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Motrivivência Ano XIX, Nº 28, P. 27-37 Jul.

/2007

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: a difícil e


incontornável relação teoria e prática

Paulo Evaldo Fensterseifer1


Fernando Jaime González2

Resumo Abstract
Reconhecendo a difícil e complexa Recognizing the hard and complex
problemática da relação teoria-práti- problem about the relation practice-
ca, acentuada ainda mais na Educa- theory, emphasized much more in
ção Física escolar devido às peculia- Physical Education due to its area’s
ridades da área; e considerando que peculiarities, and considering that
a Educação Física, na condição de Physical Education has, in its school
disciplina escolar, tem como finalida- subject condition, “the purpose of
de “formar indivíduos dotados de ca- training critical students with condi-
pacidade crítica em condições de agir tions of being independents in the
autonomamente na esfera da cultura culture body’s movement and in a
corporal de movimento e de forma transformed way as political people”
transformadora como cidadãos políti- (Bracht and González), the authors
cos” (Bracht e González), os autores make a reflection about specifics the-

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Professor da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí.
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Professor da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí.

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refletem sobre uma série de temas mes naturally associated, but no only
específicos normalmente associados, part of Physical Education (leisure,
mas não exclusivos da Educação health, physical exercises, sports and
Física (lazer, saúde, exercício físico, dance, etc.) to make the question:
esporte, dança, etc.) para pergunta- What does change in your rela-
rem: o que muda na nossa relação tionship with those themes when we
com eles ao conhecê-los/vivenciá-los meet/have experiences with them as
como conteúdos da EF escolar? school physical education contents?
Palavras-chave: teoria-prática; educa- Keywords: practice-theory, physical
ção física; escola education, school.

Enfrentando a questão didáticas, por outro nos seduzimos


facilmente pelas teorizações meta-
Certamente estamos dian- físicas que, tal como a “Pomba de
te de um tema fundamental para Kant”, imaginam que maior sucesso
compreender os desafios da Educa- teriam voando no vácuo (em total
ção Física (EF) contemporânea (em desprezo pelo universo da práxis).
especial no campo escolar). Trata-se Sabemos que os profes-
da difícil e incontornável proble- sores são péssimos aplicadores de
mática da relação teoria-prática, soluções produzidas por outros,
a qual tende a aparecer de forma logo, não é nossa pretensão neste
dicotômica (como paralelas que não texto substituir os sujeitos social e
se encontram em lugar nenhum do historicamente situados na produ-
espaço) ou revezando-se em hierar- ção das soluções. Apenas, o que
quias ao gosto de modismos pró- acreditamos não ser pouca coisa,
prios ao campo educacional (hora nos propomos a desenvolver um
toda a verdade está na prática, hora modo de enfrentamento da questão,
a prática é uma extensão da teoria). ou, conforme sugere o título desta
Raramente são tratadas na com- seção da revista Motrivivência, es-
plexidade que é constitutiva das boçar um “ponto de vista”.
produções humanas, entre elas, as O enfrentamento da ques-
relações teórico-metodológicas, ou tão proposta pode nos conduzir
didático-pedagógicas. Na EF, dado a uma armadilha, qual seja, de
as peculiaridades da área (vínculo que as questões teóricas foram
com a prática), o quadro se agrava, suficientemente desenvolvidas e
pois se de um lado carregamos pré- consensuadas, portanto, resolvidas
conceitos em relação ao tecnicismo (“direção do barco”), e que cabe
instrumental das metodologias e implementá-las (“remar”). Qualquer

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semelhança com a décima primeira pensando, e a valorização da Histó-


tese contra Feuerbach esboçada por ria e da Sociologia, a primeira como
Marx, não é, dado os referenciais “rainha das ciências”, que só precisa
que alimentaram a produção teórica ser atualizada para chegarmos a
deste período (década de 80 do sé- um final feliz, enquanto a segunda
culo passado), mera coincidência. como versão laica da teologia que
Como saldo do debate nos permite separar o bem e o mal
deste período, parafraseando Marx, no universo terreno.
aprendemos que os filósofos (teó- Derivam deste equacio-
ricos) limitaram-se a interpretar o namento da questão implicações
mundo (educação/EF) de maneiras di- as mais diversas, entre as quais, o
ferentes, trata-se, porém, de transfor- caráter instrumental da política (já
má-lo (por em prática). A mensagem que o fim é terminar com ela uma
aqui veiculada por “Hermes” (o deus vez atingido os “objetivos históri-
mensageiro) não é, como tudo que cos”) e, por conseqüência, a relação
ele conduz, livre de interpretações. de subordinação da Educação a este
Destacamos duas que parecem reve- “projeto histórico”. Referimo-nos
lar o antagonismo de um pensamento aqui a uma noção de política critica-
pós-metafísico, por um lado, e do que da por Hannah Arendt (2006), e que
podemos denominar pensamento vincula sua dignidade ao alcance de
metafísico, de outro. objetivos exteriores ao seu exercí-
Identificamos no primeiro cio, tais como “a proteção da vida”
quadro interpretativo aquela po- ou o “provimento das necessidades
sição que reconhece no vínculo vitais”. Este modelo de política nos
pensamento-ação o caráter revolu- conduz à crença de que burocratas
cionário da práxis. Postura que se competentes (técnicos hábeis na fa-
afirma pela ousadia do pensamento bricação) ou intelectuais portadores
que se debate com a experiência, de uma episteme sobre os assuntos
fazendo desta dialética o móvel públicos (“Rei filósofo”, “vanguar-
de novas interpretações e interven- das esclarecidas”) são suficientes
ções. Já na perspectiva metafísica para conduzir-nos a sociedades efi-
encontramos aqueles que acreditam cientes, racionais, perfeitas. Arendt
que já nos foi revelada “a interpre- (2006), ao contrário, propõe equa-
tação”, dispensando, portanto, o cionar novamente liberdade com
pensamento e canalizando todas as ação política, o que demanda um
energias para a ação. Como decor- espaço efetivo para a participação
rência temos a marginalização da do cidadão nos assuntos que dizem
Filosofia que insiste em continuar respeito a todos. Da mesma forma,

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afirma Juan Casassus (1995, p. 109), dos totalitarismos (há que tomar
“A noção básica de democracia cuidado com as boas intenções, foi
aparece como a apropriação por em nome delas que se fez todo o
parte dos cidadãos da capacidade mal do mundo).
de analisar e propor ações acerca Ainda em relação à “for-
de assuntos de interesse comum, mação de cidadãos”, lembramos
num espaço público”. que o exercício da cidadania dá-se
Esta subordinação é que no plano político-moral, isso não
sustenta expressões como “formação significa que não possamos “con-
de cidadãos”, algo no mínimo proble- tribuir com a sua formação”, pois
mático, uma vez que pressupõe a ca- há que destacar que na moderni-
pacidade de formar a priori algo que dade conhecimento e cidadania
se afirma no exercício, pois é bom estreitam relações, sendo o acesso
lembrar que o campo da ética e da a ele (em especial em sua versão
política são caracterizados pela ação, científica) objeto de reivindicação
a qual se dá sempre em contexto e
por parte dos segmentos sociais
subordinada às suas contingências,
historicamente excluídos da posse
nunca inteiramente por antecipação.
destes saberes, no entanto, não cabe
Contudo, há que destacar diferenças
torná-la pretensamente uma questão
com outras expressões semelhantes,
epistêmica3.
mas distintas no que se refere à rela-
ção educação escolar e cidadania, O atravessamento desta
tais como: “preparar os sujeitos para problemática nos parece ter sido
o exercício da cidadania”. capturada na formulação de Projeto
O que entendemos ne- Político-Pedagógico desenvolvido
cessário ficar claro é que em uma por Mario Osorio Marques (1995,
sociedade autônoma, democrática, p. 95-96, grifo nosso) na seguinte
as concepções de mundo, de ser passagem:
humano, de sociedade, estão sem-
pre em discussão no plano político, Projeto porque intencionali-
não há deliberação definitiva (“con- dade em que se articulam as
cepção verdadeira”) a ser “ensinada perspectivas de atuação soli-
aos neófitos”. Transformar questões dária dos instituintes da escola,
políticas em dogmas a serem ensi- perspectivas que necessitam de
nados constitui o caldo de cultura definições precisas, sob pena

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O contrário seria pensar em formar cidadãos em série a partir de posições consideradas “certas”,
“verdadeiras”, e não objeto de deliberação política.

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de predominarem interesses ciente (para além do silenciamento


alheios aos da comunidade dos em torno da multiplicidade de sen-
a que serve a escola e dos que a tidos em torno desses propósitos),
fazem em seu dia-a-dia. Projeto e sobre isso pensamos que temos
político, porque se trata de op- que refletir. É óbvio que no entorno
ções fundamentalmente éticas (ou atravessando) do ensinar estão
no sentido das aprendizagens esses elementos ético-políticos refe-
que a concidadania responsá- ridos, mas sem o ensinar (instrução
vel e competente na sociedade
segundo Marquês de Condorcet,
contemporânea plural e diferen-
2008) eles não passam de “catecis-
çada, em amplo debate, julgue
mo laico” (algo a que a Educação/
exigidas. Projeto pedagógico,
porque nele se devem articular
EF pode ver-se reduzida).
o entendimento compartilhado Uma afirmação bastante
pelos integrantes do universo comum, recorrente nos Projetos
escolar sobre o que fazer, como Político-Pedagógicos, é o de que
e no interesse de quem, com devemos ter claramente definida a
a organização e condução das “concepção de mundo, de socieda-
práticas nos limites do possível, de e de homem” que baliza nossa
mas, sobretudo, no pleno apro- intervenção pedagógica. Afirmações
veitamento das potencialidades desse tipo, sem estabelecer marcos
todas abertas à capacidade da claros a respeito das responsabilida-
imaginação criadora e às audá- des pedagógicas de uma instituição
cias da vontade coletiva. republicana, como é a escola, em
uma sociedade democrática, se
O debate em torno dessas prestam para empreitadas que ne-
questões vem se traduzindo na gam na prática o que preconizam
organização curricular da escola, a teoricamente. Por exemplo, seu
qual tem reforçado, o que é bom, caráter emancipatório ao antecipar-
a necessidade de uma proposta se em vanguardismo (saber antes e
curricular crítica, emancipatória, melhor que o outro o que é bom
cidadã, promotora de mudanças, para o outro). Como afirma Arendt
de autonomia, transformadora... (2002, p. 225-226),
Enfim, adjetivos que recheiam nos-
sos planos curriculares desde, no [...] às crianças que se quer edu-
mínimo, a década de 80 do século car para que sejam cidadãos de
passado (inclusive os oficiais). No um amanhã utópico é negado
entanto, se isso, como afirmamos, de fato, seu próprio papel futuro
é bom, não tem se mostrado sufi- no organismo político, pois, do

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ponto de vista dos mais novos, Lembramos que a institui-


o que quer que o mundo adulto ção escolar, como qualquer outra,
possa propor de novo é neces- funda-se e encarna um desejo de
sariamente mais velho do que segurança, certeza, estabilidade,
eles mesmos. Pertence à própria possuindo em seu interior, e é este
natureza da condição huma- seu móvel, elementos de subversão,
na o fato de que cada geração o que, embora paradoxal, não é
se transforma em um mundo contraditório, dado que reproduzir
antigo, de tal modo que prepa- o humano é reproduzir a capacida-
rar uma nova geração para um de humana de recriar-se. O caráter
mundo novo só pode significar subversivo do educador, no entan-
o desejo de arrancar das mãos to, não implica colocar-se na van-
dos recém-chegados sua própria guarda, apenas lembra sutilmente
oportunidade face ao novo. que o respeito à tradição não pode
ser confundido com conformismo,
Outro ponto relacionado com subserviência ad infinitum
ao universo da política, pelo qual (FENSTERSEIFER, 2006, p. 154).
“passamos batido”, é o tema da Voltando à pergunta pela
“neutralidade”. Gostaríamos de responsabilidade da escola, qual
destacar em relação a ele que o uso seria essa responsabilidade? E em
de expressões como “a educação particular da EF? Parece-nos que é
não é neutra” ou “não existe neu- por aqui que podemos enfrentar os
tralidade em educação”, presta-se desafios postos pela questão que
a mal entendidos no que tange à originou estas reflexões.
educação escolar em uma socie- Entendemos que esses
dade republicana. Como afirma desafios vinculam-se primeiramente
Condorcet (2008), devemos lembrar à nossa capacidade/ incapacidade
que houve algo antes da República de responder quais são os nossos
e, em relação a isso, seguramente objetivos enquanto parte efetiva
a educação escolar não é neutra. dessa instituição denominada es-
Porém, no interior de um sistema cola, mais precisamente, enquanto
republicano não é lógico nem co- componente curricular. Desafios
erente que o professor ou a escola que podemos denominar de ordem
assumam uma posição incompatível político-pedagógica. As respostas
com a pluralidade preconizada históricas vinculadas ao “exercitar-
pela República. Sem essa distinção se” parecem não mais dar conta da
ferimos o estatuto que rege a pró- nossa especificidade.
pria escola e sua responsabilidade Para compreender essa
enquanto instituição. especificidade acreditamos ser ne-

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cessário definir a especificidade da - não nos exercitaríamos sem


instituição na qual a EF, enquanto EF na escola?
componente curricular, ganha sen- - não nos socializaríamos
tido: a escola. Um bom exercício sem EF na escola?
para chegar a essa definição seria nos - não haveria lazer sem EF na
perguntar: para que escola? Afinal, escola?
- não teríamos vida sem escola? - não teríamos aptidão física
- não teríamos sociedade sem EF na escola?
sem escola? - não haveria esporte, ginás-
- não teríamos cultura sem tica, dança, lutas, jogos...
escola? sem EF na escola?
- não teríamos educação sem - não teríamos saúde sem EF
escola? na escola?
- não teríamos cidadania sem
escola? O bom senso parece nos
- não teríamos trabalho/pro- indicar que também neste caso não
fissões sem escola? teríamos nenhuma resposta negati-
- não teríamos limites sem va, logo cabe interrogar: o que sig-
escola? nifica a existência da EF escolar para
- não teríamos socialização cada um desses temas? Ou ainda,
sem escola? sabendo que os fenômenos elenca-
- não teríamos valores sem dos não são a EF, cabe a pergunta: o
escola? que muda na nossa relação com eles
- não teríamos conhecimen- ao conhecê-los/vivenciá-los como
to sem escola? conteúdos da EF escolar?
Da resposta dada a esta
Em caso de não haver interrogação derivará aquilo que
nenhuma resposta negativa a essas podemos chamar nossos problemas
interrogações, fica a pergunta: o que de ordem didático-metodológica, os
significa a existência da escola para quais devemos responder em nossas
cada um desses temas? intervenções, sempre de forma con-
Em um segundo movimen- textualizada (não existem respostas
to poderíamos nos deter na questão: inteiramente a priori).
para que EF na escola? Esboçamos Quanto às questões que
para isso um exercício semelhante denominamos político-pedagógicas
ao anterior. Afinal, poderíamos refletir a partir da posi-
- não teríamos atividade físi- ção de Bracht e González (2005, p.
ca sem EF na escola? 155), segundo a qual, a EF escolar,

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na condição de disciplina, tem se a uma “atividade” (fazer) e hoje


como finalidade “formar indivíduos somos desafiados a construir um
dotados de capacidade crítica em saber “com” esse fazer. Mais que
condições de agir autonomamente isso, pensar um saber que se desen-
na esfera da cultura corporal de mo- volve ao longo dos anos escolares
vimento e de forma transformadora em complexidade e criticidade.
como cidadãos4 políticos”. Neste ponto, entendemos
Afirmações próximas a que a EF, enquanto disciplina esco-
essa se encontram em outros autores lar, passa por um processo de trans-
(BETTI, 2003; CASTELLANI FILHO, formação sem precedentes na sua
1998) e inclusive nos Parâmetros história. Processo ao qual, também
Curriculares Nacionais (PCNs). entendemos, não se tem prestado a
Mas o que consideramos relevante suficiente atenção.
neste momento é a ênfase no fato Parece possível afirmar
de que tratamos de uma dimensão que, em linhas gerais, o século 20
da cultura e que temos uma respon- presenciou, nas sociedades ociden-
sabilidade com o conhecimento tais, a consolidação da EF na escola,
produzido em torno da mesma, embasada no conhecimento médi-
algo, portanto, que vai muito além co-biológico e orientada pela idéia
do mero “exercitar-se”. de que sua função principal era a
A tomada de posição a promoção da saúde, articulada dis-
que somos convocados, individual cursivamente com uma idéia genéri-
e coletivamente, assume um caráter ca de educação integral do homem
de ruptura paradigmática, afinal são no sentido do desenvolvimento de
longos anos de uma tradição em todas as suas potencialidades (BRA-
que os aspectos específicos desta CHT; GONZÁLEZ, 2005, p. 151).
instituição republicana chamada Nesse caminho, e de forma mais
escola, não nos diziam respeito5. intensa a partir da metade do sécu-
Nosso fazer não passava de uma lo passado, a EF estabeleceu uma
“atividade” que acontecia no seu in- relação simbiôntica com o esporte,
terior. Nosso compromisso resumia- por meio da qual esse fenômeno,

4
Devemos aqui lembrar a crítica esboçada anteriormente a respeito do que consideramos impossível:
“formar o cidadão”, o que não impede pensarmos em modos de, em particular pelo conhecimento,
contribuir para esse exercício, reconhecendo a “plasticidade” do mundo, dado sua historicidade.
5
Nossos argumentos não passavam de generalidades do tipo: “formação integral”; “socialização”;
“interdisciplinaridade” (cabendo a nós a função de “bengala” para as outras disciplinas); “compen-
sação desestressora”, entre outras evasivas.

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em sua forma institucionalizada, tradicionais desta área, mas que,


acabou sendo praticamente hege- entretanto, são fundamentais na
mônico nas aulas, a tal ponto de, sustentação das teorias pedagógicas
no senso comum, ser plenamente que legitimam um componente
possível confundir EF escolar com curricular num projeto educacional.
prática esportiva. Perguntas, tais como:
Esse processo, que ficou - por que esta disciplina deve
conhecido como a esportivização compor o currículo da escola?
da EF escolar e que foi hegemônico - quais são seus objetivos?
durante várias décadas, passou a - quais são seus conteúdos?
ser questionado no transcurso dos - como são sistematizados os
anos 80 a partir daquilo que ficou conteúdos ao longo dos dife-
conhecido como movimento reno- rentes níveis de ensino?
vador da EF brasileira. Movimento - como esses conteúdos de-
este que impulsionou mudanças em vem ser ensinados?
diversas dimensões de nossa área. - como avaliar seu ensino?
Particularmente no que Neste contexto parece ló-
respeita ao campo educacional se gico perguntar o que significou a in-
questionou o paradigma de aptidão corporação desses questionamentos
física e esportiva que sustentava de teórico-pedagógicos ao campo da
forma extensiva as práticas peda- reflexão e do fazer da EF. Segundo
gógicas da EF nos pátios escolares. nossa percepção, a inclusão dessas
Sem poder neste momento nos preocupações na área imprimiu
alongar nessa descrição, podemos uma mudança de tal magnitude que
apontar que, entre outras iniciativas, é possível comparar esse fenômeno
o movimento renovador entendeu como um ponto de inflexão na qual
que uma das ações necessárias para a trajetória da EF faz uma quebra
transformar a EF seria: “elevá-la” definitiva com sua tradição.
à condição de disciplina escolar, Assim, essa ruptura com
tirando-a da categoria de mera ativi- a tradição, do que vimos denomi-
dade, como indicado no Decreto n. nando do “exercitar para”, colocou
69.450, de 1971 (BRACHT; GON- à EF, ou seja, aos seus protagonis-
ZÁLEZ, 2005, p. 153). tas, a necessidade de reinventar o
Isso significa que é da seu espaço na escola, agora com o
“mão” do movimento renovador caráter de uma disciplina escolar.
que se coloca, talvez, pela primeira Quer dizer, EF na forma de um
vez, um conjunto de questões que componente curricular, responsável
não fazia parte das preocupações por um conhecimento específico

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(inclusive conceitual) subordinado inacabado) de responder sobre a


a funções sociais da escola como contribuição específica que esta
instituição republicana. disciplina pode proporcionar dentro
É bom ter clareza, no en- de um projeto de escola como insti-
tanto, que esse novo projeto para tuição republicana e sobre as formas
constituir-se em prática hegemônica de materializar essas intenções no
deve passar pela invenção de novos acontecer cotidiano das aulas ao
sentidos e práticas pedagógicas, pro- longo dos anos escolares, de forma
cesso que não se produz pela aplica- consistente e sistemática.
ção de respostas pensadas por outros. Lembremos que o ato de
Assim, na nossa compreensão, a EF se escolher vem acompanhado das
encontra “entre o não mais e o ainda responsabilidades que lhe são ine-
não”6. Entre uma prática docente na rentes, e este é o preço da maiori-
qual não se acredita mais, e uma ou- dade que tanto buscamos. Afinal,
tra que ainda se têm dificuldades de no mínimo desde a década de 80
pensar e desenvolver.7 do século passado, lutamos para
Entretanto, quando estu- sermos reconhecidos como uma dis-
damos o fazer cotidiano de vários ciplina “igual às outras”. Pois bem,
professores e professoras de EF de agora, em tese, o somos. Goethe,
escolas públicas de nossa região, poeta alemão, dizia que é preciso
entendemos que um fator importante tomar cuidado com nossos sonhos
que permite transformar efetivamen- de juventude, pois eles poderão se
te as propostas pedagógicas relacio- realizar. O nosso, parcialmente, se
na-se com ter um projeto “próprio” realizou, sua efetividade depende de
(com autoria) para colocar no lugar nós (ser maior implica em responder
daquilo que era a EF e hoje não é por si). Como democratas devemos
mais. Mas, projetos “completos”, acolher a proposição arendtiana
no qual se combinam o esforço per- de que as soluções dependem dos
manente (e sempre necessariamente envolvidos. Muitas delas, arriscaria

6
Expressão utilizada por Stein (1991) para referir-se ao impasse que vivemos em relação à
modernidade.
7
Nesse contexto, entendemos que a ausência de projetos curriculares de EF na maioria das escolas
e, particularmente, a falta que sente deles uma porção importante dos professores, é um claro sinal
dessa transição.
8
Cabe destacar o número cada vez mais significativo de professores que têm realizado esforços no
sentido de tratar a EF escolar como um componente curricular articulado com o Projeto Político-
Pedagógico da escola e, inclusive, tomando essas experiências como objeto de reflexão em cursos
de graduação e pós-graduação.

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dizer, já estão sendo construídas em BRASIL. Parâmetros Curriculares


nosso meio8, cabe a nós a disposição Nacionais: Educação Física.
para socializá-las, construindo espa- Brasília: Secretaria de Educação
ços para tal, registrando dos mais di- Fundamental, 1997.
versos modos e, fundamentalmente, CASASSUS, Juan. Tarefas da
submetendo-as à crítica dos nossos educação. Campinas, SP: Autores
pares, sem a qual nossas verdades Associados, 1995.
não passam de nossas verdades, CASTELLANI FILHO, Lino. Política
necessárias mas não suficientes para educacional e educação
enfrentar o tamanho dos desafios que física. Campinas, SP: Autores
hoje se colocam para a EF. Fazendo Associados, 1998.
uma referência ao filósofo francês
CONDORCET. Marie-Jean Antoine
Jean-Paul Sartre, podemos dizer que
Nicolas de Caritat. Marquês
razoavelmente já sabemos o que fi-
de. Cinco memórias sobre a
zeram de nós, resta saber o que nós
faremos com o que fizeram de nós. instrução pública. São Paulo:
Unesp, 2008.
Referências FENSTERSEIFER, Paulo E. A
responsabilidade social da
ARENDT, Hannah. A crise na educação. educação escolar (ou a “escola
Entre o passado e o futuro. São como instituição republicana”).
Paulo: Perspectiva, 2002. In: MASS, A. K.; ALMEIDA,
______. O que é política? Rio de A. L.; ANDRADE, E. (Orgs.).
Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. Linguagem, escrita e mundo.
BETTI, Mauro. Educação física Ijuí: Unijuí, 2006.
escolar: do idealismo à MARQUES, Mario Osorio.
pesquisa-ação. 2002. 336 f. Tese Aprendizagem na mediação
(Livre-Docência em Métodos social do aprendido e da
e Técnicas de Pesquisa em docência. Ijuí: Unijuí, 1995.
Educação Física e Motricidade STEIN, Ernildo. Epistemologia e
Humana). Faculdade de Ciências, crítica da modernidade. Ijuí:
Universidade Estadual Paulista, Unijuí, 1991.
Bauru, SP, 2003.
BRACHT, Valter; GONZÁLEZ,
Fernando Jaime. Educação
física escolar. In: GONZÁLEZ, Contato:
Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, fenster@unijui.tche.br
Paulo Evaldo (Orgs.). Dicionário
crítico de educação física. Ijuí: Recebido: setembro/2008
Unijuí, 2005, p. 150-156. Aprovado: fevereiro/2009

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