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179-187, 2003
CIDADES IMAGINÁRIAS:
O BRASIL É MENOS URBANO DO QUE SE CALCULA
Veiga , José Eli da
Campinas - São Paulo, Editores Associados , 2002
Seria o Brasil "m enos urbano do que lançado pelo Autor e contida no título do
se calcula?" livro. É a partir deste desafio que me
pus a tecer alguns comentários, sobre o
A idéia do título do livro "Cidades livro, com os limites evidentes, que uma
Imaginárias: o Brasil é menos urbano "resenha" contempla.
do que se calcula"1 é estimulante A idéia de estabelecimento de
e atraente. Ao ver o livro, temos a diálogo com o professor José Eli da Veiga
impressão de que esta é a tese que será traz uma primeira dificuldade: o conjunto
desenvolvida e foi, com grande interesse, de artigos, não apresenta uma reflexão
que me pus a lê-lo. Mas ao contrário, aprofundada baseada em argumentos
trata-se, na realidade, de um conjunto sólidos, e numa pesquisa capaz de
de textos, (pequenos e superficiais) construir um referencial a altura do
publicados, originalmente, sob a forma desafio lançado pelo título do livro.
de artigos de jornal e organizados para Um outro problema que enfrentamos
dar corpo ao livro, diluindo-se, ao longo é que o Autor vai emitindo opiniões
das páginas, a idéia que acreditava ser muitas delas apoiadas em estatísticas
o fio condutor do pensamento do Autor. dos países centrais para explicar "nosso
Assim, para evitar desilusão aos leitores desenvolvimento"
desatentos, atraídos, como eu, pelo Poderíamos, tecer, inicialmente
título, o livro deve ser lido como ele é, fazer uma primeira observação referente
no café da manhã. Mas o que há de, ao método, e nesta perspectiva, a
extremamente, positivo na obra, é que preocupação que atravessa o livro é a
é impossível ficar indiferente ao desafio idéia da produção de um conhecimento
Professora Adjunto do Departam ento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo e-mail: anafanic@ usp.br
180 GEOUSP Espaço e Tempo, São Paulo, N - 13, 2003 Carlos, A. F. A.
Brasil, é definida como sede de município. e inferior a 50.000 cai para 10" Desta
Deriva dessa acertiva a constatação de "profunda observação" o Autor conclui
que existiriam no Brasil 5507 sedes que há "dois tom bos" que permitem (a
municipais em 2000, todas com estatuto ele é claro!) "considerar de pequeno porte
legal de cidade - o que a meu ver não municípios que tem, simultaneamente,
diz nada sobre o seu conteúdo. Mas menos de 50.000 habitantes e densidade
deste dado, revela, que 455 seriam inferior a 80 habitantes/km 2 " Para em
"inequivocamente urbanos" sobrando, seguida escrever que "com a ajuda
5052 dentre as quais seria preciso, para destes dois cortes (?) conclui-se que não
Veiga, distinguir as que "pertencem pertencem ao Brasil indiscutivelmente
ao Brasil rural" e as que estariam "no urbanos nem a o Brasil essencialmente
meio de campo" (sic), imagino que entre rural, 13% dos habitantes, que vivem
a cidade e o campo, segundo o critério em 10% dos m unicípios"2^ Entre estes
estabelecido pelo Autor. Para apoiar dois Brasis descobre um "intermediário"
esta classificação estabelece um critério Sem maiores problemas de definição. E
baseado na densidade demográfica,- que através de uma conta, não muito clara
estaria no âmago do chamado índice decreta que 3% da população brasileira
de pressão antrópica" (definida como é rural.
o melhor grau de artificialização dos A passagem acima, em primeiro
ecossistemas e, portanto, do efetivo grau lugar, longe de analisar processos se
de urbanização dos territórios) onde a prende a números e é com eles que
localização refletiria, as modificações do acredita apoiar suas idéias sobre a
meio natural que resultariam da atividade urbanização brasileira. O problema
humana. Neste raciocínio distingue áreas é que "urbano" e "rural" longe de
"mais rural" em função da "natureza serem meras palavras são conceitos
intocada" e "ecossistem as mais alterados" que reproduzem uma realidade social
pela ação humana e manchas ocupadas concreta. A simples delimitação espacial
pelas " megalópolis", ecossistem as "mais do se acredita ser o urbano ou rural nos
alterados" ou "artificializados" Uma diz muito pouco sobre os conteúdos
classificação, altamente questionável. do processo de urbanização brasileira,
Escreve o Autor: "observando a no momento atual. Em primeiro lugar
evolução da densidade demográfica porque não se confunde processo de
brasileira, enquanto os municípios com urbanização com densidade demográfica.
mais de 100.000 habitantes a densidade Nem tão pouco, cidade, com sede de
é superior a 80 habitantes por km, entre município. Mas apesar dessa confusão
75.000/ 100.000 a densidade cai para 20 conceituai, e da evidente sim o lifica çã o
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que seu raciocínio contempla, o Autor de uma lógica de crescimento sob a égide
escreve que é necessário "rom per com do Estado.
a precariedade que domina a visão oficial A Questão a partir da produção
sobre o desenvolvimento territorial do do espaço é como se ampliam e
Brasil donde se colocaria a necessidade aprofundam, no mundo moderno, as
de renovação do pensamento brasileiro contradições decorrentes da reprodução
sobre as tendências da urbanização.3 da sociedade num momento de
Daqui se depreende que, primeiro o generalização da urbanização anunciada
Autor confunde pensamento oficial com pelo desenvolvimento da cidade , isto é
a produção do conhecimento fora do com sua "explosão" Assim se revelaria
estado4, segundo, é ingênuo acreditar um debate profícuo aquele das relações
que as políticas publicas produzidas entre o Estado e o espaço através, por
pelo Estado se orientam pelos dados exemplo, das políticas públicas.
elaborados elo IBGE pois a racionalidade A idéia de "pressão antrópica
do Estado é outra. sobre a natureza e artificialização dos
O que o Autor ignora é que estamos ecossistemas, nada revela do que
diante da produção do espaço pela se constrói enquanto cidade e campo
sociedade e sob a égide do Estado esta enquanto produto de ações de uma
produção ganha um caráter estratégico. sociedade real. A limitação do papel
O Estado regulador impõe as relações da sociedade a uma indefinida "ação
de produção enquanto dominação do antrópica", reduz o espaço a um quadro
espaço, imbricando espaços dominados/ físico inerte, passível de sofrer maior ou
dominantes para assegurar a reprodução menor intervenção humana, revelando
da sociedade. A busca de coesão / um processo de "naturalização da
coerência e equilíbrio baseada na sociedade"
eficácia do que chama " desenvolvimento Na realidade, as relações sociais
sustentável" é pura ideologia pois se realizam, concretamente, enquanto
elimina conflitos e contradições. E assim relações espaciais e, neste sentido, a
a crítica ao Estado se reduz ao problema análise do espaço revela um processo
da definição administrativa da cidade e de produção/reprodução da sociedade
não a sua capacidade produtiva que se em sua totalidade. Não podemos ignorar
estende por todo o espaço. É ingênuo que o trabalho é criador de formas
acreditar que mexendo nas estatísticas, - este processo esta na origem da
redirecionam-se as políticas que vão produção da cidade e do campo. A idéia
criar a possibilidade do crescimento; isto de ecossistema naturaliza, portanto um
porque, o espaço é o lugar da planificação fenômeno, que em essência é social. A
Cidades Imaginárias:
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Notas