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REVISTA DE FFLCH-USP

HISTÓRIA 1998

JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A Historiografia Como Ciência da Política. Rio


de Janeiro, Access Editora, 1997, 341 pp.

Não são raros os pensadores que nos advertem que auto-explicativa. Permaneceu, assim, como o ovo de
“é mais difícil formular um problema do que resolvê- Colombo, a espera de alguém que soubesse colocá-la
lo”, como é o caso, para dar um exemplo, do reacio- de pé e demonstrasse, como fez Jasmin, que, explo-
nário Joseph de Maistre em suas Considérations sur rando-a, um outro território ainda pouco conhecido do
la France (1796). Pois bem, a primeira coisa que cabe continente Tocqueville poderia ser descoberto.
dizer do livro de Marcelo Jasmin é que ele soube for- Para construir o que chama de “percurso interno
mular, inteligentemente, e resolver, com êxito, um do problema da história na obra tocquevilleana” (per-
problema sobre Tocqueville ainda não explorado a curso trabalhoso – registre-se en passant – pois
fundo pelos seus numerosos e qualificados estudio- Tocqueville foi um grande escritor, seja pela qualida-
sos: qual a concepção de História que o pensador fran- de, seja pela quantidade de seus textos: suas Oeuvres
cês fabricou em suas obras (assim mesmo, “fabricou”, Complètes, organizadas em mais de 15 tomos, atin-
pois, como lembrou alguém, os clássicos, e só os clás- gem três dezenas de volumes), Jasmin parte de duas
sicos, são fabricadores de idéias) e como ela se articu- frases, bastante conhecidas, de A Democracia na
la e enforma sua teoria da política? América: “Como o passado não esclarece o futuro, o
A hipótese básica, afirma Marcelo Jasmin, na espírito marcha nas trevas” e “Precisamos de uma
apresentação, “supõe que a história constitui um dos nova ciência política para um mundo inteiramente
centros sensíveis da reflexão política de Tocqueville novo”. Colocadas assim, isto é, em uma seqüência in-
e que as dimensões éticas e epistemológicas do pro- versa à apresentada por Tocqueville (em A Democra-
blema historiográfico tal como elaborado pelo autor cia na América a primeira se encontra na Conclusão
são solidárias à sua reflexão sobre o futuro da demo- e a segunda na Introdução), a relação entre as duas
cracia”. O belo livro de Marcelo Jasmin nos demons- frases torna-se mais evidente uma vez que mesmo
tra que o sentido da obra tocquevilleana repousa na uma leitura atenta do livro não nos revela por si só os
identidade entre história e política, e depois de sua pressupostos e a articulação que existe entre ambas.
leitura, somos levados a nos perguntar porque este Elas exigem uma hipótese prévia, uma chave interpre-
aspecto importante e crucial da obra de Tocqueville tativa, como demonstra o livro de Jasmin, cuja eco-
permaneceu até agora sem ser explorado. A única res- nomia pode ser resumida como segue.
posta que nos ocorre é que esta identidade, embora Os dois primeiros capítulos, de caráter introdutó-
percebida e mencionada por todos, talvez por ser mui- rio e sintético, oferecem uma interpretação das “for-
to evidente, ou óbvia demais, foi considerada como mas da História” dominantes no Ocidente e um es-
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boço biográfico de Tocqueville. Os oito restantes, porque aí é contrabalançado pela religião, pelo judi-
todos de caráter analítico, apresentam: um tratamen- ciário e sobretudo pelo espírito e pelas práticas asso-
to minucioso e sistemático, do “sistema conceitual de ciativas de auto-governo), seja o despotismo de um
Tocqueville” e do problema do despotismo e da his- novo tipo de poder e de agente (como na França, onde
tória tal como se encontram em A Democracia na a Revolução de 1789 deu origem não só a um novo
América (capítulos 3 a 5); uma demonstração, inédi- tipo de Estado, muito mais poderoso e centralizado,
ta na literatura sobre Tocqueville, de que em duas como a um novo tipo social, o revolucionário); e, no
obras menores deste, não publicadas em forma de li- plano social, o individualismo e o conformismo.
vro (“As Reflexões Sobre a História da Inglaterra”, Em suma, Tocqueville descobre que o estado so-
de 1828 e “Memorial sobre o Pauperismo”, de 1835) cial democrático apresenta, entre outras característi-
encontram-se os exercícios preparatórios, as antecipa- cas intrínsecas, um dilema e um paradoxo, e, tanto
ções de A Democracia na América que é de 1835- um quanto o outro são brilhantemente captados e ana-
1840 (capítulos 6 e 7); uma interpretação sobre a lisados por Jasmin. O dilema é assim formulado: “a
maneira como Tocqueville usa a idéia de Providên- liberdade política na sociedade igualitária e de mas-
cia e opera com a história e a política também nas suas sas parece-lhe (a Tocqueville) depender de uma práxis
duas outras obras-primas, escritas na década de 1850, e de um conjunto de valores cujos pressupostos ten-
As Lembranças de 1848 e O Antigo Regime e a Revo- dem a ser destruídos pelo desenvolvimento continua-
lução (capítulos 8 a 10). do das disposições internas à própria democracia. O
Em sua viagem à América do Norte, em 1830, diagnóstico tocquevilleano a respeito das sociedades
Tocqueville viu plenamente confirmado aquilo que modernas afirma que o individualismo inerente ao es-
ele e alguns outros antes dele e junto com ele (como tado social democrático e o conseqüente confinamento
Chateaubriand e Guizot, para nos limitar à França, e dos homens nas esferas da privacidade são produtores
a dois nomes que muito influenciaram o pensamento de uma crescente indiferença cívica que constitui o cal-
de Tocqueville), se já não sabiam, suspeitavam: que do de cultura da emergência de um novo tipo de
o mundo ocidental caminhava em marcha acelerada despotismo”(p.31-32).
e irresistível para a democracia, isto é, para um esta- O paradoxo, tomo a liberdade de assim definir:
do social, de igualdade de condições jurídico-políti- o estado social democrático, inédito e “inteiramente
cas. Esse estado social democrático ou igualitário era novo”, é criado pelo passado (pela história como pro-
o oposto do estado social aristocrático do qual se ori- cesso real, como res gestae), mas esse mesmo passa-
ginava (à exceção dos Estados Unidos que já nasce- do (só que agora enquanto História, enquanto repre-
ram democráticos) e, como tal, inédito, sem preceden- sentação do real, como rerum gestarum), não pode
tes na história, pelo menos na do Ocidente onde as mais, como fizera anteriormente, iluminar o futuro.
sociedades sempre haviam sido hierárquicas e aristo- Daí a necessidade, para o espírito não marchar nas
cráticas. Em suas viagens aos Estados Unidos e à trevas, de uma nova ciência política. Para melhor
Inglaterra, Tocqueville constatara, aterrorizado, o apa- expor e situar a proposta tocquevilleana de uma nova
recimento desses novos e inéditos fenômenos, por ciência política, Jasmin, elabora uma síntese sobre as
exemplo, no plano econômico, o novo pauperismo in- concepções de História dominantes no Ocidente, da
dustrial; no plano político, o despotismo, seja o des- Antigüidade grega clássica ao Iluminismo e à época
potismo da maioria (como nos Estados Unidos, onde de Tocqueville. Utilizando-se da mais rica e atualiza-
coexiste com a liberdade política e só não a anula da literatura sobre a historiografia Antiga e Moderna
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(onde se destacam historiadores como Arnaldo cia e ao determinismo. Afirma Jasmin: “De constru-
Momigliano, Reinhart Koselleck, José Antônio tores da história, os revolucionários pareciam agora
Maravall e J.G.A. Pocock, para citar nomes impor- impulsionados por sua irresistibilidade, inaugurando-
tantes mas ainda, infelizmente, quase desconhecidos se o que Hannah Arendt denominou ‘o espetáculo da
entre nós), Jasmin oferece-nos um pequeno tratado, impotência do homem a respeito de sua própria ação’.
invejável pelo rigor, concisão e profundidade, sobre Termos como ‘torrente’, ‘marcha’, ‘corrente’ e ‘flu-
a concepção de História que predominou no Ociden- xo’, antes utilizados na referência à natureza, foram
te, qual seja, a Historia Magistra Vitae, segundo a incorporados ao vocabulário político, de onde migra-
célebre formulação ciceroniana. Nesta concepção, o ram para o conhecimento historiográfico em geral. O
passado é visto essencialmente como uma pedagogia, processo histórico parecia descolado dos seus atores.
como uma instância moral, um repositório inesgotá- As filosofias da história do século XIX consolidaram
vel de exemplos, a serem seguidos e/ou evitados, a inversão do voluntarismo iluminista: a história dei-
portanto, um norte para o futuro e um guia para a ação xava de ser vista como o resultado da vontade e da
no presente. ação humanas para ser representada enquanto proces-
Mas, e sempre de acordo com Jasmin, no século so autônomo, independente dos homens e cuja força
XVIII, a consciência histórica européia passa por não se podia contrariar”(p.11).
transformações internas que levam à “descoberta da A ciência política de Tocqueville, que se revela
unidade dos processos históricos subjacente à noção na sua filosofia da história (bem como a de Marx e
iluminista do progresso” e põem em cheque o esta- de Comte, para citar os dois outros grandes teóricos
tuto da História Mestra da Vida com sua crença na sociais, contemporâneos do primeiro e mencionados
natureza exemplar dos eventos. “Reagindo à concep- por Jasmin), tem como ambição encontrar uma res-
ção setecentista do caos ontológico da história, a fi- posta, uma solução, teórica e prática para a “perda da
losofia das Luzes destituiu os eventos de sua digni- conexão entre espaço de experiências e horizonte de
dade própria e exigiu sua inserção num contexto tem- expectativas”, para o descolamento que se estabele-
poral mais amplo que os tornava inteligíveis enquan- ce na consciência ocidental moderna (pós-Revolução
to elos de uma cadeia diacrônica abrangente porta- Francesa e Revolução Industrial) entre processo e
dora de direção e de significado. As diversas históri- atores. Ou ainda, para usar as outras formulações de
as até então reunidas pelo orador tradicional em fun- Jasmin, “para resolver a tensão entre determinação e
ção de sua exemplaridade cederam seu lugar ao dis- vontade”, “entre processo e ator”. Assim, também as
curso historiográfico sobre uma unidade ontológica formas modernas de História utilizam-se do passado
que articulava o conjunto dos fatos da aventura hu- para “encontrar algum grau de controle sobre as con-
mana no tempo”. E Jasmin conclui citando uma for- seqüências possíveis ou prováveis das ações políticas”.
mulação do historiador Droysen: “para além das his- Como disse, de maneira lapidar, Joseph de Maistre
tórias, existe a História”(p.9). Mas, se o Iluminismo, (de quem Tocqueville foi leitor atento e cuja filosofia
abre a possibilidade para a “vontade esclarecida da da história apesar de teocrática e reacionária é moder-
razão” mudar o presente, romper com o passado e na), no mesmo livro citado no início desta resenha: “...
construir um futuro inédito, a Revolução Francesa, e se o raciocínio penetra em nossos espíritos, acredi-
por sua vez, ao mesmo tempo que leva às últimas temos pelo menos na história, que é a política experi-
conseqüências o voluntarismo, a vontade de dirigir e mental”. Em suma, também Tocqueville nunca deixa-
acelerar a história, leva, paradoxalmente, à impotên- rá de ver a história como política experimental e de
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lhe atribuir uma “função ético-política”. Função “éti- cientista político, seu aristocratismo (também conser-
co-política”, e não função “cientifica”, da história, pois, vador além de liberal) não lhe permitiu essa abertura
como muito bem nota Jasmin, Tocqueville recusa e e uma ciência da política sem espírito democrático
combate as filosofias da história da sua época que se não poderia funcionar num mundo democrático. Pois,
pretendem científicas (ou teocráticas, como a de de não se deve esquecer, o liberalismo tocquevilleano
Maistre), pois todas elas com seu caráter determinista, nunca foi nem burguês, como o de Constant ou
fatalista ou providencialista, anulam o espaço da liber- Guizot, nem radical ou progressivo, como o de seu
dade humana e levam os indivíduos (e a ação indivi- admirador e correspondente John Stuart Mill.
dual) à impotência e/ou à irresponsabilidade. Assim, se a recusa de Tocqueville em abandonar
“Operando simultaneamente como ‘ciência’ e a concepção tradicional de História não o impediu,
como ‘política’, afirma Jasmin, o novo saber de mas, ao contrário e paradoxalmente, o ajudou a fazer
Tocqueville quer não apenas determinar o quadro no uma nova História, sua recusa em abraçar um dos
qual se encontram inexoravelmente os homens no novos sistemas filosóficos em circulação, únicos ade-
mundo moderno como também convênce-los da ne- quados para operar em um mundo totalmente novo,
cessidade, e da possibilidade, de reagir a ele”(p.86). fez com que sua “nova ciência política”, não passas-
Dir-se-ia que Tocqueville, ao não renunciar à “preten- se, em termos práticos, de um whishful thinking. Não
são da empresa ciceroniana (que) era fundamental- por outra razão, Tocqueville, ao contrário de Comte
mente ética” e ao combater a “pretensão das filosofi- e Marx, por exemplo, que também pretenderam criar
as modernas (que) é fundamentalmente científica”, uma nova ciência baseada na história, não formou
combinou estranha e excepcionalmente, dois mode- discípulos, não deixou seguidores, partidários ou
los ou formas de História. Mas, como se depreende adeptos. Como poderia, Tocqueville, pretender inter-
da própria leitura do livro de Jasmin, se Tocqueville ferir em comportamentos individuais e coletivos e,
foi muito bem sucedido na tarefa de “determinar o eventualmente dirigi-los, se só tinha a oferecer dúvi-
quadro no qual se encontram inexoravelmente os das, dilemas, ao invés de certezas e convicções. Nesse
homens no mundo moderno”, fracassou completa- sentido, ele nos faz lembrar Erasmo diante da Refor-
mente na tarefa de “convencê-los da necessidade, e ma. Erasmo, diferentemente de Lutero, nada tinha para
da possibilidade, de reagir a ele”. oferecer às massas, pois o seu (de Erasmo) era um cris-
Em outras palavras (e avançando um pouco mais tianismo muito elevado e espiritual, um cristianismo
nessas reflexões que nos foram suscitadas pela leitu- somente ao alcance de uns poucos e nobres espíritos.
ra do livro de Jasmin), se Tocqueville soube criar, Na mesma época em que Tocqueville está propon-
como poucos – e sem abandonar a antiga concepção do “uma nova ciência da política”, também Comte e
de História como Mestra da Vida – uma nova Histó- Marx, estão elaborando suas grandes teorias sociais:
ria que continua a nos espantar pela sua originalida- o primeiro, uma ciência da sociedade (a física social
de, profundidade e atualidade, não soube, criar uma ou sociologia, como a chamou) e o segundo, uma
nova ciência da política. Dir-se-ia que a razão do que ciência da história (o materialismo histórico); ora,
é ao mesmo tempo o seu sucesso e o seu fracasso, está assim como o materialismo histórico é, ao mesmo
no fato de que o aristocrata Tocqueville, soube e pôde, tempo, uma ciência da sociedade, o positivismo
como historiador, se abrir para a democracia, isto é, comteano é uma ciência da história (pois, nas pala-
combinou e potencializou o que a historiografia aris- vras do próprio Comte, “o verdadeiro espírito geral
tocrática e democrática tinham de melhor; mas como da sociologia dinâmica consiste em conceber cada um
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destes estados sociais consecutivos como o resulta- resultaria que todo homem que apresenta um siste-
do necessário do precedente e o motor indispensável ma completo e absoluto, pelo simples fato de seu sis-
do seguinte, segundo o luminoso axioma do grande tema ser completo e absoluto, está num estado quase
Leibniz: o presente está grávido de futuro.”). certo de erro ou mentira, e todo homem que queira
Como se vê, Comte e Marx, ao contrário de impor à força um tal sistema a seus semelhantes, deve
Tocqueville, estavam convencidos de que, com seus ser considerado, ipso facto e sem exame prévio de
sistemas, tinham encontrado a chave para iluminar o suas idéias, como um tirano e um inimigo do gênero
presente e esclarecer o futuro. E mais, enquanto os dois humano”. E “Odeio, de minha parte, estes sistemas
primeiros rompem com a tradição que vem desde os absolutos, que fazem depender todos os acontecimen-
gregos, ao subsumir e subordinar a esfera do político tos da história de grandes causas primeiras, ligando-
à esfera do social (invertendo assim a concepção clás- as umas às outras por uma cadeia fatal, e que supri-
sica que dava primazia à política e a esta subordina- mem, por assim dizer, os homens da história do gê-
va todas as demais esferas da vida), o terceiro, man- nero humano. Eu os acho limitados em sua pretensa
tém-se fiel à tradição, isto é, continua a ver e a dar à grandeza, e falsos sob seu ar de verdade matemá-
esfera da política a autonomia e a primazia de sem- tica...”(pp.214 e 234).
pre. Daí decorre que a concepção de Tocqueville da Em outras palavras, se, por um lado, Tocqueville,
história e da política (ou seja, da liberdade, da ação rende-se à inevitabilidade da marcha da história (ao
livre do homem na história), não é, ao contrário da mesmo tempo que elabora uma engenhosa constru-
de Comte e Marx, nem determinista, nem teleológica, ção intelectual, uma “arquitetura das temporali-
ela não se resolve e dissolve em um futuro previsivel- dades”, como a chama Jasmin, para apreendê-la e
mente positivo e comunista; e embora a sua fosse uma explicá-la), por outro, recusa-se a acreditar que seja
perspectiva e uma posição aristocrática, portanto de possível a algum mortal extrair da história o segredo
retaguarda, por ser indeterminada e aberta, parece, nos capaz de dar à humanidade a ciência, e a solução, do
dias de hoje, mais atual que as outras duas. seu futuro. Não é por outra razão que Tocqueville foi
Duas passagens de Tocqueville, citadas por buscar, não na filosofia do seu tempo, nem na filoso-
Jasmin e que não foram publicadas em vida do autor fia do Iluminismo, mas na do Renascimento (e, por-
(pois, a primeira faz parte das notas de A Democra- tanto, também na da Antigüidade Clássica) inspira-
cia na América e a segunda das Lembranças de 1848, ção para a imagem sobre a condição e o destino dos
estas últimas só publicadas em 1893), não poderiam indivíduos com a qual finaliza sua A Democracia na
ser mais eloqüentes para mostrar a visão cética e críti- América: “... a Providência não Criou o gênero hu-
ca do pensador francês quanto às possibilidades de mano nem inteiramente independente, nem comple-
se encontrar a ciência, a verdade, da política e da so- tamente escravo. É verdade que traça, ao redor de cada
ciedade, ou seja, da história: “Não há homem no mun- homem, um círculo fatal do qual ele não pode sair;
do que tenha encontrado, e é praticamente certo que mas dentro dos seus vastos limites, o homem é pode-
jamais veremos algum que venha encontrar, o ponto roso e livre; assim também os povos. As nações de
central para onde convergem, eu nem digo todos os hoje em dia não poderiam impedir que em seu seio
raios da vontade geral que só se reúnem em Deus, mas as condições fossem iguais; mas depende delas que
nem mesmo todos os raios de uma vontade particu- a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às
lar. Os homens apreendem fragmentos da verdade, luzes ou à barbárie, à prosperidade ou às misérias”.
mas jamais a verdade em si. Sendo isto admitido,
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Essa formulação tocquevilleana nos faz lembrar, Que nos seja permitido, para terminar nossa apre-
irresistivelmente, duas outras imagens, muito seme- ciação do livro de Jasmin, citar mais duas pequenas
lhantes. A de de Maistre, na abertura das Considé- passagens, uma dele próprio, para mostrar o espírito,
rations, “O que há de mais admirável na ordem uni- a justa ambição, que animou o seu trabalho: “O pen-
versal das coisas, é a ação dos seres livres sob a mão samento de Tocqueville interessa aqui na medida em
divina. Livremente escravos, operam todos ao mes- que a abordagem do olhar contemporâneo possa ser
mo tempo voluntariamente e necessariamente: fazem útil ao seu esclarecimento e que sua problematização
realmente o que querem, mas sem poder contrariar teórica das relações entre historiografia e conheci-
os planos gerais. Cada um desses seres ocupa o cen- mento político nos sirvam como exercício para o
tro de uma esfera de atividade cujo diâmetro varia ao autoconhecimento de nossa própria historicida-
sabor do eterno geômetra, que sabe estender, restrin- de”(p.24). A outra, do prefácio de Luiz Werneck Vianna,
gir, deter ou dirigir a vontade, sem alterar sua natu- que assinala, com justiça, que o trabalho de Jasmin so-
reza”. E a de Pico della Mirandola, no Discurso so- bre Tocqueville “nada fica a dever ao que se produz na
bre a dignidade do homem, “Diz o Criador a Adão: literatura internacional sobre este autor clássico, quer
Coloquei-te no meio do mundo, para que mais facil- pela originalidade do seu argumento, ao demonstrar o
mente possas olhar a tua volta e ver tudo o que te papel da História na ação política que se orienta em fa-
cerca. Criei-te como um ser nem celestial nem terre- vor da democracia de homens livres, quer pela riqueza
no, nem mortal nem imortal apenas, para que sejas de suas fontes e elegante clareza na exposição”.
tu a moldar e superar livremente a ti próprio. Podes E lembrar, por último, que quando se afirma que
degenerar-te em animal ou recriar-te à semelhança os clássicos nunca morrem isto implica não só fazer
divina...”. A semelhança da metáfora de Tocqueville o elogio dos clássicos mas também dos comentadores
com a de de Maistre está apenas na letra, ao passo que que lendo-os e relendo-os, sucessivamente no tem-
com a de Pico della Mirandola está tanto na letra po, são capazes de reinterpretá-los e reatualizá-los.
quanto no espírito. Tocqueville, como Pico della Em outras palavras, que, se é preciso saber interpre-
Mirandola, acredita que Deus dotou o homem de li- tar os clássicos, a arte de fazê-lo não é nada fácil,
vre-arbítrio, do poder de escolher entre ser livre e ser porque, sobre eles, tudo parece já ter sido dito e per-
escravo, de Maistre acredita no contrário, isto é, que guntado. Pois bem, Marcelo Jasmin, soube, com
Deus ao fazer dos indivíduos seres “livremente escra- muito brilho, oferecer uma importante e original rein-
vos” não deu a estes alternativa ou poder de escolha terpretação e reatualização deste grande clássico que
quanto à sua condição e destino. é Tocqueville.

Modesto Florenzano
Depto. de História-FFLCH/USP

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