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O rótico em coda silábica e as estratégias de reparo

durante o processo de aquisição

Patrícia Pereira Melcheque

1. Introdução

A produção dos segmentos róticos no Português Brasileiro (PB) tem sido


tópico de investigação em diferentes áreas, como aquelas que abordam aspectos
voltados para a variação, a análise fonético-fonológica e a aquisição. Estudos
envolvendo a aquisição desses segmentos, por crianças com desenvolvimento
fonológico típico de fala, apontam para um surgimento e aquisição mais tardio. Suas
características articulatórias mais complexas podem ser a motivação para que esses
segmentos sejam os últimos a surgirem na fala das crianças. (Hernandorena e
Lamprecht, 1997).
A sílaba, de acordo com a Teoria Métrica da Sílaba, é uma unidade linguística
que possui uma estrutura interna e pode ser dividida em unidades menores. É
composta por ataque (ou onset), núcleo e coda. Contudo, seu único elemento
obrigatório é o núcleo. Com a mesma grafia e pronúncia diferente, o que o diferencia
os róticos é a posição em que o "r" se encontra na sílaba. De um modo mais genérico,
o meio de contraste lexical ocorre, em português, pela posição do segmento na sílaba.
Por exemplo, em início de sílaba temos um r "forte", como em raiz, ou em posição
medial de palavra, um r "fraco", como em faro. Essa pronúncia mais "branda" do
rótico ocorre em diversos contextos silábicos, como em onset medial e final e em coda
medial e final. As produções podem ser bem diferentes, pois a variedade linguística
influência diretamente a sua produção e, dependendo do dialeto, esse pode ser
articulado como: tepe alveolar, vibrante múltipla, retroflexa alveolar, fricativa velar
vozeada e desvozeada, fricativa glotal vozeada e desvozeada ou aproximante
roticizada ("r" caipira).
Tendo em vista seu caráter de aquisição mais tardio e sua dificuldade para
produção, os róticos, especialmente aqueles que ocupam a posição de coda silábica,
apresentam maiores alterações ao longo do processo de aquisição. Estas alterações,
apresentadas por apagamentos ou substituições de fonemas, são conhecidas como
estratégias de reparo.
Ainda que a proposta do artigo aqui reportado seja mais ampla, o
desenvolvimento do presente trabalho busca, em geral, analisar os dados
longitudinais de aquisição de uma criança em desenvolvimento fonológico típico. E,
dessa forma, relacionar os tipos de estratégias de reparo utilizadas pela informante
em coda silábica, medial e final, com a consoante rótica em sua fase de aquisição. O
tepe alveolar e a vibrante múltipla são as variantes mais encontradas na fala
produzida no sul do Brasil (Monaretto, 1996). Segundo o estudo de Botassini (2011),
em um corpus com 176 produções, 152 ocorrências foram produzidas como tap e 24
como vibrante múltipla.

2. Características acústicas e articulatórias do tap e da vibrante no PB

O termo rótico é utilizado para os sons fricativos e aproximantes. Esse é usado


sem motivação fonética, visto que, com pontos e modos de articulação distintos, os
sons de “r” apresentam-se com qualidades fonéticas diferentes. Ladefoged e
Maddieson (1996) afirmam que, por certo, o uso desse vocábulo tem motivação na
escrita, pois, de fato, as palavras grafadas com R representam as variações dos sons
de “r”. Esses podem ser: vibrante, tap, aproximante ou fricativo. Lindau (1985), uma
das autoras elencadas por Thomas (2011), afirmou não haver uma única propriedade
física que unisse os róticos, ao invés disso, eles estão relacionados em etapas. Por
serem tão diversos, a falta de métodos de análise supera as suas generalidades.
Partindo para uma análise contrastiva entre a vibrante o tap, é fácil reconhecer cada
som no espectrograma. A diferença é que o tap produz apenas uma vibração no
espectrograma, gerada a partir de uma batida rápida da ponta da língua no céu da
boca, enquanto que a vibrante tem, no mínimo, duas marcas visíveis dessa
ocorrência.
Ladefoged e Maddieson (1996) caracterizam o tap como um som em que um
breve contato entre os articuladores é feito pelo movimento de um articulador ativo
diretamente ao céu da boca. Para ilustrar essa descrição utilizamos a figura abaixo,
retirada do site fonologia.org, que ilustra a configuração articulatória do tap que é
produzido com uma oclusão total e rápida do fluxo de ar nas cavidades orais. O véu
do palato está levantado, impedindo a passagem do ar pelas cavidades nasais.
Figura 2: Configuração articulatória do tap [ɾ]. Fonte: CRISTÓFARO-SILVA, Thaïs; YEHIA,
Hani Camille (2009).
Barbosa e Madureira (2015) apresentam: (i) uma descrição acústica do
segmento rótico em português; (ii) as diferenças acústicas em relação à posição
silábica e valores de duração; (iii) variação acústica condicionada à taxa de elocução e
contexto fônico. No que diz respeito a produção de tap e vibrantes os autores afirmam
que:
“A produção como vibrante múltipla diz respeito ao som produzido pela
batida repetida de um articulador ativo de pequena massa (ponta ou lâmina
da língua ou úvula) contra um articulador passivo (palato duro). A produção
como tap diz respeito a uma batida rápida da ponta ou lâmina da língua no
palato duro, com o articulador ativo na forma convexa ou côncava (no caso
do retroflexo).”

Além dessa descrição articulatória do segmento, os autores também afirmam


que o tap é o som mais curto em português, já que sua duração tem em torno de 30
ms, se comparado a uma vibrante múltipla, que pode ter duração absoluta em torno
de 200 ms. Os mesmos também reportam dados do corpus CETENFolha
(CIRIGLIANO et al., 2005), os quais investigam a contagem do número de
ocorrências dos fones em Português. Os róticos correspondem a 5,6% dos sons
produzidos na língua, com o tap [ɾ] sendo o mais frequente, 4,5%. Quanto à
realização do segmento em coda, segundo Moraes e Leite (1996), a partir de dados de
entrevistas ainda da década de 1970, a frequência do uso do tap é superior a 80% em
São Paulo capital e Porto Alegre.

3. A coda do PB e a aquisição dos róticos nessa posição silábica

A teoria métrica da sílaba defende que o menor constituinte prosódico, a


sílaba, possui uma estrutura interna e que essa pode ser divida em unidades menores.
Segundo essa teoria a sílaba é composta por ataque (A) e rima (R), essa última divide-
se em núcleo (Nu) e coda (Co). Qualquer componente pode ser vazio, exceto o núcleo.
Selkirk (1982) defende essa análise. Portanto, a representação de sílaba seria a
seguinte:
σ

A R

Nu Co

A sílaba apresenta uma relação mais próxima com os segmentos que ocupam a
rima, uma vez que o núcleo sempre será ocupado por uma vogal. Essa afirmação
reforça a hipótese de que existe uma estrutura interna nesse constituinte prosódico.
A coda não está presente em todas as sílabas, uma vez que essa não é um
elemento obrigatória da estrutura. Contudo, não são todos os segmentos que podem
ocupar essa rima ramificada. Em português existem fortes restrições aos sons que
ocupam essa posição. Apenas as consoantes /S/, /R/, /l/ e /N/ são permitidas em
coda. A representação a seguir, da palavra cor, apresenta uma sílaba com a coda
sendo ocupada pela consoante /R/.
σ

A R

Nu Co

c o r

Por ter surgimento e estabilidade mais tardios, muitos pesquisadores voltaram


seus trabalhos para a investigação do processo de aquisição dos róticos. Aqui
repostaremos as principais pesquisas encontradas na área.
Carolina Mezzomo e Letícia Ribas no texto “Sobre a Aquisição da Coda”,
publicado em 2004 no livro “Aquisição Fonológica do Português”, aponta para a
existência de cinco tipos de sílabas com coda simples, ou seja, apenas uma consoante,
tais como: VC – ar, ás, um, alto; CVC – lar, parte, paz, pasta, gol; CVVC – mais;
CCVC – três, frasco, trem, planta, flor, fralda; CCVVC – claustro. E três tipos de
codas complexas, ou seja, com duas consoantes. Tais estruturas complexas consistem
na sequência “soante + S”, tais como: VCC – instante; CVCC – monstro, perspicaz,
solstício; CCVCC – transporte.
Certos segmentos e estruturas silábicas têm o domínio mais tardio. A sílaba
CVC é um dos últimos tipos a serem adquiridos, seguidos de CV e depois de V.
(Lamprecht, 1990; Santos, 1990; Rosa, 1992; Ilha, 1993, apud MEZZOMO; RIBAS,
2004)
A pesquisa de Lamprecht (1993) acompanhou o desenvolvimento fonológico
de 12 crianças com idades ente 2:9 e 5:5. Os dados do seu trabalho revelaram que /l/
se estabelece antes de /R/ e o /ʎ/ ante de /ɾ/. Ou seja, dentro da classe natural das
líquidas, as não-laterais são dominadas pelas laterais.
Hernandorena e Lamprecht (1997) analisaram a fala de 310 crianças com
idades entre 2:0 e 4:0 (Banco de Dados AQUIFONO) e observaram, durante a
aquisição dos sons de “r”, uma grande distância cronológica entre esses segmentos,
dependendo da posição silábica em que os mesmos se encontram. Em posição de
onset simples o /R/ é dominado aos 3:4 enquanto que o tap /ɾ/ é dominado quase um
ano depois, aos 4:2. Nas demais posições silábicas também há um grande
distanciamento cronológico, pois em coda o segmento é dominado aos 3:10, em
contrapartida o onset complexo somente é dominado aos 5 anos. Desse modo, o tap é
o último segmento a ser adquirido e dominado dentro da classe natural das líquidas.
A posição da coda dentro da palavra também apresenta diferenças
cronológicas de aquisição, pois o surgimento do tap em coda final ocorre antes do que
em coda medial. O primeiro ocorre aos 1:11 e o segundo aos 2:2. Porém a aquisição
completa do segmento em ambas posições dar-se-á aos 3:10 (Mezzomo, Ribas 2004).
Miranda (1996) ao analisar a variável “posição na palavra versus tonicidade”
verificou que, em 305 possíveis alvos de realização, o rótico foi produzido em 60%
dos casos e destes 287 eram tônicos. Já em coda medial, se fosse considerado a
tonicidade, dos 1209 alvos possíveis, 41% dos róticos foram produzidos e desses 607
eram tônicos. Com base nessas informações, a pesquisadora afirma que “pode-se
inferir, conforme já sugerido por Hernandorena (1990), que a conjunção tonicidade e
posição de final absoluto é a responsável pela produção precoce de líquida não-lateral
em coda final”.
As pesquisas aqui reportadas apontam para uma produção mais tardia do
segmento rótico e a sua aquisição na estrutura silábica ocupando a posição de coda.
Sendo assim, a criança faz uso de estratégias de reparo para adequar sua produção ao
segmento que ela ainda não produz e/ou da estrutura silábica ainda não conhecida.

4. Estratégias de reparo

A aquisição da linguagem nas crianças ocorre de modo gradual e não linear


desde o nascimento até os cinco anos de idade. (Lamprecht, 2004; Keske-Soares,
Pagliarin, Ceron, 2009). Tendo em vista seu caráter complexo de aquisição, a
linguagem apresenta alterações durante o seu processo. Logo, a criança emprega
estratégias de reparo, pois assim, ela consegue lidar com a dificuldade de produção e
articulação do segmento alvo. Essas alterações, no processo de aquisição do tap,
podem se apresentar como: substituição por /l/, não-realização do segmento e
semivocalizações. (MIRANDA, 1996; MEZZOMO e RIBAS, 2004). Em relação a
posição do rótico da sílaba, Mezzomo e Ribas (2004) afirmam que “em final de
palavra, as crianças utilizam recursos com mais frequência, na tentativa de produção
do /ɾ/. Por outro lado, em coda medial há uma preferência das crianças pela não-
realização”.
Conforme o processo de aquisição evolui, as estratégias de reparo também se
modificam, dada à proximidade do sistema fonológico das crianças com o dos
adultos. (Lamprecht, 2004).

5. Dados e Discussão

Este trabalho tem um caráter descritivo e exploratório, sendo constituído por


dados longitudinais de uma informante. As amostras de fala foram coletas de uma
menina com idade entre 1:6,17 e 1:11;08. A análise das palavras produzidas por ela foi
restrita apenas as que compreendiam o “r” em posição de coda silábica. A tabela 1
apresenta os itens lexicais alvo e como esses foram produzidos pela informante.

1:6;03
pentear pi‘tja ~ pe‘tja ~ ‘peta
1:7;01
tirar tSi’la
1:7;15
tirar tSi’la
sentar ‘tenta
1:8;12
ventilador ‘tilu
tirar tSi’la
verde ‘be:dZi~ve dZi
1:9;09
tirar tSi’la
verde ‘vedZi
iogurte i’gutSi
1:11;08
verde ‘vedi ~’vede

Tabela 1: Palavras produzidas pela informante com idade entre 1:6,03 e 1:11;08

Na tabela acima, pode ser observado que em todas as 11 possíveis produções


do “r” em coda, em 100% dos casos o segmento não foi produzido. A criança
simplifica a estrutura silábica optando pelo apagamento do rótico. Nos alvos pentear,
verde e iogurte fica claro o emprego da estratégia de reparo: não-realização do
segmento. Em outros alvos é possível ver o emprego de mais de uma estratégia, como
por exemplo, ventilador produzido como [‘tilu].
Contudo, nas produções de tirar e sentar é preciso levar em consideração que
o apagamento do “r” final geralmente ocorre na fala coloquial. Diversos estudos
sociolinguísticos apontam para esse apagamento da marca de infinitivo.

6. Conclusão

Nesse trabalho discutiu-se a produção dos segmentos róticos no PB e seu


processo de aquisição na fala das crianças. Apresentando uma breve descrição
acústica e articulatória do tap e da vibrante, percebeu-se a complexidade de
articulação desses sons. Fato esse que justificar o surgimento tardio. A partir dos
trabalhos de diversos pesquisadores, pôde-se entender melhor o desenvolvimento
fonológico das crianças em relação a aquisição do tap /ɾ/ em coda silábica.
Por não conseguir produzir o seguimento/estrutura alvo, a informante utiliza
estratégias de reparo. Embora os dados, reportados no presente estudo, não
corroborem com a afirmação de Mezzomo e Ribas (2004) (de que há uma tendência
geral de não-realização do segmento em coda medial e em coda final o uso de mais
recursos na tentativa de produção), esses não são suficientes para que sejam feitas
outras afirmações. Tendo em vista que, por seu caráter exploratório, 11 dados não são
suficientes para fazer generalizações.
A não produção do segmento já era esperado, considerando que a informante
tem idade entre 1:6 e 1:11, já o domínio desse som ocorre aos 3:10.
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