Você está na página 1de 3

SEMINÁRIO ARQUIDIOCESANO ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA

Resenha: Rerum Novarum


Nome: Gil Pierre de Toledo Herck

A encíclica Rerum Novarum, publicada pelo Papa Leão XIII em 1891, entrou
para a história como um dos mais famosos documentos pontifícios da história (ainda hoje,
por exemplo, ela costuma ser citada nas apostilas escolares de História) – e esta
proeminência se deve, em grande parte, ao grave problema a que ela, desde suas
primeiras linhas, explicitamente buscou propor “os princípios duma solução, conforme à
justiça e à equidade” (n. 1): i.e., a chamada Questão Social. Em suma, havia nos países
recém-industrializados da Europa enormes massas de trabalhadores urbanos submetidos
a condições de vida desumanas: “salários de fome”, carga horária excessiva, falta ou
ausência completa de dias de repouso e garantias trabalhistas (indenização por acidentes
de trabalho, licença remunerada para gestantes, etc.)... Este quadro de calamidade social,
causado pelas rápidas mudanças da chamada Revolução Industrial, com a extinção das
antigas corporações de ofício, a perda do sentido religioso nas instituições públicas, e a
excessiva concentração de riqueza (n. 2), dera ensejo a ideologias revolucionárias
socialistas, que, amparadas num espírito de ódio invejoso contra os ricos, pregavam a
expropriação e a coletivização de todos os bens (n. 3).
O primeiro grande mote da encíclica é, então, precisamente a refutação da
proposta socialista: a propriedade particular, argumenta o Papa, não pode ser abolida, em
primeiro lugar porque ela é decorrência lógica de que “o trabalhador tem direito a seu
salário” (cf. Lc 10, 7). O “direito de propriedade mobiliária e imobiliária” nada mais é,
afinal, que “o salário transformado”, cuja “livre disposição” é o fim imediato pelo qual o
trabalhador “põe à disposição de outrem as suas forças e a sua indústria”. De modo que
“esta conversão da propriedade particular em propriedade coletiva” roubaria aos
operários até mesmo a “possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem
a sua situação” (n. 4). Em segundo lugar, a propriedade privada é direito natural do
homem – o qual, ao contrário dos animais “dirigidos e governados pela natureza”, que só
são capazes do “uso das coisas presentes e postas ao seu alcance”, “abrange pela sua
inteligência uma infinidade de objetos, e às coisas presentes acrescenta e prende as coisas
futuras”. O homem, de fato, com suas faculdades intelectivo-volitivas “é senhor das suas
ações”, e podemos dizer que, dentro do quadro da lei eterna e da Providência, ele “de
algum modo, é para si a sua lei e a sua providência”, e por isso “tem o direito de escolher
as coisas que julgar mais aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro” (ns.
5-6). O direito natural do indivíduo à propriedade é defendido, em terceiro lugar, por seu
esposamento pelo consensus gentium diuturno (no dizer de Cícero, id quod voluntate
omnium sine lege vetustas comprobarit1) e pelas leis divinas e humanas2.

1 De Inventione, II, 67.


2 Defesa sumamente didática do direito natural à propriedade é a feita por JAVIER HERVADA: “O seu, a atribuição das
coisas – o direito – não deriva da escassez dos bens, e sim de outra coisa diferente: o homem transita nas dimensões
de quantidade e espaço, e o mesmo ocorre com as coisas das quais se serve. Em outros termos, o homem é finito e a
sociedade humana implica uma divisão de funções e tarefas (nem todos podem ser ao mesmo tempo Chefe de Estado,
governador, coronel, juiz, padeiro, encanador etc.). A vida humana exige que as coisas – bens, funções, obrigações
Este mesmo direito natural à propriedade é na sequência defendido da
perspectiva da família, enquanto sociedade “real e anterior a toda a sociedade civil”.
Como, pois, é da natureza humana que os pais alimentem e sustentem seus filhos, e que
provejam a seu futuro construindo-lhes uma herança, os socialistas, “substituindo a
providência paterna pela providência do Estado, vão contra a justiça natural e quebram
os laços da família”. Incidentalmente, Leão XIII dá aqui alguns exemplos pontuais de
intervenções legítimas do Estado no âmbito familiar, delineando o que hoje chamamos,
na DSI, de princípio da subsidiariedade (ns. 8-9).
A crítica da proposta socialista se conclui, então, com o prognóstico de
“funestas consequências”, fosse ela abraçada: perturbação social e discórdias, com a
“porta aberta a todas as invejas”, “o talento e a habilidade privados dos seus estímulos”,
e “enfim em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na
miséria” (n. 10) – palavras que não são desprovidas de certo profetismo, sobretudo se
pensarmos nos totalitarismos socialistas do século XX: na Rússia de Stalin, na China de
Mao, no Quemer Vermelho de Pol Pot...
O segundo grande movimento da Rerum Novarum dedica-se a esboçar as
grandes linhas de uma resposta católica à Questão Social – no pressuposto de que a Igreja,
haurindo do Evangelho a única doutrina capaz de realmente resolver eficazmente o
problema, tem legítima competência para endereçá-lo.
Nesse sentido, o enfoque da relação entre operários e patrões à luz da
Revelação nos leva a dizer que a própria natureza causa entre os indivíduos profundas
diferenças, “de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; (...) de onde
nasce espontaneamente a desigualdade das condições” – a qual, no entanto, é boa e
aproveita ao conjunto, “porque a vida social requer um organismo muito variado e
funções muito diversas”. As assim formadas classes sociais devem, portanto, coordenar-se
harmoniosamente como os diversos membros de um corpo. Resta verdade, no entanto,
que alguma dose de sofrimento ou exaustão acompanhará sempre o labor do homem pós-
lapsário (n. 11).
A relação de trabalho é analisada, em seguida, da perspectiva dos direitos e
deveres de justiça, de parte a parte. Aos operários, então, incumbe respeitar os contratos
livres e equitativos, abster-se de violência e de sedições em suas reivindicações, e evitar a
companhia daqueles que os incitam à discórdia (i.e., os socialistas)3. Aos patrões incumbe
respeitar a dignidade humana de seus obreiros, dar-lhes incumbências compatíveis com

etc. – estejam repartidas e, conseqüentemente, atribuídas a diferentes sujeitos; é de onde nasce o meu, o seu, o dele.
Se as coisas estão repartidas, nem tudo é de todos. E isso é uma necessidade social. Suponhamos que tudo fosse de
todos. Se isso acontecesse, o dinheiro que uma pessoa tem para seus gastos poderia ser arrebatado por outra, pois seria
tanto de uma como de outra. Se o próprio corpo pertencesse a todos, diante de um doente dos dois rins, poder-se-ia
pegar o primeiro homem sadio que se encontrasse e tirar-lhe um rim para transplantá-lo ao doente. Se as moradias não
estivessem distribuídas e repartidas, cada qual poderia invadir a que bem desejasse etc. A vida humana seria um
inferno; o desenvolvimento normal da vida do homem pede que exista certa atribuição das coisas, que nem tudo seja
de todos, pelo menos no sentido de respeitar o pacífico uso das coisas; nem que seja esta mínima atribuição que
pressupõe que se um cidadão se senta em um banco público, outro cidadão não pode tirá-lo de lá para sentar-se. O
homem tem que, pelo menos, poder dizer que, enquanto está sentado em um banco público, o estar sentado é algo seu,
atribuído a ele e, portanto, é direito seu.” (O que é o Direito? A moderna resposta do realismo jurídico, Martins Fontes,
2006, pp. 16-18).
3
Os ulteriores desenvolvimentos da DSI não são tão taxativos quanto a Rerum Novarum quanto à proibição das greves.
sua idade, sexo e compleição física, remunerá-los com salário compatível com sua
subsistência e a de sua família, e atender a seus interesses espirituais e familiares (n. 12).
Para além da mera justiça, no entanto, a Igreja propõe uma doutrina mais
completa, alicerçada numa visão sobrenatural da riqueza e da pobreza: ser rico torna-se,
então, um benefício muito relativo, pois não raro dificulta alcançar a vida eterna (n. 13).
Além disso, os bens particulares supérfluos (i.e., aqueles que excedem o necessário à
própria subsistência e ao decoro social) devem ser destinadas aos pobres – não por dever
de justiça, mas como “dever” de caridade (n. 14). A pobreza, por sua vez, deixa de ser
vista como uma vergonha, pois o próprio Cristo ganhou a vida como trabalhador braçal,
e a verdadeira dignidade do homem vem de sua retidão moral (n. 15) – a qual, por sua
vez, só pode ser alcançada em plenitude com os meios de santificação divinamente
cometidos à Igreja Católica (n. 17), como faz prova sua longa história de obras caritativas
(n. 18).
Neste passo a Encíclica volta seu olhar às incumbências e prerrogativas que
se pode legitimamente atribuir ao Estado, do ponto de vista católico. A ele cabe, portanto,
organizar a sociedade de modo a fomentar a prosperidade, e distribuir a riqueza entre as
classes (política, industrial, operária) com justiça (n. 20). São listados diversos exemplos
de intervenções legítimas: reprimir greves e sedições que ameacem a tranquilidade
pública (n. 22; n. 24); proteger laços familiares e religiosidade dos trabalhadores (n. 22);
prevenir promiscuidade dos sexos e excitações ao vício no ambiente de trabalho (n. 22);
reprimir exploração dos trabalhadores pelos patrões, condições indignas de trabalho (n.
22); assegurar carga horária e repouso diário adequados ao tipo de trabalho (n. 27) e ao
porte físico de cada trabalhador (n. 28); preocupar-se especialmente dos fracos e
indigentes (n. 22); proteger a propriedade particular (n. 23); bem como os bens do espírito
e o descanso dominical (n. 25-26).
Quanto ao salário, não vige aqui uma liberdade absoluta de contratar, pois
o trabalho humano tem uma dupla finalidade: pessoal (que pode ser livremente disposta
pelo trabalhador) e necessária (conservação da própria existência), de modo que um salário
abaixo do mínimo de subsistência será sempre injusto, ainda que consensual. A poupança
deve ser estimulada, de modo a favorecer o empenho no trabalho – e justamente em
respeito à propriedade particular é que os impostos confiscatórios são ilícitos.
Por fim, a Rerum Novarum se debruça sobre a questão das sociedades
intermediárias, aquelas associações que ocorrem no seio da sociedade civil, como
consequência natural da gregariedade humana, e que têm um fim próximo mais restrito
que o bem comum: o bem de seus próprios membros (escola, clube, associação de
moradores, etc.). O Magistério reconhece-lhes o direito natural de existência, que por isso
não pode ser suprimido in totum pelo Estado – embora haja hipóteses de restrições
legítimas (ns. 32-33). Incentiva-se a criação de organizações operárias católicas4, que
primem pelo bem-estar espiritual e pela instrução religiosa, e que sejam favorecidas pelo
Estado.

4
Nesse sentido, foi exemplar o Catholic Worker Movement de Dorothy Day e Peter Maurin (cf. Dom Robert Barron,
Catolicismo).

Você também pode gostar