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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC

“As guerrilheiras”: feminismo em tempos autoritários?

KREUZ, Débora Strieder1

O movimento feminista passou a organizar-se no Brasil a partir de meados da década de


1970, num contexto de combate ao regime autoritário existente desde 1964. À medida que
este cedeu espaço a um governo democrático, as demandas específicas femininas puderam
ser postas em pauta. O presente trabalho, o qual é fruto da pesquisa para o Trabalho de
Conclusão de Curso da autora, objetiva analisar e demonstrar a percepção que as militantes
das organizações clandestinas atuantes no combate ao autoritarismo durante as décadas de
1960 e 70 possuíam sobre as questões específicas do gênero feminino. Para a sua
efetivação, analisam-se entrevistas de ex-militantes, bem como documentos dos grupos.
Sabe-se que muitas das organizações viam tal luta como divisionista, tendo em vista que o
combate deveria ser contra o regime autoritário e, com o término deste, muitas
reivindicações seriam atendidas. Contudo, mesmo dentro dos grupos as relações de gênero
permaneciam como na sociedade patriarcal, sendo que poucas foram as mulheres que
alcançaram cargos de liderança. Em muitos casos, as militantes somente adquiriram a
denominada consciência de gênero com o exílio e, só depois do retorno ao Brasil,
organizaram-se de forma efetiva em torno dessas demandas. Dessa forma, pretende-se
contribuir para o debate historiográfico sobre a atuação das mulheres na resistência à
Ditadura Militar brasileira, bem como a influência das ideias feministas sobre as mesmas.

Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar; mulheres; feminismo.

Introdução

O período compreendido entre 1964 e 1985, ou seja, a Ditadura Civil-Militar, tem


sido frequente objeto de estudo por parcela significativa da historiografia pátria,
preocupada em não deixar que se apague período tão nebuloso da nossa História. Contudo,
a participação feminina foi pouco investigada 2 . É nessa perspectiva, com o intuito de
incluir a investigação acerca das mulheres que participaram do combate a tal regime
autoritário, que se insere o presente trabalho.
Dessa forma, pretende-se discutir aspectos concernentes a participação feminina na
resistência ao autoritarismo3, bem como a visão que estas tinham acerca dos problemas

1
Estudante dos cursos de História/Licenciatura e Direito da Universidade Federal de Pelotas. Email:
debora_kreuz@yahoo.com.br
2
Poucas são as obras que versam a esse respeito. A título de exemplo podemos indicar COLLING, Ana Maria. A
resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997; FERREIRA, Elizabeth F.
Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996; CARVALHO, Luiz
Maklouf. Mulheres que foram à luta armada. São Paulo: Globo, 1998. Tais obras foram muito importantes para o
desenvolvimento da pesquisa.
3
Usar-se-á, nesse sentido, a palavra resistência, a qual será compreendida como aqueles grupos clandestinos que, de
forma armada ou não, opuseram-se ao regime autoritário.
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específicos femininos4, especialmente nos chamados “Anos de Chumbo”, ou seja, entre


1968-75, quando se vivenciou o auge da repressão estatal.
Tal preocupação derivou da observação do contexto da época, pois enquanto em
muitos países ocorria a chamada “revolução dos costumes”, com as mulheres saindo às
ruas, “queimando sutiãs”5, reivindicando participação mais efetiva nos diversos âmbitos
sociais, no Brasil tal discussão chegou de forma contundente somente em meados da
década de 1970, quando, em 1975, a Organização das Nações Unidas o elegeu como o
‘Ano Internacional da Mulher’, favorecendo a discussão e consequentemente a
organização de diferentes grupos que passaram a reivindicar por demandas específicas.
Contudo, deve-se ressaltar que, num primeiro momento a centralidade da luta foi em prol
da Anistia, e, especialmente, após o retorno dos milhares de exilados, pelas especificidades
do gênero feminino.
Dessa forma, partiu-se para a investigação: quais preocupações no tocante às
questões femininas estavam presentes entre as mulheres que resistiram ao Regime Civil-
Militar? Estas estavam presentes? Se não, o que era então almejado?
Como meio de contato com as militantes, optou-se pelo uso de depoimentos já
editados6, bem como entrevistas de História Oral realizadas pela autora durante o primeiro
semestre do ano de 2012. A opção por tal metodologia pode ser explicada na fala de
Alberti (2004):

É da experiência de um sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo o


passado com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um indivíduo
único e singular em nossa história, um sujeito que efetivamente viveu – e, por
isso dá a vida – as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão
distantes.

Contudo, a crítica às fontes não foi deixada de lado. Mesmo com todo o encanto
proporcionado pelo uso da História Oral, esta deve ser tomada com as devidas reservas,
tendo em vista a constante reelaboração pela qual esta passa. Pollack faz menção à
ressignificação que a memória sofre, mediante as experiências dos indivíduos:

4
Entende-se por problemas específicos aqueles relacionados à questões da sexualidade, liberdade em relação às figuras
masculinas (pais, companheiros), violência doméstica, dentre outros.
5
Protesto ocorrido nos Estados Unidos da América, contra a escolha da Miss América, no ano de 1968.
6
As obras serão mencionadas quando utilizadas.
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A memória é, em parte, herdade, não se refere apenas à vida física da pessoa. A


memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é
articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento
constituem um elemento de estruturação da memória7.

Inicialmente, apresentar-se-á as mulheres com as quais se teve contato direto: Maria


Amélia de Almeida Teles, Suzana Lisbôa e Nilce Azevedo Cardoso. A primeira, mais
conhecida por Amelinha, fez parte do Partido Comunista do Brasil- PCdoB8 e atualmente
milita no movimento feminista; a segunda iniciou a luta no movimento estudantil e mais
tarde passou a Aliança Libertadora Nacional - ALN 9 , sendo que atualmente é um dos
principais nomes na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e a
terceira, num primeiro momento também esteve vinculada à luta de estudantes e depois
passou à Ação Popular - AP10, e atualmente, trabalha com psicopedagogia.
Feitas essas breves considerações, passemos ao resultado da investigação.

Mulheres em luta: a concepção da “questão da mulher” em meio ao autoritarismo

De acordo com o relatório Brasil Nunca Mais (1985), 12% das pessoas processadas
em inquéritos policiais militares eram do sexo feminino. Percebe-se, dessa forma, a
pequena participação da mulher brasileira no âmbito político, ou seja, público 11. Contudo,
cabe destacar que a mulher que resolvia entrar para a militância no final da década de 1960
já rompia com duplo paradigma – a saída de casa e a posterior entrada na política.
Em contraponto a tal afirmação, Ridenti (1990) aponta como fator positivo tal
número, que realmente era maior na luta armada:

A média de 18% de mulheres nos grupos armados reflete um progresso na


liberação feminina no final da década de 60, quando muitas mulheres tomavam
parte nas lutas políticas, para questionar a ordem estabelecida em todos os níveis,
ainda que, então, suas reivindicações não tivessem explicitamente um caráter
‘feminista’ propriamente dito, que ganharia corpo só nos anos 70 e 80, em outra
conjuntura. Não obstante, a participação feminina nas esquerdas armadas era um
avanço para a ruptura do estereótipo da mulher restrita ao espaço privado e

7
POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, nº10, 1992, p.200-212
8
O PCdo B – Partido Comunista do Brasil - foi criado em 1962, a partir de uma dissidência do PCB – Partido Comunista
Brasileiro. Aderiu a luta armada como forma de combate à Ditadura.
9
Aliança Libertadora Nacional – dissidência armada do PCB. Criada em 1967, e o principal dirigente foi Carlos
Marighella.
10
Ação Popular – criada em 1962, a partir da Juventude Católica. Não aderiu a luta armada e trabalhava para a
conscientização das massas.
11
Fato a ser destacado, nesse ponto, é que um dos lemas do movimento feminista a nível mundial, nesse período, era de
que o “privado é político”, ou seja, as questões decorrentes da vida privada deveriam ser tratadas no âmbito público,
como tentativa de mudanças que garantissem o acesso às mulheres aos espaços antes destinados somente aos homens.
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doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e dona-de-casa, que vive na função do


mundo masculino.

Acredita-se que, mesmo tal número sendo pequeno, representa a participação


feminina no espaço antes destinado somente ao masculino. Wolff (2010) explica tal
participação como decorrência do acesso à universidade, o que, em décadas anteriores, era
impensável:

É dessa forma que se pode explicar a presença das mulheres nestas ‘trincheiras‘,
pois ao contrário de outras gerações de estudantes universitários, naquela
geração do final dos anos 1960, a proporção de mulheres universitárias era muito
maior do que nas décadas anteriores.

******

O feminismo, enquanto movimento organizado, especialmente em âmbito


internacional, passou a ter visibilidade a partir do final da década de 1960, quando
inúmeros grupos passaram a discutir o papel da mulher na sociedade. O lema do
movimento, “o privado é político”, passou a ser objeto de discussão em diferentes esferas,
colocando que o que ocorria nas relações interpessoais, especialmente no tocante as
mulheres, também deveria ser pauta de ações específicas. Contudo, no Brasil, de acordo
com Costa (2010), enquanto movimento organizado, o feminismo foi surgir só no final da
década de 1970, já no contexto de abertura política e com a principal bandeira de luta a
anistia “ampla, geral e irrestrita” e a redemocratização. Só mais tarde é que as demandas
específicas foram sendo colocadas no primeiro plano.
No Brasil vivíamos um contexto autoritário, que reprimia qualquer manifestação
contrária àquela ordem vigente imposta. Mesmo assim, as ideias e discussões elencadas
pelo movimento, repercutindo a nível mundial, tiveram reflexos entre algumas militantes
dos já mencionados movimentos de resistência. Para Amelinha, por exemplo, o ocorrido
em 1968:

Para mim foi... eu em plena clandestinidade descobrir que eu tenho direito a ter
desejo, a ser um ser desejante, a ser... eu tenho direito a exercer com liberdade a
minha sexualidade. Eu aprendi tudo isso em 68. Porque isso eu não aprendi
antes... falava ali e tal... mas ali em 68... E isto é político. Porque ficava muito no
campo individual... problema é seu. [...] foi uma revolução dentro da revolução
né. Mas quando as mulheres entraram foi uma... revolução. 12

12
Entrevista concedida a autora. Passo Fundo, 2012. Acervo pessoal.
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A mistura dos sentimentos, ou seja, repercussão do movimento e também a luta


contra o regime está apresentada em um texto sobre a repressão e a resistência no Rio
Grande do Sul (PADRÓS; SIMÕES; 2009):

Ao mesmo tempo em que se discutia a revolução sexual, o uso de


anticoncepcionais, o conflito de gerações, o feminismo – inclusive, em 1967,
houve a passeata da minissaia em Porto Alegre, com a detenção de várias
mulheres – ainda imperavam os bailes de debutantes, o tabu da virgindade, entre
tantos outros. Como canta Nei Lisboa, Foi um rebuliço lá em casa/ manifestos,
passeatas/ Festivais de minissaias/ Meu irmão limpando a arma/ Meu irmão/ E
a revolução?

Nilce também rememora tal momento:

O ano de 68 foi muito significativo para homens e mulheres. Para as mulheres,


especificamente teve um plus de liberdade, de reconhecimento, de camaradagem,
pois homens e mulheres saíram às ruas para lutar contra a ditadura e por
liberdades: individual, de expressão, de pensar, de ser..13

Ressalte-se que, dentro daquele contexto de lutas, era difícil a apreensão das
demandas femininas, representada no ‘rebuliço’ mencionado, tendo em vista o histórico
papel de subordinação da mulher à esfera privada. Por isso, foi dupla a mudança de
paradigma feita pelas militantes, como já mencionado no comentário de Ridenti (1990),
pois elas saíram de casa para ocupar o espaço público e também para a luta contra o
autoritarismo daquele momento. Contudo, a preocupação predominante, especialmente nos
depoimentos investigados, era a luta pelo combate à Ditadura implantada.
Quando indagada acerca da preocupação com os temas feministas, ou seja, o que
ela almejava enquanto mulher, dentro da organização, Amelinha14 afirma que

As minhas reivindicações era a igualdade né. Igualdade ali...no tratamento, na


participação, nas condições. Então se nós estamos num ‘aparelho’, que o
aparelho é aquela casa, que se fica fechada, ali trabalhando, todo mundo tinha
responsabilidades com a limpeza, o banheiro, da cozinha, da cama que dormia,
com a sua roupa. E isso era uma eterna discussão. [...] Então era muito difícil.
Nossa, era muito difícil. Era uma discussão permanente. Aquilo para mim era
muito importante, para eles não era importante, porque se eles não fizessem
nada, alguém ia fazer e esse alguém era eu, né, entendeu? Então... para eles não
era importante e para mim era muito importante né, porque eu achava que a
revolução tinha que ser pessoal também, não era só no macropolítico e isso, olha,
acho que foi um atrito constante, foi constante.

13
Depoimento concedido à autora. Porto Alegre, 2012. Acervo pessoal.
14
Depoimento concedido à autora. Passo Fundo, 2012. Acervo pessoal.
Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC

Contudo, Suzana menciona que:

A gente não viveu... eu por exemplo, na época não tive acesso a informação de
luta feminina, de luta das feministas, eu não tive acesso a nada disso. Era uma
coisa muito intuitiva ali da, para a participação da gente. Eu não lia nada, eu lá
lia Simone de Beavouir?. Eu não tinha noção de absolutamente nada. [...] Nós
éramos três e elas duas eram super amigas e intelectualizadas. Elas me deram
alguns livros para ler. E elas estavam muito acima do meu nível intelectual de
conhecimento. [...] Mas eu comecei a ler algumas coisas que elas me deram.15

Dessa forma, percebe-se a diversidade de opiniões sobre tal momento. Nesse


sentido, importante é a fala de Ferreira (1996): “[...] no caso de testemunhos, mais do que a
busca de uma verdade (mesmo sendo esta sempre problemática, por ser relativa), deve-se
buscar um sentido para a pluralidade de verdades que brotam dos relatos.”. Cada militante,
portanto, percebeu o momento de determinada forma, não havendo um pensamento único.
Já no tocante as discussões sobre as questões específicas, enquanto que para uma
das militantes não existe lembrança de tais momentos, para outra, havia a busca constante
de informações acerca de tais temáticas. Enquanto que para Suzana:

Eu não participei de discussão especificamente disso. Uma das pessoas que dava
orientação ali para a base de secundaristas do Julinho era a Beth Lobo [...] Eram
discussões muito fechadas, não era uma coisa corriqueira. E ela que abriu um
pouco. Pelo menos para mim. A lembrança que eu tenho é isso. O que ela
falava... se ela nos dava literatura, se ela falava de coisas sobre o feminismo... eu
não sei.16.

Para Amelinha: “Era assim... estudava o marxismo e eu pegava os livros que tratava
dos assuntos que interessavam, Ines Arman, a Clara Zetkin, a Alexandra Kolontai, que
eram livros que eram marxistas mas que tratavam da questão das mulheres.” 17
Tais divergências no tocante à percepção podem ser derivadas também das
preocupações individuais de cada militante, pois enquanto Amelinha 18 menciona a
“revolução pessoal”, para outros a revolução política era prioridade, sendo que depois os
outros problemas seriam automaticamente resolvidos. Os estudos coexistiam com as ações,
mas não priorizavam lutas específicas. Segundo o pensamento de Colling (1997), a luta
pelas demandas específicas poderia dividir a esquerda.
Contudo, a ausência de discriminação, ou pelo menos, a sua não percepção, como
mencionada por Suzana,

15
Depoimento concedido à autora. Porto Alegre, 2012. Acervo pessoal.
16
Idem.
17
Depoimento concedido a autora. Passo Fundo, 2012. Acervo pessoal.
18
Deve-se ressaltar que a militância atual de Amelinha pode refletir muito na construção da memória sobre o passado.
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Olha, a única vez que eu me senti discriminada assim como mulher, foi numa
época, ainda, acho que, não sei se 68 ainda que eles iam... o Ico pretendia ir pro
campo. [...] Mas ele ia embora. E só os homens que iam... a gente não ia. Foi a
única vez que eu me lembro que eu me senti mal. “Como assim, só vão os
homens?” Mas eles iam para a luta no campo. [...] Ali na ALN, não senti
diferença, não senti nenhum tipo de pressão, nem de... de preconceito. Tinha
muitas mulheres, eu acho que tinha muitas mulheres, eu convivi com muitas
mulheres ali. E não tinha, não senti discriminação, nenhuma assim.19

pode decorrer da postura adotada por cada organização. Enquanto que no documento
fundante da ALN “O papel da ação revolucionária na organização” está mencionada a
participação de militantes de ambos os sexos: “[...] um movimento integrado por jovens
dos dois sexos. Entre os componentes, além da mulher brasileira, que até então não
participava na ação revolucionária, mas que agora se incorporou nela [...]”, na maioria dos
documentos das outras organizações20 em nenhum momento há a referência à mulher, ou
às militantes, muito menos das suas demandas específicas.
Deve-se tomar cuidado, porém, com o que estava previsto nos documentos com a
efetiva prática das organizações, evitando-se generalizações. Amelinha menciona: “quando
eu fazia a discussão todo mundo concordava comigo, você entendeu, mas na hora da
21
prática voltava todo aquele comportamento.” . Ou seja, mesmo que pertencentes à
organizações diferentes, pode-se mencionar que, em muitas das vezes, o comportamento
não estava de acordo com o que previam os manifestos, pelo menos no tocante a tais
temáticas.
Andújar (2010), de forma sintética, exemplifica aquele momento, bem como as
mulheres que dele fizeram parte:

Guerrilheiras, feministas ou roqueiras; microscópicas mini-saias ou largas


túnicas multicoloridas, armas na bolsa ou microfone nas mãos, pílulas
anticoncepcionais escondidas em lugares recônditos da gaveta mais segura da
casa, davam conta de mulheres com horizontes diversos e experiências que, não
sem contradições, iam constituindo outras formas de ser e relacionar-se.

19
Depoimento concedido a autora. Porto Alegre, 2012. Acervo pessoal.
20
Ressalte-se que não foram todos os documentos analisados, apenas os mais relevantes e que estão contidos na obra de
Aarão: Imagens da Revolução. Contudo, existem pequenos comentários sobre demandas femininas no documento
Projeto de Programa do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, de 1969. Pelo fato de não terem sido obtidos
depoimentos de militantes de tal organização não se pode fazer comentários mais amplos.
21
Depoimento concedido a autora. Passo Fundo, 2012. Acervo pessoal.
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Conclusão

Após essa breve exposição, fica claro que, no contexto brasileiro, a abertura para as
discussões em voga com o movimento feminista não encontrou um lugar propício. Como
apresenta Colling (1997):

Se na Europa e nos Estados Unidos o movimento feminista aparece


destacadamente no início da década de 60, no Brasil isto ocorrerá somente no
final dos anos 70. Esta defasagem temporal tem como causa os dois discursos
dominantes na época: o do regime militar e o da oposição a ele. Ambos
impediam a manifestação das diferenças e da pluralidade dos sujeitos.

Contudo, percebeu-se que nos locais e também entre aqueles indivíduos que
desejavam, especialmente algumas mulheres, o debate existiu, embora de forma muito
restrita e condicionado à situação na qual estavam inseridas as militantes. Deve-se ressaltar
que tal preocupação advinha muito mais da experiência da militante do que das condições
postas. Woolf (2010) expressa de forma clara o que representou aquele momento para
muitas das mulheres brasileiras:

O fato é que mesmo com as ditaduras e com a filosofia da esquerda daquela


época, colocando a luta de classes a frente e acima de qualquer outra luta ou
transformação social, a revolução das mulheres já estava se fazendo, pela própria
incorporação destas aos movimentos e organizações que lutavam contra as
ditaduras.

O movimento feminista de forma organizada, como mencionado, foi surgir somente


no final da década de 1970, mas possuiu características peculiares: lutando inicialmente
pela anistia ampla geral e irrestrita aos perseguidos políticos, aos poucos foi se apropriando
dos debates que norteiam a ‘questão da mulher’. Como nos diz Sarti (2004):

[...]embora influenciado pelas experiências européias e norte-americana, o início


do feminismo brasileiro dos anos 1970 foi significativamente marcado pela
contestação à ordem política instituída no país, desde o golpe militar de 1964.
Uma parte expressiva dos grupos feministas estava articulada a organizações de
influência marxista, clandestinas à época, e fortemente comprometida com a
oposição à ditadura militar, o que imprimiu ao movimento características
próprias.

Dessa forma, pretende-se contribuir minimamente para o debate sobre a


participação das mulheres em período tão triste da nossa história. Para encerrar, coloca-se a
fala de Amélia Teles (2010) quando esta sai da prisão, em 1974, a qual deve ser vista como
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objetivo de todos aqueles que militam em prol de um mundo mais justo, especialmente no
tocante às questões das mulheres:

A militância política eu nunca larguei. Agora mais do que nunca a situação se


impunha: denunciar os desaparecimentos de opositores políticos que passaram a
ser constantes em 1974, lutar por melhores condições carcerárias para os presos,
defender a anistia, ampla, geral e irrestrita. E mais: tínhamos que lutar pela ideias
feministas. Passamos a entender que não haveria mudanças sociais; econômicas
e políticas sem a participação e libertação das mulheres. A nossa revolução é
mais longa, por isso temos que fazê-la no cotidiano e já.

Referências

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Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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TELES, Maria Amélia de Almeida. Lembranças de um tempo sem sol. In: Pedro, Joana
Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul.
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