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Por que se deve ter e por que não se deve

ter a pena de morte


Aspectos jurídicos e políticos

Antonio Marcelo Jackson F. da Silva

Sumário
1. Por que se deve ter a pena de morte. 2.
Por que não se deve ter a pena de morte. 3. À
guisa de uma conclusão ou o início de um novo
debate.

Sendo um dos mais polêmicos temas da


área jurídica, a “pena de morte” ou “pena
capital” tem recebido os mais diversos tra-
tamentos dos operadores do Direito sem,
entretanto, oferecerem comentários que es-
tejam de fato vinculados ao assunto quando
observado nas legislações e teses que acata-
ram ao longo do tempo tal princípio, isso
porque, antes de mais nada, falar sobre a
“pena de morte” é falar sobre a exclusão
permanente de indivíduo do meio social ou,
em outros termos, partir do princípio que a
mais extrema forma de punição deve estan-
car permanentemente uma pessoa da socie-
dade a qual estava vinculada. Pode parecer
um certo preciosismo abordar o tema sob
essa ótica. Todavia, não se deve esquecer
que a exclusão do meio social como forma
de se punir um dos membros do grupo é
bem provavelmente a mais grave pena im-
posta a um indivíduo, dado que o homem
como ser social – ou político, na originária
definição de Aristóteles – apenas pode ser
entendido como tal quando se encontra em
sociedade. A pena capital ou a exclusão
Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é Ba- permanente é, portanto, retirar desse indi-
charel em História pela UERJ, Mestre e Douto- víduo sua condição humana. Tomemos al-
rando em Ciência Política pelo IUPERJ. guns rápidos exemplos.
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Tanto para aqueles que são favoráveis a vitável as desgraças periódicas e agudas, e
tal punição quanto para aqueles que são isso ocorria em virtude da tendência de a
contra, um dos argumentos diz que a mes- população aumentar mais rapidamente do
ma pode ou não reduzir a criminalidade. que os meios de sobrevivência, fazendo com
Torna-se interessante porque, salvo em um que existisse sempre não apenas uma desi-
único caso1, jamais essa pena foi imputada gualdade entre os diversos grupos sociais,
acreditando-se que, com isso, a violência em mas também o entendimento de que isso se
sua forma mais grave seria embargada, isso dava a contar de uma lei natural e, portan-
porque nenhum dos estudos, clássicos ou to, inevitável. Desse modo, o único papel a
contemporâneos, feitos até hoje pressupõe ser desempenhado tanto pelas classes mais
a punição como o termo necessário para eli- ricas quanto pelo poder público seria o de
minar o delito. Em todos eles reconhece-se educar os segmentos mais baixos no intuito
a capacidade – ou possibilidade, como quei- de minimizar da melhor forma possível o
ram – humana de transgredir as regras so- problema (BENDIX, 1996, p. 95). Assim, se,
cialmente produzidas, e assim a existência por um lado, tal proposta torna-se a propul-
perene da delinqüência é um fato que não se são de uma nova pedagogia, que informava
pode ignorar. Em outros termos, a trans- sobre a inevitável pobreza, por outro, torna-
gressão das regras socialmente produzidas va-se também necessária a criação de forças
(ou das normas legalmente feitas por meio públicas que controlassem a transgressão
das relações políticas) é um dado que se perenemente produzida. É nesse sentido,
apresenta em todas as sociedades sem qual- por exemplo, que surge no século XVIII e
quer vínculo com as punições previstas, tan- ganha forma definitiva no século XIX o con-
to pelos costumes quanto pelas leis. Ainda ceito de polícia ou, no sentido original, poli-
que se credite a certos autores – a contar de ciar, polir, dar polimento a uma sociedade
Platão – a possibilidade de se construir me- abrutalhada que não condiz com os termos
canismos pedagógicos para que, com isso, da civilidade. Em outras palavras, a idéia
seja alterado o comportamento dos indiví- de se produzir uma espécie de modelo que
duos, tal objetivo não se materializa em sua “educasse” a sociedade em direção aos
plenitude, produzindo-se assim uma deter- “bons modos” surge em virtude de se fazer
minada margem para o delito, seja ele um acomodar os segmentos mais baixos da po-
enfrentamento claro aos costumes ou às leis. pulação frente a sua miséria e as possíveis
Dessa maneira, a punição existe, quando revoltas oriundas desse posicionamento
muito, para que a parte da sociedade que social, ou seja, muito mais do que a “trans-
tende à transgressão tenha um exemplo das gressão” (no sentido de um crime – na au-
conseqüências em relação a um determina- sência de termo melhor), a preocupação re-
do crime e, por meio da dúvida, evite sua sidia na “transgressão social”: a possibili-
consumação ou, em outros termos, a pena dade de se subverter uma hierarquia social
aparece, se tanto, para uma espécie de con- anteriormente produzida.
trole sobre a criminalidade – nunca com a Retornando ao tema principal, um se-
utópica idéia de se acabar com os delitos. gundo exemplo – muito mais voltado para
No que diz respeito aos aspectos peda- aqueles que são contrários a esse tipo de
gógicos, isso não aparece na letra da lei ou punição – é aquele que afirma ser essa pe-
mesmo dos costumes ao longo do tempo, nalidade irreversível, ou seja, frente à possi-
mas sim a contar do Mundo Moderno com o bilidade de um erro jurídico, o suposto con-
entendimento que se produziu em relação à denado não teria uma “segunda chance”,
pobreza e à responsabilidade do Estado, pelos motivos óbvios. Esse tipo de comen-
principalmente a partir dos argumentos de tário torna-se frágil porque, salvo engano
Thomas Robert Malthus. Para ele, era ine- de nossa parte, nenhuma pena é reversível:

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não há como reverter uma punição injusta, Para além disso, cria-se um perigoso pre-
pouco importando qual seja a punição. Bem cedente, isso porque, dando-se ênfase nas
sabemos que, de maneira usual, o que se faz condições de vida de um criminoso, ou seja,
é converter uma punição injusta – pouco demonstrando de maneira clara que é pos-
importando aqui o motivo da injustiça, seja sível dar a um delinqüente meios necessári-
por erro no processo, falso testemunho etc. os para a sua dignidade ao mesmo tempo
– em valores de ordem financeira, ou seja, em que não se oferecem as mesmas condi-
“paga-se tanto a fulano por ter sido envia- ções para o “homem honesto”, o corpo que
do e detido em uma delegacia ou penitenci- atua no meio jurídico é questionado para se
ária por erro judicial”. Não se pode dizer, saber, afinal, “em que lado está”. Dito em
necessariamente, que essa pessoa tenha “re- outras palavras, apresenta-se de maneira
vertido” o constrangimento social de estar nítida que é possível defender o criminoso,
preso por receber uma certa quantia pois, porém, não há recíproca em relação à socie-
afinal, qual é o valor da liberdade? De for- dade civil. É óbvio, e bem sabemos disso, a
ma sucinta e com todos os erros possíveis, responsabilidade de prover o meio social de
sabemos que o cálculo é feito da seguinte um elenco mínimo de subsistência é obriga-
maneira: toma-se a idade, a profissão, os ção do Poder Executivo; contudo, não custa
dependentes diretos e os ganhos que a pes- lembrar, as personagens que habitam o meio
soa teria durante o tempo em que ficou deti- público, particularmente o meio jurídico –
da; a soma corresponderá, aproximadamen- magistrados (estes, sim, membros do Judici-
te, ao valor que a dita pessoa deve receber ário), defensores (subordinados ao Poder
por ter sido presa injustamente. Nesse caso, Executivo), membros de Ministério Público
podemos chegar à curiosa conclusão de que e advogados (os atores privados da área em
a tal “reversibilidade” das penas que não questão) –, em um país em que, por força de
excluem perenemente um indivíduo do meio lei, todos os impasses legais devem ser acom-
social varia na proporção direta entre, por panhados por um representante autoriza-
exemplo, um diretor e um faxineiro de uma do (exceto, é claro, os itens que são solucio-
mesma empresa; imaginando que ambos fi- nados nos Juizados Especiais), tornam-se
quem detidos por um mês, o faxineiro deve responsáveis diretos pela possibilidade de
ser ressarcido talvez em três ou quatro salá- se chegar a uma espécie de justiça, pouco
rios mínimos; já o diretor da empresa... importando aqui a forma como se define tal
Para não nos estendermos em demasia, palavra. Assim, a opinião de todos que atu-
um terceiro exemplo seria aquele que afir- am nesse meio é transformada em referên-
ma serem os defensores da pena de morte cia de certo e errado, de justo e injusto para a
“pessoas que são contra a vida”; talvez o sociedade, o que apenas potencializa o pro-
mais curioso de todos, posto que – é o que blema exposto acima.
parece – a “vida” em questão seria tão-so- Dito isso, o que se propõe no presente
mente a biológica, pouco importando se as texto é discutir a exclusão permanente de
condições da “vida social” são boas ou não. indivíduo de sua sociedade, seja por meio
Em outras palavras, aceita-se sem muitos da pena de morte ou de qualquer outra for-
transtornos a existência de um contingente ma, em seus aspectos estritamente jurídicos
enorme da população vivendo abaixo da li- e políticos, tendo como fontes os argumen-
nha de miséria – utilizando-se como medi- tos historicamente produzidos contra ou a
da o IDH (Índice de Desenvolvimento Hu- favor da mesma, procurando dessa forma
mano) da ONU – ao mesmo tempo em que encontrar as justificativas plausíveis para
se é radicalmente contra a pena capital. Tra- qualquer uma das opções. Assim sendo,
ta-se, curiosamente, de se saber qual o tipo vejamos, então, os argumentos a favor des-
de morte é a mais aceitável... se tipo de punição para, logo a seguir, veri-

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ficarmos os que são contra e procurarmos Desse modo, Cícero (1973, p. 155) afirma-
alguma conclusão a esse respeito. va que
“é, pois, (...) a República coisa do
1. Por que se deve ter a pena de morte povo, considerando tal, não todos os
homens de qualquer modo congrega-
É sabido que a primeira legislação civil dos, mas a reunião que tem seu funda-
– ou seja, estamos descartando todas as leis mento no consentimento jurídico e na uti-
produzidas por sociedades cuja organiza- lidade comum. Pois bem: a primeira
ção política era mítico-religiosa, como, por causa dessa agregação de uns homens
exemplo, Babilônicos, Hebreus, Egípcios etc. a outros é menos a sua debilidade do
– aparece com o Direito Romano. Para este que um certo instinto de sociabilida-
caso, antes de mais nada, deve-se entender de em todo inato; a espécie humana
a organização da sociedade romana como não nasceu para o isolamento e para
vinculada ao princípio da Res Publica (coisa a vida errante, mas como uma dispo-
de todos). Não havia espaço para qualquer sição que, mesmo na abundância de
discussão que escapasse da idéia de que todos os bens, a leva a procurar o
apenas existia a sociedade e, acima de tudo, apoio comum. (grifo nosso).
ela deveria ser mantida. Tomando por em- Assim, não deve o homem atribuir-
préstimo os argumentos de seu princi- se, como virtude, sua sociabilidade,
pal jurisconsulto, Marco Túlio Cícero, o úni- que é nele intuitiva. (...) [Deste modo],
co papel que deveria ser exercido (funcio- todo povo, isto é, toda sociedade fun-
nando como um direito e uma obrigação, ao dada com as condições por mim ex-
mesmo tempo) pelo indivíduo era o de ser postas, (...) toda coisa pública, (...) ne-
um “cidadão virtuoso” ou, em outras pala- cessita, para ser duradoura, ser regi-
vras, agir em prol da saúde pública, o bem- da por uma autoridade inteligente que
estar de todos. Para Cícero, a virtuosidade sempre se apoie sobre o princípio que
deveria ser espontânea; porém, caso isso não presidiu a formação do Estado”.
surgisse de forma natural, ela deveria ser Dessa maneira, a virtuosidade deveria
observada nas ações dos grandes vultos que ser algo esperado dos homens que fizessem
promoveram a existência e manutenção de parte da República, ou seja, daqueles que
Roma, daí brotar o princípio de “história estivessem dentro do “consentimento jurí-
mestra da vida”, ou seja, a história como dico da utilidade pública”, da mesma for-
sendo a dos bons exemplos, dos homens ma que os “direitos e obrigações” do cida-
virtuosos. Da mesma forma, o inverso era dão romano eram itens da agenda daqueles
verdadeiro: um homem não virtuoso trans- que fizessem parte da república, nunca para
formar-se-ia muito rapidamente em um mau aqueles que não possuíssem a cidadania.
exemplo a ser seguido. Nesse sentido, era Assim, transportando os argumentos de
necessária a produção de uma série de nor- Marco Túlio Cícero para analisarmos a le-
mas jurídicas que de algum modo funcio- gislação romana que chegou até nós, a Lei
nassem como referência a todos os homens das XII Tábuas, observamos que, quando um
que desejassem a virtuosidade e, por via de cidadão romano cometia um delito, o pri-
conseqüência, o bem-estar da república. meiro passo em termos de uma punição se-
Dando seqüência ao argumento do au- ria, dependendo do caso, o açoite ou uma
tor, o passo seguinte seria definir quem fa- multa. A reincidência do delito poderia de-
ria parte da res publica, isso porque a exigên- terminar a perda da cidadania (sendo trans-
cia e/ou expectativa em relação à virtuosi- formado em escravo) e, aí sim, surgia a pos-
dade dos homens era diretamente propor- sibilidade da pena capital (precipitando o
cional a seu vínculo com a sociedade. punido do alto da rocha da Tarpéia). A im-

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portância de destacarmos esse processo re- também o legítimo representante dos inte-
side na idéia de que apenas um “não cida- resses morais. É por essa época que começa
dão” poderia ser condenado à morte: ja- a ser construída a idéia dos crimes de “lesa-
mais alguém com a cidadania plena sofre- majestade” (cuja fórmula estará completa no
ria tal punição. Em outras palavras, a rela- Mundo Moderno), ou seja, aqueles crimes
ção entre a pena capital e a cidadania era que ameaçavam os interesses do rei e, por
completa: enquanto existisse a segunda, conseguinte, de toda a sociedade. Para es-
jamais a primeira poderia ocorrer. O que ses casos, a pena de morte aparecia para
estava em jogo, portanto, seria a garantia de punir um delito que tanto era compreendi-
existirem sempre “cidadãos virtuosos” nos do como uma ameaça ao bem-estar da socie-
quadros da res publica: os que ameaçavam o dade, quanto era também um desafio à or-
bem-estar de todos teriam, antes, perdido dem moral. Em outras palavras, se para o
seus direitos dentro da Pax Romana e, por Mundo Romano a perda da cidadania era o
conseguinte, estariam fora da circunscrição “pré-requisito” necessário para ser punido
da lei. com a morte, no Medievo esta mesma cida-
Observa-se, para esse primeiro caso, que dania se vê acrescida de elementos que es-
a pena capital apenas aparece para aqueles tariam, a priori, fora da sociedade: um bom
que não fazem parte do conjunto de direitos cidadão seria não apenas aquele que age
e obrigações dentro da ordem jurídico-polí- em prol de todos, mas também aquele que é
tica, inexistindo para qualquer outro. A moralmente correto em suas ações 3.
maior punição, portanto, seria a perda da ci- É com essa linha de raciocínio que se
dadania por um grave delito cometido, o que chega à Idade Moderna e, particularmente,
já significava a exclusão do meio social2. àquele que irá fornecer o melhor argumento
Se o bem-estar da sociedade seria a prin- sobre o tema: Thomas Hobbes.
cipal referência para o funcionamento do O raciocínio hobbesiano parte da obser-
Direito Romano, o Mundo Medieval insere vação de que a natureza humana é incapaz
o argumento “moral” dentro dos estudos de, espontaneamente, lidar com suas prin-
jurídico-políticos. A palavra “moral” (mo- cipais características, a saber: seu ímpeto
rus, em latim) originalmente significava o predatório e sua vontade de vingança vi-
conjunto de hábitos, costumes de uma de- vendo em um mundo escasso em bens. Tal
terminada sociedade. Assim, estar dentro questão seria a fonte principal da vaidade
dos termos moralmente aceitos significava dos homens que, por sua vez, inviabilizam
agir dentro dos costumes do meio social em a própria condição primária de se viver em
que se vivia. Com o advento do cristianis- grupo. Nas palavras do autor (HOBBES,
mo, essa palavra ganhou um novo desíg- 1973, p. 79):
nio, passando a estar vinculada aos termos “os homens não tiram prazer algum
que a religião imprimia. A conseqüência da companhia uns dos outros (...)
prática foi que, se antes a “moral” era uma quando não existe um poder capaz de
coisa que brotava da própria sociedade, a manter a todos em respeito. Porque
partir da Idade Média a mesma seria “exte- cada um pretende que seu companhei-
rior” à sociedade, ou seja, seria um conjun- ro lhe atribua o mesmo valor que ele
to de valores que deveriam oferecer referên- se atribui a si próprio e, na presença
cias ao comportamento dos indivíduos. Ao de todos os sinais de desprezo ou de
mesmo tempo, a personagem do governan- subestimação, naturalmente se esfor-
te adquiriu uma roupagem presa aos valo- ça (...) por arrancar de seus contendo-
res cristãos, assumindo, então, um caráter res a atribuição de maior valor, cau-
que não apenas o deixava como sendo o re- sando-lhes dano, e dos outros tam-
presentante primeiro do poder político, mas bém, através do exemplo.

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De modo que na natureza do ho- dem e se unam contra o inimigo comum”
mem encontramos três causas princi- (HOBBES, 1973, p. 167).
pais de discórdia. Primeiro, a compe- Assim, frente ao exposto, os únicos ate-
tição; segundo, a desconfiança; e ter- nuantes admitidos pelo autor ao não cum-
ceiro, a glória. primento de uma lei seriam o seu desconhe-
A primeira leva os homens a ata- cimento, pela pouca clareza da mesma, por
car os outros tendo em vista o lucro; a seguirem as interpretações erradas de pes-
segunda, a segurança; e a terceira, a soas autorizadas a interpretá-la, por ser
reputação. Os primeiros usam a vio- constrangido por meio da força a cometer
lência para se tornarem senhores das um delito, por não poder renunciar a sua
pessoas, mulheres, filhos e rebanhos própria preservação ou por “inferências er-
dos outros homens; os segundos, para radas feitas a partir de princípios verdadei-
defendê-los; e os terceiros por ninha- ros” (HOBBES, 1973, p. 182). Em todos os
rias, como uma palavra, um sorriso, outros casos, ninguém poderá ser absolvi-
uma diferença de opinião, e qualquer do caso cometa um crime, isso porque tal
outro sinal de desprezo, quer seja di- prática faria aflorar a natureza dos homens
retamente dirigido a suas pessoas, e, conseqüentemente, haveria o risco do bem-
quer indiretamente a seus parentes, estar da sociedade.
seus amigos, sua nação, sua profis- Por analogia, conforme o autor, o crime
são ou seu nome”. deve ser medido segundo determinados
Com isso, mesmo que os homens não “graus”, cujas penas deverão ser equivalen-
estejam explicitamente em um conflito béli- tes, a saber: pela malignidade da fonte ou
co, existe, como uma sombra constante, um causa, pelo contágio do exemplo, pelo pre-
“estado de guerra dos homens com outros juízo ou efeito e pela concorrência de tem-
homens”, o “homem como sendo o lobo do po, lugares e pessoas (HOBBES, 1973, p.
próprio homem”, na conhecida expressão 185). Nesses casos, como na fundação do
de Hobbes. Estado cada um renunciou ao direito de se
A única solução possível, conforme o defender dos outros em virtude da natureza
autor, é a existência de um poder soberano comum de todos os homens, cabe ao poder
sobre todos os homens, tendo como princí- público determinar a pena a ser aplicada –
pio gerador desse poder o reconhecimento inclusive a pena de morte – principalmente
de todos de que ele é a única fonte legítima porque, “de todas as paixões, a que menos
de todas as decisões políticas e jurídicas. faz os homens tender a violar as leis é o
Para tanto, esse poder deve determinar o medo” (HOBBES, 1973, p. 183). Segundo
conjunto de leis civis, definidas como “cons- Hobbes, se é papel do Estado garantir a paz
tituída por aquelas regras que o Estado lhe pública, essa garantia deve ser dada com
impõe, oralmente ou por escrito, ou por ou- todos os recursos disponíveis, principalmen-
tro sinal suficiente de sua vontade, para te pelo medo provocado pela aplicação das
usar como critério de distinção entre o bem leis, incluindo a morte do criminoso.
e o mal; isto é, do que é contrário ou não é Por último, conforme o autor, admite-se
contrário à regra” (HOBBES, 1973, p. 165). a possibilidade do erro no julgamento. Po-
Dessa maneira, antes de mais nada, a lei rém, esse erro seria muito mais visível na
civil é algo que existe para limitar as ações órbita do Estado – posto ser ele o responsá-
dos homens: “a lei não foi trazida ao mun- vel pela justiça –, e assim os representantes
do para nada mais senão para limitar a li- políticos da sociedade poderiam ser substi-
berdade natural dos indivíduos, de manei- tuídos por outros. Dito de forma diferente,
ra tal que eles sejam impedidos de causar se, dentro do contrato social hobbesiano, o
dano uns aos outros, e em vez disso se aju- papel do Estado é garantir a paz (pela con-

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trapartida de ter assumido todos os direitos lia. Esse julgamento foi o mote de um dos
abdicados pelos cidadãos), o maior interes- livros mais famosos do pensador francês
sado na inexistência do erro jurídico seria o Voltaire (1993, p. 109), chamando a atenção
próprio Estado, ou aqueles que o fazem fun- para o fanatismo religioso e as conseqüên-
cionar, isso porque a não garantia da paz cias tremendas que poderia causar, tanto na
significaria a substituição do Leviatã por esfera do poder público, quanto nos termos
outro. da sociedade:
Vimos, ainda que de modo sucinto, as “para que um governo não tenha o
três formas apresentadas historicamente na direito de punir os erros dos homens,
defesa da pena de morte e em todas elas ob- é necessário que esses erros não se-
servamos que o passo crucial para esse tipo jam crimes; eles só são crimes quando
de punição é a perda da cidadania, seja pela perturbam a sociedade; perturbam a
reincidência de um grave delito, por razões sociedade a partir do momento que
morais ou pela ameaça à paz da sociedade. inspiram fanatismo. Cumpre, pois,
Vejamos, agora, a argumentação contrária que os homens comecem por não ser
a esse tipo de pena. fanáticos para merecer a tolerância”.
Esse problema nitidamente social, segun-
2. Por que não se deve ter a do podemos deduzir a partir da afirmação
pena de morte de Voltaire, determinava uma alteração na
postura do governo em relação às penalida-
As guerras religiosas que assolaram a des a serem aplicadas – particularmente a
Europa a partir da Reforma Protestante (Lu- pena capital –, posto que, com o fanatismo,
tero, em 1517, Calvino e Henrique VIII, am- todo o processo jurídico estaria comprome-
bos em 1534) foram, pouco a pouco, corro- tido.
endo as certezas que sustentavam os pode- O debate provocado pelo texto de Voltai-
res políticos nos países. Todavia, essas re suscitou novas discussões sobre a pena
mesmas guerras, pelo menos em seus dois de morte. Contudo, para que essa discus-
primeiros séculos, acabaram por determinar são possuísse um argumento mais sólido,
a vitória de um ou outro lado sem, entretan- era necessário um novo entendimento so-
to, resolver o pomo da discórdia que seria a bre a própria organização social. Em ou-
convivência de ambas as partes num mes- tros termos, quando entendida da forma tra-
mo lugar. dicional, a idéia que se tinha sobre a socie-
Dentro dessa questão, o caso francês as- dade autorizava, de um modo ou de outro, a
sumiu proporções distintas do restante do existência dessa penalidade conforme vi-
continente europeu visto que a população mos anteriormente.
francesa encontrou-se desde o primeiro De forma curiosa, posto que a preocupa-
momento dividida quase que de forma igual ção residia em outro registro, essa discus-
entre católicos e protestantes, o que deter- são tem início a partir da obra de Montes-
minou diversos embates entre os grupos quieu. Para ele, toda organização social não
desde a tristemente célebre Noite de São Bar- pode estar sob o jugo de uma única pessoa
tolomeu, em 15724. ou grupo, daí ser necessária a divisão de
Chegando ao século XVIII, os franceses poderes para que nenhuma espécie de abu-
se viram envolvidos no escandaloso julga- so seja cometido. A legitimidade do poder,
mento de Jean Calas acusado de matar seu afirma esse autor, apenas existe quando esse
próprio filho por razões religiosas. Conde- poder serve para garantir condições e direi-
nado à morte, o processo sofreu uma revira- tos básicos a todos os indivíduos, nunca o
volta, com novas provas, tendo sido reabili- contrário. Assim, a legitimidade do poder
tada a memória do réu e indenizada a famí- apenas existe quando o mesmo se dá dentro

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dos limites necessários: para além disso, caria defende então a idéia de que a lei deve
toda e qualquer prática torna-se abusiva 5. ser produzida com o intuito de facilitar a
Paralelamente a essa obra, um outro pen- busca à felicidade, nunca o contrário.
sador, Helvétius, oferecia o argumento ne- Entretanto, o autor admite que alguns
cessário para o funcionamento completo indivíduos podem exceder seus direitos e,
dessa fórmula, ao afirmar que a sociedade com isso, provocar um mal estar a outros.
seria o resultado da soma de todas as partes Como, então, seriam estabelecidas as penas?
contidas em seu interior (SANTOS, 2002, p. A primeira preocupação, diz esse autor, é
15). Sendo assim, numa relação recíproca, o identificar o grau de utilidade que uma pena
bom funcionamento de todos segmentos (in- oferece à sociedade. Ao contrário dos argu-
divíduo, sociedade e Estado) seria dado pe- mentos anteriores que viam a punição como
las garantias fundamentais oferecidas pe- algo que operava unicamente com o intuito
las leis e sustentadas por todos os segmen- de atingir o criminoso, Beccaria afirma que
tos sociais. uma penalidade apenas tem sentido se efe-
Reunindo os argumentos de Montes- tivamente produzir ganhos reais à socieda-
quieu e Helvétius, vem à baila, na década de, ou seja, se ela for efetivamente útil à feli-
de 1760, o livro Dos Delitos e das Penas, de cidade da maioria (BECCARIA, 1999, p. 61).
Cesare Beccaria. Nessa obra, o autor acata Sabendo-se que uma punição não possui o
a idéia de que a sociedade é a soma de seus papel de “desfazer um delito”, nas palavras
indivíduos e de que não há sentido no po- do próprio autor, é “necessário escolher pe-
der que vá além daquilo que está estabeleci- nas e modos de infligi-las, que, guardadas
do. Contudo, Beccaria acrescenta outros as proporções, causem a impressão mais
pontos. Para ele, a lei ideal seria aquela que eficaz e duradoura no espírito dos homens”
proporciona a “máxima felicidade compar- (BECCARIA, 1999, p. 62). Assim, inverten-
tilhada pela maioria” (BECCARIA, 1999, p. do um dos argumentos de Hobbes, se o fun-
40), principalmente porque, se é verdade que cionamento de uma lei – principalmente
os homens para viverem em sociedade en- aquela que trata das punições – está direta-
tregaram uma parte de suas liberdades vi- mente vinculado ao “medo” que sua apli-
sando o bem comum, é também verdadeira cação pode produzir, não é na severidade
a afirmação de que isso ocorreu tão-somen- da pena que esse medo aparecerá, mas sim
te para que cada um atingisse particular- na rapidez do julgamento – pois, “quanto
mente o máximo de felicidade possível. Dito mais a pena for rápida e próxima ao delito,
de outra forma, a “soma das partes” que tanto mais justa e útil ela será” (BECCARIA,
acaba formando a sociedade é um “cami- 1999, p. 79) – e na constância de sua aplica-
nho de mão dupla”, ou seja, se, por um lado, ção:
cada um contribuiu para a formação do gru- “não é a intensidade da pena que pro-
po social, por outro lado, cada um espera duz o maior efeito sobre o espírito
atingir a sua felicidade particular, indivi- humano, mas a extensão dela; pois a
dual, dentro do grupo em questão. Admitir nossa sensibilidade é mais fácil e mais
isso significa aceitar o argumento de Mon- constantemente afetada por impres-
tesquieu sobre a função dos Poderes de Es- sões mínimas, porém, renovadas, que
tado; admitir isso significa entender que a por um abalo forte mas passagei-
necessidade das leis e, mais particularmen- ro”(BECCARIA, 1999, p. 96).
te, das penas somente é possível desde que Nesse sentido, afirma Beccaria, é muito
derive da “necessidade absoluta”: caso con- mais racional uma ação pública que vise
trário, a lei e a punição perderiam suas qua- evitar o delito do que uma que se preocupe
lidades primárias e seriam transformadas tão-somente em aplicar punições (BECCA-
em atitudes tirânicas. Por essas razões, Bec- RIA, 1999, p. 30):

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“é melhor prevenir os delitos do que entre a dor e o prazer), Bentham (1989, p.
puni-los. É este o escopo principal de 60-62) defende que, nos casos das punições,
toda boa legislação, que é a arte de a lei deve possuir duas características fun-
conduzir os homens ao máximo de damentais: a primeira, que o castigo deve
felicidade ou ao mínimo de infelici- ser aplicado quando efetivamente valer a pena
dade possível, conforme todos os cál- fazê-lo e, a segunda, que a lei deve induzir o
culos dos bens e dos males da vida”. criminoso a praticar o delito menos grave,
Sendo assim, aceitar a possibilidade de aumentando ou diminuindo a punição con-
se excluir permanentemente um indivíduo forme as ações cometidas ao se materializar
do meio social será, antes de mais nada, o delito ou, nas suas palavras:
admitir o fracasso da própria sociedade e “I – o valor ou gravidade da puni-
dos poderes públicos na educação deste ção não deve ser em nenhum caso in-
mesmo indivíduo, posto que o meio social e ferior ao que for suficiente para supe-
o Estado possuem um instrumental mais do rar o valor do benefício da ofensa ou
que necessário para prover qualquer mem- crime; II – quanto maior for o prejuízo
bro das condições mínimas de civilidade. derivante do crime, tanto maior será o
Em outro aspecto, condená-lo à morte preço que se pode valer a pena pagar
seria também entrar em contradição com a no caminho da punição; III – quando
definição daquilo que vem a ser uma socie- houver dois crimes em concorrência,
dade: a soma de todos os seus indivíduos. a punição estabelecida para o crime
Se uma pessoa, durante certo tempo, contri- maior deve ser suficiente para indu-
buiu para a formação e funcionamento de zir uma pessoa a preferir o menor; IV
sua sociedade, ela não pode ser descartada – a punição deve ser regulada de tal
sumariamente, pouco importando o delito. forma para cada crime particular, que
Por último, não haveria ganho nenhum para cada nova parte ou etapa do pre-
para a sociedade com a condenação de al- juízo possa haver um motivo que dis-
guém. Segundo Beccaria (1999, p. 96): suada o criminoso de produzi-la; V –
“não é o espetáculo terrível mas pas- a punição apenas deve ocorrer quan-
sageiro da morte de um celerado, e sim do o seu custo não for superior ao va-
o longo e sofrido exemplo de um ho- lor do crime cometido.”
mem privado da liberdade e que, con- Muito mais pragmático do que Beccaria,
vertido em besta de carga, recompen- Bentham entende, pelo que nos foi possível
sa com seu trabalho aquela sociedade examinar, que todas as leis devem ser pro-
que ofendeu, que constitui o freio mais duzidas a partir da relação custo/benefício
forte contra os seus delitos. Aquela para todo o conjunto da sociedade (enten-
repetição a si mesmo, eficaz por seu dida, também, por ele como sendo a soma
insistente retorno, ‘eu mesmo serei re- de todos os indivíduos). Quando uma lei
duzido a tal longa e mísera condição produzir mais dor do que prazer ou, para o
se cometer semelhantes delitos’, é caso das punições, seu custo não for com-
muito mais poderosa do que a idéia pensador, o resultado de ambos os casos é
da morte, que os homens sempre vêem que a sociedade será punida e, portanto, esse
longínqua e obscura”. tipo de legislação deve ser descartado.
Aproximadamente trinta anos depois de Em ambos os autores, observa-se o pro-
Beccaria ter publicado seu livro, Jeremy Ben- blema de um prisma distinto daquele que
tham potencializa esse argumento. Aceitan- vimos anteriormente. Para o primeiro caso
do a idéia da máxima felicidade (que, em – os argumentos que entendem como uma
seu texto, assume outra terminologia, a sa- opção plausível a exclusão permanente de
ber, a relação existente em todos os homens um indivíduo do meio social –, identifica-

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mos que a preocupação fundamental reside der público (de acordo com os termos de
na aplicação da penalidade. Para esses úl- Hobbes). Já no extremo oposto, daqueles que
timos, a pergunta que se faz é saber até que são contrários a esse tipo de punição, o in-
ponto esse tipo de punição oferece um divíduo é entendido como peça primordial
ganho para o meio social e, com isso, a na constituição da sociedade (a sociedade
negativa para uma pena de tal espécie como a soma de todas as partes), daí, ex-
reside em ser ela, a priori, completamente cluí-lo permanentemente do meio social ser
desnecessária. algo inconcebível. Portanto, a segunda con-
clusão que podemos chegar é que a punição
3. À guisa de uma conclusão ou o está diretamente vinculada à maneira pela
início de um novo debate qual o indivíduo é definido pela sociedade
civil – o que nos impede, mais uma vez, de
Observamos, ainda que sucintamente, os tecer qualquer tipo de comparação.
argumentos que foram produzidos ao lon- Todavia, isso não nos basta. Frente ao
go do tempo para apoiarem ou não a pena exposto, poderíamos, então, acatar a idéia
de morte ou, para usarmos uma expressão de que a existência ou não da pena de morte
mais exata, a exclusão permanente de um está por completo vinculada ao arranjo po-
indivíduo do meio social. Poderíamos, como lítico da sociedade em questão. Noutras
uma primeira conclusão, perceber que a palavras, como os argumentos são distin-
construção de cada um desses argumentos tos e não propiciam uma comparação para
não nos oferece condições para uma com- se saber qual dos dois seria o mais aplicável
paração: para aqueles que defendem a pena ou mais sensato, a escolha de se ter tal tipo
capital, a preocupação primária reside em de pena estaria dependente dos conflitos e
pura e simplesmente punir o criminoso; para modelos de organização política entre os
os que são contra esse tipo de pena, a preo- representantes da nação no parlamento.
cupação reside na utilidade que isso teria Seria, em última análise, uma mera questão
para o bem-estar da sociedade. De maneira de se escolher entre um ou outro a partir do
curiosa, percebe-se a inversão dos valores embate político.
que cotidianamente aparecem nas análises Porém, se aceitarmos tal afirmação – de
mais tradicionais, ou seja, quanto mais pró- que tudo não passa de uma opção por esta
xima está a defesa dos interesses da socie- ou aquela fórmula –, torna-se necessário
dade, mais próxima está a ação sobre o in- identificarmos, caso isso seja possível, que
divíduo; da mesma forma que o inverso é tipo de configuração política determina esta
verdadeiro: quanto mais se pretende defen- ou aquela escolha, ou seja, quais as conjun-
der o indivíduo, mais se quer manter a socie- turas políticas que tendem mais a aceitar a
dade como um bem a ser preservado. exclusão permanente de um indivíduo e
Um segundo aspecto seria observar que, quais as conjunturas que não acatam essa
para cada uma das opções, a definição que idéia.
se tem do “ser humano” é distinta. Para os Nesses termos, em um levantamento su-
defensores da pena capital, ou bem o indi- mário em que se teve a preocupação de ob-
víduo é descartado de qualquer avaliação e servar países desenvolvidos e subdesenvol-
leva-se em conta tão-somente a sociedade vidos do Mundo Ocidental6 na atualidade,
(como é o caso da legislação romana ou, por foi possível constatar, em um primeiro mo-
outros meios, dos fundamentos do mundo mento, a substituição paulatina da pena de
medieval), ou bem o indivíduo possui uma morte pela prisão perpétua (em ambos os
natureza anti-social e que seu convívio com casos, a exclusão permanente do indivíduo
outros indivíduos apenas é possível quan- em relação ao meio social): à exceção da
do todos estão sob o rígido controle do po- Holanda, Dinamarca e da Alemanha, em

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todos os países desenvolvidos a legislação rompa todas as regras básicas de civilidade
prevê a prisão perpétua, sendo a pena de e boa convivência, transformando-se, assim,
morte exclusiva dos Estados Unidos, Gré- numa punição justa...portanto. Da mesma
cia e Irlanda (vale ressaltar que Espanha e forma o inverso é verdadeiro, ou seja, os
Bélgica, originariamente defensoras da pena países subdesenvolvidos que adotassem tal
capital, apenas recentemente alteraram a modalidade de pena estariam, no final das
legislação nesse sentido). Inversamente, contas, punindo certos indivíduos duas ve-
observa-se que, nos países subdesenvolvi- zes: pela miséria que convivem diariamen-
dos, inexiste qualquer uma dessas punições, te e pela exclusão definitiva do meio social,
com as penas mais severas nunca ultrapas- que já os “exclui” cotidianamente. Uma
sando trinta ou quarenta anos de reclusão punição injusta, por...tanto.
(exceção para o Chile e a Argentina, que
possuem uma legislação que prevê a prisão
perpétua). Notas
Frente a esses dados, o que poderíamos 1
Trata-se da legislação aprovada pelo estado
pressupor? Podemos entender como derra- de Nova Iorque, nos EUA, que, após os atentados
deira conclusão, aqui transformada numa de 11 de setembro de 2001, reeditou a pena de
Hipótese, que a escolha política pela exclu- morte como tentativa de se evitar novos atos terro-
são definitiva do indivíduo do meio social ristas.
está diretamente vinculada ao desenvolvi-
2
Esses comentários podem ser observados no
Direito Romano, Tábuas Segunda, Sétima e Nona.
mento econômico e humano do país ou, em 3
Tanto no aspecto teórico quanto na descrição,
outros termos, quanto mais próximo de uma um bom exemplo sobre tema pode ser visto em
democracia social, mais torna-se aceita a Santo Tomás de Aquino (1997); Kramer; Sprenger
pena de morte ou a prisão perpétua; quanto (1995).
mais distante de uma democracia social,
4
Por ordem do rei Carlos IX, houve um massa-
cre de protestantes em Paris e diversas partes da
menos a legislação prevê esse tipo de puni- França.
ção. Ainda dentro dessa Hipótese, tal fato 5
É a observação feita pelo autor e amplamente
ocorreria em virtude da não aceitação de que conhecida. Para maiores esclarecimentos, cf. Se-
um indivíduo se utilize de atos violentos condat (1973) (particularmente, o livro XI).
(sejam eles de qualquer espécie) em uma
6
Nossa amostra insere os seguintes países: na
América: Brasil, Equador, México, Argentina, Uru-
sociedade em que as condições de vida sus- guai, Venezuela, Peru, Bolívia, Canadá, Chile e Es-
tentadas tanto pelo poder público quanto tados Unidos; na Europa: Inglaterra, Portugal,
pelo meio social conseguem suprir aquele Espanha, França, Hungria, Áustria, França, Bél-
mínimo necessário para a sobrevivência dig- gica, Holanda, Alemanha, Dinamarca, Suécia,
na. Da mesma forma, o inverso é verdadei- Noruega, Rússia, Irlanda e Grécia. As informa-
ções foram obtidas junto às embaixadas desses
ro: quanto menos digna é a vida dos indiví- países no Brasil e junto aos órgãos da União
duos no dia-a-dia de uma sociedade – pou- Européia.
co importando aqui se é pela incapacidade
do Estado em solucionar as desigualdades
sociais e econômicas ou, então, por proble-
mas puramente de ordem sociológica –, Bibliografia
menos é aceitável sua completa exclusão
social. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Pau-
lo: Martins Fontes, 1999.
Sendo assim, ainda que nos países eco-
nômica e socialmente desenvolvidos exista BENDIX, Reinhard. Construção nacional e cidadania.
o princípio das garantias individuais, es- São Paulo: Editora da USP, 1996.
ses mesmos países assumem o custo de ex- BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios
cluir permanentemente um indivíduo que da moral e da legislação. São Paulo: Nova.

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Cultural, 1989. (Os Pensadores). MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo:
Abril, 1973. (Os Pensadores).
CÍCERO, Marco Túlio. Da república. São Paulo: Abril,
1973. (Os Pensadores). SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Os paradoxos
do liberalismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Re-
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria e forma de um
van, 2002.
governo eclesiástico e civil. São Paulo: Abril, 1973.
(Os pensadores). TOMÁS DE AQUINO, Santo. Escritos políticos.
Petrópolis: Vozes, 1997.
KRAMER, Heirich; SPRENGER, James. O martelo
das feiticeiras. 11. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos tem- VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São Paulo:
pos, 1995. Martins Fontes, 1994.

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