Você está na página 1de 13

ISSN 1413-389X Temas em Psicologia - 2011, Vol.

19, no 1, 219 – 231

Representações sociais de futuros professores sobre o


brincar: elementos para se pensar os reguladores sociais
associados à infância

Daniela B. S. Freire Andrade


Universidade Federal de Mato Grosso – MT, Brasil

Érica N. H. Teibel
Universidade Federal de Mato Grosso – MT, Brasil

Resumo
Este estudo tem como objetivo analisar a representação social sobre o brincar segundo um grupo de
197 acadêmicos do curso de Pedagogia da UFMT, campus Cuiabá. Para tanto, os referenciais teóricos
utilizados foram a Teoria das representações sociais, de Serge Moscovici (1978) e a Teoria do núcleo
central, de Jean-Claude Abric (1998) em diálogo com as contribuições de Winnicott (1975, 2005)
sobre as questões associadas à ludicidade. A coleta de dados baseou-se na técnica de Associação de
Palavras. O processamento foi realizado por dois softwares, o Ensemble de Programmes Permetettant
l’Analyse des Evocations (EVOC), que possibilitou esclarecimentos acerca de como os conteúdos da
representação social investigada estão estruturados, e o Cohesive Hierarchical Implicative
Classification (CHIC), que por meio da análise implicativa clássica permitiu notar relações entre os
termos evocados, possibilitando inferir possíveis caminhos discursivos. Os resultados indicam que a
representação dos licenciandos sobre o brincar é demarcada de forma positiva e idealizada. No
sistema periférico identificou-se também a presença de discurso organizado pela inserção de
conteúdos acadêmicos, fato que pode caracterizar o fenômeno da polifasia cognitiva.
Palavras-chave: Brincar, Representações sociais, Infância.

Social representations according to future teachers about playing:


elements to give thoughts about the social regulations related to
infanthood

Abstract
This case of study has a purpose of analysing the social representations regarding the playing
according to 197 scholars of Pedagogy at UFMT, Cuiaba campus. Therein, the theoretical references
used were the Social Representation Theory by Serge Moscovici (1978) and the Central Core Theory
by Jean-Claude Abric (1998) in dialogues with Winnicott’s contributions (1975; 2005) regarding the
matters related to playfulness. Data collection was based upon the Word’s Association technique.
Processing was done through two softwares: Ensemble de Programmes Permetettant l’Analyse des
Evocations (EVOC), which allowed clarification regarding how the social representation contents that
are being investigated are structured, and the Cohesive Hierarchical Implicative Classification
(CHIC), which through the classic implicative analysis allowed noticing a relation between the
evoked terms. Therefore, allowing understand the possible pathways to discussion. The results
indicate that the representation which the undergraduate has, as to playing, is had in a positive form
and idealized. In the peripheral system it was also found the presence of a discourse which is
organized by the insertion of academic contents, fact which could characterize the cognitive
polyphasia phenomena.
Keywords: Play, Social representation, Infanthood.

_____________________________________
Endereço para correspondência: Daniela B. S. Freire Andrade. E-mail: freire.d@terra.com.br. Érica N. H.
Teibel. E-mail: ericanayla@yahoo.com.br.
220 Andrade, D. B. S. F., & Teibel, E. N. H.

A maneira de perceber e de pensar a


Introdução criança influi sobre suas condições de
A coexistência de saberes oriundos do vida, sobre seu estatuto e sobre os
campo do saber científico com aqueles comportamentos dos adultos em relação
originários do campo do pensamento ingênuo a ela. Em uma dada sociedade, as ideias
atuam como espécie de crivo de leitura da e as imagens relativas à criança, por mais
realidade por meio do qual profissionais da variadas que sejam, organizam-se em
educação tomam decisões e organizam sua representações coletivas, que formam um
prática, definindo processos de ensino e sistema em níveis múltiplos. Uma
aprendizagem. linguagem “sobre” criança é criada assim
Ao ingressarem na academia, alunos de como uma linguagem “para” a criança, já
Pedagogia trazem consigo teorias do senso que imagens ideais e modelos lhe são
comum que, segundo Moscovici (1978, 2003), propostos. (De Lauwe, 1991, p.1)
são conjuntos de conceitos articulados que têm
sua origem nas práticas sociais e diversidades Em torno das representações acerca da
grupais cujas funções envolvem: dar sentido à infância e da criança, De Lauwe (1991)
realidade social, produzir identidades, organizar descreve que os adultos atuam conforme
as comunicações e orientar as condutas. significam a infância, criando um mundo no
Ao longo do processo de formação inicial qual as crianças crescem. A autora explica que
de professores, tais significações são existe um processo de mitificação da infância,
confrontadas em maior ou menor grau com as por meio do qual o infante é essencializado a
teorias científicas, gerando nos acadêmicos partir de valores que a sociedade busca
certo estranhamento frente a novas evidenciar. Do ponto de vista das crianças, tais
significações, abrindo espaço para a partilha de representações funcionam como espécie de
novos significados e para a transformação de “fatos sociais” que possuem força coercitiva de
antigas representações. uma representação coletiva. Sobre tal assunto, é
Segundo Sousa, Tavares e Bôas (2006), é preciso admitir que o desenvolvimento da
essa articulação entre o conhecimento criança ocorre no contexto da
científico, promovido pelos cursos de intersubjetividade, sendo que esta
licenciaturas, juntamente com o saber do senso necessariamente se defronta com uma pré-
comum partilhado pelos alunos que delineia a estruturação do ambiente social na qual se pode
identidade docente, fator altamente relacionado identificar normas, representações, cenários que
à construção do conteúdo e da forma da sua organizam as interações sociais nas quais as
atividade profissional. crianças tomam parte.
De Lauwe (1991) acredita que, ao Doise (2001) anuncia que são esses
conhecer as representações partilhadas por reguladores sociais que conduzem a criança a
técnicos e responsáveis pela criança, estudiosos orientar suas atividades mentais em relação ao
estariam mais próximos da compreensão acerca ambiente, organizando a ação dos sujeitos nas
da infância, tendo em vista que sua integração relações sociais. Esses reguladores adquirem
social se opera por meio de uma série de uma função estruturante, podendo agir como
identificações vinculadas às expectativas dos facilitadores da resolução de tarefas já que,
adultos. Assim, a autora anuncia que frente a situações problemas, o raciocínio
determinadas práticas sociais dirigidas às poderá ser marcado pela correspondência entre
crianças delineiam estruturas de oportunidade as respostas cognitivas, corretas ou incorretas, e
que o meio oferece ao infante criando universos as respostas possíveis que decorrem de
de socialização. significações.
A noção de universos de socialização Nesse sentido, estudar as representações
estaria vinculada a dados geográficos, de quem terá poder sobre as condições de vida
socioeconômicos e institucionais, relativos à da criança, ainda que apenas no âmbito escolar,
criança, além das concepções, representações e pode fornecer pistas acerca do universo
ideologias daqueles que têm o poder sobre as simbólico no qual a criança está inserida. Como
condições de vida do infante. Deste modo, afirmam Emler, Ohana e Dickinson (2003), é
anunciam-se estudos sobre representações e por meio da interação e comunicação com
valores referentes à criança e desenvolvidos a outras crianças e adultos que o infante recebe e
partir dela. exerce a influência social que vai contribuir no
Ludicidade e reguladores sociais associados à infância 221

processo de construção de conceitos da criatividade há muito presente nas relações


compartilhados com o seu grupo de pertença. sociais. Este fato, no entender de Cerisara
Neste contexto, a ação das crianças estaria (2002), colabora para a formação de uma
apoiada tanto no sentido da acomodação, fragmentação das diferentes dimensões do ser
quanto no da resistência frente às relações humano, separando o pensar do sentir e o
cognitivas e as normas incorporadas pela imaginar do criar e brincar.
estrutura de oportunidades de aprendizagem e As contribuições da perspectiva sócio-
desenvolvimento. histórica revelam a brincadeira como forma por
Assim, o presente estudo pretende tomar meio da qual a criança inicia a sua
as representações sociais sobre o brincar como aprendizagem sobre o mundo e sobre si mesma,
pano de fundo para compreender os aspectos da em um processo que caminha de um estado de
rede de significados partilhada por futuros indiferenciação para a diferenciação, resultando
docentes cuja ação profissional estará dirigida a na capacidade de autorregulação e de
instituições educacionais em unidades da simbolização. Esse processo inicia-se sob o
Educação Infantil e do Ensino Fundamental. domínio das funções mentais inferiores que
Esses contextos têm o compartilhamento de paulatinamente são superadas pelas funções
regras em um sistema normativo que formaliza mentais superiores por meio da apropriação e
uma cultura institucional operante, composta internalização de signos.
por reguladores sociais específicos que Vygotsky (1991), ao descrever a diferença
orientam comportamentos, expectativas e entre o brincar e outras atividades, conclui que
práticas educacionais, variando desde o brincar se define pela criação de situações
oportunidades voltadas para a aprendizagem imaginárias nas quais a criança assume um
lúdica até mesmo a sua negação. papel de outra pessoa, realizando suas ações e
Nesse sentido, este trabalho objetiva estabelecendo suas relações típicas, de modo
estudar os conteúdos e as estruturas das que satisfaça desejos que na realidade não
representações sociais sobre brincar, tomando- podem ser atendidos imediatamente. “A ação
os como elementos que contribuem para a numa situação imaginária ensina a criança a
compreensão da articulação de diferentes dirigir seu comportamento não somente pela
conhecimentos no processo formativo. Essa percepção imediata dos objetos ou pela situação
compreensão auxiliará também a refletir sobre que a afeta de imediato, mas também pelo
como os futuros docentes poderão analisar e significado dessa situação.” (Vygotsky, 1991,
avaliar os comportamentos infantis no contexto p. 110.).
escolar e a eles reagir profissionalmente. Segundo Dantas (2002), o lúdico, na
A tensão entre senso comum e discurso perspectiva walloniana, é sinônimo de infantil,
científico configura campo fértil para a isso porque toda a ação da criança é lúdica,
produção de novas representações sociais ou entretanto, entende-se a brincadeira como ação
mesmo de suas transformações. Este parece ser voluntária e consciente que a criança
o contexto da formação inicial de professores. desempenha ao mergulhar na ação lúdica,
Portanto, visando uma melhor compreensão possuindo um fim em si mesma. Já quando ela
desse quadro, serão apresentadas a seguir se associa a um produto como a aprendizagem
algumas reflexões orientadas por debates por via de um jogo educativo, a brincadeira
teóricos importantes que permitem a acaba por assumir o caráter de trabalho. Deste
compreensão do fenômeno da ludicidade e das modo entende-se que o termo lúdico abrange
representações sociais. tanto a atividade individual e livre, quanto a
atividade coletiva e regrada.
O brincar e o desenvolvimento Por sua vez, as contribuições de Winnicott
(1975, 2005) evidenciam que a brincadeira se
infantil no contexto escolar
relaciona diretamente com a criação para a
Estudiosos como Brougère (2002) revelam criança da externalidade do mundo. Para ele, o
sua estranheza ao constatar que muitos brincar se localiza no que o autor denomina
educadores dão pouca ou nenhuma importância espaço potencial, um lugar constituído a partir
para o brincar da criança e que, de modo geral, das vivências do bebê e localizado entre o
apresentam dificuldades em lidar com o lúdico. mundo interno da criança e os aspectos da
Tal dificuldade pode ser explicada por meio da realidade externa, permitindo assim que, no
recorrente negação do espaço da imaginação e afastamento do cuidador, o infante possa
222 Andrade, D. B. S. F., & Teibel, E. N. H.

suportar essa ausência, utilizando algo da maior saliência, sendo o mesmo elemento
realidade para torná-lo presente. Deste modo, a organizador da representação. No entanto, na
criança consegue preencher esse espaço com o representação social de aluno, o vocábulo
brincar criativo aliado ao desenvolvimento do brincar é silenciado no rol dos elementos
pensamento. estruturais da representação, configurando na
Winnicott (1975, 2005), ainda salienta a sua periferia o vocábulo bagunçar,
relevância da ludicidade na administração da provavelmente uma referência à manifestação
agressão e da destrutividade, fatores tão lúdica que no contexto da sala de aula parece
inerentes ao processo de constituição da ser caracterizada como transgressão.
subjetividade humana quanto os sentimentos de Já o estudo de Braga (2010), com a mesma
amor, reparação e cuidado. população, anuncia a representação social da
O autor reforça ainda que as crianças em sala de aula como espaço destinado à
idade pré-escolar tendem a agir segundo concentração e disciplina e a representação
emoções fortes e agressivas. Deste modo, para social do recreio como espaço aberto à
promover um ambiente facilitador de expressividade espontânea. Em certa medida,
desenvolvimento, é importante que os pode-se pensar que, para os acadêmicos de
professores consigam acolher tais Pedagogia consultados, futuros professores de
comportamentos, assumindo as orientações alunos cujas idades variam até dez anos, a
necessárias. escola se organiza segundo reguladores sociais
O brincar é entendido então como a base caracterizados pela dicotomia dentro e fora da
por meio da qual a criança pode aprender a sala de aula, estando a brincadeira associada
transformar e a utilizar objetos do mundo para aos espaços externos à sala de aula. Assim,
neles realizar-se e inscrever os próprios gestos quando a ludicidade se manifesta dentro da
sem perder contato com a própria sala, observa-se a tendência de ela ser
subjetividade. Nesta perspectiva, a brincadeira significada como manifestação da indisciplina.
torna-se a possibilidade de elaboração de É possível então pensar que o professor
significados e sentimentos associada ao nomeia determinados comportamentos como
domínio da angústia, ao controle de ideias ou brincadeira e, ao fazer isso, demarca as regras
impulsos para com isso dar escoamento ao ódio de convivência em sala de aula.
e à agressão, além de desenvolver a tolerância à Tais resultados podem indicar o
frustração e canalizar a agressividade. descompasso entre as proposições teóricas
Na brincadeira, inscreve-se o gesto pessoal amplamente divulgadas nos cursos de formação
à medida que se utilizam objetos da realidade inicial de professores e os significados
externa, transfigurando-os de acordo com a atribuídos à expressividade infantil, e mesmo
fantasia. Nesse movimento, aproxima-se do próprio adulto. Eles são indicadores de que
intenção do gesto, integrando imaginação com no processo de formação acadêmica nem
a realidade externa em um diálogo com o sempre os conhecimentos advindos do campo
mundo que funciona como a base para a científico serão tomados como marcos de
aprendizagem, discriminando criação de referência para a interpretação e atuação na
aprendizagem, autoria de apropriação inventiva realidade educacional.
do conhecimento.
Frente a esses indicadores a proposição
deste estudo, justifica-se em torno das hipóteses Sobre a teoria das representações
interpretativas advindas das investigações sociais
intituladas Criança e aluno: um estudo de
representações sociais segundo licenciandos de Jodelet (2001), ao realizar uma
Pedagogia da UFMT, campus Cuiabá (Lima, sistematização do conceito de representação
2010) e Dentro e fora da sala de aula: um social assinala que ela é “uma forma de
estudo acerca das representações sociais do conhecimento, socialmente elaborada e
espaço escolar segundo licenciados de partilhada, com o objetivo prático, e que
Pedagogia da UFMT (Braga, 2010). contribui para a construção de uma realidade
Nos estudos sobre as representações comum a um conjunto social” (p.22). Deste
sociais de criança e aluno (Lima, 2010), modo, destaca-se que as representações sociais
destaca-se o fato de que, na representação não são cópias da realidade, mas sínteses
social sobre criança, o atributo brincar possui criativas de grupos, que delineiam suas
Ludicidade e reguladores sociais associados à infância 223

significações em meio a condições em que se Abric (1998) desenvolve a Teoria do


encontram. Essas condições podem ser a núcleo central a partir da ideia de que as
qualidade de informação sobre o objeto a que representações sociais são conjuntos
têm acesso ou inferências que o grupo tende a organizados e estruturados, que apresentam um
aderir em função de mecanismos defensivos. sistema sociocognitivo particular, regido por
Com base nisso, é possível compreender dois subsistemas: um núcleo central e o sistema
que a representação social de um grupo lhe é periférico.
importante, pois auxilia na assimilação de Considera-se que o sistema central é
novos conhecimentos, incorporando aquilo que vinculado às condições históricas, sociológicas
se considera estranho ou novo, sem que tais e ideológicas, sendo também ligado às normas
conhecimentos adquiram características e aos valores sociais, definindo a organização e
ameaçadoras para a identidade grupal. Elas o significado da representação.
também estabelecem critérios para a orientação Em estreita articulação com o núcleo
de condutas, explicando-as e justificando suas central, Abric identificou a existência do
práticas. sistema periférico. Campos (2003) elucida que
Moscovici (1978) salienta as condições de o sistema periférico relaciona-se mais
emergência das representações, destacando três diretamente ao contexto imediato, à história
aspectos: 1. a dispersão da informação, pessoal do indivíduo e que permite a adaptação
associada ao acesso a informações que o grupo da representação às mudanças situacionais.
possui, seja por interesse ou por obstáculos de Isso possibilita, por exemplo, que
comunicação; 2. a focalização, associada ao discursos diferentes sobre o mesmo objeto de
grau de implicação, à distância do grupo em representação não signifiquem representações
relação ao objeto social e 3. a pressão à distintas, mas que sejam elaborações com
inferência, na qual é exigido do indivíduo ou variadas ativações de certos esquemas
grupo social que responda sempre, tome periféricos (Flament, 2001). É esse processo
posições e seja capaz de agir nas mais diversas que nos dá base para compreender como podem
situações, fazendo com que ele ligue premissas se relacionar diferentes discursos na
a conclusões, sem relações diretas. representação de um objeto.
Nesse contexto, Jodelet (2001) afirma que Nessa perspectiva, Moscovici (2003), por
é favorecido um processo de defasagem do meio da hipótese sobre a polifasia cognitiva,
conteúdo representativo, que pode se destaca que os indivíduos possuem a
caracterizar de três modos: a distorção, quando capacidade de pensar e representar de muitos
todos os atributos do objeto estão presentes, modos, o que favorece a adaptação às
porém acentuados ou atenuados; a necessidades sociais em mudança. Nessa
suplementação, quando se atribui conotações perspectiva, a proposta de Jovchelovitch (2008)
que não são próprias ao objeto representado, é que a representação é uma forma plural, que
resultando num acréscimo de qualidades; e a compreende racionalidades múltiplas, e a
subtração, que corresponde à supressão de aplicação de determinado saber está
atributos pertencentes ao objeto. relacionado à pragmática do contexto que se
Segundo Abric (1998), o simples apresenta. Assim, ela compreende que ocorre
conhecimento do conteúdo de uma uma coexistência de saberes, que responderão a
representação não é suficiente para defini-la, diferentes necessidades e funções na vida
sendo então necessário identificar os elementos social, e que se farão presentes dependendo de
centrais – núcleo central – que dão à algumas dimensões tais como quem são os
representação sua significação, determinam os atores, como se dá a prática comunicativa, qual
laços que unem entre si os elementos do o objeto, as razões e as funções das
conteúdo e regem enfim sua evolução e sua representações. Essas dimensões apresentam ao
transformação. Essa análise torna-se ainda mais sujeito conhecimentos sociais acumulados, que
essencial quando os sujeitos investigados estão ao funcionar como reguladores sociais
passando por um processo de formação, que se favorecem o uso de uma ou outra lógica em
inicia com base em conhecimentos do senso cada situação.
comum trazido pelos licenciandos, mas do qual Wagner, Duveen, Verma e Themel (2000),
se esperam modificações no sentido da ao abordarem o tema da polifasia cognitiva,
aquisição de novos saberes do âmbito lembram que, apesar da presença de
científico. significados contraditórios terem sido
224 Andrade, D. B. S. F., & Teibel, E. N. H.

identificados desde os primórdios dos estudos próprios participantes nos instrumentos


sobre a representação social, é incomum as aplicados.
pessoas expressarem contradições em um Inicialmente foi aplicada a técnica de
mesmo discurso em uma determinada situação, associação de palavras, sendo que em seguida
já que as representações são criadas e solicitou-se aos participantes a hierarquização
vinculadas a determinados contextos sociais a dos termos por ordem de importância e
que o sujeito pertence. Deste modo, os posteriormente a indução de duas narrativas.
diferentes contextos em que as pessoas vivem Contudo, para efeito deste estudo serão
requerem formas específicas de pensar, falar e apresentados os dados coletados segundo a
agir ao assinalarem demandas de técnica de associação de palavras.
autorreferência e identidade, o que favorece a Os dados foram inicialmente processados
expressão de um discurso, em detrimento das pelo programa Ensemble de Programmes
alternativas concorrentes. Permetettant l’Analyse des Evocations (EVOC)
Sendo assim, ocorre que, no contexto de com base na análise da frequência (f) dos
formação acadêmica, são apresentados novos termos, e no cruzamento com a ordem média de
significados aos alunos, sendo que estes passam evocação (OME) ou de importância (OMI). Os
a concorrer com conhecimentos adquiridos resultados são apresentados graficamente por
antes da sua inserção na graduação. Nesse meio da figura conhecida como Tableau de
sentido, pode ocorrer que uma determinada Vergès, composta por quatro quadrantes: 1. o
situação obtenha abordagens cognitivas núcleo central que aloja os vocábulos mais
distintas gerando conflito sociocognitivo ou consensuais, rotinizados e associados à
então, tais abordagens podem coexistir sendo memória coletiva (menor ordem média e maior
ativadas, ora uma, ora outra, a partir do frequência), sendo caracterizados como
delineamento de contextos que ao se elementos mais estáveis da representação social
apresentarem indicam a abordagem mais em torno dos quais se organiza a estrutura da
efetiva. mesma; 2. a primeira periferia onde se
O que se questiona é se a representação localizam os elementos que possuem maior
social sobre o brincar sofre influência dos probabilidade de ingressar no núcleo central
conhecimentos adquiridos no contexto da (maior ordem média e maior frequência); 3. a
academia, e em que medida os mesmos são zona de contraste que abarca os elementos que
negociados ao longo do processo de formação foram considerados importantes por um
inicial. determinado número de pessoas (menor ordem
média e menor frequência), podendo
caracterizar um subgrupo, e 4. a segunda
Metodologia periferia que contempla os atributos menos
O presente estudo tem como base os dados frequentes e menos consensuais (maior ordem
referentes às associações de palavras coletadas média e menor frequência), possivelmente
para o termo indutor brincar, obtidas por meio elementos recentes da representação,
da participação de 197 alunos do curso de associados ao contexto mais imediato que
Pedagogia da UFMT, campus Cuiabá, no contemplam os aspectos mais particularizados
primeiro semestre de 2009. da representação no contexto prático.
Dentre os 197 discentes investigados, 58 Por meio do processamento, identificou-se
pertenciam ao primeiro ano, 45 ao segundo, 59 um total de 985 palavras, sendo 100 delas
ao terceiro e 35 ao quarto ano. É possível diferentes entre si. Delimitou-se como ponto de
considerar que, de modo predominante, esses corte a frequência mínima de nove ocorrências,
sujeitos se caracterizam pelo sexo feminino havendo assim um aproveitamento de 81,9%
(96,95%), idade entre 17 a 28 anos (64%), que das evocações.
se dedicam exclusivamente à faculdade, não Por meio do uso do programa
estando envolvidos em atividades de labor computacional Cohesive Hierarchical
concomitantes ao curso (49,74%). Implicative Classification (CHIC), realizou-se,
A aplicação dos instrumentos de coleta foi com os dados referentes às evocações presentes
realizada de forma coletiva em oito grupos, que nos quadrantes do EVOC (81,9% do total do
correspondiam aos quatro anos do curso, tanto corpus), uma análise implicativa clássica com
no período matutino quanto no vespertino. base na Lei Binomial. Obteve-se com isso um
Todo material coletado foi registrado pelos grafo implicativo, que reproduz graficamente
Ludicidade e reguladores sociais associados à infância 225

uma rede de possíveis relações causais, como Os termos que perdem destaque nesse
por exemplo, quando se observa em um processo são: brincadeira e brinquedo, que na
determinado sujeito certa evocação “X”, em organização segundo a OME localizava-se no
geral, observa-se a presença de uma evocação núcleo central e na organização por OMI figura
“Y”. na primeira periferia. O termo família
O software CHIC permite também apresentava-se na zona de contraste na
conhecer quais são as variáveis que explicam as organização por OME e aloja-se na segunda
relações implicativas identificadas, por meio do periferia quando considera-se a organização por
cálculo do valor de tipicalidade. Tal cálculo OMI.
apresenta índices de risco entre os valores de Os vocábulos que adquirem maior
zero, que seria a total ausência de risco, saliência com o processo de hierarquização são:
indicando tipicalidade plena da variável, a um amigos, aprender, imaginar, liberdade e sorrir.
que representaria a total negação da tipicalidade Nesse sentido, chama a atenção o vocábulo
de uma variável. Neste trabalho, considera-se aprender, pois pode indicar que, quando
como variável os anos ou a turma dos sujeitos possibilitada a hierarquização dos termos, os
na graduação, gerando quatro grupos distintos: conteúdos relacionados ao discurso acadêmico
primeiro ano, segundo ano, terceiro ano e ganham maior importância do que quando
quarto ano. evocados espontaneamente. Esses dados
corroboram com os resultados obtidos nos
estudos de Braga (2010) e Lima (2010) que, ao
Apresentação e análise de dados realizarem estudos com licenciandos de
Inicialmente, realizou-se comparação entre Pedagogia, também perceberam a valorização
os resultados obtidos com o processamento dos de termos relacionados com a academia no
dados tanto por meio da ordem média de processo de atribuição de importância às
evocação (OME), como pela ordem média de evocações.
importância (OMI) dos termos. Foi possível Considerando o fato desse trabalho se
observar com isso que alguns vocábulos ao dedicar à investigação de alunos em processo
serem processados segundo a ordem de de formação acadêmica, e de ter como interesse
importância adquirem maior saliência se a compreensão do impacto desse conhecimento
comparados com sua ordem de evocação científico, na representação social dos futuros
espontânea, e consequentemente outros professores, será analisado, o quadrante
vocábulos perdem importância. referente à organização por OMI.

Figura 1 – Elementos estruturais relativos ao mote indutor brincar, processados por ordem
média de evocação (OME) e ordem média de importância (OMI).
226 Andrade, D. B. S. F., & Teibel, E. N. H.

Com base no quadro de elementos discussões acadêmicas associadas ao brincar,


estruturais, processado por meio da ordem provavelmente no espaço escolar.
média de importância, percebem-se no núcleo
Nesse sentido, a palavra espaço, localizado
central os atributos alegria, criança e diversão.
na primeira periferia pode adquirir um sentido
Estes vocábulos remetem ao que os
de regulador social, por meio do qual o brincar
licenciandos de Pedagogia mais frequentemente
pode ser visto de modo distinto, dependendo do
e prontamente se lembraram quando pensaram
ambiente em que se encontra.
em brincar, caracterizando-o positivamente
como uma ação infantil que geraria bem estar Na segunda periferia, estão localizados
como alegria e diversão. vocábulos que se referem ao que os
licenciandos investigados lembraram menos
Em seguida, na primeira periferia
prontamente acerca do brincar: amor,
encontram-se elementos do brincar que indicam
descontrair, família, lazer, movimentar,
uma dimensão mais pragmática, que
necessário, prazer e socializar. Neste quadrante,
caracterizam como e onde este fenômeno
assim como na zona de contraste, aparecem
costuma se manifestar: espaço (parque f =13,
elementos que caracterizam mais
escola f =9, espaço f =5, rua f =4, casa f = 3,
marcadamente um ambiente informal,
quintal f =3, brinquedoteca f =3, sala de aula f
entretanto o termo socializar fornece
=2, ambiente f =1, local f =1, lugar f =1 e
indicativos de um discurso acadêmico sobre a
quadra f =1), brincadeira (correr f = 22, pular f
ludicidade.
= 18, jogos f = 17, brincadeira f = 9, jogar f =
9, dançar f = 7, brincadeiras f = 6, jogo f = 3, Tais considerações coadunam com o que
roda f = 3, amarelinha f = 2, pega-pega f = 1, postula a Teoria do núcleo central quando
pular elástico f = 1, futebol f = 1) e brinquedo afirma que o sistema periférico comporta
(brinquedo f = 41, brinquedos f = 19, boneca f elementos contrastantes que podem se ativar de
= 13, bola f = 10, carrinho f = 5, balanço f = 2, acordo com o ambiente, ou até mesmo com o
casinha f = 2, corda f = 2, urso de pelúcia f = papel social desempenhado pela pessoa nos
1). distintos locais que ela frequenta.
Interessante notar que, dentre os vocábulos Têm-se então que se encontram no núcleo
padronizados como espaço, têm-se ambientes central e no sistema periférico diversos termos
que remetem ao estar na escola e ao estar fora que remetem a um discurso do senso comum,
da escola. Nos locais que se referem ao estar no entanto, faz-se presente na zona de contraste
fora da escola observa-se que as palavras rua, (aprender e lúdico) e na segunda periferia
casa e quintal somam uma frequência total de (socializar) três elementos que remetem à
10 evocações, 21,7% das palavras inserção do discurso acadêmico na
padronizadas. Já as palavras que remetem ao representação do brincar.
contexto escolar, tais como parque, escola, sala A seguir apresenta-se o grafo implicativo
de aula e quadra, chegam a frequência de 25, obtido por meio do processamento do software
aproximadamente 54,3% das palavras CHIC.
padronizadas como espaço, sendo que
especificamente o termo sala de aula aparece A análise do grafo implicativo revela a
com a baixa frequência de duas ocorrências, o existência de três blocos discursivos assim
que corresponde a 4,3% da frequência total da denominados: 1. reguladores sociais e recursos
evocação espaço. socioculturais; 2. atores sociais e bem-estar e 3.
discurso acadêmico sobre ludicidade.
A zona de contraste traz os atributos
amigos, aprender, imaginar, liberdade, lúdico e No que se refere ao bloco 1, reguladores
sorrir. Oferecendo indícios de dois discursos sociais e recursos socioculturais, observa-se
distintos, um que ressalta o brincar no espaço maior índice de implicação entre as evocações,
informal dos amigos, e outro que ao utilizar os sendo 95% a probabilidade de quem escreveu
vocábulos aprender e lúdico podem remeter a espaço evocar também brinquedo, e de quem
uma associação orientada pela internalização de escreveu brinquedo evocar o termo criança.
Ludicidade e reguladores sociais associados à infância 227

Figura 2 – Grafo implicativo resultante do processamento das evocações sobre o brincar no


software CHIC. Os tipos de linha indicam o índice de implicação entre evocações: contínua –
95%; tracejada – 90% e pontilhada – 85%.

Quando observada a variável ano na o que pode indicar que para os licenciandos, ou
graduação, verifica-se que pelo cálculo de pelo menos, para a maioria deles, esse ambiente
tipicalidade, este bloco contempla relações não oferece estruturas de oportunidades
implicativas mais típicas dos licenciandos do favoráveis a prática lúdica.
primeiro e segundo anos. Isto porque a relação Ainda sobre o atributo espaço observa-se
espaço ► brinquedo tem no segundo ano a que a frequência mais alta aparece para o
turma mais típica, ao apresentar o menor risco vocábulo parque, com treze ocorrências, um
dentre as demais variáveis com um valor de espaço que apesar de se localizar dentro da
0.199. A implicação brinquedo ► criança escola sinaliza um ambiente informal e de
indicou como grupo mais típico o primeiro ano, lazer; tal frequência pode indicar que, para os
com um risco de 0.32. A associação desses sujeitos do estudo, o brincar está mais
vocábulos (espaço ► brinquedo ► criança) comumente associado a este local, e possui
revela a demarcação de um cenário específico finalidades recreativas. Destaca-se que as
destinado ao brincar. associações deste bloco são típicas dos dois
No contexto do bloco 1, têm-se os anos iniciais da graduação, possivelmente
elementos do núcleo central e da primeira períodos em que o discurso acadêmico ainda
periferia, portanto os mais rotinizados na encontra-se em fase introdutória, podendo tais
memória social do grupo (são vocábulos que licenciandos estarem apoiando seus discursos
possuem alta frequência), tais elementos nas suas experiências como alunos, mais do que
também podem ser compreendidos como os como futuros professores.
descritivos do brincar, demarcando aquilo que Já o bloco 2 − atores sociais e bem-estar −
os sujeitos efetivamente têm de maior caracteriza-se por um conjunto de conexões em
proximidade com relação ao tema. que o vocábulo alegria centraliza três outras
Vale destacar que o vocábulo sala de aula, associações possíveis, com índices de
acomodado no atributo espaço, se resume a implicação variando entre 95%, 90% e 85%, a
frequência dois, em um total de quarenta e seis, saber: 1. amigos ► alegria ► criança; 2. prazer
228 Andrade, D. B. S. F., & Teibel, E. N. H.

► alegria ► criança e 3. descontrair ► alegria Pode-se pensar que a representação acerca


► criança. do brincar para os licenciandos investigados
Segundo o cálculo de tipicalidade aplicado está se constituindo por meio de dois discursos
à variável ano, este bloco se configurou em distintos, um organizado pelo conhecimento do
torno das associações evocadas pelos senso comum adquirido no contato com o
acadêmicos do primeiro e segundo anos. Isto se fenômeno do brincar no espaço informal, sendo
verifica pois a implicação amigos ► alegria este caracterizado por uma percepção
apresentou no primeiro ano a maior idealizada, e outro constituído a partir da
tipicalidade, com um risco de apenas 0.314; inserção do discente na academia, e no contato
ainda a relação alegria ► criança mostrou-se com as teorias sobre o brincar. Entretanto, o
mais típica do segundo ano, com um risco de discurso científico, em processo de
0.021; a implicação prazer ► alegria foi internalização, se constitui ainda como um
caracterizada como mais típica do segundo ano, discurso periférico na representação sobre o
com um risco de 0.074 e a relação descontrair brincar. Essa situação de pluralidade de
► alegria demonstra maior tipicalidade do discursos pode caracterizar o fenômeno da
primeiro ano, apontando um risco de 0.142. polifasia cognitiva.
Outro aspecto a ser destacado refere-se ao
No bloco 2 − atores sociais e bem-estar, silenciamento da associação brincar-
concentram-se atributos presentes no núcleo agressividade. Sobretudo quando se consideram
central, na zona de contraste e segunda os estudos de Winnicott (1975, 2005). Sendo
periferia. Este bloco demarca o discurso do assim, pode-se dizer que a representação dos
senso comum trazido pelos alunos, que nos licenciandos se caracteriza por uma defasagem
anos iniciais da graduação está fortemente cognitiva em relação ao fenômeno do brincar a
presente na representação do brincar associado qual se tem a subtração de características
aos espaços informais e a idealização da agressivas ou destrutivas presentes na
infância e sua ludicidade. manifestação lúdica.
O terceiro bloco, característico das Essa subtração na representação do
evocações produzidas pelos acadêmicos do brincar, um objeto associado à criança, pode ser
quarto ano, foi denominado discurso acadêmico compreendida como resultante da representação
sobre ludicidade e sustenta o menor índice de de infância possivelmente idealizada desses
implicação (85%). Nele se encontram os discentes. Segundo De Lauwe (1991), esse
vocábulos característicos do discurso processo de mitificação por meio do qual o
acadêmico socializar ► aprender, presentes, infante é essencializado a partir de valores que
respectivamente, na segunda periferia e na zona a sociedade busca evidenciar, pode provocar
de contraste. Aqui é possível identificar a expectativas completamente irrealistas se
inserção do discurso científico sobre o brincar comparadas à criança real.
na representação dos alunos do quarto ano (que Nesse sentido, a negação dos conteúdos
obteve no cálculo de tipicalidade um risco de agressivos como manifestação legítima da
apenas 0.013), assim como a articulação entre brincadeira se dá na medida em que o grupo
as duas funções do brincar relacionadas ao distorce os significados atribuídos ao brincar
papel do docente. valorizando na sua centralidade a tríade alegria-
Destaca-se que os aspectos mais criança-diversão e mesmo que timidamente,
fortemente relacionados à escola e à academia, adere ao discurso da brincadeira como
como socialização e aprender, se encontram ferramenta de trabalho para aprender-socializar.
praticamente desvinculados dos vocábulos que
remetem ao discurso do senso comum. Isso
Considerações finais
pode significar que tais conhecimentos estão
sob reguladores sociais distintos, uma vez que Com base nos dados, foi possível perceber
um acadêmico ora pode utilizar uma que os licenciandos investigados possuem uma
abordagem quando se encontra em um percepção positiva e idealizada sobre o brincar.
ambiente informal, em que assume papéis Com isso, é questionado se a subtração dos
sociais tais como amigo, pai, tio e utilizar outra, aspectos agressivos e destrutivos do fenômeno
com maior influência do conhecimento da brincadeira pode dificultar a aquisição de
acadêmico, quando presente em um espaço que referenciais necessários para que acadêmicos
lhe remeta à identidade de futuro professor. possam compreender e mediar situações de
Ludicidade e reguladores sociais associados à infância 229

ensino e aprendizagem proporcionadas pela brincadeira espontânea, associada ao prazer e


ludicidade. até mesmo à destrutividade.
Identificou-se também a presença de dois Deste modo, caso ocorra a manifestação
discursos distintos no sistema periférico da no brincar de comportamentos não incluídos na
representação do brincar, principalmente no representação aqui analisada, tais como a
que se refere aos alunos do quarto ano, o que agressividade ou destrutividade, esse futuro
pode caracterizar o fenômeno da polifasia professor, desprovido de elementos úteis à
cognitiva, marcado neste caso, pela inserção do interpretação e análise, capazes de lidar com
discurso acadêmico. Nota-se ainda que tais tais ações infantis dentro dessa perspectiva,
discursos apresentam-se de forma descolada pode utilizar-se de outros referenciais para
um do outro, indicando sua relação com administração da situação. Surge assim a
reguladores sociais distintos de espaços possibilidade desse comportamento ser
relacionados ao prazer ou ao trabalho, ao classificado e nomeado como bagunça ou
mesmo tempo em que indicam sua vinculação a indisciplina, o que consequentemente
diferentes papéis sociais. aumentaria a possibilidade de repreensão desse
tipo de expressão lúdica no contexto de sala de
Deste modo, enquanto que para os alunos
aula.
dos três primeiros anos da graduação o brincar
se apresentou como uma ação com finalidade A representação acerca do brincar, aqui
recreativa que ocorre em ambientes externos à analisada, indica que a negociação com
sala de aula, os licenciandos do quarto ano significados acadêmicos dentro do processo de
destacaram também o brincar vinculado ao formação do futuro professor não tende a
significado de trabalho associado a um produto: contemplar a ludicidade livre no contexto de
o aprender, função complementar a de ensinar. sala de aula. Uma vez que se obteve uma
representação utilitarista do brincar, com traços
Tal fato corrobora os resultados obtidos produtivistas das instituições escolares, o que
por Lima (2010) que, ao estudar a diverge da ideia de uma ludicidade como um
representação de criança e aluno para sistema complexo de fala por meio do qual a
licenciandos de Pedagogia, identificou que o criança interpreta a realidade ao mesmo tempo
mote indutor criança trouxe consigo a ideia do em que a recria.
brincar infantil, enquanto que o termo aluno, ao Esses diferentes significados revelam o
mesmo tempo em que mobilizou silenciamento impasse posto aos docentes desde sua formação
da ludicidade, apresentou proximidade com o inicial, que, apesar de terem acesso a teorias
termo bagunça. Resultado indicador de que no que demonstram a importância do brincar de
contexto de sala de aula, espaço formal da forma livre para o desenvolvimento infantil,
prática educativa, esse comportamento pode ser tendem a ancorar a representação do brincar na
compreendido como transgressão. cultura escolar na qual o principal ator deixa de
Os dados coletados por Braga (2010), ser a criança e passa a ser o aluno, definido
também com alunos do curso de Pedagogia, pelo papel social de aprendiz.
apresentaram o ambiente escolar a partir de Nesse sentido, é possível pensar que os
uma dicotomia entre o estar dentro e fora da conhecimentos advindos das teorias sobre o
sala de aula. Nesse estudo o brincar foi brincar que são apresentados pela academia
associado aos ambientes externos à sala de parecem não se atrelar aos reguladores sociais
aula, enquanto que dentro dela houve uma do contexto de sala de aula em que o
tendência a compreender a sua manifestação acadêmico atuará futuramente como professor.
como indisciplina. A representação acerca do brincar, ancorada no
Assim, a articulação entre a noção de discurso da escolarização e associada ao jogo
reguladores sociais para análise das educativo, é expressa pela ênfase na
representações acerca do brincar permitiu aprendizagem e no trabalho escolar orientado
identificar que no contexto da sala de aula pela perspectiva da produção, apresentado
existe, por parte do futuro professor, uma pelos acadêmicos do quarto ano. Fato que
associação entre o brincar e finalidades parece revelar um resgate de conhecimentos
educativas, o que aproxima essa atividade adquiridos a partir do seu contato cotidiano
lúdica da ideia de trabalho. Isso levanta o como aluno no cenário educacional tradicional.
questionamento acerca de como pode ser Tais resultados podem indicar a
significada por esse futuro profissional a necessidade da aproximação entre contextos de
230 Andrade, D. B. S. F., & Teibel, E. N. H.

formação docente e a escola como espaço de Campos, P. H. F. (2003). A abordagem


futura atuação profissional, de modo que a estrutural e o estudo das relações entre
construção de novos conhecimentos possa estar práticas e representações sociais. In P. H. F.
vinculada ao contexto social que demandará Campos & M. C. S. Loureiro (Orgs.),
sua aplicação. Representações sociais e práticas
No âmbito da contribuição deste estudo, educativas. (pp. 22-36). Goiânia: Editora da
destaca-se o uso do cálculo implicativo, UCG.
proporcionado pelo software CHIC, em Cerisara, A. B. (2002). De como papai do céu,
conjunto com a análise dos elementos o coelhinho da páscoa, os anjos e o papai
estruturais. Enquanto a análise dos elementos noel foram viver juntos no céu! In T. M.
estruturais viabilizou a identificação, a título de Kishimoto (Org.), O brincar e suas teorias.
hipótese, dos atributos centrais e periféricos, a (pp. 123-138). São Paulo: Pioneira
análise implicativa permitiu a visualização de Thomson Learning.
como esses vocábulos podem estar associados,
apresentando como palavras possivelmente De Lauwe, C. M. J. (1991). Um outro mundo:
centrais na estrutura da representação se a infância (Noemi Kon, Trad.). São Paulo:
associam com diferentes termos do sistema Perspectiva, Editora da Universidade de São
periférico para indicar distintos discursos sobre Paulo. (Trabalho original publicado em
o mesmo objeto de representação. Deste modo, 1971).
pode-se dizer que a análise implicativa Doise, W. (2001) Cognições e representações
caracterizou possíveis diálogos existentes entre sociais: a abordagem genética. In D. Jodelet
os vocábulos distribuídos nos quadrantes do (Org.), As representações sociais (Lílian
Tableau de Vergès. Ulup, Trad.). (pp. 301-320). Rio de Janeiro:
Em adição, o cálculo de tipicalidade da EdUERJ. (Trabalho original publicado em
variável ano possibilitou a verificação de como 1989)
os diferentes discursos acerca da representação Dantas, H. (2002). Brincar e trabalhar. In T. M.
dos acadêmicos de Pedagogia sobre o brincar Kishimoto (Org.), O brincar e suas teorias.
poderia estar associada a cada ano de pertença (pp. 111-121). São Paulo: Pioneira
do aluno no curso, indicando a manifestação da Thomson Learning.
focalização e da polifasia cognitiva presente no
grupo de licenciandos, aspecto relevante Emler, N., Ohana, J., & Dickinson, J. (2003).
quando se trata de estudo no contexto de Las representaciones infantiles de las
processos formativos no âmbito da academia. relaciones sociales. In J. A. Castorina
(Org.), Representaciones sociales:
problemas teóricos y conocimientos
infantiles. (pp.65-89). Barcelona: Gedisa.
Referências Flament, C. (2001). Estrutura e dinâmica das
Abric, J. C. (1998). A abordagem estrutural das representações sociais. In D. Jodelet (Org.),
representações sociais. In A. S. P. & D. C. As representações sociais (Lílian Ulup,
Oliveira (Orgs.), Estudos interdisciplinares Trad.). (pp. 155-172). Rio de Janeiro:
de representação social. (pp.27-38). EdUERJ. (Trabalho original publicado em
Goiânia: AB. 1989).
Jodelet, D. (2001). As representações sociais
Brougère, G. (2002). A criança e a cultura um domínio em expansão. In D. Jodelet
lúdica. In T. M. Kishimoto (Org.), O (Org.), As representações sociais (Lílian
brincar e suas teorias. (pp. 19-32). São Ulup, Trad.). (pp. 17-44). Rio de Janeiro:
Paulo: Pioneira Thomson Learning. EdUERJ. (Trabalho original publicado em
Braga, A. R. C. (2010). Dentro e fora da sala 1989)
de aula: um estudo acerca das Jovchelovitch, S. (2008). Os contextos do
representações sociais dos licenciados de saber: representações, comunidade e
pedagogia da UFMT. Dissertação de cultura (Pedrinho A. Guareschi, Trad.).
Mestrado, Universidade Federal de Mato Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original
Grosso, Cuiabá – MT. publicado em 2007).
Ludicidade e reguladores sociais associados à infância 231

Moscovici, S. (1978). A representação social Lima, M. F. S. (2010). Criança e aluno: um


da psicanálise (Álvaro Cabral, Trad.). Rio estudo de representações sociais segundo
de Janeiro: Zahar Editores. (Trabalho licenciandos de pedagogia da Universidade
original publicado em 1976). Federal de Mato Grosso, campus Cuiabá.
Dissertação de Mestrado, Universidade
Moscovici, S. (2003). Representações sociais:
Federal de Mato Grosso, Cuiabá – MT.
investigações em psicologia social
(Pedrinho A. Guareschi, Trad.). Petrópolis, Sousa, C. P., Tavares, M. R., & Bôas, L. P. S.
RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em V. (2006). Apresentação do estudo:
2000). representações sociais sobre o trabalho
docente. In C. P. Sousa, L. A. Pardal & L.
Wagner, W., Duveen, G., Verma, J., & Themel,
P. S. V. Bôas (Orgs.), Representações
M. (2000). “I have some faith and at the
sociais sobre o trabalho docente. (pp.15-
same time I don´t believe in it” – Cognitive
30). Aveiro: Universidade de Aveiro.
polyphasia and culture change. Journal of
Community and Applied Social Psychology, Vygotsky, L. S. (1991). A formação Social da
10. Mente (4a. ed.; Monica Stahel M. da Silva,
Revisão de Trad.). São Paulo: Martins
Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a
Fontes,(Trabalho original publicado s/d).
realidade (José O. A. Abreu e Vanede
Nobre, Trads.). Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1971).
Enviado em Dezembro de 2010
Winnicott, D. W. (2005). Privação e Aceite em Maio de 2011
delinqüência (4a. ed.; Álvaro Cabral, Trad.). Publicado em Julho de 2011
São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho
original publicado em 1987).

Sobre os autores:
Daniela B. S. Freire Andrade – Doutora em Educação: Psicologia da Educação. Professora e orientadora no
PPGE/UFMT.
Érica N. H. Teibel – Mestranda do PPGE/UFMT. Bolsista (FAPEMAT).

Você também pode gostar