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NEGÓCIO JURÍDICO E JURISDIÇÃO ARBITRAL: MODULAÇAO DA


AUTONOMIA DA VONTADE E DA AUTONOMIA PRIVADA

Legal transactions and arbitration jurisdiction: modulation of autonomy of


the will and private autonomy

Ana Claudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral – Docente no curso de Graduação em


Direito e no Programa de Mestrado em Direito Negocial da UEL – Doutora pela PUC-SP.

Jussara Borges Ferreira - Docente do Programa de Mestrado em Direito da Universidade


de Marília – UNIMAR e do Programa de Mestrado em Direito Processual e Cidadania da
Universidade Paranaense – UNIPAR – Doutora pela PUC-SP.

INTRODUÇÃO

Liberdade, na história da humanidade, tem-se mostrado sempre um


valor de grande relevância. Os primeiros direitos efetivamente positivados
visavam, precisamente, a resguardar as liberdades individuais.
Na seara jurídica, o instrumento clássico de realização da liberdade
dos indivíduos apresenta-se sob a denominação de negócio jurídico, cujas
vicissitudes oscilaram conforme a interpretação que se deu à manifestação da
liberdade individual por meio da autonomia da vontade e, posteriormente,
autonomia privada.
A compreensão, portanto, de um objeto que pretenda traçar as
relações entre a contemporaneidade da jurisdição arbitral como forma
alternativa de solução de conflitos interprivados e o negócio jurídico deve,
necessariamente, proporcionar de início o revolver conceitual do instituto que
viabiliza o trânsito jurídico entre os privados.
O primeiro item deste capítulo destina-se, portanto, a fornecer
elementos substanciais para a apreensão do conceito de negócio jurídico por
meio da demonstração da evolução substrato principiológico, da autonomia da
vontade à autonomia privada.
A sequência avança sobre a outra extremidade da relação inicialmente
estabelecida entre negócio jurídico e a arbitragem, procurando demonstrar a
natureza jurídica da jurisdição arbitral, se de caráter público, privado ou misto.

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Estabelecidas as bases teóricas, o item final do estudo demonstra o
entrelaçar das amarras da autonomia privada (representada no negócio
jurídico) e a específica convenção arbitral. Nessa senda, procura-se destacar
que a autonomia privada não se verifica sem limitações, ao mesmo tempo em
que permite a realização da liberdade das partes na autorregulamentação dos
seus interesses privados e, na especificidade da convenção arbitral, encontra
espaço de manifestação ao permitir não somente e eleição do foro para a
resolução dos conflitos, mas, também, a constituição do próprio órgão
decisório, incumbido de restabelecer o equilíbrio em caso de injusto
desnivelamento.
Atentando-se à contemporaneidade das relações privadas, para os
casos de celebração de pactos adesivos, nos quais o espaço de atuação da
autonomia privada encontra-se reduzido, esclarece-se que a precaução com a
convenção arbitral deve exigir expressa manifestação de vontade a esse
respeito. Trata-se de situação na qual o ordenamento regula para menor o
espaço de autonomia privada, em claro atuar contendor do poder negocial,
dada a ausência de liberdade na contratação adesiva, especialmente em casos
de relações de consumo.
Nesse sentir, observa-se um movimento pendular da autonomia
privada: se houve progressiva limitação com as imposições decorrentes do
próprio ordenamento jurídico, ao admitir-se a celebração de uma convenção de
arbitragem para a solução dos conflitos que surgem da vida das relações
interprivadas, reaviva-se a expressão do poder jurídico dos indivíduos para a
regulamentação dos próprios interesses.
Para as relações nas quais a adesividade e a ausência de liberdade na
contratação impõem, entretanto, a celebração de pactos padronizados, não
cabe clamar pela flâmula da autonomia privada, pois nesses casos, não a face
da liberdade, mas a dos limites, recebe as luzes do ordenamento e
resplandece na proteção dos indivíduos, evitando-se a sobreposição da força
econômica à vulnerabilidade e hipossuficiência dos contratantes.

1 NEGÓCIO JURÍDICO: ANÁLISE CONCEITUAL DOS PRINCÍPIOS


TRADICIONAIS DA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DA AUTONOMIA
PRIVADA

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1.1 Construção teórica de um conceito: delimitação do espaço volitivo no
negócio jurídico

A consagração do princípio da autonomia da vontade deu-se com a


ciência jurídica medieval, distinguindo-se um direito voluntário (ius voluntarium),
derivado da vontade de Deus e dos homens, e um direito natural (ius naturale),
produto da natureza dos homens como seres racionais (AMARAL, 1984, p.
292).
Com a superação da ideia de que o mundo jurídico era ditado por obra
divina, concluiu-se que o homem podia dar limites e optar pelo rumo a seguir.
Para Grotius, “a vontade que se exteriorizou de forma suficiente, mediante
palavras, constitui declaração que se tem como verdade frente ao declarante”
(GROTIUS apud OLIVEIRA, 1997, p. 46). E segue:

Uma forte contribuição no sentido de estabelecer a autonomia da


vontade como princípio informador foi a teoria do direito natural, no
quanto substituiu a idéia do direito divino pelas liberdades naturais,
que constituem o fundamento e o fim do direito, sendo o contrato e a
liberdade contratual manifestações da vontade humana e uma das
liberdades naturais [...] prevalecia o pensamento de que a vontade
constituía a fonte única das obrigações.

Com o liberalismo abrolha a máxima da autonomia da vontade como


marco distintivo dos negócios jurídicos. Essa concepção encontra nascente
com os pandectistas alemães, no Século XVIII, com base na filosofia
jusnaturalista, enaltecendo a liberdade dos indivíduos de realizarem negócios
que atendessem precipuamente a seus interesses individuais. Analisando a
concordância dos pandectistas alemães com a filosofia jusnaturalista, pondera-
se que a aceitação desse pensamento,

[...] surge do fato de que jusnaturalistas e pandectistas viveram um


dos períodos mais brilhantes do pensamento humano, quando
florescia a idéia de liberdade, que dominou seu espírito e guiou suas
investigações, a base da normal coincidência das doutrinas jurídicas
e da ideologia social e política da mesma época (STOLFI apud
MARQUES NETO, 1986, p.74).

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A partir de então, as relações passaram a ser reguladas levando-se em
conta a vontade e a liberdade das partes, sem a possibilidade de interferência
do Estado nas relações privadas, até mesmo como uma forma de impedir a
onipotência do príncipe.
Negócio jurídico, em tal momento, espelha um simples instrumento da
autonomia da vontade, o meio através do qual os particulares perseguem os
próprios interesses privados, ainda que em detrimento do resguardo aos
interesses sociais.
O elemento volitivo reflete o caráter principal do negócio jurídico.
Foi possível, a partir da concepção de Von Bullow, perceber que a
ordem jurídica atribuía diferentes graus de valorização à vontade
humana, no sentido de os particulares poderem conformar tais atos e
seus efeitos construindo-se, a partir daí, a moderna teoria dos
negócios jurídicos e a sua divisão escalonada, segundo a valorização
da vontade, em negócios jurídicos (onde é totalmente valorizado o
processo volitivo, seja no momento da criação do ato e na
conformação de seus efeitos) em atos jurídicos em sentido estrito
(onde é valorizada a vontade de praticar o ato, decorrendo seus
efeitos, todavia, de prévia disposição legal) e em atos-fatos (onde não
é valorizada nem a vontade de praticar o ato nem é possível a
conformação de seus efeitos) (MARTINS-COSTA, 1992, p.149).

Apesar de o negócio jurídico ser tradicionalmente entendido como ato


decorrente da vontade humana com vistas à produção de efeitos ditos
negociais, várias foram as teorias que procuraram defini-lo precisamente.
Elas se dividem entre aquelas que visionam o negócio jurídico como ato
decorrente da vontade interna, denominadas de teorias subjetivas ou
voluntaristas – que englobam a teoria da vontade e a teoria da declaração,
ambas afirmando o elemento vontade como fundamental à existência do
negócio jurídico, embora divirjam quanto à consideração da vontade interna ou
declarada – e as chamadas teorias normativa e preceptiva, por entenderem,
respectivamente, o caráter normativo e preceptivo do negócio jurídico. Também
há as teorias da confiança e da responsabilidade, vertentes que têm como
propósito amenizar o rigor das concepções subjetivas e objetivas sobre o
negócio jurídico, com vistas à obtenção da segurança jurídica nas relações
privadas.
Segundo Federico de Castro y Bravo (1985, p.57), “para que dicha
voluntad alcance significado jurídico, no basta con que exista interiormente

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(‘cognitionis poenam nemo patitur’), sino que se requiere sea exteriorizada o
manifestada”.
Para a existência do negócio jurídico, portanto, deve haver a
coincidência das duas vontades – interna e declarada –, para que àquela
vontade possa ser atribuído um valor pelo Direito.

A vontade deve ser manifestada, não tendo valor para o direito


objetivo a que, posto que legitimamente formada, não se exteriorizou.
Somente com a sua manifestação o agente pode provocar a desejada
reação jurídica e esta exteriorização, que torna visível a vontade e lhe
dá existência objetiva, é o que nós chamamos declaração ou
manifestação, sendo indiferente que se faça com palavras, com
gestos ou até com o simples silêncio (RUGGIERO, 1999, p.316).

A atenuação das teorias da vontade e da declaração, como visto


anteriormente, repousa nas teorias da confiança e da responsabilidade. A
teoria da confiança é a que mais tem merecido a consideração dos juristas,
uma vez que traz consigo a ideia da boa-fé nas relações negociais, devendo-se
valorar a vontade do agente de acordo com a confiança que tenha despertado
na outra parte.

No se atiende tan sólo a la confianza que haya originado la


declaración en quien la reciba, sino que se valora la conducta de
todos los que, participando en él, dan lugar al negocio. De modo que
el principio de la buena fe se considera como auténtico principio que,
recibido de la Moral por el Derecho, debe predominar o sustituir a los
criterios lógico-formales propios de las teorías antes reseñadas,
incluso respecto al mismo de la confianza (CASTRO Y BRAVO,1985,
p.60).

Enquanto elemento componente dos negócios jurídicos, a vontade deve


ser considerada em seu aspecto interno e externo, ou seja, deverá ser valorada
com base na consideração da vontade interna ou psicológica do agente
quando exteriorizada, estando apta, a partir de então, a receber a incidência da
respectiva disciplina jurídica.

1.2 O coadjuvar da autonomia da vontade e o protagonismo da autonomia


privada

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Os juristas continuam a considerar as complexas relações das
sociedades de massas a partir da vontade individual. Essa, no entanto,
somente pode ser vista como a fonte, a força determinante do negócio jurídico,
considerada como elemento que impulsiona a formação do negócio. Após tal
impulso, há o abandonar de cena da vontade individual e o protagonismo da
vontade do grupo ou do Estado regulando e disciplinando aquele negócio
jurídico e seus efeitos (LÔBO, 1986, p.11-12).
A vontade, portanto, continua a determinar o conteúdo e os efeitos dos
negócios jurídicos firmados. Entretanto, tal vontade sofre limitações pelo
ordenamento, na busca de garantir a satisfação dos interesses das partes sem
que os interesses sociais sejam prejudicados. Além disso, a reformulação do
conceito de negócio jurídico decorre, além dos ideais sociais assumidos pelo
Estado social, das alterações sofridas nas próprias relações sociais e
econômicas, massificadas e impessoais, que restringem sobremaneira o papel
da autonomia da vontade na celebração dos negócios jurídicos.
Plena no liberalismo, à autonomia da vontade foram impostos limites
quando se verificou a necessidade de estabelecer um maior equilíbrio e uma
real igualdade entre as partes, o que, todavia, não a anulou, mas a reforçou.
Ana Prata define autonomia da vontade como “o poder „reconhecido‟ pela
ordem jurídica ao homem, prévia e necessariamente qualificado como sujeito
jurídico, de juridicizar a sua actividade (designadamente, a sua actividade
económica), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os
respectivos efeitos” (PRATA, 1982, p.11).
Para a caracterização dos negocios jurídicos a autonomia da vontade,
vista como pedra fundamental, permissiva para as partes a ampla
determinação do seu conteúdo e efeitos, não mais pode ser vislumbrada no
contexto da sua criação. Ao contrário, impõe-se a determinação de limites que
busquem contextualizá-la à nova teoria contratual originada das alterações dos
fatores econômicos e sociais que lhe deram origem. No atual contexto, às
partes não mais é permitido exercer a ampla liberdade na determinação dos
efeitos do negócio jurídico com vistas à satisfação de seus interesses.
Como consequência, constatou-se a mitigação do conceito de
autonomia da vontade, uma vez que esta enfoca precipuamente a vontade
interna e psicológica do agente, consagrando, sobretudo, a ideia de

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autorregulamentação dos interesses e dos efeitos no negócio jurídico
estabelecido entre os contratantes.
Dessa forma, no atual cenário em que se insere a autonomia privada
não há a crença de existência de uma vontade do indivíduo ilimitadamente na
formação do negócio jurídico. Ocorre, outrossim, uma reestruturação da
concepção de autonomia da vontade, o que implica no preestabelecimento, de
limites que disciplinem a atuação das partes na formação do negócio jurídico.
Isso não significa que a autonomia da vontade haja desaparecido ou tende a
desaparecer, sobrevém o seu renascer e necessidade de regulação de acordo
com as exigências de cada época.
Tal justificativa foi muito bem esclarecida por Giovanni Ettore Nanni:

A liberdade total gera o desequilíbrio e cria a possibilidade de


prevalência da vontade individual, razão por que a legislação institui
limitações ao âmbito de atuação das partes, à liberdade de firmar
normas individuais, constituindo então a chamada autonomia privada.
[...] As limitações não negam, mas prestigiam a autonomia privada
(NANNI, 2001, p.181)

A autonomia privada constitui um instrumento inerente aos negócios


jurídicos. Todavia, mostrou-se necessária a imposição de limites ao seu
exercício, em virtude das exigências existentes no Estado social, em busca da
verdadeira igualdade e equilíbrio entre os indivíduos.

A partir do momento em que se passou a sustentar que a força de


vontade deriva do Direito objetivo e não da própria vontade, tornando-
se indiscutível que todo efeito jurídico se reconduz à lei e só se
produz na medida em que o autoriza, a noção de autonomia privada
se constitui no conceito básico de Direito Privado (GOMES, 1972,
p.25).

Rubén S. Stiglitz enuncia que, naturalmente, desenvolvem-se na vida de


relação necessidades ou exigências que se generalizam na iniciativa individual,
implicando na existência de interesses recíprocos que devem, então, ser
regulados.

[...] la decisión de satisfacer una necesidad, y hacerlo mediante una


regulación que atienda los recíprocos intereses de las partes
sustanciales de la relación, implica la existencia de un acto de
autonomía. El individuo, por de pronto, se autodetermina con el
propósito de obtener un resultado práctico (satisfacción de un

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interés); y a la autodeterminación le sucede la autorregulación de los
intereses recíprocos, lo que implica no sólo la selección de la
operación jurídica, sino, además, dotarla de contenido (STIGLITIZ,
1992, p.14-15).

Segundo Joaquim de Souza Ribeiro (1999, p. 31), “a autonomia privada,


de que a liberdade contratual é uma componente e a mais relevante
manifestação, é um processo de ordenação que faculta a livre constituição e
modelação de relações jurídicas pelos sujeitos que nela participam”.
Autonomia da vontade e autonomia privada são expressões
correntemente utilizadas na designação do autorregramento da vontade das
partes em uma relação negocial. Há divergências, entretanto, quanto à
consideração dos termos indiscriminadamente, havendo quem os considere
como sinônimos e, por outro lado, quem trace as diferenças existentes entre
eles.
Na concepção clássica, as expressões “autonomia privada”, “autonomia
da vontade” e “liberdade contratual” são sinônimas, referindo-se todas elas à
liberdade de a pessoa decidir, de forma livre e soberana, „se‟ quer, „quando‟ e
„como‟ se vincular obrigacionalmente (OLIVEIRA, 1997, p.42). Afirma, ainda,
que não mais se considera a identidade entre autonomia da vontade e
autonomia privada. A autonomia da vontade dá relevo à vontade subjetiva,
psicológica, enquanto a autonomia privada destaca a vontade objetiva, que
resulta da declaração ou manifestação de vontade, fonte de efeitos jurídicos
(OLIVEIRA, 1997, p.42).
A teoria preceptiva considera a autonomia privada como poder de
autorregulamentação dos interesses particulares, sendo fonte de preceitos e
não de normas jurídicas, e caracterizando-se como fenômeno social pré-
jurídico, o que, entretanto, é criticado por aqueles que não admitem existir
sociedade sem ordenamento jurídico.

A autonomia privada não pode ser concebida como fonte, nem


sequer derivada, de normas jurídicas. Na realidade, a vontade, no ato
de autonomia privada, é idônea a produzir efeitos através do sujeito,
apenas porque uma outra vontade, a vontade soberana que se
exprime no ordenamento jurídico, a tal a autoriza (SANTORO-
PASSARELLI, 1959, p. 369)

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A autonomia da vontade, como liberdade concedida às partes para o
estabelecimento dos negócios jurídicos, sempre foi limitada pelo ordenamento,
ora com menor rigor, como ocorreu no Estado liberal, no qual os limites
impostos eram estabelecidos unicamente pela ordem pública e bons costumes,
ora de forma mais intensa, como passou a ocorrer a partir da maior intervenção
estatal nas relações interprivadas. As partes sempre puderam estabelecer
livremente o conteúdo e efeitos nas suas relações negociais, assim, a
modificação do princípio ocorreu somente no sentido de reduzir este espaço
deixado às partes, de acordo com a preponderância dos interesses públicos e
sociais agasalhados de forma peculiar pelo Estado.

1.3 Os abordes do plano da autonomia privada

A autonomia privada não poderá, em um contexto social tal como o que


se apresenta no Direito contemporâneo, ser exercida ilimitadamente pelas
partes contratantes. Deve, ao contrário, sofrer uma série de limitações, as
quais decorrem das necessidades apresentadas no Estado social, que, ao
estabelecer limites ao exercício da propriedade privada, determina, como
decorrência lógica, limites ao exercício dos institutos a ela vinculados, tal como
o contrato e, consequentemente, a autonomia privada. Nesse sentido,
conforme Avelino León Hurtado:

El contrato es una consecuencia de la propiedad privada, es el médio


de realizar el intercambio de los bienes y, por consiguiente, subsistirá
mientras no sea abolida la propiedad privada. Por eso podríamos
decir que, en último término, todas las limitaciones al principio de la
autonomía de la voluntad, a la libre contratación, corresponden a las
modificaciones que ha sufrido la propiedad privada individualista
hasta llegar a la propiedad función social. Las trabas a la libre
contratación son, pues, una consecuencia necesaria de vivir a la
altura de este tiempo. Las comodidades y ventajas que nos dan la
economía y la organización social actuales, suponen la contrapartida
de restricciones a nuestra voluntad individual (HURTADO, 1979, p.63-
64).

A autonomia privada poderá ser exercida com base nos limites impostos
pelo ordenamento jurídico, o qual, visando à proteção do interesse público e
ressaltando o princípio da dignidade humana, impõe os delineamentos dentro
dos quais poderão os particulares estabelecer seus negócios jurídicos.

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As balizes à autonomia privada alteram-se conforme as ideologias e os
sistemas econômico-políticos de cada momento histórico, influindo tais
ideologias e sistemas no grau de intervenção estatal na disciplina dos negócios
firmados entre os particulares e, consequentemente, na disciplina da
autonomia privada.
O Estado, dessa forma, estabelece limites à atuação dos contratantes,
sobretudo visando à proteção dos interesses e direitos sociais.

Ese contenido no constituye un programa al que las partes son libres


de atenerse o no, sino que se halla constituido por reglas de conducta
que deben ser observadas, pues en caso contrario el ordenamiento
legal ha previsto un sistema de reacción, que reafirma el principio de
autonomía en tanto lo reconoce y lo preserva contra el incumplimiento
(STIGLITZ, 1992, p.15).

Por essas razões, a atual Constituição regula e limita a autonomia


privada através de seus princípios, tal como o da justiça social e da dignidade
da pessoa humana, bem como o da função social da propriedade e
consequentemente o da função social do contrato, tendo estes se tornado
fundamentais, elevando-se à condição de princípios necessários ao pleno e
digno desenvolvimento do homem enquanto indivíduo atuante em uma
sociedade.
Salienta Pietro Perlingieri (1999, p. 280) que os limites à autonomia “não
são mais externos e excepcionais, mas, antes, internos, na medida em que são
expressão direta do ato e de seu significado constitucional”.
Não há como desconsiderar a autonomia da vontade na formação dos
negócios jurídicos, já que a mesma é de fundamental importância à liberdade
das partes na gênese negocial, para que possam estabelecer um negócio
mediante o autorregramento de seus interesses. Entretanto, o modelo liberal
demonstrou quão desestabilizante torna-se tal sistema para as relações
jurídicas. Os limites à autonomia privada são, dessa forma, pilares
estabelecidos pelo ordenamento para que, não a afastando inteiramente1 na

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Nesse sentido também, Avelino León Hurtado, considera que, apesar das leis restritivas, a
autonomia da vontade continua sendo “el resorte” que impulsiona o direito privado, sendo a
expressão da personalidade humana e que conseqüentemente, não poderá jamais
desaparecer. – tradução livre. (HURTADO, 1979, p. 63). Diz Karl Larenz que o indivíduo só
pode existir socialmente como personalidade quando lhe seja reconhecida pelos outros não
apenas a sua esfera da personalidade e da propriedade, mas também quando, além disso,

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formação do negócio jurídico, seja possível considerá-la presente „se‟ e
„quando‟ dentro dos limites permitidos pelo ordenamento jurídico.

2 NATUREZA JURÍDICA DA ARBITRAGEM

A despeito da inerência do conflito à organização social humana, a


fórmula utilizada na sociedade primitiva para solucioná-lo – o controle social –
era rudimentar, baseada na própria capacidade do indivíduo de impor a sua
vontade sobre a do outro ou, então, submeter-se aos desígnios alheios.
Os déficits de um modelo pautado, sobretudo, na brutalidade da força,
clamaram pela evolução no trato dos conflitos sociais interprivados. O resultado
coroou a transição da justiça privada à justiça pública. O Estado arrogou para si
o jus punitionis, passando a impor sobre os particulares a sua decisão, em um
processo substitutivo de vontades. E a essa atividade, caracterizada pelo
exame, por um juiz, das pretensões das partes para então resolver o conflito,
convencionou-se denominar de jurisdição.
Portanto, a promulgação Lei nº.9.307/96, reformuladora do procedimento
arbitral no Brasil, proporciona uma virada conceitual na Teoria Geral do
Processo. Isso porque, antes de seu advento, a sentença arbitral não tinha vida
própria: dependia de homologação do juiz de primeiro grau para que
produzisse efeitos.
A arbitragem passou a ser uma alternativa ao modelo tradicional de
resolução de conflitos, e de uma forma única, por não ser exercida por juiz
estatal, e nesse ponto se assemelha às demais formas de resolução de
conflitos (mediação, autocomposição). Por outro viés, também se trata de uma
forma de resolução de conflitos que demanda intervenção de terceiro imparcial,
em igual processo de substituição de vontades.
Observação mais atenta ao instituto, entretanto, revela, desde pronto,
problemática conceitual grave. Há uma contradição aparente na definição da
natureza jurídica da jurisdição arbitral. E quanto mais se adentra na matéria,
outras problemáticas acabam sendo reveladas

possa em princípio regular por si mesmo as suas questões pessoais e, na medida em que com
isso seja afetada outra pessoa, possa regulamentar as suas relações com ela com caráter
juridicamente obrigatório mediante um acordo livremente estabelecido. – tradução livre.
(LARENZ, 1958, p. 65).

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Isso porque, segundo esse instituto, cabem às partes acordar que
determinada controvérsia será resolvida por decisão de um árbitro. Análise
perfunctória conduziria à conclusão de se tratar de contrato típico, restrito ao
campo da autonomia privada.
De outro norte, atentando-se efetivamente à atividade desempenhada
pelo árbitro, exsurge o questionamento: se somente ao Estado cabe exercer a
função jurisdicional, não possuiria também a arbitragem essa natureza, na
exata medida em que também soluciona interesses conflitantes de indivíduos?
Não teria a arbitragem, assim, caráter público?
Essa contraposição de ideias gerou inclusive discussão acerca da
constitucionalidade da Lei de Arbitragem, por suposto malferimento ao princípio
da inafastabilidade do controle jurisdicional. Refere-se ao julgamento do Agravo
Regimental em Sentença Estrangeira nº 5206/Espanha, de relatoria do
Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 12/12/2001. Naquela oportunidade, o
Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do diploma legal.
Veja-se a gravidade da questão. A investigação proposta se encontra
adstrita a um dos pontos basilares de estudos jurídicos. Basilar e complexo.
Investiga-se, aqui, a natureza jurídica do instituto.
Investigar a natureza jurídica apresenta-se como tarefa complexa porque
impõe alto grau de abstração, com o fim de se encontrar o núcleo essencial do
objeto estudado. Após encontrar-se a essência, inicia-se a missão topográfica,
ou seja, parte-se à tentativa de categorização em um dos institutos jurídicos já
existentes.
No caso da arbitragem, enfrentam-se ainda outras duas dificuldades
conceituais para se alcançar a natureza jurídica do instituto. A primeira, porque
o estudo demanda análise e mesmo uma reconceituação do que é,
efetivamente, a jurisdição. Já a segunda, porque se adentra em terreno no qual
predomina um antigo paradigma do Direito: a distinção entre o público e o
privado.
Ao se referir à arbitragem, podem-se aludir três aspectos distintos do
instituto. Os dois primeiros não ensejam maiores dúvidas da doutrina. Trata-se
da análise da arbitragem como (a) uma convenção feita pelas partes ou como
(b) um método de solução de conflitos de interesse. Sendo uma convenção, a
arbitragem aqui é vista como um contrato típico, por demandar um acordo de

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vontades em que as partes resolvem submeter a lide ao tribunal arbitral.
Enquanto método de solução de conflitos, por seu turno, a arbitragem se
assemelha ao processo judicial na medida em que cria uma relação jurídica
entre as partes e o árbitro (CREMASCO; SILVA, 2011, p. 371).
A dificuldade conceitual referida concentra-se no terceiro aspecto do
instituto: considerar-se a arbitragem como a atividade desenvolvida pelo
tribunal arbitral. Note-se o foco no termo “atividade”, justamente um dos traços
distintivos do conceito de jurisdição.

2.1 Jurisdição para além do Estado?

A arbitragem apresenta-se como extensão do conceito de jurisdição,


uma vez que o Estado, detentor máximo da prerrogativa, permite e regula a
prática desse meio de resolução de conflitos.
Esse ramo teórico é representado por processualistas renomados. No
cenário nacional, são expoentes Fredie Didier Jr., José Eduardo Carreira Alvim,
Nelson Nery Júnior, Humberto Theodoro Jr. e Carlos Alberto Carmona. Todos
apresentam espeque na doutrina internacional, com expoente no case Del
Drago, de dezembro de 1901, da Corte de Cassação Francesa2.
Definir a arbitragem como espécie de prestação jurisdicional perpassa,
basicamente, por uma reconceituação do conceito clássico de jurisdição. Se
ela antes era conceituada apenas como a atividade decisória de conflitos
desenvolvida por juízes estatais, com o tempo essa definição mudou. Evoluiu,
segundo os adeptos dessa teoria.
De acordo com recente doutrina, jurisdição é “a função atribuída a
terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo,
reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas concretamente
deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e com aptidão para
tornar-se indiscutível” (DIDIER JR, 2010, p. 83).

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A Corte decidiu que uma sentença arbitral estrangeira possuía o mesmo valor de uma
sentença judicial estrangeira, sedimentando a equivalência da arbitragem à jurisdição. O caso
envolveu o Estado da Rainha Maria Cristina da Espanha, na qual se discutiu qual lei nacional
se aplicaria à demandada. No caso, definiu-se que a lei aplicável à ré, a Princess Del Drago,
era a do Estado Pontifício, já que a princesa pertencia por direito de matrimônio à Casa Papal
(RUBINI-SAMARTANNO, 2014, p. 11).

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O foco desse conceito – o exercício da jurisdição –, não está limitado à
figura do Estado somente, podendo ser desempenhada por terceiro imparcial.
A abertura conceitual proposta permite se vislumbre a adequação, aos moldes
delimitados, da arbitragem como legítima integrante do conceito de jurisdição,
porquanto seria ela também um método de modificação e solução de situações
jurídicas, realizado por pessoa alheia às partes em litígio. A diferença
substancial repousa no fato de que, nesse caso, o Estado autoriza e regula o
exercício desse poder por particular, por meio de lei própria, a Lei de
Arbitragem.
Entendido dessa forma, o conceito de jurisdição não implicaria em
rompimento da noção básica de que ela é monopólio do Estado. Afirma-se
sempre “a jurisdição é monopólio do Estado, mas não é correto dizer há
monopólio de seu exercício” (DIDIER JR, 2010, p. 81). A soberania estatal
restaria, assim, preservada.
Por essa definição, a arbitragem não poderia sequer ser entendida como
um “equivalente jurisdicional” ou “substutivo de jurisdição”: casos da autotutela,
autocomposição e mediação. Seria o próprio exercício da jurisdição.
A doutrina especializada procura por em relevo a circunstância de que
diversos outros atributos da arbitragem reforçam o seu caráter jurisdicional. O
fato de a sentença arbitral só poder ser revisada quanto aspectos de validade
(art. 33, da Lei nº. 9.307/96), e não de mérito, é um deles.
Outro ponto que pode ser invocado como sustentáculo dessa posição
reside no procedimento de homologação de sentenças arbitrais estrangeiras
pelo Superior Tribunal de Justiça. Se a sentença arbitral não fosse produto de
uma atividade jurisdicional, por qual motivo se condicionaria a eficácia de um
suposto contrato ao crivo daquela Corte? Se assim se faz, há uma razão: dotar
aquela sentença arbitral de autorização para produzir efeitos em território
nacional pelo crivo da soberania do Estado Brasileiro (CREMASCO; SILVA,
2011, p.376).
Aspecto polêmico acerca do tema reside na limitação executória da
sentença proferida pelo tribunal arbitral. Afirma-se que, após eventual decisão
condenatória, caberia à parte interessada ingressar na Justiça para executar a
sentença arbitral, por constituir ela título executivo judicial (art. 475-N, IV, do
Código de Processo Civil).

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Questionados sobre esse ponto, os adeptos da teoria jurisdicional
argumentam que a jurisdição, quanto ao tribunal arbitral, não goza de
plenitude. Isso não retira, porém, a sua natureza de órgão de administração da
Justiça; há apenas a limitação em sua extensão.
Relevância também se atribui a outro debate, consistente na
necessidade de renúncia à jurisdição quando se opta pelo procedimento
arbitral. Nesse ponto, a doutrina observa não se tratar de renúncia à jurisdição,
mas somente à jurisdição estatal. Inexistiria o sacrifício mencionado pela teoria
contrária, portanto.
O foco principal desse ramo doutrinário reside, no entanto, no tipo de
atividade desempenhada pelos árbitros. Nas próprias palavras do
processualista Nélson Nery Júnior (1997, p. 1300):

A natureza jurídica da arbitragem é de jurisdição. O árbitro exerce


jurisdição porque aplica o direito ao caso concreto e coloca fim à lide
que existe entre as partes. A arbitragem é instrumento de pacificação
social. Sua decisão é exteriorizada por meio de sentença, que tem
qualidade de título executivo judicial, não havendo necessidade de
ser homologada pela jurisdição estatal.

Nesse sentido, vale destacar a posição nuclear da pacificação social


como objetivo maior da jurisdição estatal e da arbitragem. A partir dela se
justificaria a extensão do conceito de jurisdição, portanto, ao procedimento
arbitral.

2.2 A jurisdição dos privados?

Se de um lado sustenta-se a natureza jurisdicional da arbitragem, no


extremo outro se encontram os defensores do viés privado do instituto.
Uma vez embasada em contrato pactuado de forma válida e livre por
sujeitos de direito, a arbitragem não possuiria natureza jurisdicional, mas sim
privada. Não são poucos os autores que defendem esse posicionamento. Vale
aqui citar Luis Guilherme Marinoni, Cândido Rangel Dinamarco, Vicente Greco,
Elio Fazzalari e Sérgio Benevudes.

15
O silogismo a partir de tais premissas apresenta a conclusão
aparentemente lógica, marcada mesmo pela obviedade. Contudo, não foram
poucos os argumentos lançados a fim de construir o momento conclusivo.
O primeiro pilar da teoria privada reside no fato de, em tese, o exercício
da jurisdição se apresentar como prerrogativa única do Estado, que delega a
função àqueles devidamente qualificados via concurso público. O monopólio
para a solução de controvérsias por essa via é somente estatal, não podendo o
árbitro ser considerado uma extensão desse conceito só porque desempenha
atividade assemelhada.
A questão, aqui, é de competência: só juízes podem e exercem
jurisdição. É do núcleo fundamental do seu conceito que somente autoridades
públicas, de livre acesso por qualquer cidadão, possam “dizer o direito” com
base no ordenamento jurídico interno.
Em continuidade, põe-se em relevo a existência de cláusula expressa,
quando da convenção de arbitragem, da escolha do juízo arbitral e a renúncia à
jurisdição. Deparando-se com essa circunstância, argumenta-se que se há
renúncia à jurisdição, à obviedade, não poderia a arbitragem ser, em si,
jurisdição.
A opção “arbitragem” consigo implica o afastamento de três outros
princípios afetos à jurisdição estatal e que a definem. O primeiro, da
inevitabilidade do controle jurisdicional, segundo o qual a autoridade dos
órgãos jurisdicionais “impõe-se por si mesma, independentemente da vontade
das partes ou de eventual pacto para aceitarem os resultados do processo”
(CINTRA, DINAMARCO; GRINOVER, 2008, p. 155).
Nesse sentir, destaca-se que a inevitabilidade inerente ao controle
jurisdicional não é compartida pela arbitragem, que depende do pacto das
partes para que ocorra. Sem o pacto, não se instala a jurisdição arbitral.
O segundo princípio não observado pela arbitragem é o do juiz natural,
previsto no art. 5º, XXXVII, da Constituição Federal. Afinal, o árbitro não é juiz
independente e imparcial, aleatoriamente designado. Do contrário, é
previamente escolhido pelas partes. Evidencia-se, portanto, que carece a
arbitragem da higidez prévia à relação que poderá resultar em conflito, como se
encontra na análise da jurisdição estatal.

16
Ulteriormente, argumenta-se que a arbitragem deixa evidente o conflito
em face do princípio da unidade da jurisdição, fundado na ideia de que a
jurisdição não comporta divisões (SZNAJDER, 2014, p. 2), pois se admitir o
contrário implicaria no reconhecimento de que o Estado possui mais de uma
soberania.
Por fim, ainda se invoca a impossibilidade de execução das decisões
pelo árbitro como marco distintivo do procedimento à esfera privada. Apesar de
alcançar definitivamente uma solução ao litígio, o tribunal arbitral não possui o
condão de executar a sentença por si. Para tanto, conferiu-se à sentença
arbitral caráter de título executivo (art. 31 da Lei nº 9.307/93 c/c art. 475-N do
Código de Processo Civil). Ou seja, se o árbitro sequer pode dar eficácia à sua
decisão, como poderia se reconhecer qualquer espécie de natureza
jurisdicional ao seu serviço? Apesar de haver resposta da teoria jurisdicional a
esse ponto, os adeptos da teoria privatista invocam o distanciamento existente
que seria compatível com a essência da jurisdição. Ela é plena, não
comportaria limitação.
A doutrina, portanto, apoiando-se em tais argumentos, vergasta a
sustentação primordial da corrente jurisdicional, qual seja, a arbitragem vista
como um instrumento de pacificação social. Sustenta-se que o termo é
genérico e não reflete o núcleo do conceito de jurisdição. Pacificação social
“não decorre necessariamente de uma decisão justa”. Inúmeras atividades
privadas poderiam conduzir ao mesmo fim e “ninguém jamais ousou qualificá-
las como jurisdicionais somente por esse motivo” (MARINONI, 2014, p. 15).
A jurisdição é também a medida de todas as coisas segundo esse ramo
doutrinário. Afasta-se, porém, o argumento de que a similaridade dos
processos judiciais e arbitrais os definiriam como iguais. Um é privado, pago
pelas partes e influenciado por fatores alheios. O outro, público e influenciado,
portanto, pelos valores democraticamente eleitos, mediante processo público
específico para tanto (concurso). Dessa forma, não haveria qualquer
possibilidade de uni-los, justiça e arbitragem, no mesmo conceito.

2.3 As Teorias Mista e Autônoma

17
Aristotélica é a lição de que entre dois extremos, deve-se escolher o
meio termo.
No debate acerca da natureza da jurisdição arbitral há os que invocam,
ao que parece, a concepção do filósofo grego e defendem o meio termo entre
os opostos contendores.
Como opção ao embate clássico, autores surgiram com opções
doutrinárias diversas. Adveio primeiro a Teoria Sincrética, Intermediária ou
simplesmente Mista, que de maneira geral concede à arbitragem as duas
naturezas, contratual e jurisdicional. Contratual, seria, em sua origem, mas
jurisdicional em sua atividade. Constitui a posição defendida por Sérgio Pinto
Martins, ancorado na posição de Sauser-Hall (CREMASCO; SILVA, 2011,
p.374).
Além da conciliação entre as duas teorias anteriores, ousou-se propor
leitura distinta, como terceira via.
A partir da Teoria Intermediária surgiu a defesa de uma posição
nominada de Autônoma ou Sui Generis da arbitragem, definindo-a como um
procedimento especialíssimo, dotado de elementos comuns ao contrato e à
jurisdição, mas ainda assim único. Mais afirmada no ramo do Direito
Internacional e em países liberais (Suíça, por exemplo), essa teorização retira
qualquer vínculo da arbitragem com o Estado. O enfoque é diverso por residir
muito mais no plano jurídico e comercial em que se encontra inserida a
negociação do que nas leis do país de origem da avença (CREMASCO; SILVA,
2011, p.374).
Entende-se, contudo, que as posições acima não se aplicariam ao
presente trabalho. A primeira, porque não observa a separação metodológica
feita no início deste item capitular. Naquela oportunidade, enumeraram-se
diversos enfoques possíveis à arbitragem, sendo três em específico, quais
sejam, a arbitragem como convenção, método ou procedimento. Demarcou-se
que a investigação recairia somente quanto ao ponto último, já que os demais
não ensejariam maiores delongas; são contratuais. Portanto, uma teoria mista
somente confundiria esses possíveis enfoques, afastando o debate proposto
acerca da essência da arbitragem enquanto atividade. Nesse ponto, não há
como conceder à atividade natureza mesclada: ou é jurisdicional, ou contratual.

18
No que tange à teoria autônoma, não se verifica a viabilidade de
aplicação ao ordenamento jurídico brasileiro, que determina, para sentenças
arbitrais internacionais, a homologação pelo Superior Tribunal de Justiça a fim
de produzir efeitos. Como advertido, essa teorização é típica de países mais
liberais. Indubitável que, no Brasil, a lei do local é relevantíssima para a
determinação da natureza jurídica da sentença arbitral.
O conflito remanesce, portanto, entre o público e o privado. A conclusão
é evidente. No fundo, a divergência entre aquelas correntes reside não na
natureza jurídica da arbitragem em si, mas sim no próprio conceito de
jurisdição. Essa não é uma das tarefas mais fáceis e, provavelmente, o embate
permanecerá por um longo tempo.

3. JUÍZO ARBITRAL: MODULAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE E DA


AUTONOMIA PRIVADA NOS CONTRATOS INDIVIDUAIS E DE ADESÃO

3.1 Do Juízo Arbitral

Ao resgatar notas conceituais breves acerca do conceito da arbitragem,


depara-se com os apontamentos, desde logo, para o regime do contrato,
autonomia privada e manifestação da vontade comum dos contratantes.
Irineu Strenger entende que a arbitragem refere-se “a instância
jurisdicional praticada em função de regime contratualmente estabelecido, para
dirimir controvérsias entre pessoas de direito privado e/ou público, com
procedimentos próprios e força executória perante tribunais estatais. (1998, p.
17).
Com a opção pelo mecanismo de compositivo extrajudicial de solução
de conflitos, a arbitragem apresenta mais um ponto de consensualidade em
relação às partes, vinculado pela escolha do árbitro ou câmara arbitral,
definidos em conjunto pelos contratantes.
A arbitragem, afirma CARMONA, é um mecanismo sofisticado para a
resolução de controvérsias que apresentem maior grau de dificuldade – jurídica
ou fática – a exigir a presença de técnico especializado, o árbitro (1999, p. 55).

19
Outro ponto relevante da arbitragem reside no comando do juízo
decisório revestido de iguais efeitos da decisão jurisdicional, sendo assim, a
decisão arbitral impositiva às partes.
A consideração acerca da natureza jurídica contratual, mista ou
procedimento especialíssimo da jurisdição arbitral, como abordada
anteriormente, oportuniza, através da observação da arbitragem voluntária e
referente às questões de direito privado, especificamente, análise do que, para
fins do estudo, se convencionou nominar de modulação da autonomia privada
em sede de contratos individuais e contratos coletivos.
Nessa esteira, define-se a releitura da autonomia privada para retomar
a tensão pendular sobre os limites impostos ao poder das partes de
autorregulamentação de seus interesses particulares. Indubitavelmente, poder
que, sofre limites decorrentes do próprio ordenamento jurídico que, de outra
parte, o assegura e defende por ser vital à tutela dos interesses privados em
sede de negócio jurídico.
Não há autonomia privada sem limites, como também não há autonomia
privada sem liberdade. Instigante, por vezes, observar as modulações da
autonomia privada, para mais ou para menos, se assim pode ser expresso, em
certas condições e circunstância.

3.2. Contratos Individuais: Relevo da Autonomia Privada

A modalidade negocial expressa pelo contrato individual permite a


apreensão de uma dimensão mais significativa da autonomia privada,
exatamente, por existir entre as partes contratantes todo um iter negocial, um
procedimento em torno do conhecimento do que se contrata e como se
contrata, caracterizado pelas análises, discussões, ponderações e cooperação
recíproca acerca do auto regulamento de interesses no âmbito das intenções e
pretensões recíprocas, posteriormente, declaradas de forma precisa e
conforme a manifestação de vontades feita de modo eficiente a abranger todo
o conteúdo do pacto. No contrato individual ou paritário, em regra, as partes
têm posições equivalentes e convencionam livremente os efeitos que desejam
venha o contrato produzir.

20
A discussão em relação à autonomia privada manteve-se conformada
pela tradição da teoria negocial ao plano material, sendo as referências feitas à
imposição de limites, ou não, voltadas para essa textura e materialidade.
Considerando o perfil de relevo da autonomia privada “enquanto
liberdade de modelação da própria esfera jurídica, sendo justamente o poder
de fazer escolhas e diferenciações, e de fazê-las, não segundo critérios
objetivos de conveniência econômica, de razoabilidade, de igualdade social,
mas antes segundo o livre arbítrio do sujeito”, tal liberdade implicada no
princípio da autonomia privada que prevalece sobre estes critérios, não
valendo, em regra, o princípio da igualdade, em toda sua extensão, no domínio
privado – em particular no domínio jurídico-negocial. Isto, por força de outro
princípio fundamental, constitutivo do direito privado. Sem tal atenuação, se o
tratamento desigual (p.ex. a recusa de contratar) das contrapartes – ou das
potenciais contrapartes – implicasse em violação do princípio da igualdade, a
autonomia privada seria destruída, e a vida jurídico-privada deparar-se-ia com
uma “extrema rigidez”, inautenticidade e irrealismo, de todo os pontos
indesejáveis” (MOTA PINTO, 2010, p. 316).
A questão nuclear em relação à autonomia privada está assentada não
mais e somente nos limites necessários à autorregulamentação, e sim na
modelação de expressão desta autonomia, objetivando a proteção da liberdade
e igualdade de contratar assegurando a execução dos contratos de forma a
equilibrar a materialidade das obrigações, adequada à realização dos seus
efeitos.
O respeito à autonomia privada representa limites assegurados pela
ordem pública como cláusula geral representando notáveis imprecisões na
hora de fazê-la concreta. (LORENZETTI, 2004, p.94).
Como cláusula geral dirigida ao poder negocial, principalmente, dos
grandes contratantes, mas não só destes, diga-se, em relação ao poder
econômico e ao poder dos mercados globais, a autonomia privada enfrenta a
necessidade, de um lado, da imposição de certos e bem definidos limites,
dirigidos à ação dos chamados “senhores do poder” por expressar domínio
negocial em relação à economia mundializada e, de outro, uma extensão de
liberdades e igualdades para garantir o respeito ao contrato, um dos ícones do
Estado de Direito, na atualidade. A problemática em pauta ainda enfrenta no

21
polo oposto dos interesses privados, na contramão das pretensões dos donos
dos mercados, a atuação desmedida de Estados, excessivamente,
intervencionistas.
A intervenção estatal é histórica, existente na Monarquia Absolutista e
pelo Estado Liberal na versão de Estado Moderno (BONAVIDES, 2004, p.41).
De observar que no Estado liberal, a intervenção era mínima, prevalecendo o
individualismo econômico e negocial marcado pela liberdade contratual plena.
O Estado neoliberal define-se, entre outros fundamentos, pela interferência
equilibrada na ordem econômica e nas relações privadas, objetivando, dentre
outros fins, a garantia do contrato e democratização dos pactos.
A iniciativa privada, e com ela a autonomia privada, frente às ações
econômicas formadas por certas pressões públicas, enfrentam oscilações de
conformidade com a política intervencionista de cada Estado afetando o
desenvolvimento e crescimento econômico com a desaceleração da economia,
fuga do capital estrangeiro e crise econômica acentuada, no mais das vezes,
como ocorre com países vizinhos da América Latina.
Lorezentti, ao tratar dos deveres de proteção da ordem pública em
relação à organização econômica do Estado, preleciona:

A Ordem Pública possui quatro objetivos, sendo “a proteção do


consentimento pleno, a proteção da parte fragilizada, a coordenação
das condutas individuais para dotá-las de sociabilidade, e a direção
econômica”, cujo primeiro deles visa garantir a efetividade da
autonomia privada de ambas as partes, garantindo o conhecimento
do que se contrata. A ordem pública de proteção existe em função da
parte fragilizada, quando da desigualdade econômico-social, objetiva-
se o equilíbrio em oportunidade e expressão, os direitos do
consumidor e a legislação trabalhista muito bem expressa este papel.
A ordem pública de coordenação apresenta-se como um conjunto de
normas imperativas visando o controle da licitude do que fora
pactuado, obedece aos princípios mínimos da pessoa, moral e bons
costumes. A ordem publica de direção diz respeito ao modo de
organizar economicamente a sociedade, através da constituição, leis
e tradição jurídica, transcende os direitos individuais e alberga
normas de justiça distributiva, a ordem pública de coordenação é
pressuposto da direção. (2010, p. 89).

Destaca-se da doutrina de Lorenzetti os núcleos fundamentais da


proteção pela Ordem pública para assegurar os pilares do contrato,
indispensáveis ao trânsito negocial:

22
a) consentimento pleno, vinculado à liberdade de contratar e a liberdade
contratual;
b) proteção da parte fragilizada, em regra, o aderente, sujeito vulnerável
ao desequilíbrio contratual movido pela presença de cláusulas abusivas em
descompasso com o principio da boa fé objetiva.
c) efetividade da autonomia privada de ambas as partes, asseguradas
pelo ordenamento jurídico, tendo em conta a condição socioeconômica das
partes e o tipo de contrato a ser celebrado;
d) garantia do conhecimento do que se contrata pautada pela segurança
jurídica negocial e dever de informação, ponto essencial referente à
transparência dos pactos;
e) controle da licitude, referência direta à moralidade das partes
contratantes, objeto dos pactos, fins visados pelas partes, fundados na boa-fé
objetiva e na tradição dos usos e costumes.
f) organizar economicamente a sociedade, tarefa constitucional do
Estado implicando em limitar poderes e, ao mesmo tempo, assegurar tais
poderes, observando que a ordem publica de coordenação é pressuposto da
ordem publica de direção.
Nesse palco e cena, divididos entre interesse público e privado, mantém-
se a persecução da tutela adequada para resguardar a conexão inevitável
entre o respeito ou a violação do contrato, individual ou por adesão, protegendo
ou limitando, por indispensável, a autonomia privada das partes contratantes.
Assim, a autonomia privada, feita de liberdades, assegura às partes o
poder de autorregulamentação, enquanto que a mesma autonomia privada,
feita de limites, assegura às partes a igualdade refletida na equivalência
material das obrigações. A liberdade contratual materializa-se no encontro de
vontades livres para estabelecer o conjunto de interesses que devem nortear o
pacto, enquanto a boa-fé objetiva garante a tutela da confiança, elemento
integrante da moralidade da relação negocial. Por esse percurso, a modulação
da extensão da autonomia privada oportuniza a calibração do poder negocial
ao mesmo tempo em que assegura e limita o poder de autorregulação de
ambas as partes, conjugando liberdade e igualdade no encontro do
consentimento pleno ou adesivo do acordo de vontades, conforme os
interesses econômicos e sociais de cada um dos contratantes. Se assim não

23
for, a autonomia privada restará desconstruída para dar margem à exploração
do mais fraco pelo mais forte, com o que não se pode comungar.
Nesse contexto de modulações necessárias, a autonomia privada
recebe da legislação arbitral espaço expressivo e importante para conceder à
parte contratante, na modalidade de pacto individual a liberdade para eleger
meio alternativo de solução de controvérsia, retirando da apreciação do poder
judiciário a apreciação de conflitos, quando e se houver, tudo nos limites da
legislação aplicável.
Sem dúvida, a arbitragem como concebida, além de representar avanço
expressivo como “outro meio” para solução de controvérsias, assegurou,
através da jurisdição arbitral, a competência para decidir questão de interesse
privado, reservando ao juízo decisório privado a apreciação de divergências
negociais por meio deste procedimento alternativo de decidibilidade de
conflitos. A opção disponibilizada ampliou as condições de possibilidade da
autonomia privada, antes restrita pelo poder negocial conferido às partes, à
textura material dos pactos. As partes passam a poder eleger, além do foro de
competência para resolução de conflitos, a câmara arbitral ou arbitro que
melhor atenda à natureza do conflito. A ritualística processual alternativa, muito
distinta daquela determinada pelo direito processual e a submissão dos
conflitos ao Judiciário, cinge-se na autorregulação, bastando a opção de
consenso das partes pela arbitragem e eleita através da inclusão da cláusula
compromissária nos contratos, podendo ser feita, ainda, por instrumento em
separado.
Por este percurso, a modulação da autonomia privada apresenta-se
como opção para conjugar limites e condições de possibilidades de forma a
assegurar caminho de condução à metódica do justo meio, condizente com a
proteção da autorregulação equilibrada dos interesses privados dos
contratantes.

3.3 Contratos de Adesão e Arbitragem


A autonomia privada e a autonomia da vontade nos contratos de adesão
não têm a mesma condição de possibilidade, considerando os limites impostos
ao aderente, titular da liberdade para contratar, mas não da liberdade para
discutir o que está a contratar, vale dizer, a liberdade contratual. Em síntese,
24
esta é a característica fundamental da adesão, ampliada pelo trânsito negocial
intenso, massificado e sem outra opção para celebração dos pactos, tem
especial proteção nas relações de consumo. Por esta marcante condição é que
a autonomia privada se faz bem mais limitada nesta cena, a fim de proteger o
aderente, tanto em relação à materialidade do conteúdo do pacto, como em
relação à tutela jurisdicional de seus interesses, no que se refere aos meios
alternativos de solução de conflitos.
Em síntese, a questão se define pela aposição de cláusulas
compromissórias em contratos de consumo frente à proteção que é dada pela
Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor, aos consumidores.
A Constituição Federal define que “a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” no Art. 5º, XXXV ao dispor sobre os
direitos individuais e coletivos, garantindo a todos o acesso à justiça para
demandar em defesa de lesão sofrida ou ameaça a direito.
O texto constitucional contem proteção categórica tanto em relação aos
direito individuais como em relação aos direitos coletivos, não facultando
qualquer margem para o exercício do poder conferido pela autocomposição em
sede de matéria contratual.
De outra parte, em igual direção, o Código de Defesa do Consumidor
dispõe, em seu Art. 51, que “são nulas de pleno direito, entre outras, as
cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: [...]
VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem”.
Evidentemente, sendo a opção pelo juízo arbitral de natureza contratual
somente poderá ser acatado nos contratos em que houver a expressa
manifestação de vontades e autorregulamento resultante da autonomia
privada, o que não ocorre nas relações de consumo dominadas pela adesão.
Logo, toda e qualquer lesão ou ameaça de direito deve ser submetida à
apreciação do judiciário observado o direito de acesso à justiça e atendimento
ao princípio do devido processo legal. Descabe nas relações de consumo a
invocação ou reconhecimento de opção pelo juízo arbitral, em decorrência da
ausência da liberdade e igualdade contratual, podendo, até mesmo, ser
considerada, em certas circunstâncias, como ausência de boa fé objetiva.
O ordenamento jurídico, neste caso, modula a autonomia privada para
menor, limitando a possibilidade de invocação, estabelecendo e assegurando

25
meios materiais e processuais para proteção da parte mais débil na relação
negocial, fazendo a contenção do poder negocial enquanto autorregulação.
Constata-se, neste seguimento, a modulação da autonomia privada
limitando o poder negocial para proteger a parte hipossuficiente, impedida pelo
regime contratual adesivo de expressar o consentimento pleno em relação à
garantia do que contrata e com quem contrata e de conformidade com o
princípio da boa-fé objetiva, em vista da segurança jurídica negocial.
O Art. 3º da Lei de Arbitragem dispõe: “as partes interessadas podem
submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de
arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso
arbitral”.
As “partes interessadas”, como referidas pela dicção do Art. 3º, devem
ser compreendidas somente aquelas que, nos contratos individuais, possam,
livremente, fazer a opção pelo juízo arbitral. Não se afirma com isso que a
arbitragem não possa ser utilizada nos contratos de consumo, o que se discute
é a determinação unilateral da cláusula arbitral em desfavor do aderente e em
decorrência da manifestação de vontade única do contratante que oferta o
contrato, em regra, a parte mais forte.
O Art. 4º da Lei de Arbitragem dispõe:

“A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes


em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios
que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. [...]
§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá
eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem o
concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por
escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto
especialmente para essa cláusula.”

Considerando o teor do parágrafo 2º, sob análise, com as ressalvas do


texto no que se refere à iniciativa do aderente, observada a forma, ainda assim,
permanece o olhar de soslaio para o conjunto formado pela natureza do
contrato de adesão, especialmente em sede de relação de consumo.
Cláudia Lima Marques alerta para a possibilidade de se transformar a
arbitragem voluntária em compulsória em prejuízo do hipossuficiente:

“[...] a cláusula compromissória prescinde do ato subsequente do


compromisso arbitral. Logo, por si só, é apta a instituir o juízo arbitral,

26
via sentença judicial, com um só árbitro (que pode ser da confiança
do contratante mais forte, ou por este remunerado); logo, se imposta
em contrato de adesão ao consumidor, esta cláusula transforma a
arbitragem “voluntária” em compulsória, por força da aplicação do
processo arbitral previsto na lei”. (2004, p. 635).

Os tribunais pátrios, com acerto, têm, reiteradamente, afirmado ser nula


de pleno direito a cláusula contratual que prevê arbitragem compulsória em
contrato de adesão. Outra não tem sido a posição do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro:

AGRAVO INTERNO. Ação declaratória de nulidade de título


executivo extrajudicial. Arbitragem. Necessidade de as partes a
convencionarem expressamente, o que no caso não ocorreu; ainda
que assim não fosse, tratando-se, como se trata, de relação de
consumo, aludida cláusula somente teria eficácia se o aderente
tomasse a iniciativa de instituí-la ou com ela expressamente
concordasse (art. 3º, § 2º, da Lei nº 9.307/96); o Código de Defesa do
Consumidor tem como nula de pleno direito cláusula determinante da
utilização compulsória de arbitragem (art. 51, VII). Ausente cláusula
compromissória expressa, o contrato não poderia haver sido
submetido a juízo arbitral. Recurso a que se nega provimento.
0002316-53.2006.8.19.0007 - APELAÇÃO 2ª Ementa DES. JESSE
TORRES - Julgamento: 14/12/2011 - SEGUNDA CÂMARA CÍVEL
CLÁUSULA ARBITRAL. TJ-RJ. Banco do Conhecimento/
Jurisprudência/ Pesquisa Selecionada/Direito Processual Civil.

Assim, a despeito da previsão do art. 4º, parágrafo 2º da Lei nº 9.307/96,


entende-se pela vedação da inclusão da mencionada cláusula compromissória
nos contratos de adesão em decorrência dos fundamentos colacionados, e,
quando incluída de forma compulsória no rol de cláusulas que integram os
contratos de consumo deverá ser declarada nula de pleno direito por força da
previsão constitucional do art. 5º XXXV e do art. 51 do CDC VII, conforme
decisões reiteradas dos tribunais pátrios, ex vi do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais.

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - RELAÇÃO DE


CONSUMO - CONTRATO DE ADESÃO - CLÁUSULA
COMPROMISSÓRIA DE ARBITRAGEM - NULIDADE. É nula de
pleno direito a cláusula contratual que prevê arbitragem compulsória
em contrato de adesão. 10024122492044001 MG. TJ-MG- Relator:
Valdez Leite Machado. 03/04/2014

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO DE


ADESÃO. CONVENSÃO DE ARBITRAGEM. LIMITES E EXCEÇÕES.
ARBITRAGEM EM CONTRATOS DE FINANCIAMENTO
IMOBILIÁRIO. CABIMENTO. LIMITES. 1. Com a promulgação da Lei
de Arbitragem, passaram a conviver, em harmonia, três regramentos

27
de diferentes graus de especificidade: (i) a regra geral, que obriga a
observância da arbitragem quando pactuada pelas partes, com
derrogação da jurisdição estatal; (ii) a regra específica, contida no art.
4º, § 2º, da Lei nº 9.307/96 e aplicável a contratos de adesão
genéricos, que restringe a eficácia da cláusula compromissória; e (iii)
a regra ainda mais específica, contida no art. 51, VII, do CDC,
incidente sobre contratos derivados de relação de consumo, sejam
eles de adesão ou não, impondo a nulidade de cláusula que
determine a utilização compulsória da arbitragem, ainda que
satisfeitos os requisitos do art. 4º, § 2º, da Lei nº 9.307/96. [...] 4.
Recurso especial a que se nega provimento. REsp 1169841 / RJ
Recurso Especial 2009/0239399-0. Relatora Ministra Nancy Andrighi
.T3 - Publicação:14/11/2012. RDDP vol. 119 p. 171 RIOBDCPC vol.
80 p. 154. Acesso em 02.10.2014.

A Ministra Nancy Andrighi ao preferir o voto no Recurso Especial sob


análise, bem apontou os três regramentos existentes em relação à matéria
destacando os diferentes graus de especialidade. Com base nos fundamentos
expendidos pode-se aquilatar, de forma adequada, a modulação da autonomia
privada em sede de eleição ou imposição do juízo arbitral.
Pela regra geral prevalece a eleição da arbitragem quando pactuada
com base na Lei de Arbitragem, e de conformidade com o livre consentimento
das partes, com “derrogação da jurisdição estatal”, conforme teor do
respeitável voto, expressando, claramente, o reconhecimento e respeito à
autonomia privada.
O voto lapidar em relação à modulação da autonomia privada prossegue
para reafirmar os limites da regra específica, contida no art. 4º, § 2º, da Lei nº
9.307/96, remarcando a eficácia da cláusula compromissória e, por fim,
consoante a regra ainda mais específica, contida no art. 51, VII, do CDC,
reconhecer a necessidade da imposição da nulidade de cláusula compulsória
da arbitragem, como limite extremo.
Impende ressaltar que a Lei de Arbitragem não impõe o juízo arbitral,
ficando reservada às partes, como expressão da liberdade contratual e da
autonomia privada, a opção por este outro meio de solução de conflitos.
Por fim, de acordo com o sistema de especialidade referido e com a
finalidade de conferir efetiva proteção à parte mais fraca, cuida-se de modular a
extensão da autonomia privada, repita-se, limitando a imposição da
arbitragem.

4. CONCLUSÃO

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O negócio jurídico pode ser conceituado como o instrumento
através do qual podem as partes, através do exercício da autonomia privada,
disciplinar seus interesses, bem como os efeitos práticos e jurídicos
decorrentes, com base nos limites impostos pelo ordenamento.
A circunstância de definir-se negócio jurídico como um ato decorrente da
autonomia privada não significa adesão à teoria preceptiva ou normativa, uma
vez que a autonomia privada nesse caso, refere-se ao espaço deixado às
partes para tão somente estabelecerem o conteúdo e os efeitos da relação
dentro do que permite o ordenamento jurídico. Assim sendo, a possibilidade de
regulamentar interesses nas relações privadas não implica, necessariamente,
na criação de preceitos ou normas individuais.
No modelo liberal, a ideologia pregada era a da ampla liberdade de
iniciativa, tendo por fundamento o respeito à autonomia da vontade, a partir da
plena liberdade concedida aos particulares de regulamentar seus interesses,
através de negócios jurídicos, defendendo-se a ideia da mínima, se não
inexistente, intervenção estatal nas relações privadas, sendo neste contexto a
autonomia da vontade somente limitada pela ordem pública e bons costumes.
Posteriormente, o Estado social, passa a criar limites à autonomia
privada, para que seja atendido o interesse geral e cumprimento dos direitos
sociais, culturais e econômicos.
O percurso histórico do direito negocial revela ter se chegado a um
ponto em que a liberdade ilimitada era capaz de malferir direitos basilares do
sujeito. Nesse ponto, a pouco e pouco foram sendo criados limites à liberdade
negocial, tarefa que coube ao Direito realizar.
Com o surgimento de novos princípios, como o da função social do
contrato, o da boa-fé e o da supremacia da ordem pública, que são princípios
de segunda e terceira geração, a liberdade absoluta, que é um princípio de
primeira geração e decorre dos ideais revolucionários do Séc. XVIII, é posto de
lado.
Isso não significa que a liberdade negocial tenha sido abolida. Ela foi
qualificada, no sentido de ser interpretada à luz da nova principiologia. A
liberdade é um princípio e, por isso, é digna de proteção. O que não se admite

29
é a natureza absoluta com que, no passado, tão ao gosto da burguesia, ela foi
sustentada.
Nesse sentido, discute-se a natureza da convenção arbitral à luz da
teoria dos negócios jurídicos, especialmente sua principiologia.
A eleição voluntária do juízo arbitral como meio para solução de
controvérsias, evidencia a modulação da autonomia privada para mais,
assegurando a liberdade e o poder das partes neste sentido, reforçando a
teoria da natureza contratual da arbitragem. A proteção da autonomia privada
está vinculada aos pactos onde a inequívoca manifestação da vontade possa
ser expressa pelas partes, sem quaisquer restrições, tendo por lastro os
princípios da liberdade e da igualdade. A preservação da autonomia privada é
compromisso dos estados democráticos em relação ao respeito aos contratos,
em defesa do trânsito jurídico privado, afastando a tutela rígida e nefasta da
intervenção estatal excessiva. Em relação ao juízo arbitral cabe reconhecer a
extensão em relação à dimensão processual.
Contrário sensu, a imposição do juízo arbitral no contrato de adesão, em
detrimento de parte hipossuficiente exige a modulação da autonomia privada
para menos, observando a impossibilidade do exercício do consentimento
pleno, limitando o campo de poder para impor limites à contraparte,
consideradas as condições e circunstância da proteção indispensável ao
aderente. Sem limitação que tal, o princípio da igualdade e da proteção da
parte débil restariam comprometidos, refletindo-se, no mais das vezes, no
desequilíbrio material das obrigações.
Não há autonomia privada sem limites, como também não há
autonomia privada sem liberdade.
Constituem núcleos fundamentais para assegurar os pilares do contrato,
indispensáveis ao trânsito negocial: o consentimento pleno, a proteção da parte
fragilizada, a efetividade da autonomia privada de ambas as partes, garantia do
conhecimento do que se contrata pautada pela segurança jurídica negocial e
dever de informação, controle da licitude, referência direta à moralidade dos
pactos e organização econômica da sociedade, tarefa constitucional do Estado
implicando em limitar poderes e assegurar tais poderes para resguardar o
respeito e manutenção do contrato, individual ou por adesão, protegendo ou
limitando, por indispensável, a autonomia da vontade e autonomia privada.

30
A modulação da autonomia privada permite conjugar limites e condições
de possibilidades, de forma a assegurar a operabilidade metódica, própria da
lógica do justo meio, condizente com a defesa da autorregulação lastreada pela
liberdade e igualdade em benefício dos interesses privados dos contratantes
individuais ou coletivos.

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