Você está na página 1de 6

470 IV.

A época tardia § 1 9 - 0 legado do A T 471


2 Rs 19.18; Jr 1.16; 25.6s. e outras) e descreve ironicamente a fabricação
de suas imagens (em acréscimos dos livros proféticos: Is 2.8,18,20; lO.lOs.;
17.8; 31.7; 40.19s.; 41.6s.; 44.9ss.; Jr 10; Hc 2.18s. e outras). “Como pode
§ 19 - O legado do AT uma pessoa fazer para si deuses? De fato, eles não são Deus!” Nesta
descrição uniram-se a fé em Deus e o pensamento racional para, em con­
junto, enfrentar o inimigo comum. A época antiga não teria sido atingida por
1. “O elemento irracional que permitiu a religião de Javé percorrer o esta crítica, pois para ela a imagem não era idêntica com a divindade (v.
caminho que vai de uma religião de um clã nômade para uma religião mun­ supra § 6c, 4). Mais tarde, Deus e mundo são tão distintos, que tudo o que é
dial” (Georg Fohrer) toma-se, não por último, compreensível a partir da mundano não pode mais ser divino. Assim, na polêmica contra os ídolos
exclusividade expressa no primeiro mandamento. Esta exclusividade dis­ anuncia-se a superioridade da fé israelita e judaica num único Deus - que
tingue, por um lado, a fé do AT das religiões vizinhas, e forma, por outro não pode ser adorado em imagem - sobre todo politeísmo (cf. Dn 3; tam­
lado, o critério com o qual Israel escolheu e cunhou o que adotou dentre as bém Rm 1.23).
múltiplas concepções de seu entorno. Por causa disto, o primeiro manda­ Todavia, o AT decerto nunca negou totalmente a existência de deu­
mento mostra-se eficaz também lá onde ele não é mencionado expressa­ ses. Não era assim que, para ele, os deuses fossem “nadas”; eles eram
mente. Ele domina amplas, senão todas as partes do AT, constituindo, assim, “inúteis”. O AT não contesta a existência dos deuses, mas o seu poder e a
algo como um fator de unificação, um centro integrador. O AT procura falar sua eficácia. A pergunta decisiva é: o que podem fazer os deuses estrangei­
de tal forma de Deus - e das pessoas (SI 16.2; 51.6; 73.25 e outras)-que ros?, e não: há deuses?
o primeiro mandamento sempre se mantenha de pé, seja na discussão com Quem moldaria um Deus
as religiões estrangeiras ou na compreensão da natureza e de suas dádivas, ou fundiria uma imagem que para nada serve? (Is 44.10).
ou na orientação dentro da história passada e na atualidade política, ou, em
especial, na expectativa do futuro. O suplicante prostra-se diante dos ídolos fabricados por ele mesmo e
implora: “Livra-me, porque tu és o meu Deus” (Is 44.17). Ainda que grite
O desafio proposto por cada nova situação é aceito pela fé, na medi­
tão alto quanto quiser, “ele não responde e não o livra de sua tribulação”
da em que esta impõe a cada situação a medida da exigência de exclusivi­
(46.7). O critério com o qual o AT testa a divindade dos deuses é, portanto,
dade e a interpreta a partir desta exclusividade. Assim, o primeiro manda­
se eles têm poder de ajudar, de modo que se justifique a confiança humana
mento é um fio condutor, ou um indicador na compreensão da realidade, um
(cf. Hc 2.18; Jr 2.28; 11.12). Mas os deuses nem mesmo são capazes do
critério para elaborar a diversidade das experiências humanas. Na variabi­
que podem as pessoas. Das imagens se diz:
lidade ou contingência da história, há que se preservar a exclusividade da fé.
Portanto, dificilmente pode-se superestimar a abrangência do primei­ Eles têm boca, e não falam;
têm olhos, e não vêem;
ro mandamento, mesmo que suas conseqüências não sejam notórias desde
têm ouvidos, e não ouvem;
o princípio nem dadas de uma vez para sempre, mas se evidenciem de
têm nariz, e não têm olfato.
forma precisa somente aos poucos. Também a fé tem sua história (§ 1). Têm mãos, e não apalpam;
têm pés, e não andam;
2. No decurso desta história, Israel reconheceu de forma cada vez não emitem nenhum som com a garganta
mais nítida a distinção entre seu Deus e os deuses do seu contexto. A (SI 115.5-7; cf. 135.15ss.; Dt 4.28; Dn 5.23).
exigência de exclusividade impediu, num primeiro momento, somente aos
Certamente transparece nesta afirmação novamente o pensamento
fiéis a Javé a adoração de deuses estrangeiros. Com o tempo, todavia, o
esclarecido da época tardia, que não atinge a fé dos “gentios”, justamente
culto a deuses estrangeiros, de modo geral, tomou-se objeto de escárnio e
por estes julgarem suas divindades capazes de fazer o que aqui lhes é nega­
proscrição, também quando praticado pelos outros povos. A ampliação do
do. Mas o critério com que se medem ídolos é sempre o mesmo: eles são
primeiro (e do segundo) mandamento permitiu que outros deuses se tomas­
avaliados pelo que fazem (Is 41.24: “nada é o que fazeis”). Mesmo que
sem nadas”. Já o profeta Oséias volta-se contra imagens de deuses, por
tenham órgãos, não podem usá-los. Alhures, o pensamento hebraico define
terem sido “feitas” por mãos humanas (8.4,6; 13.2). A época tardia carac­
as coisas pelo que realizam; compreende órgão e função, ser e agir como
teriza os “deuses estranhos de pratae ouro” como “obra humana” (Dt 4.28;
472 IV. A época tardia § 1 9 - 0 legado do AT 473

unidade. Aqui, como que contra a sua própria intenção, ele separa esta Dêutero-Isaías considera, em seus anúncios de juízo, a história como crité­
unidade entre órgão e seu funcionamento. Mas a eficácia continua sendo o rio da verdade: quem disse a palavra certa e com ela prenunciou o que
critério. As imagens de Deus não têm nenhum “espírito” (Jr 10.14; 51.17; haveria de acontecer (41,2ss.; 43.9; 48.14)? Como o espírito de Deus trans­
Hc 2.19; SI 135.17), isto é, nem fôlego nem vida, e, por isso, nenhuma capa­ forma os “juizes” em líderes de guerra, assim o persa Ciro se toma apto
cidade para realizar algo. Porque lhes falta a força para a ação, elas são para o domínio mundial, porque Javé o despertou.
“não-Deus”, “sopro”, “ilusão” ou até “nadas” em comparação ao Criador É certo que os antecessores de Dêutero-Isaías não anunciaram Deus
(Dt 32.21; Is 41.29; SI 96.5; 97.7 e outras). como um poder que traz a salvação, e sim que traz a desgraça, mas exatamente
também por isso como poder eficaz. Sua mensagem é: agora chegou o tempo
3. Com a mesma interrogação o AT também se dirige ao Deus único. da intervenção divina (Am 4.2,6; 5.18ss. e passim). Isaías proclama o “ai”
As ações de Javé e dos deuses estrangeiros podem ser comparadas (Êx sobre seus contemporâneos, porque eles “não consideram os feitos de Javé e
15.1 lss.; Dt4.32ss.; 32.37ss. e outras). Oséias transmite, como palavra de nem olham para as obras das suas mãos” (5.12; cf. 5.19).
Deus, a exigência da exclusividade como sendo consolo da presença solíci­ O Saltério tem uma intenção semelhante. O hino enaltece:
ta de Deus:
Bendize, ó minha alma, a Javé,
Não conheces outro Deus além de mim, e não te esqueças de nenhum de seus benefícios (SI 103.2).
e não há auxiliador (salvador) além de mim (13.4).
As lamentações voltam-se a Deus rogando: O que fazes? (SI 13; 22). As
Também na introdução ao Decálogo, “Eu sou Javé, teu Deus”, o acento ações de graças relatam o que Deus tem feito, e os Salmos de confiança, aquilo
repousa, em primeiro lugar, na promessa graciosa de Deus. Somente a partir que ele faz para que se confie nele (SI 23). Quando os inimigos contrapõem ao
dela é que resultam os mandamentos; pois estes emanam da autoridade que a suplicante: “Onde está teu D eus?” (42.4), eles não perguntam pela existência
promessa exige. Assim, o que o primeiro mandamento exige da atuação hum a­ de Deus, mas pela manifestação de seu poder salvador.
na não deve ser mal-entendido no sentido de que o AT, no fundo, é lei (v. supra O sensato “pergunta por Deus” ; apenas “o insensato fala em seu cora­
Excurso 9).
ção: Não há Deus” (SI 14.Is.; cf. Pv 19.3). Quando no AT outrora surgiam
Na passagem acima, Oséias utiliza, como designativo paralelo a dúvidas semelhantes com relação a Deus, elas provinham de um ateísmo antes
“Deus”, o termo auxiliador. Pois, para o AT, ser Deus significa justamente prático do que teórico, referiam-se não à existência, mas à atuação de Deus na
vida humana: “Ele não pede contas” (SI 10.4,11); “Javé não faz nem o bem
isso: poder intervir. Assim, Dêutero-Isaías retoma esta proclamação: “Fora
nem o mal” (Sf 1.12; cf. Ml 2.17; 3.14s.; Jr 5.12; SI 73).
de mim não há salvador!” (Is 43.11; cf. 45.21; 46.4; 64.3; também Êx 15.26:
“Eu sou Javé, teu médico”). A divindade de Deus mostra-se no poder que Finalmente o SI 115.3 (cf. 135.6; Jn 1.14) contrapõe aos povos e seus
deuses a confissão: “Ele faz o que lhe apraz”. Com a finalidade de testemunhar
ele exerce sobre a terra. Isto o profeta não só pressupõe, mas também
a liberdade de Deus, o salmista aponta para a ação divina. (Dessa forma, justi­
procura tomar compreensível aos seus ouvintes, em suas controvérsias fica-se a tradução de Lutero: “Ele pode fazer o que ele quiser” ; cf. Dn 4.29;
(40.12ss.), através de argumentos fáceis de entender:
Rm 4.21.)
Todas as nações são como nada diante dele;
A realidade de Deus se busca e se confessa como sendo atuação
ele as considera um nada, uma nulidade (Is 40.17).
eficaz. O ser de Deus é agir, seu agir é ser. Por isso, o SI 103 pode alternar
Esta confissão não quer negar a existência das nações; isso se evi­ entre os atributos e as obras de Deus:
dencia na metáfora da oração paralela, que quer, através de um forte con­
Javé exerce a justiça
traste, tomar compreensível esta negação: e o direito em favor de todos os oprimidos (v. 6).
Para ele as nações são como a gota num balde, Javé é misericordioso e compassivo;
e valem para ele como um grão de pó na balança (v. 15). longânimo e rico em bondade
(v. 8; cf. Êx 34.6s.; SI 145.8; Jn 4.2 e outras; v. supra § 2,1).
Como a gota não aumenta a água no balde e o grão de pó não faz
oscilar a balança, as nações “contam” como nada diante de Deus; pois elas Nesta confissão, atestada em diversos textos, o AT, para falar de
nada podem. O “nada” nega o “poder fazer”, mas não o “existe”. “O que é Deus, não relata os seus feitos, mas descreve - por influência sapiencial -
verdadeiro? se interpreta como “O que é efetivo?” De modo semelhante, a essência de Deus em termos fundamentais, universal e eternamente váli­
474 IV. A época tardia § 1 9 — 0 legado do AT 475
dos. Mas mesmo então as qualidades de Deus são entendidas como seus A escolha do primeiro rei, Saul, ou da cidade de Jerusalém, é revogada
atos, de modo que o Salmo (103.10) pode prosseguir: mais tarde (1 Sm 15; 2 Rs 23.27). Povos estrangeiros, que Javé, conforme
proclamação profética, primeiro pusera a seu serviço, são mais tarde por ele
Ele não nos trata segundo os nossos pecados,
repudiados (Is 10.5s.; Jr 51.20ss.).
nem nos paga de acordo com nossas iniqüidades.
Além disto, através da mudança dos nomes de Deus no Pentateuco, o
Uma vez que o AT confessa Deus como poder atuante e eficaz, ele
AT também exprime, grosso modo, ainda uma consciência das transforma­
entende Deus a partir de sua relação com as pessoas e o mundo. Pois este
“ser” de Deus pode ser reconhecido e expresso somente em afirmações ções de Deus desde a época dos patriarcas até a ocupação da terra, embora
que incluam, direta ou indiretamente, as pessoas e o mundo. A primeira confesse a identidade do Deus dos patriarcas com o Deus do Sinai (Êx 6.2s. P
frase da história da criação, “No principio Deus criou o céu e a terra” (Gn e outras). Uma ruptura igualmente profunda é introduzida pela profecia, que
1.1), nada sabe sobre um início de Deus, como os mitos teogônicos do en­ chega a anular a relação entre Deus e o povo para esperá-la, de forma nova,
torno de Israel. Pelo contrário, ela inicia imediatamente com um aconteci­ do futuro (cf. o Excurso 5,6 sobre Jr 31.31 ss.). O anúncio do juízo vindouro
pode levar até a contradizer Moisés (compare Os 1.9 com Êx 3.10-14).
mento: “Deus criou o mundo”. Não se faz referência a um “antes”. Certa­
Mesmo com a intercessão de Moisés, Deus não teria mudado de idéia: “Ain­
mente, na doxologia a eternidade de Deus pode ser proclamada diante do
mundo: da que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim [...]” (Jr 15.1).
A percepção histórica de que a compreensão israelita de Deus tem
Antes que os montes nascessem
uma história que vai desde a época do deserto, passando pela vida na terra
e se formassem a terra e o mundo,
de eternidade a eternidade, de cultivo, durante a época dos reis e do exílio, até a comunidade judaica
tu és Deus (SI 90.2). acentua, por conseguinte, em certos sentidos, apenas o que o próprio AT
diz. Este reconhece a identidade de Deus, apesar da diversidade e até hete­
Mas também esta sentença não pretende afirmar propriamente a pre­ rogeneidade das afirmações sobre Deus.
existência de Deus, nem como ele é “em si e para si”. Pelo contrário, a Nem sempre se pensou o mesmo acerca de Deus. Não é de se espe­
palavra entende Deus como o permanente fundamento da confiança, sobre rar algo diferente, uma vez que o AT insiste em relacionar a realidade de
o qual cada um pode construir em todas as épocas e em todas as gerações Deus aos seres humanos. Se, portanto, alguém não se contentar com a
(cf. SI 102.26ss.). De modo semelhante, Dêutero-Isaías (40.12ss.) fala com mera constatação de que as afirmações sobre Deus mudam, deveria admi­
tanta insistência da singularidade de Deus, com a finalidade de ensinar uma tir a conclusão: Deus tem, no AT, uma história, porque ele é compreendido
nova esperança.
em termos “históricos”. Da confissão da realidade de Deus como ação
eficaz resulta a percepção de que a “historicidade” de Deus é sua vincula-
4. A partir desta intencionalidade podem-se compreender, ao mesmo ção com a história. Por isso, para o AT não confere que se deva, em vez de
tempo, os antropomorfismos do AT. Eles permitem falar de Deus em ter­ relacionar Deus à história, relacioná-lo à eternidade. Pois precisamente a
mos humanos e, com isso, pensar a realidade de Deus como vinculada ao oposição entre eternidade e tempo é estranha ao AT, mesmo que não a
tempo. Dos ídolos inúteis, no entanto, vale: eles “não falam, não vêem, não
diferenciação entre ambos (SI 102.26ss. e outras). “Eternidade” significa
ouvem”; isto é, eles não podem manifestar-se nos acontecimentos. Assim, antes a duração e constância no tempo, como que uma temporalidade in­
os antropomorfismos não apenas confirmam que Deus se revela de forma
tensiva.
pessoal, mas permitem, além disto, entender a existência de Deus como
uma existência histórica, isto é, relacionada à história. Isto se evidencia Talvez aqui se sinalize também o limite do discurso sobre a “historici­
com clareza em textos que relatam: o que Deus faz e, com isto, o que Deus dade” de Deus. A pessoa sabe de sua temporalidade em vista da morte;
é, não está determinado desde o princípio, mas pode modificar-se com o mas o AT reconhece: Tu és o Deus que não morre (Hc 1.12; v. supra § 11c,
tempo. Deus negocia com Abraão acerca de como proceder com Sodoma 4); a confiança nele pode continuar. Também em outras partes do AT os
(Gn 18.17ss.). Com base na objeção e intercessão de Moisés, Deus muda antropomorfismos têm a sua limitação: tal como se evita conceber Deus
de idéia: “Javé se arrependeu do mal que havia ameaçado fazer ao povo” como um ser sexuado, também se afastam concepções demasiadamente
(Êx 32.14; cf. J12.13; também Jn 4.2 referente às nações). Conforme Oséias humanas de Deus (p. ex., SI 50.12s.).
(11.8), Deus luta consigo mesmo: “Meu coração volta-se contra mim”.
476 IV. A época tardia § 1 9 — 0 legado do AT 411

5 . No decurso da história pode-se observar, com freqüência, que o ças em Deus. Conforme a concepção deuteronômica - e deuteronomista -
AT generaliza o que originalmente valia apenas para o indivíduo. O espírito é apenas o “nome” de Deus que reside no lugar escolhido por ele; para o
profético será dado a todas as pessoas (J13), as manifestações da graça em Escrito Sacerdotal, é somente a “glória” de Deus que está presente na terra
Davi são prometidas a todos (Is 55.3), a bênção aos patriarcas é transmitida (v. supra § 6c, 6).
não apenas a Israel, mas a todas as nações (Gn 12) como também todas Entre o além e o aquém, entre Deus e o ser humano, aparecem criaturas
elas participarão da paz vindoura (Is 2) ou celebrarão a nova refeição ofe­ intermediárias. Já segundo relatos teofânicos antigos, um mensageiro pode
recida por Deus (25.6; v. supra § 17). Assim, o próprio AT transcende representar Deus dentro da esfera de vida humana; Deus torna-se audível, mas
todos os limites que lhe são colocados, inclusive o limite da vida humana (SI visível apenas o anjo (Êx 3.2ss.; Jz ó .lls s .; cf. Gn 16.21s. e outras). Este é
73.23s.; Is 25.8 e outras; v. supra Excurso 8). diferente de Deus, embora apareça e fale como Deus (21.17; Jz 13.21s.). Esta
concepção é desenvolvida mais e mais em épocas posteriores.
Neste sentido, também para o Deus do AT não há limites definitivos.
Ele pode romper os vínculos que o prendem a seu lugar (v. supra § 5d, 4), à Nas visões noturnas de Zacarias,
sua terra (Ez 1), ou, inclusive, a seu povo (Is 66.21; Ml 1.11; Sf 2.11; v. ao Deus invisível e oculto, que está além de todo mundo [...] ninguém
supra § 17, 4). Concepções adotadas do contexto podem ser ampliadas tem acesso senão unicamente o anjo que, como intermediário entre o
exterior e o interior do céu, transmite ao mundo a ação reveladora de
universalmente; assim, o domínio régio de Deus se estende a todo lugar e a
Deus e recebe, por outro lado, todas as orações e acontecimentos na terra
todas as épocas (SI 103.19; 145.13). Dito de outra forma: o AT expressa
e os leva diante do trono de Deus. Também a revelação profética Zacarias
com nitidez cada vez maior a transcendência de Deus. recebe somente através deste anjo intermediário. Zacarias não mais co­
Se originalmente o Sinai era tido como o lugar da presença de Deus, nhece uma relação direta com o Deus que, em sua palavra, assalta o profeta
então já o Javista parece querer aumentar a distância entre Deus e o local e impõe a sua vontade (Friedrich Horst, HAT, 14 ed., v. 1, p. 212).
terreno, ao relatar, em sua descrição, que “Javé, desce sobre o Sinai” (Êx Por fim, m ultiplicam-se os anjos, tom ando-se “milhares e miríades,
19.18,20; v. supra § 5d, 4). O céu toma-se o âmbito de Deus, do qual ele sim, incontáveis” (Dn 7.10); desta multidão destacam-se novamente “prínci­
procede, fala e intervém nas ações humanas (Gn 11.5; 21.17; Êx 20.22; 1 pes” especiais com nomes (Dn 8.16; 10.13 e outras).
Rs 22.19ss.; Mq 1.3; SI 2.4; Is 66.1 e outras). A idéia da morada celeste de A atuação de Deus na terra pode ser representada pela “mão” de Deus
Deus decerto já é influenciada, na época pré-exílica, por concepções oriun­ (Ex 14.8; Ez 37.1; Ed 7.6,9 e outras) ou por qualidades divinas como espírito
das das religiões do contexto de Israel; pois os povos vizinhos conheciam ou sabedoria, mas também pela palavra, sem que estas se tom em hipóstases,
várias divindades do céu (como Baal Shamayim, o “Senhor do céu”). Influên­ isto é, seres independentes ao lado de Deus.
cias estrangeiras distinguem-se mais claramente na época tardia, a qual, em M esmo o nome de Deus é afetado pela transcendência de Deus: “Javé”
analogia à terminologia persa, chama Javé de “Deus do céu” (Ed 1.2; 5.11s.; é substituído - também com base numa compreensão mais rígida do terceiro
Ne 1.4s.; Jn 1.9;cf.Ec5.1 “Deus está no céu e tu sobre a terra”). Finalmen­ mandamento (cf. Lv 24.16) - por “Senhor” (Adonay, Kyrios) ou por “o nome”
te, o “céu” toma-se designação do próprio Deus (Dn 4.23 e passim). (Lv 24.11 e outras), quando não se fala genericamente de “Deus” (compare 2
Sm 6.9 a 1 Cr 13.12; Jó; Eclesiastes; os chamados Salmos eloístas SI 42-83 e
Mesmo que a história da criação (Gn 1) olhe para o passado e a
outras). Já que Javé é entendido como Deus do céu e da terra, como o único
apocalíptica para o futuro, em ambos os contextos depara-se com um Deus senhor do mundo (Dt 3.24; SI 13.26; Lm 3.41; Jn 1.9), o nome próprio - que
“transcendente”, oposto ao mundo como um todo. Por este motivo, come­ diferencia o Deus de Israel de outros deuses - pode recuar para um segundo
çam a proliferar, a partir do exílio, as afirmações sobre o Deus criador (v. plano. A palavra “D eus” tom a-se nome próprio, ao qual o suplicante se dirige
supra § 1lf, 5). Justamente porque o Deus do Sinai em sua transcendência em oração (cf. SI 51.3 e outras). Com isto, tam bém se expressa mais nitida­
se toma senhor único do mundo, as nações podem ser incluídas na fé em mente a distinção entre Deus e o ser humano:
Javé; pois, na esperança, elas mesmas estão, no lugar onde se encontram, Como pode o ser humano ser justo perante Deus?
perto de Deus (Sf 2.11). A fé na superioridade de Deus diante do mundo (Jó 25.4; cf. 9.2,32; Ec 5.1; e tam bém Os 11.9; Is 31.3; Ez 28.2,9 e
possibilita à diáspora viver no estrangeiro, impelindo-a, inclusive, à missão. outras).

6. Com a finalidade de exprimir, ao mesmo tempo, a distância e a 7. De diversos modos, o AT se esforça em distinguir entre Deus e
proximidade de Deus, sua ausência e sua presença, o AT conhece diferen­ mundo. Assim, conforme a interpretação da proibição de imagens no Deu-
478 IV. A época tardia § 1 9 — 0 legado do AT 479
teronômio (4.12ss.; v. supra § 6c, 5), Deus não pode ser representado por é mundano; a transcendência de Deus é seu poder (cf. Gn 1; Is 66.1 s.; v.
nada que seja mundano, pois Deus foge à imaginação humana. Uma per­ supra §7,3). Deus dá algo de sua onipotência aos humanos; ela se mostra
gunta como “A quem comparareis Deus?” (Is 40.18; cf. § llg ) faz valera na força que ele dispensa àqueles que dela necessitam:
intenção do primeiro e segundo mandamentos, a exclusividade de Deus e a
Dá forças ao cansado
impossibilidade de se fazer uma imagem dele. Adotando um termo próprio e multiplica o vigor do desfalecido.
para o “criar” divino (bara’; v. supra § llf, 3), o AT evita que este seja Os moços se cansam e se fadigam,
identificado com o agir humano. Quando não se encontra nada comparável e os homens jovens tropeçam,
no mundo para a atividade criadora de Deus, retira-se-lhe a plasticidade. mas os que esperam em Javé renovam as suas forças [...],
Aqui, o AT desiste de ter uma imagem da ação divina. Também alhures ele correm e não se cansam,
conhece palavras reservadas ao discurso sobre Deus, tais como “perdoar”, caminham e não se fadigam (Is 40.29ss.).
ou quase que exclusivamente empregadas neste discurso, tais como “ira” Com suas diversas narrativas e esperanças, lamentos e louvores, tes­
ou “eleger”. Estes conceitos teológicos pretendem - o que, por sua vez, temunhos e reflexões, o AT ajuda as pessoas, em vista “do céu, da obra de
corresponde à intenção do primeiro e segundo mandamentos - preservar a teus dedos”, a perguntarem por sua própria identidade e, ao mesmo tempo,
singularidade e a irrepresentabilidade de Deus; eles procuram distinguir a admitirem - em forma de confissão - que elas vivem da providência e
ação de Deus de fatos mundanos e, assim, pensar Deus como sendo incom­ assistência de Deus:
parável (metaforicamente: Is 55.9; SI 103.lis.). Assim pode-se observar de
muitas maneiras como o AT tinha o máximo cuidado com a propriedade das Que é o ser humano,
concepções sobre Deus. Ele, por assim dizer, luta pelo discurso correto que dele te lembres? (SI 8.4s.; cf. 144.3).
sobre Deus.
Não obstante, o AT não sucumbe ao perigo de abstrair de tal forma
as afirmações sobre Deus que a realidade humana se perca. A transcen­
dência de Deus não significa um estado absoluto, que não admite mais ne­
nhum relacionamento; a sublimidade de Deus não implica que ele tenha se
desligado do mundo e abandonado as pessoas (cf. SI 73.11; Jó 22.13s.; Lm
3.44). Para o AT, a sublimidade de Deus significa precisamente: Deus está
perto de todo o mundo. “Javé está perto daqueles que estão com o coração
partido”; o sublime e santo quer “morar com os oprimidos e humildes, a fim
de vivificar o espírito dos abatidos” (Is 57.15; cf. 61.1; 66.Is.; SI 33.13s.;
113.5ss. e outras). A concepção de que Deus mora no céu implica, ao mes­
mo tempo, a responsabilidade humana diante de Deus, pois o céu é o lugar
de onde a esfera humana se toma visível:
Javé olha do céu,
vê todos os seres humanos.
Do lugar de seu trono ele observa
todos os moradores da terra
(SI 33.14; cf. 14.2 e outras).
A distinção entre acima e embaixo corresponde principalmente à di­
ferença entre dar e receber; o céu oferece o que a terra precisa (Is 55.10s.).
Assim, a transcendência de Deus não exclui a imanência de Deus; pois
Deus em sua ação é distinto do mundo. A concepção de que Deus está fora
e acima do mundo quer asseverar que Deus é superior em poder a tudo que

Você também pode gostar