da autonomia. O ser humano tem algum poder sobre as determinagées que o afetam, ¢ esse poder é, na verdade, mais relevante para o desenvolvimento do que aquelas determinacées. O trabalho psicoldgico consiste fundamen- talmente em oferecer um contexto dialégico no qual a liberagao desse poder seja promovida. Aposta-se na Mauro Martins AMATUZZI 17 18 autonomia crescente da pessoa e na fecundidade da relagao inter-humana. A autonomia é entendida como a capacidade que o ser humano tem de orientar sua propria vida de forma positiva para si mesmo e para a coletividade. Assim sendo, 0 atendimento nao se baseia em um diagnéstico, mas na afirmagao de uma fendéncia inata ao crescimento; e nao € concebido como uma intervengao direcionada, mas como uma relagdo aberta e centrada na pessoa. As atitudes do profissional nessa relacio adquirem importancia capital. As pesguisas que estio a servico desse tipo de atendimento so sobretudo qualitativas, descritivas de vivéncias subjetivas, buscando explicitar seus significados potenciais em relacio a algum contexto, habilitando o profissional com uma visio mais ampla do ser humano (sobre esses dois pressupostos, ver, por exemplo, Amatuzzi, 2008; Frankl, 1989). Dentro do pressuposto determinista, fala~se de 3 niveis de intervengao: terapia suportiva (ou de apoio, visando o alivio); de esclarecimento (ou orientagio) e de reestrutura¢ao (psicoterapia propriamente dita, ou andlise) (Fiorini, 1976). No pressuposto humanista, nao tem sentido essa divisio. Os limites do atendimento sao definidos pela propria relacao. O terapeuta segue a intencao da pessoa que busca ajuda. Dentro de uma abordagem humanista, 0 clima de didlogo fecundo, a atmosfera psicolégica do encontro é provida por uma disposi¢’o, ao mesmo tempo, aceitadora, compreensiva e auténtica. Aceitadora: desejo de valorizar 0 outro como pessoa, naquilo que ele tem de radicalmente positivo. Compreensiva: capacidade de adotar o ponto de vista do outro para ver as coisas como ele as vé ¢ sente, abrindo-se para seus significados. Auténtica: intengao de estar presente como pessoa inteira (e nao apenas como uma fachada profissional), capaz de colocar a servigo da relagao essa totalidade do que se é, sem sonegar nada (ver Rosenberg, 1987). Podemos colocar em um quadro esses dois tipos de pressupostos do atendimento psicoldgico: Prossupostos No Atendimento Psicolégico v Pressuposto determinista | Diagndstico —» estratégia — intervencao -» mudanga esperada ‘0 homem concreto 6 visto | Alta = consecugao dos objetivos (é decidida pelo terapeuta) como resultado ou efeito | Pesquisas: buscam leis psicolégicas, frequéncias de ocorréncias, humana e da relagio interpessoal de causas anteriores informagdes especificas Pressuposto da autonomia | Tendéncia ao crescimento —» atengo aos significados presentes —> crescente relacao compreensiva, valorizadorae honesta —» autonomia crescente + © homem conoreto é visto |Alta = satisfagdo e término do processo (decidida em conjunto) como livre ou causa de| Pesquisas: qualitativas, descritivas de vivéncias e de significados suas ages relacionados com algum problema, ampliam a viséo da experiéncia —t~ Uma visio de ser humano, que se apoie na percep¢ao de um valor original e tinico da pessoa, é uma visio ética tem repercussdes praticas na vida de relagdes pessoais, Sociais e até politicas. Isso parece resumir bem o pensa- mento de Ruiz de la Pena, expresso no verbete “alma” do tica humanista e psicoterapia 19 20 Diciondrio do Pensamento Contemporaneo (Ruiz de la Peiia, 2000). O que é a percepgio do valor tnico da pessoa? Podemos ver isso de modo bem simples. E a percepgio segundo a qual nao posso fazer qualquer coisa com um ser humano. Com a consciéncia ecolégica, sabemos que niio podemos fazer qualquer tipo de coisa contra um ser da natureza. Poder fazer, podemos (e, de fato, a humanidade tem feito), mas nao devemos, nfo é€ licito, nao é bom. Esta presente uma questio ética, que supée uma referéncia de valor. Nao se trata apenas de evitar a “vinganga” da natureza. Existe um respeito que é devido 4 natureza, e nao apenas um medo das consequéncias. Mas, além desse respeito geral, existem formas especificas, isto é, valores do agir que decorrem do objeto diante do qual estou na minha aco. Por exemplo, nao se pode tratar um animal como se fosse um pedaco de tabua ou uma almofada; ele tem um valor préprio de animal, diferente do valor de uma almofada. Nao se pode maltratar um animal, mesmo quando for preciso maté-lo. O respeito devido a uma planta no € idéntico ao respeito devido ao animal (embora os dois sejam merecedores do respeito geral devido a natureza). Pode-se tirar um galho de drvore para fazer um ornamento na sala, mas nao arrancar um pedaco de um animal. Pode-se, mas nao se deve: algo se fere em nése no mundo se 0 fizermos. Assim, no topo dessa graduagao de valores esta o ser humano, Nao se pode tratar 0 ser humano como se poderia tratar algumas outras coisas da natureza. Essa percepcao € ética, € ela equivale a afirmar o valor unico da pessoa. Trata-se de olhar o ser humano (pessoa, comunidade, humanidade) com um senso de respeito que decorre da natureza propria e original desse objeto. E olhar para ele nao como algo util, mas como ser portador de um valor proprio e inalienavel, como ser que me interpde algo de absoluto. E respeita-lo naquilo que ele é. Desse olhar decorrem consequéncias praticas evidentes para as relagdes interpessoais, para o convivio social e até mesmo para a politica. Explicitar essas consequéncias é construir uma ética das relagdes interpes- soais, uma ética social e uma ética politica. A abordagem centrada na pessoa é muito mais uma ética do que uma técnica. a~s Antes de todos os discursos sobre a pratica, existe o agir sobre o qual versam aqueles discursos. E nesse agir podemos considerar 0 nivel dos comportamentos, o que efetivamente fazemos, e as disposicdes que levamos para a aco, as atitudes, os valores. As disposicdes sao anteriores 40s comportamentos e, de certa forma, os determinam. Por uma disposi¢ao, uma atitude, um valor é que nos inclinamos numa determinada direcao. Rogers considerou que as disposigdes (atitudes) sio mais decisivas do que os comportamentos na caracterizacao da abordagem centrada na pessoa. Para ele o que importa é que os comportamentos decorram das atitudes, e podemos entender isso assit 20 Mauro Martins AMATUZZI 21 22 que importa é que o agir decorra daquilo que a pessoa tem como valor. Valor operativo, é claro, e nao simplesmente valor declarado. Uma atitude nao determina sempre o mesmo formato de comportamento. A mesma atitude ou o mesmo valor pode levar a comportamentos diferentes: isso vai depender da situacio, das pessoas envolvidas, dos estilos, do momento no processo da relagao. De qualquer modo, Rogers considerava que definir a abordagem centrada na pessoa em termos de atitudes (predisposi¢oes ou valores) era mais certo do que defini-la em termos de comportamento especifico. Porque esses comportamentos podem variar muito. Por tris das variagdes de comporta- mento existe a consisténcia de atitudes e valores. Lembro-me de uma palestra de Alberto Segrera, quando passou por Sao Paulo em 2007. Ele esbogou uma possivel formulagao das classicas trés atitudes, em termos de valores subjacentes, Recorro 4 minha meméria. Nao € possivel termos uma genuina aceitagdo incondicional se ela nio estiver apoiada no valor do amor. Aceito porque amo; sinto-me um s6 com 0 outro. E 0 valor da comunhao. A compreensao empatica tem suas raizes na sabedoria como valor diferente da ciéncia. Enquanto pela ciéncia penetramos nos mecanismos fenoménicos, pela sabedoria compreendemos os significados dos fenémenos num contexto mais abrangente. A aufenticidade radica-se no valor da harmonia das partes no todo pessoal. Se tenho a harmonia como valor, tendo a me mostrar de modo mais genuino, mais intciro. A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) encontra-se nas atitudes e valores subjacentes ao agir. Ela pode levar consistentemente a formas de agir diferentes conforme as situagdes, as pessoas, os Momentos. A consisténcia ultima da ACP nfo esta no nivel de sua utilidade ou mesmo de sua eficdcia, mas no nivel do seu valor. Se nao tenho sensibilidade para valores, jamais entenderei a abordagem centrada na pessoa; a ndo ser que a entenda como mera técnica. Mas, em Uiltima instancia, ela nao se justifica como uma técnica e sim, como uma ética: uma ética das relagdes humanas (interpes- soais, comunitirias, sociais, politicas). Justificar a ACP é explicitar e fundamentar, no plano tedrico, os valores que ela expressa. —n~> Surge entao a pergunta: quais so os valores humanos que definem a estrutura consistente dessa abordagem? JA vimos que se generalizéssemos a partir da situagao da terapia ou da relacao de ajuda, poderiamos falar de amor, sabedoria ¢ harmonia. Afastando-nos um pouco desse contexto e olhando essa abordagem na convivéncia social, poderfamos descrever esses valores da seguinte forma: 1) Que as pessoas se respeitem como possuidoras de valor absoluto, que nao se imponham umas 4s outras, ¢ entendam que, solidariamente, chegario ao melhor resultado. Certa vez, alguém me disse: “na sociedade, ou Vocé est por cima ou esta por baixo”. E fiquei com vontade de lhe perguntar: “E por que nao podemos estar ao lado, no ROGERS: ética humanista e psicoterapia. 23 24 mesmo nivel?”. Isso tem a ver com a valorizagao da pessoa, com 0 respeito ou aestimaa ela devidos, coma consideragao positiva que fundamenta um convivio social saudavel ¢ fecundo, com confianga. 2) Que as pessoas procurem se compreender mutuamente, na integralidade de cada uma, isto é, com todos os scus sentimentos e com os significados que se prendem a eles, mesmo com os que nao conseguem expressar clara e totalmente. E quando as pessoas se ouvern plenamente (até para além das palavras) que se delineia um rumo positivo. Isso est4 relacionado com a empatia, com comunhio de sentimentos. 3) Que cada um seja verdadeiro no que diz respeito situag4o que esta sendo vivida em conjunto, sem sonegar nenhuma informagao a ela relevante. Isso tem a ver com a honestidade na diferenga, ou seja, com a autenticidade. Vejo entio trés valores basicos e interligados como definidores da ACP: 0 valor da pessoa, o da comunhio inter-humana e o da honestidade em relacao as diferengas. O termo honestidade nao é usado aqui no sentido moral, mas no sentido de uma relagao aberta, nao camuflada, que nao omite o que precisa ficar claro para que a prépria relagio evolua construtivamente. E também nao estou propondo que esses valores devam existir de forma acabada nas pessoas, individualmente, mas que eles sejam, para todos os envolvidos no convivio social, um objetivo a ser alcangado na dialética processual do conviver. E claro que esse proceso come¢a nas pessoas que se propoem a fecundar o desenvolvimento cultural. Elas trazem essas disposi¢ées para o convivio, tendo-as experimentado na vida e acreditado nelas (valores operativos). Mas esses valores tendem a definir a propria qualidade do convivio social fecundo em termos de humanizacao ou de desenvolvimento cultural. No plano das diregées gerais de valor no campo do convivio humano fecundo, esses trés valores sao suficientes. Se bem os entendermos, eles bastam. at~ De onde surgiu tudo isso? Convido entio 0 leitor a um olhar histérico. A Abordagem Centrada na Pessoa surgiu nos Estados Unidos, como reagio a uma tendéncia que veio a se chamar, tempos depois, de anti-humanismo. Para compreendermos isso, precisamos de um recuo maior ainda (para referéncias iniciais, ver Diciondério de Pensamento Contemporaneo, 2000; Dicionario dos Fildsofos, 2001). A antiguidade classica era cosmocéntrica. Tudo era pensado com base na natureza, até mesmo o homem e deus (ow os deuses). Os primeiros fildsofos, nos séculos 6°, 5° e 4° antes de Cristo se perguntavam: por que o mundo é assim? O que lhe da consisténcia? Qual sua légica? E faziam essas Perguntas em termos de natureza. Perguntar por que 0 mundo é assim ¢ perguntar qual a natureza do mundo era @ mesma coisa. Mesmo quando Sécrates (séc. 5 a.C.) Mauro Martins AMATUZZI 25 26 questionou o homem (e nio mais 0 mundo fisico), ele estava trabalhando a natureza: qual seria a natureza humana. Mas com a vinda da fé crista, que acabou se impondo no império romano (que sucedeu a cultura grega), uma outra mentalidade se impés: a da idade teocéntrica. Tudo Ppassou a ser visto com base em Deus criador, inclusive o homem e a natureza. Com a modernidade, uma outra reviravolta: comega a tendéncia antropocéntrica. Tudo passa a ser pensado a partir do homem, inclusive a natureza e Deus. Para Descartes (séc. 17), a primeira certeza nfo era o mundo natural e nem mesmo Deus. Era o pensamento vivido na subjetividade. Ele vai reconstruir tudo com base no pensamento. O ser humano é concebido como individuo e sua especificidade esta na consciéncia. Ele é dotado de raza para pensar e, porque pensa, nfo fica vinculado aos determinismos materiais, mas domina sobre eles: é livre. Para Kant (séc. 18), toda filosofia se reduz a uma antropologia, j4 que visa responder a pergunta “o que é o homem?”. Nasce assim um projeto de emancipagio humana: a conquista da plena autonomia para o homem como individuo. E 0 desabrochar do humanismo. E esse individuo passa a ser visto como independente da natureza (ele domina a natureza) e até mesmo independente de Deus (cle deve resolver consigo mesmo seus problemas). O principio fundamental da modernidade, para Hegel (séc. 18/19), 6 a subjetividade. Na modernidade, a razio humana se desenvolveu na diregio das ciéncias fisico-matematicas (Galileu, séc. 46/17). Isso quer dizer que o conhecimento visava quantificar as coisas, medi-las e assim decifrar sua lei interna. Deixou de considerar esséncias e valores. Com o racionalismo (que teve seu apogeu no iluminismo, séc. 18), comegaram as ambiguidades. A razio humana capta leis gerais necessirias e determinantes dos fenémenos. Mas o ser humano também é um fendmeno. Entio, como explicar a liberdade humana? Seria a razo livre a capacidade de se subtrair 4s determinagdes do mundo? Essa capacidade parece, entio, ser iluséria. O ser humano constituido de pensamento e¢ liberdade e, portanto, centrado na sua consciéncia, comega a se descentrar. Esse descentramento costuma ser descrito em varios niveis. No plano cosmoldgico, ele é representado pela revolugéo copernicana: a Terra nfo é mais 0 centro do universo como se pensava—e a terra, no cosmos, é 0 simbolo do ser humano no mundo. No plano bioldgico, pela teoria da evolugao: 0 homem é simples resultado de um processo evolutivo, ele no é muito diferente do macaco. No plano psicolégico, a alma é teduzida a um epifendmeno (reverberacio secundaria de fendmenos fisicos). No plano socioldégico, surge a consciéncia de que somos produto de leis sociais e histéricas plenamente estudaveis; e 0 golpe final que veio do €struturalismo (no. plano filosdfico): 0 que existe sao @struturas impessoais as quais estamos sujeitos (e essas &struturas no tém nenhum centro auténomo). Acabou-se ROGERS: ética humanista e psicoterapia 27 28 aliberdade, acabou-se o ser humano centrado em si mesmo. Somos apenas pecas de uma complexa maquina, mas cujo funcionamento é, em principio, previsivel desde que encontremos os instrumentos adequados de pesquisa. O modelo de pensamento que manifesta bem essa mentalidade é 0 positivismo de Comte (séc. 19): a ciénciaé um entendimento dos fatos objetivos. O conflito maximo se expressa por Nietzsche (séc. 19): oposigaéo ao homem pequeno, mesquinho (Reich: “Escuta Zé Ninguém”), pelo super-homem que, no entanto, nfo passa de um sonho. Para Ortega y Gasset (séc. 20), 0 positivismo é uma operacio intelectual que consiste em esvaziar o sentido do mundo e deixé-lo reduzido a um amontoado de fatos. Wittgenstein (séc. 20) afirma que, para o olhar da ciéncia no mundo, tudo é como é, e nele nao ha lugar para valor algum. Lévi-Strauss (séc. 20) diz, em O pensamento Selvagem, que © fim primordial das ciéncias humanas nao é constituir o homem e sim dissolvé-lo... reintegrar a cultura na natureza e finalmente a vida no conjunto das condigées fisico-quimicas. Depois da morte de Deus (Nietzsche), vem a morte do homem (Foucault, séc. 20 - estruturalismo). A modernidade comegou com o humanismo e terminou com o anti-humanismo. A saida para o homem seria o ceticismo (nao podemos saber nada que ultrapasse a mera descricao de fatos empiricos; nada que se refira a valores ou sentido de realidade), e, para a vida pratica, 0 emocionalismo (gozar a vida o maximo possivel). Mas Lévinas (séc. 20) procurava o verdadeiro rosto do homem por tras das mascaras. Lévi-Strauss e Foucault (estrutu- ralistas) foram contemporaneos de Lévinas, e também de Rogers e Maslow (humanistas do séc. 20). O motivo pelo qual se formou, em torno de Husserl (no comeco do séc. 20), um movimento filoséfico (com expansées para fora da filosofia), foi que essas pessoas (dentre clas, Edith Stein) viram na fenomenologia uma possibilidade de se chegar a uma verdade. Nem tudo é relativo (ou: até o relativismo é relativo). Ha uma esperanca para a humanidade. A modernidade acreditou, com fé inabalavel, no progresso ilimitado da humanidade. No entanto, os tempos mostraram que nem todos usufruem desse progresso: pessoas em grande nimero sé comem as migalhas desse progresso. Os racionalistas acreditaram na educacao do povo (para que eles participassem do progresso). Mas esse povo foi dizimado nas duas maiores guerras que a humanidade ja fez (consequéncias de jogos de interesse econémico). Os marxistas acreditaram que a luta de classes levaria A reconci: ago, mas 0 que vimos foram os comunismos ditatoriais. Os capitalistas acreditaram na revolugio técnico-industrial, mas, em meio a opuléncia daqueles que usufruem dos beneficios dessa revolugio, comegaram a faltar razdes para viver e, para os pobres, maioria da sociedade, sobraram pequenos restos. Alguns autores denominaram essa modernidade tardia de pés-modernidade e apontaram algumas caracte- risticas para ela, Vejamos algumas. Mauro Martins AMATUZZI 29 30 Nao ha mais a grande histéria com um sentido, a grande narrativa; apenas a pequena histéria de cada um (a histéria humana nao tem sentido). A ética, com 0 senso dos valores, é substituida pela estética; 0 que vale é a beleza, mesmo que seja trigica (porque do bom nao sabemos o que é, se € que existe). Se nao viemos de lugar nenhum e nao vamos para lugar algum, nenhuma direcao é melhor que outra. A ideia de verdade é abandonada e explode a subjetividade eo sentimento. E como consequéncias para a vida cotidiana: o desfrute imediato, sem adiar satisfacdes (“carpe diem”, com o sentido de aproveite o aqui e agora); a felicidade consistindo exclusivamente na vida privada; a indiferenga com as questdes que se referem ao coletivo, abstengo de militancia politica ou de qualquer outra espécie; grupos de encontro emocional de subjetividades, terapias do sentimento, pedagogia do contato, terapia do abrago. Nao ha mais lugar para um saber profundo; uma visio de mundo mais ampla é considerada pura ilusio. A nostalgia de tempos antigos é uma neurose ou um sinal de infantilismo. A religiosidade torna-se sentimental e j4 nao abre para as grandes questdes da existéncia: vira um remédio como qualquer outro. No seio da propria pés-modernidade, porém, sementes de esperanga: pensamento complexo (Edgar Morin, séc. 20/21); nada se consegue sozinho (valorizagaio da equipe, dos grupos) em razio da impossibilidade de um s6 abarcar a complexidade (seja no plano do conhecimento, seja no plano da vida); convite a uma humildade do ser humano, mas nio a insignificancia. ~~ Na psicologia americana, além da repercussio de toda essa maneira de pensar e sentir que vem da Europa, com 0 gosto pelo pratico ¢ utilitério (cuja expressao filosdfica nos Estados Unidos é William James, séc. 19-20), a psicanilise foi praticada como uma técnica (e nao tanto como um pensamento), mas também se desenvolveu bastante uma outra técnica bem mais objetiva: o comportamentalismo ou a engenharia de comportamento. Ambos tinham em comum o pensar o ser humano como resultado de influéncias ou causas mais ou menos ocultas (internas ou externas), mas que podem ser detectadas por especialistas. Muitos estavam insatisfeitos com isso. Algo estava sendo esquecido: em lugar do “homem resultado” (expressio de Merleau-Ponty), deverfamos ser capazes de pensar o homem desafiado, capaz de iniciar agdes novas e transformadoras, voltado Para o futuro. Maslow propoe que, para conhecer o ser humano, deveriamos estudar os melhores exemplos de realizacio de humanidade, as pessoas mais criativas (e deverfamos, nés, atualmente, ampliar isso para os grupos e comunidades mais bem sucedidos). Ele se propds a estudar Pessoas sadias e nao Pessoas doentes ou neuréticas, Rogers escreveu sobre a vida plena, a pessoa em funcionamento pleno, tal como ele podia constatar no final de uma terapia. Allport escrevera sobre a ROGERS: tica humanista e psicoterapia 31 32 religiosidade intrinseca, como algo bem diferente da religiosidade extrinseca. A psicandlise e o behaviorismo nao traziam essas respostas. Dois livros se tornaram classicos: Psicologia Existencial Humanista, de Greening (1975), ¢ Psicologia do Ser, de Abraham Maslow (s/d.), em pleno século 20. Maslow congrega um movimento que ele chama de Psicologia Humanista. Eram tempos de guerra no Vietna. Psicdlogos, psiquiatras ¢ assistentes sociais, que trabalhavam no modelo médico (diagnéstico e interveng’o manipuladora das causas), eram eficazes no tratamento dos traumatizados e mutilados que vinham da guerra. Mas esse ja nao era o maior problema dos americanos. Eles queriam saber o porqué da guerra; que sentido tinha a presenga dos Estados Unidos na Asia; por que seus filhos tinham que morrer precocemente em um embate sem ldgica. E, para isso, os métodos tradicionais nao traziam respostas, nao abriam as portas de uma aco efetiva. Seria preciso olhar para aquilo que o ser humano poderia ser. Ou poderia fazer. Nao apenas olhar para o que jd tinha feito. Nao foi Rogers quem inventou os grupos de encontro, mas quando ele se pés a promover isso, ele facilitava o desenvolvimento auténomo do grupo e das pessoas, estando focado nos significados que eram expressos pelas pessoas, ajudando-as a se aproxima- rem de sua experiéncia e aprofundar seus sentidos. Maslow, Rogers, Greening, Erich Fromm e outros, apesar de trabalharem de formas diferentes, resgataram para aquele momento a velha tradigo humanista. Fromm (1974) nos fala que essa tradic&o tem suas raizes na Grécia antiga. Amar (1980) chama de humanista toda psicologia que precedeu 0 laboratério de Wundt, inclusive a rica psicologia medieval (totalmente esquecida atualmente). O movimento humanista de Maslow, no século 20 americano, trouxe de volta para a psicologia os velhos temas que haviam ficado de lado pelas abordagens convencionais. Quais temas? A satide psicoldgica, a capacidade de escolha, a criatividade, a autorrealiza¢io, 0 compromisso comunitario, o envolvi- mento politico, a abertura espiritual, enfim, tudo aquilo que devolve ao sujeito seu papel ativo e sua abertura para o futuro € para o infinito. -ae~> O proprio Rogers sugere colocar 0 comego de sua abordagem pessoal no dia em que, conversando com uma mie a respeito de seu filho problematico, ocorreu uma reviravolta (Rogers, 1977, p. 23). Ele havia tentado passar para a mie sua interpretagdo da situago problematica, mas ela nfo aceitara. Todas as suas tentativas foram em vao: a conversa nfo levara a nada, entao, deu por encerrada a entrevista. De pé, ji na porta do consultério, a mae se voltou € perguntou a Rogers se la eles faziam aconselhamento de adultos. Ele respondeu que sim e ela voltou a sentar-se. Ali estava Rogers, sem nenhum esquema que o pudesse guiar nessa nova conversa que se iniciava. Esse foi um dos momentos importantes do nascimento da abordagem niio diretiva que depois veio a se alargar em abordagem centrada na pessoa. O que ele vivenciou aqui? Basicamente, uma auséncia de parimetros e uma enorme disposig’o de Mauro Martins AMATUZZI 33 34 compreender e ajudar a pessoa que estava 14. A ACP nasceu da pratica de um americano que, de repente, perdeu todos os seus manuais de instrugao. Essa auséncia de parametros, no entanto, nfo era tao grande como se costuma pensar. Eles estavam em um consultério de psicologia (e nao nas ruas de um bairro, ou em um clube, ou nos corredores de uma empresa, ou em uma reuniao de drogaditos em recuperagio, ou, ainda, na sala de conversas de uma prisio, por exemplo); ea mie e ele sabiam que aquilo era uma conversa de ajuda, tinham definido para si que era uma situacio de atendimento psicolégico. Nesse sentido, era uma situagao jé previamente definid: atendimento psicolégico daquela pessoa que estava ali (e seu contexto era institucional, sua dire¢do era o nao outra). Essa pessoa buscava ajuda psicolégica e, portanto, assumia o papel de cliente entregando-se nas maos do profissional. Buscava alguém disposto a oferecer profissionalmente essa ajuda e, portanto, alguém que também assumisse seu papel. Ambos se confirmavam mutuamente nessa atribuicao de papéis sociais distintos e complementares. O que aconteceu ali foi um novo modo de caminhar, sem duvida, porém numa situagio ja previamente definida, com objetivos gerais definidos, em uma relagao cuja natureza também ja estava previamente definida, ao menos, no seu sentido amplo. Nada disso acontece em outras situagdes em que o psicdlogo se vé envolvido, ou se envolve, atualmente. Em nossos tempos, frequentemente, nao ha nenhuma situagio previamente definida no que diz respeito ao que se vai fazer ou ao que se espera, € nem tampouco uma defini¢ao de papéis conhecida e assumida por todos os envolvidos. Muitas vezes, niio ha nem mesmo um cliente especificado. O psicélogo, por exemplo, vai para um bairro sem ser convidado e levando consigo somente uma vontade grande de ajudar na promocao humana, nada mais. Ele vai aonde estiio as pessoas em vez de recebé-las em seu espaco profissional. Muitas vezes, nao ha um contrato de trabalho entre uma populagao (cliente) e ele (profissional), Outras vezes, acontece um contrato, sim, mas entre o profissional ¢ a prefeitura local ou alguma universidade ou agéncia financiadora de pesquisa. Todo o resto esta para ser definido. O psicélogo nao é procurado, mas é ele quem procura. Ele sai de seu consultério e de sua institui¢ao. Certa vez, escrevi um texto que foi traduzido para o espanhol com um titulo sugestivo: Salir del consultério para ablarmos de ti: la construccién participativa de uma psicologia popular (ver Amatuzzi, 2008, p. 115-122). Nao era bem essa a situagao de Rogers nas origens da ACP. O que estou querendo dizer com isso? Rogers estava diante de uma situago que era seu desafio concreto naquele momento. Para fazer frente a ela, ele mobilizou em si um modo de ser, nao uma técnica, que, quando aplicado Aquela situagao, resultava em algumas atitudes bem definidas e que foram efetivamente formuladas posteriormente como as classicas atitudes terapéuticas (aceitagao incondicional ou acolhimento, compreenséo empatica ou comunhio de significados, e autenticidade ou ser o que se é, respeitando as diferengas). Algum tempo depois, ficou mais claro que ROGERS: ética humanista e psicoterapia 35 36 esse modo de ser no estava vinculado necessariamente Aquela situagao determinada de atendimento psicolégico. Poderfamos enfrentar outras situagdes totalmente dife- rentes, outros desafios, com o mesmo modo de ser. E isso se revelou frutuoso. O proprio Rogers comegou a sair do campo estrito do atendimento psicoldgico de adultos e a enfrentar outras situagées: atendimento de criangas e de psicoticos; realizagio de grupos de encontro; processos educativos; facilitacao de grupos institucionais; encontros interculturais etc, John Wood (1994) percebeu isso muito bem: o modo de ser que caracteriza a abordagem centrada na pessoa € algo maior, mais geral, do que a forma concreta que esse modo toma quando aplicado a uma situagio especifica de terapia, por exemplo. Ele sugere que as trés atitudes classicas sejam a formulagao da ACP, sim, mas quando aplicada a psicoterapia. Da a entender que nao devemos identificar simplesmente essas duas coisas, assim como nao devemos identificar ACP e terapia individual de adultos. Reiterando: a ACP define-se no campo dos valores, e isso quer dizer no campo das predisposig6es ou das preferéncias quanto ao modo de ser, nio no campo da técnica, no campo do modo de fazer. Ora, ter um modo de ser relativiza o modo de fazer, torna-o menos importante, da-lhe o seu verdadeiro sentido; nao o anula. No entanto, vamos mais devagar, para podermos entender melhor suas possiveis implicagées. —w~s Eis como John Wood coloca essa questo: A Abordagem Centrada na Pessoa nao é uma teoria, uma terapia, uma psicologia, uma tradigao. Nao é uma linha, como, por exemplo, a linha Behaviorista. Embora muitos tenham notado um posicionamento existencial em suas atitudes, e outros tenham se referido a uma perspectiva fenomenolégica em suas intengdes, nao é uma filosofia. Acima de tudo nao é um movimento, como por exemplo, o movimento trabalhista. E meramente uma abordagem; nada mais, nada menos (Wood, 1994, p. Ill). Para ele, aACP nao é uma psicologia, uma terapia, nem mesmo uma teoria ou uma linha psicolégica. A Terapia Centrada no Cliente (TCC) deve se distinguir da ACP, pois é uma aplicagao dela auma situagao especial, a situagao de psicoterapia individual de adultos. Esta aplicagao faz conceber a psicoterapia como um processo de facilitagao do crescimento pessoal e satide psicoldgica de individuos em uma relagio terapéutica pessoal (p. II-III). Houve outras situagdes as quais essa mesma abordagem se aplicou: grupos de encontro, aprendizado em sala de aula, terapias de pequenos grupos ou workshops de grandes grupos para aprendizagem sobre formagao e transformagao da cultura, comunica- G6es interculturais e resolucao de conflitos (p. Ill). Ou seja, quando tudo comegou, tinhamos a terapia nao diretiva (que depois se chamou Terapia Centrada no Mauro Martins AMATUZZI 37 38 Cliente: TCC) simplesmente, mas nfo se tinha nogao exata de que a originalidade dessa forma de terapia nao vinha como proposta de uma técnica nova, mas como aplicagao & situagdo terapéutica de um conjunto de valores mais abrangentes, 0 que levava a uma nova concepgio de Processo terapéutico. Esse mesmo conjunto de valores foi aplicado a outras situagées; o proprio Rogers fez isso. E depois dele, outros seguidores, com a mesma inspiragao, defrontaram-se com outras situagdes, tais como: condugio de empreendimentos produtivos; processo de emancipagiio popular; atua¢ao junto a comunidades carentes da América Latina; atuagiio em Centros de Satide. Foi em virtude dessa diversidade de aplicagées, aliés, que foi possivel pensar a ACP como algo mais amplo. Nas situages especificas, ha que se levar em conta justamente a especificidade de cada situacao. at? Pois bem, se ACP nao é terapia, linha psicoldgica nem filosofia, 0 que seria entio? Em que género de coisas devemos colocé-la? Wood assume como resposta o titulo do livro de Rogers: um jeito de ser. ACP é um jeito de ser, isto é, um modo de ser, nao de fazer. Um modo de ser leva, certamente, a um modo de fazer. Mas esse modo de fazer dependera da situagao. Jé o modo de ser pode ser definido no geral, independentemente da situacao. Ele é anterior 4 situagao. Entdo, em que ele consiste? Wood o descreve em sete pontos que ja esto se tornando classicos. O jeito de ser da abordagem centrada na pessoa consiste em: 1) Uma perspectiva de vida de modo geral positiva (Wood, 1994, p. Ill), Isso significa acreditar na vida, acreditar que ela vale a pena. Nao se trata de uma constata¢io — com base em experiéncias positivas ou de uma espécie de conclusio tirada de um passado feliz. Trata-se mais de dizer sim avida. Nada me obriga a fazer isso. Posso dizer nio. Mas dizer sim é 0 primeiro ponto descritivo do modo de ser que caracteriza a abordagem centrada na pessoa. E uma fé, A fé é anterior & ciéncia e lhe dé apoio. E é anterior, também, a ideologia. A fé tem a ver com fins; ciéncia ¢ ideologia, com meios (Amatuzzi, 2003). 2) Uma crenga numa tendéncia formativa direcional (Wood, 1994, p. Ill). Aquela fé se expressa também por essa crenga em uma tendéncia que direciona as coisas para o crescimento, para a complexidade, para o ser mais, para a harmonia. Essa tendéncia é uma forga que perpassa o universo. E se assim é, cla existe também no ser humano, pois ele é parte do universo. No ser humano ela se expressa, dentre outros modos, como capacidade de autocompreensdo, de mudanga no autoconceito, e na atitude basica, diante da vida, e no comportamento autodirigido, sempre em razio do ser mais. Essa capacidade nio é apenas algo vago, mas se ROGERS: ética humanista e psicoterapia 39 40 traduz em recursos de autocompreensio ¢ mudanga na diregio de maior complexidade e crescimento. Essa tendéncia formativa nfo existe sé no ser humano individual, mas também no grupo, na comunidade, no meio ambiente, no universo enfim. Rogers (1983, p. 45) diz: Esté em andamento um processo criativo e nao desintegrativo. Ele constata a tendéncia desintegrativa, entrépica, certamente. Mas afirma que, no seu todo, o que estd em andamento é um processo criativo, formativo, em dire¢o ao mais ser e nao em dire¢4o ao menos ser. Ocorre que, por causa da propria complexidade dos sistemas que se vao sucedendo no processo evolutivo, essa tendéncia pode estar mais ou menos bloqueada, mais ou menos impedida de atuar. No ser humano, essa tendéncia pode ficar confundida, e pode atuar em diregdes paradoxais. Mas a propria consciéncia, fruto da evolugio, prové o ser humano de recursos que o tornam apto a atuar no sentido de uma reorientagio. O desbloqueio, a mobilizagio ou a reorientagio da tendéncia formativa no ser humano dependerio de um clima determinado de disposicdes facilitadoras. E a experiéncia tem ensinado a definir essas disposigdes. A propria tendéncia formativa atua como remédio na descoberta e produgao desse clima. Nao que isso nao exija esforgo humano de lucidez ¢ coragem, mas que o proprio surgimento desse esforco esteja na linha daquela tendéncia. Rogers fala de uma sintonizacio consciente com a tendéncia formativa, Nao se trata de uma concepcio fatalista, mas de uma concepgio que, no caso do homem, assume a liberdade na complexidade das tendéncias que perpassam o universo. O importante é que quando uma pessoa est4 funcionando plenamente, nao ha barreiras, inibig6es que impegam a vivéncia integral do que quer que esteja presente no organismo. Esta pessoa estA se movimentando em direcio a inteireza, & integracio, a vida unificada. A consciéncia est participando dessa tendéncia formativa, mais ampla e criativa (Rogers, 1983, p. 46-7). John Wood, neste ponto 2, situa a crenga na tendéncia formativa e, a0 mesmo tempo, como consequéncia dela prdpria, os recursos que no ser humano podem desbloquear ou reorientar essa tendéncia quando bloqueada. E esses recursos se concretizam em atitudes hoje conhecidas e j4 comprovadas cientificamente (na formulagao rogeriana: compreensio empitica, aceitacio incondicional e autenticidade). 3) Uma intengao de ser eficaz (Wood, 1994, p. Ill). Wood julga oportuno destacar isso como um dos pontos descritivos dessa abordagem. Por qué? Talvez para que no se pense que esse modo de ser nao tenha compromisso com a mudanga. E, na verdade, tem. Isso decorre da fé fundamental também. Dizer sim 4 vida é entrar no seu fluxo levando para ele nossa liberdade, nosso discernimento, nossa consciéncia, nossa a¢ao, Nao se trata de conformismo ou Jaisser faire, © nem tampouco de uma postura meramente contemplativa, visando somente 0 entendimento, Nesse sentido, é valido dizer que a ACP nao é uma abordagem filos6fica (e nem diagnéstica). Trata-se de um modo de ser Mauro Martins AMATUZZI 41 42 voltado para a ago, ou que se traduz em agées diferenciadas, conforme a situagdo ou as circunstancias. Nao é um modo de agir (isso seria um método ou uma técnica), mas um modo de ser voltado para a agao eficaz, E se tal modo vale para situagées em que o desafio é a mudanga em diregao ao crescimento (terapia, grupo, dinamismo evolutivo), por que nao valeria quando se trata de mudanga no conhecimento ou na pesquisa? O prdprio conhecimento passa, entiio, a ser encarado como uma agio evolutiva. A ACP inspira praticas terapéuticas ou evolutivas, inclusive no campo do conhecimento. E um modo de ser voltado para o mais ser, em qualquer que sejao campo. 4) Um respeito pelo individuo e por sua autonomia e dignidade (Wood, 1994, p. Ill) Disposigao de atuar, mas atuar em conjunto com outro ser humano (ou outros). Se me ponho como agente, nao posso esquecer que o outro se coloca para mim como téo auténomo e digno de respeito como eu, e que, portanto, a acdo passa a ser, no minimo, conjunta. Isso pressupde um » sentimento ou uma experiéncia especial: a experiéncia de reveréncia; reveréncia para com algo que me ultrapassa como valor, algo sobre 0 qual nao posso ter um dominio; e isso interdita qualquer tipo de manipulagio que submeta o outro, aviltando sua autonomia. Posso, isso sim, me associar ao outro (em dupla, grupo ou comunidade). Quando se trata de uma situagao de ajuda psicolégica, isso leva, evidentemente, como objetivos fundamentais, a favorecer no outro sua propria liberdade ¢ autonomia vividas no encontro inter-humano. 5) Uma flexibilidade de pensamento e ago (Wood, 1994, p.IV). Sem isso, o ponto anterior fica impossfvel. Se nao me abro para o outro, para o que nao vem de mim, para o diferente, no posso viver em comunidade ou agir em comunhiio. Se aquele senso de reveréncia é mais do que palavras, preciso ser capaz de acolher o diferente, a pessoa diferente, a acao diferente ou o pensamento diferente, Quando vou para uma reuniio, por exemplo, levo ideias propostas de a¢io, mas se eu estiver apegado a elas, a reunio transforma-se em uma disputa de poder. Nao ha mais encontro de pessoas, nao hd relacao, somente relacionamento. Devo ser capaz de me deixar transformar pelo convivio. Wood enfatiza aqui a importincia de se ter uma dupla visio da realidade: uma linear, construida “pedago- -a-pedago”, e outra holistica, olhando o conjunto, percebendo “tudo-de-uma-vez”. 6) Uma tolerancia quanto as incertezas ou ambiguidades (Wood, 1994, p. IV). E ele acrescenta, logo em seguida: sendo capaz de viver numa situacao cadtica até que fatos suficientes se acumulem para ser possivel abstrair-se um sentido deles. No plano meramente ldgico e racional, isso seria impossivel. £E preciso sair dos limites racionais, confiando que existe uma sabedoria no mundo e que posso me conectar de forma fecunda com ela. Isso decorre dos pontos anteriores. Sem uma fé na vida e uma disposi¢ao de aprender com ela, e, ROGERS: ética humanista e psicoterapia 43 44 portanto, sem flexibilidade de pensamento e acdo, nossas construgdes ficam presas ao cu, sem possibilidade de expansao. 7) Senso de humor, humildade e curiosidade (Wood, 1994, p. IV). Ha uma abertura muito grande aqui, da parte de John Wood, ao desconhecido: ser capaz de rir e até rir de si mesmo. O brincar, propondo caminhos inesperados, revela com alegria os limites de nosso préprio eu. Em quem cle estaria pensando quando diz, nesse mesmo ponto, que, embora isso caracterize a ACP, nao é algo exclusivo dela? Isso me faz pensar em tudo que Winnicott aprendeu com as criangas. Meditando sobre esses sete pontos de Wood, forma-se em mim a conviccio de que cle est4 falando de valores e nao de técnicas: esta, portanto, propondo uma ética das relacdes. A ACP é uma ética. —a~> Analisemos agora um pequeno trecho de Rogers, ja antigo (original de 1946), mas que esté em um artigo que Wood considera um dos textos seminais da ACP. Rogers, nesse artigo, vinha falando que uma das descobertas que fez, juntamente com sua equipe, foi que, quando um cliente é recebido de um determinado modo, ocorre “uma cadeia de eventos complexa e previsivel” e que é voltada para o crescimento da pessoa, isto é, € terapéutica. Esse modo de tratar o cliente diz respeito as atitudes que caracterizavam a nova abordagem que estava nascendo, ¢ que, aqui, ele resume em 6 pontos: 1) o conselheiro parte do princfpio que o individuo é basicamente responsivel por si proprio e deseja que cle mantenha essa responsabilidade; 2) pressupée a existéncia de uma forte tendéncia a tornar-se maduro, ajustado, independente, produtivo e confia nessa tendéncia para que as mudangas oportunas se realizem; 3) cria uma atmosfera calorosa e permissiva na qualo cliente possa se expressar com liberdade; 4) estabelece limites somente quanto ao comporta- mento € nao quanto 4s atitudes e expressdes; 5) usa somente procedimentos ¢ técnicas que trans- mitam sua profunda compreensio das atitudes expressas sua aceitagao delas (note que aqui ele fala de “procedimen- tos e técnicas”); 6) abstém-se de qualquer expresso ou ago contraria aos principios precedentes, isto é, evita perguntar, sondar, culpar, interpretar,. aconselhar, sugerir, persuadir, reas- segurar (Rogers, 1994, p. 20-1). 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