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CINEMA E IMAGINÁRIO

Fronteiras
imprecisas: o
documentário
antropológico
entre a exploração
do exótico e a
representação do
outro* A história do cinema conta que o primeiro
“filme” antropológico foi realizado antes
RESUMO mesmo de o cinematógrafo dos irmãos Lu-
O filme antropológico tem sido freqüentemente identificado mière fazer sua primeira projeção pública.
com duas tendências do documentário: exploração do Com efeito, tal “filmagem” ocorreu quan-
exotismo e preocupação etnográfica. Filmes como The do, na primavera de 1895, Félix-Louis Reg-
Hunters, de John Marshall ou Dead Birds de Robert Gardner nault se serviu de uma câmera cronofoto-
são exemplos de como algumas especificidades de outras gráfica de E. J. Marey e registrou uma mu-
culturas podem ser assimiladas ao extraordinário, ao lher wolof fabricando objetos em argila na
incomum e apresentadas com uma roupagem científica. O Exposition Ethnographique de l’Afrique Occi-
objetivo deste texto é explorar a relação ambígua que o dentale em Paris. Mas, assim como a Histó-
documentário antropológico entretém com o anormal e o ria reserva a qualquer evento do passado
exótico, examinando seus aspectos éticos e estéticos. versões diferentes segundo o ponto de vis-
ta daquele que o reconstitui, alguns atribu-
ABSTRACT em a T.A. Edison o privilégio de ter regis-
Anthropological film has often joggled in the borderline of trado as primeiras imagens em movimento
two tendencies: exploitation of exoticism and ethnographic de cunho antropológico. Trata-se de Indian
concern. Films like John Marshall’s The Hunters, or Robert war council e Sioux ghost dance, fitas kinetos-
Gardner’s Dead Birds are examples of how specificities of cópicas realizadas em 1894, logo, um ano
other cultures may be framed as the extraordinary, the antes da experiência de Regnault. Na ver-
unusual and be embedded in a scientific artifact. The aim of dade, tais imagens, que constituem os pri-
this text is to explore the ambiguous relationship meiros vestígios animados dos índios
anthropological documentary has entertained with the Sioux, foram gravadas em estúdio, mais
abnormal and the exotic, examining its ethical and precisamente na Black Maria.1 Trata-se, por-
esthetical issues. tanto, de uma reconstituição em que os su-
jeitos observados representam seu próprio
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) papel. Para tanto foi construído um cenário
- Documentário (documentary) reproduzindo, de maneira bastante tosca, o
- Exploração (exploitation) habitat natural dos Sioux.
- Antropologia (anthropology) Temos então, nas duas experiências
rapidamente aqui expostas, a de Marey e a
de Edison, os dois elementos ou, melhor,
Marcius Freire os dois procedimentos que vão caracterizar
Departamento de Cinema - Unicamp a construção de um filme documentário: o

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registro do real “ao vivo”, e a reconstitui- relação ao que realmente significava
ção desse real de maneira assumida ou dis- ‘reconstituição’. O público estava
simulada. No primeiro caso verificamos acostumado que as imagens de notíci-
que, imediatamente após o registro de Ma- as tivessem uma incerta e remota liga-
rey e a quase simultânea apresentação do ção com os acontecimentos e não pen-
cinematógrafo ao grande público, os cine- sava muito a respeito de quão verda-
grafistas Lumière esquadrinharam os qua- deira era essa ligação.
tro cantos do mundo com suas câmeras de
tal maneira que, na virada do século, a mai- Reconstituições e fraudes faziam um
oria dos povos, sobretudo aqueles sob do- incrível sucesso. Memoráveis seqüências
minação das potências européias, havia autênticas foram feitas do terremoto que
sido filmada.2 A África foi, desde sempre, sacudiu São Francisco em 1906, mas outro
o grande fornecedor de matéria prima para tipo de imagens do evento, inventadas em
esses “shows de exotismo”, a tal ponto que table-tops ou com miniaturas, eram igual-
nos últimos anos do século XIX a profusão mente aplaudidas. Diversas erupções vul-
de “atualidades” Lumière retratando a cânicas foram fraudadas com enorme su-
vida e os costumes dos povos das antigas cesso, como uma produção da Biograph de
colônias francesas era tamanha que deu ori- 1905 intitulada Eruption of Mount Vesuvius.
gem a um gênero chamado de exotica. Tais As produtoras de cinema não queriam ig-
produções estão na raiz de um outro gêne- norar as catástrofes ou outros acontecimen-
ro que mais tarde seria denominado de tos dignos de manchete apenas porque
“documentário”. seus cinegrafistas não tinham acesso a eles;
No caso de Edison, estava aberta, com empresas especializadas resolviam o pro-
as duas fitas citadas3 , uma vertente bastan- blema. Nesse sentido, o produtor inglês Ja-
te prolífica do filme de não-ficção e que vi- mes Williamson realizou Attack on a Chinese
ria a ser aprimorada em algumas de suas Mission Station no seu próprio quintal, e al-
realizações seguintes: a exploração dos as- gumas cenas da guerra dos Boer num cam-
pectos exóticos e pouco familiares de cul- po de golfe. A neve de Long Island e New
turas não ocidentais e das imagens mais Jersey forneceu o cenário para produções
mórbidas e mais salazes de qualquer cultu- como Battle of the Yalu (1904), da Biograph, e
ra, mesmo a ocidental. Foi nesse espírito para um filme concorrente de Edison, Skir-
que, em 1901, ele realizou Execution of Czol- mish Between Russian and Japanese Advance
gosz with Panorama of Auburn Prison (1901) Guards. Neste último, vemos soldados sur-
onde cenas representadas foram mistura- girem e desaparecerem diante de uma câ-
das com cenas reais, e, em 1903, An executi- mera imóvel, enquanto muitos caem no
on by hanging e Electrocuting an elephant, combate. Para ajudar a audiência a identifi-
mostrando cenas reais de situações em que car os contendores, russos eram vestidos
a morte era a vedete. de branco e japoneses em cores escuras. A
Esses filmes atraiam enormemente o aceitação desse tipo de produto provavel-
público que não costumava questionar a mente desencorajou iniciativas mais autênti-
veracidade daquilo que lhe era mostrado. cas – pelo menos entre alguns concorrentes.
Segundo Erick Barnow (1993, p. 25). A exploração do exótico e do inco-
mum faz parte, portanto, da própria histó-
Num período em que as atualidades ria do cinema e, mais especificamente, da
da semana foram durante muito tem- história do filme documentário. Mas, e quan-
po ilustradas com gravuras em ma- to ao filme antropológico ou documentário
deira anunciando ‘a partir de imagens antropológico, quais são seus vínculos com o
registradas in situ’, não era muito pro- exotismo e sua eventual falsificação?
vável que houvesse preocupação com É sabido que a antropologia nasceu

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da curiosidade dos ocidentais, notadamen- filme de ambiente, rodado sem intenção
te dos europeus, em relação às culturas di- científica, mas que adquire valor
ferentes das suas. A observação dessas cul- etnológico pela exportação, como
turas, a busca de sua decifração e os relatos uma intriga sentimental em ambiente
a que davam origem constituíram, desde chinês ou um bom filme de gângs-te-
sempre, o procedimento antropológico. res nova-iorquinos tornam-se pinturas
Com o nascimento da disciplina, o outro, o de costumes curiosos quando se
não ocidental, o diferente, seu corpo, para- muda de continente.
mentado ou desnudo, sua terra, seu habitat,
suas crenças, seus hábitos sexuais e gastro- Não é difícil perceber que, para Leroi-
nômicos... passaram a ser observados e in- Gourhan, o caráter etnológico de um filme
terpretados de forma sistemática. Nunca é está mais na utilização que dele vai ser fei-
demais lembrar que o aparecimento dessa ta que nos propósitos que animaram seu
especialidade das ciências do homem se realizador. Excetuando-se o filme de pesquisa
deu numa época – segunda metade do sé- que tem como objetivo intrínseco o registro
culo XIX - que viu nascer, também, o mais científico, podemos, a rigor, considerar qual-
efetivo instrumento de registro visual deste quer filme como potencialmente etnológi-
mesmo “outro” na plenitude de seus movi- co, pois praticamente todos, de alguma ma-
mentos: o cinematógrafo. Em que pese essa neira, podem enquadrar-se naquela catego-
feliz coincidência e as evidentes potenciali- ria que ele define como filme de ambiente.
dades dela decorrentes, os caminhos per- Mas, o que nos interessa aqui é a ex-
corridos pelos dois recém-nascidos nem plicitação, a partir de uma das primeiras
sempre convergiram para o mesmo alvo. classificações dos filmes sobre o homem,
Inúmeras vezes eles se cruzaram, um reen- feita por um antropólogo, das relações am-
contrando o outro ao sabor de suas própri- bíguas do filme de viagem, do “filme de
as práticas. O cinema registrando a aventu- exotismo”, com o filme antropológico. E,
ra humana naquilo que passou a ser cha- como vimos, tais relações fincam suas raí-
mado de “filme documentário”, ou recons- zes na origem mesma do cinema.
tituindo-a no filme de ficção, e a antropolo-
gia servindo-se, de quando em vez, desses
registros para ilustrar ou edulcorar a rigi- Do “exploitation” ao antropológico
dez de suas exposições.4 Isso porque mui-
tos dos filmes a que nos referimos acima Conforme expusemos no início deste texto,
podem ser considerados como “de valor o flerte do cinema com o bizarro e o exótico
antropológico”, mas não efetivamente an- já está indiscutivelmente presente nos fil-
tropológicos. A indefinição quanto ao que mes de Edison e dos Irmãos Lumière. Es-
vem a ser um “filme antropológico” perdu- sas experiências são os ancestrais de toda
rou até os idos de 1948 quando André Le- uma gama de documentários que ficou co-
roi-Gourhan (1948, p. 42-50), considerando, nhecida pelo epíteto de “exploitation” ou –
na ocasião, que “...parece haver uma certa termo ainda mais sugestivo – “shockumen-
confusão entre o filme etnológico e o filme taries”. Dentre esses, a linhagem de maior
de viagem ...”. sugeriu que sucesso e o verdadeiro ícone do gênero é,
Três tipos de filmes podem ser consi- sem sombra de dúvida a série Mondo Cane,
derados como etnológicos (...): O filme cuja primeira semente germina em 1962. Seu
de pesquisa, que é apenas um meio de sucesso foi tamanho que criou um epíteto
registro científico entre outros. O filme com o qual foram identificadas todas as suas
documentário público ou “filme de emulações: “Filmes Mondo”.
exotismo”, que é uma forma do filme Virando as costas para qualquer prin-
de viagem, e aquilo que (chama) de cípio ético, Mondo Cane, dirigido por Gual-

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tiero Jacopeti e Franco Prosperi, é construí- Apesar de afirmar que correu risco de vida
do na forma de um longo relato de viagem e que sua entrada no continente africano ti-
em que os costumes mais bizarros, mais nha como único objetivo uma expedição
distantes dos padrões ocidentais são mos- fílmica, a dupla chegou a ser processada,
trados sem qualquer tipo de pudor. No pri- acusada de ter encorajado morte e fuzila-
meiro filme da série, a África é, ainda, o mentos – vistos com toda sua crueza no fil-
cenário das maiores atrocidades cometidas me – por mercenários. Além dos fuzila-
contra animais. Porcos são mortos a paula- mentos, são incontáveis as seqüências de
das sem qualquer razão aparente, hipopó- morte de animais. Desta vez elefantes, hi-
tamos recebem dezenas e dezenas de lan- popótamos e antílopes são sacrificados
ças atiradas de uma pequena distância... aparentemente apenas para o prazer de
mas a Ásia também tem a oferecer seu qui- seus algozes. A estrutura narrativa desses
nhão de barbárie. Em uma determinada se- filmes se aproxima daquela do documentá-
qüência, ao sinal de uma salva de tiros, va- rio clássico. A sucessão de imagens vai sen-
cas são decapitadas com um só golpe por do “costurada” por uma voz fora de cam-
um soldado zeloso de um país não identifi- po que interliga episódios muitas vezes
cado, que, para tanto, usa uma enorme e sem qualquer conexão entre si. Essa voz
afiada espada curva. Mondo cane 2 vai mais over vai expondo e questionando, numa
longe que seu predecessor e acrescenta à perspectiva francamente sensacionalista,
mostração incessante de sacrifícios de ani- uma variedade de eventos exóticos e/ou
mais, a imolação de um monge budista que chocantes filmados ao redor do mundo.
se deixa queimar em sinal de protesto. Se- Cria-se uma espécie de relato audiovisual
gundo Vivian Sobchack (1984, p.15), trata- de viagem extravagante no qual o motivo
se, na verdade, de uma bem verossímil re- principal é registrar comportamentos cultu-
construção da real morte do mártir Quang rais não familiares ao espectador ocidental,
Duc, ocorrida em 1963. Ainda que encena- evidenciando diferenças e buscando sem-
da, a seqüência é considerada a primeira pre ultrapassar os limites que levam da
morte de um indivíduo nos documentários apresentação do exótico ao incontestavel-
de exploração, tendo sido difundida na mente obsceno, como que testando os ner-
época como um genuíno espetáculo de vos – e o estômago - do espectador. Pode-
morte. O fato de ser uma reconstituição não mos, assim, considerar os filmes mondo
invalida o caráter salaz da mostração, uma como um braço dos documentários e um
vez que, sendo apresentada como “docu- cruzamento destes com o show de varieda-
mento”5 a mesma é vivenciada pelo espec- des, por apelarem ao fascínio pelo inco-
tador como verdadeira. mum e pelo extraordinário inerente ao ser
Em 1966 Jacopetti e Prosperi avançam humano.6
mais um pouco na exibição da violência e Se nos remetermos ao conceito de in-
da crueldade com Africa Addio. Desta vez, a dexação a que nos referimos acima, estare-
África é a única estrela a brilhar diante das mos diante de um curioso caso de relação
objetivas da dupla de “documentaristas”. filme/espectador. Com efeito, indexados e
O filme se queria um testemunho das anunciados como registros fiéis de eventos
transformações por que passava o conti- efetivamente ocorridos no “mundo históri-
nente africano no início dos anos sessenta. co”, esses “documentários” serão objetos
Dentre essas, o processo de libertação do de uma fruição que tem seu ponto de anco-
Quênia das amarras do colonialismo britâ- ragem em dois pilares: eles são efetivamen-
nico e os estágios finais do terrorismo Mau- te registros de fatos acontecidos, mas, con-
Mau, a sangrenta guerra civil no Congo, o trariando princípios éticos e normas jurídi-
genocídio dos Watusi em Ruanda e a re- cas, muitos desses fatos foram provocados
volta contra os portugueses em Angola. para a câmera. Ademais, alguns são franca-

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mente forjados, como o caso do monge bu- aqui é que, em boa parte dos grandes clás-
distas já mencionado. O espectador infor- sicos do filme antropológico encontramos
mado se verá então diante de um jogo de uma conjunção desses três estilos.
identificação daquilo que preexiste à pre- Tomemos como exemplo The Hunters,
sença da câmera e foi por ela registrado, realizado em 1958 por John Marshall. O fil-
daquilo que é efetivamente real, pois pro- me se propõe a mostrar as aventuras de um
vocado pelos realizadores para ser filma- grupo de caçadores bushmen do deserto Ka-
do, mesmo que a custa de futuros proces- lahari em uma caçada. Segundo John Colli-
sos judiciais e, por fim, daquilo que foi fal- er Jr. (1988, p. 87),
sificado e divulgado como real.
Assim como os primeiros filmes de É de domínio público a querela entre
Edison e dos irmãos Lumière guardavam Marshall e Robert Gardner, montador
similitudes, tanto na sua fatura quanto nos do filme, a respeito do formato que
seus objetivos, com os documentários an- este último imprimiu à montagem fi-
tropológicos, o mesmo se pode dizer da re- nal concedendo demasiada importân-
lação destes últimos com documentários cia a episódios que pudessem chocar
realizados para o grande público. Quem a sensibilidade ocidental para efeitos
afirma isso é Jean Rouch (1979, p. 60) em dramáticos.
seu artigo La caméra et les hommes. Para esse
pioneiro do estudo do homem através das Cita, como exemplo, a cena em que o
imagens animadas caçador chefe encontra um arbusto com ni-
nhos cheios de filhotes e começa a destruir
A maioria dos filmes antropológicos os ninhos e a matar os filhotes. A voz over
realizados nos últimos anos se apre- explica que ele vai levar os filhotes para
senta sempre sob a forma de um pro- casa e fazer uma sopa para seus filhos. Tra-
duto de difusão normal: créditos, mú- ta-se visualmente de uma longa cena sem
sica de acompanhamento, montagem qualquer valor etnográfico claro, mas ela
sofisticada, comentário tipo grande cria um choque cultural que pode obscure-
público, duração, etc. Na maior parte cer os olhos ocidentais para outras sensibi-
das vezes consegue-se com isso um lidades e refinamentos desse aborígenes
produto híbrido que não satisfaz nem caçadores.
ao rigor científico nem à arte cinema- O abate da girafa no final do filme não
tográfica. (...) O resultado é um au- deixa de lembrar algumas cenas de Mondo
mento considerável do custo de pro- Cane ou de Africa Addio. Sob o efeito do ve-
dução desses filmes que torna ainda neno que lhe fora inoculado através de
mais amarga a ausência quase total de uma flechada no dia anterior, o enorme ani-
sua veiculação, sobretudo quando o mal, já enfraquecido, deixa que os caçado-
mercado cinematográfico permanece res se aproximem e comecem a desferir
bastante aberto a um certo tipo de mais flechadas sobre seu imenso corpo.
documentário “sensacionalistas” do Seus movimentos ao receber cada golpe
estilo Mondo cane. deixam clara sua incapacidade de reagir
aos objetos que lhe traspassam a pele. Por
Existiria, portanto, segundo Rouch, fim, já sem forças, ela cai. Começa então a
três tipos de documentários voltados para retirada da pele, o lento esquartejamento...
a observação dos homens e de suas peripé- Isolada do resto do filme, essa seqüência
cias: a) o documentário grande público, b) poderia fazer parte de um filme mondo.
o documentário sensacionalista ou de “ex- The Hunters é um bom exemplo daqui-
ploração” e, c) o documentário de cunho lo que J. Rouch chama de “produto híbri-
científico. O que queremos demonstrar do”. Fica evidenciada na montagem de R.

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Gardner sua sucumbência à tentação de vidas com plumagem, mas, como to-
ressaltar o valor estético do filme em detri- dos nós, enfrentam a morte como cer-
mento de seu valor científico. ta. O objetivo do filme é tentar dizer
O mesmo Robert Gardner realizou, algo a respeito de como todos nós hu-
em 1963, um outro clássico do filme antro- manos enfrentamos nosso destino ani-
pológico, Dead Birds. Filmado na Nova Gui- mal (Gardner, 1972, p 35).
né, esse filme retrata o dia-a-dia da vida
dos Dani através do quotidiano de três per- Gardner filmou com uma câmera Arri-
sonagens: um homem, uma mulher e um flex à bateria, sem som sincronizado. Assim
menino. O homem ocupa uma função das como havia feito com The Hunters, foi na
mais importantes que é a de controlar, a montagem que as imagens captadas se
partir de uma torre de vigilância, a frontei- transformaram em narrativa dramática.
ra que separa sua tribo de uma outra com a Graças à estrutura clássica do filme de fic-
qual mantém relações pouco amistosas. En- ção, com montagem paralela, enorme varie-
quanto não está na torre, tece cuidadosa- dade de ângulos e enquadramentos (mani-
mente longas faixas ornadas de conchas pulados na montagem) e uma voz over oni-
que serão usadas nos rituais fúnebres. A presente e onisciente, o espectador é leva-
mulher trabalha no campo, arando e co- do pelo braço ao interior da sociedade
lhendo tubérculos. Não pode tecer como o Dani. Ele não tem nem o tempo nem a oca-
homem, pois não possui algumas falanges sião de refletir sobre aquilo que lhe é posto
das mãos. Estas são cortadas quando da diante dos olhos. O comentário tudo expli-
morte de um parente próximo. O menino ca, mesmo os pensamentos dos sujeitos ob-
pastoreia seus porcos nos campos que cir- servados. Quando Laka, a mulher, vai ao
cundam a aldeia. As peripécias desses três campo colher suas batatas, a “voz de Deus”
indivíduos vão constituir o fio condutor explica que o trabalho é duro, o sol escal-
através do qual Gardner penetra a cultura dante, mas que ela fica feliz em poder en-
Dani. contrar as amigas e conversar um pouco.
Um aspecto dessa cultura, no entanto, Enquanto o menino observa a faina dos
é extraído do todo e vai pontuar a narrativa adultos, essa mesma voz interpreta seus
e criar a estrutura dramática do filme: a re- pensamentos e diz que ele está a imaginar
lação dos sujeitos observados com a morte. que, quando crescer, também estará se de-
Logo após os créditos somos colocadas di- dicando àquelas tarefas.
ante de imagens de pássaros e a voz over As imagens privilegiam, pelo uso de
explica que, de acordo com o mito da cria- grandes planos e longas seqüências, os
ção dos Dani, estes tiveram de escolher en- tempos fortes da manifestação observada.
tre ser como as cobras, trocar de pele e vi- Tal é o caso da morte dos porcos do meni-
ver para sempre, ou ser como os pássaros e no para o ritual fúnebre. O porquinho é se-
morrer. Eles escolheram ser como os pássa- guro por um dos homens da aldeia en-
ros e, por isso, devem enfrentar a morte. quanto o chefe, distante apenas alguns cen-
Todo o filme é construído como se esta es- tímetros do animal, dispara uma flecha em
tivesse à espreita, pronta para assomar na direção ao seu ventre. O porco é solto no
aldeia. terreiro, corre, estrebucha, sangra até per-
der as forças. A câmera acompanha tudo
Sobre isso o diretor declarou: com insistência e corta apenas para mostrar
o menino que chora a morte de seu animal.
Eu vi os Dani, emplumados e vibran- Toda estrutura de Dead Birds está cal-
tes, homens e mulheres, como que cada nesse jogo de momentos de suspense
desfrutando o destino de todos os ho- e momentos fortes. O suspense maior diz
mens e mulheres. Eles vestiram suas respeito à ameaça de invasão da outra tri-

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bo. É essa expectativa que, como um leitmo- o título: Anthropological documentary: blurring the boundaries
tiv, permeia a narrativa. Finalmente, depois between exploitation and representation of the real.
de ter preparado longamente o espectador,
temos a batalha. Mais do que uma ação vi- 1 A “câmera” de Edison, o Kinetoscópio, só era capaz de
olenta, esta última é quase um jogo, um captar imagens em condições especiais de iluminação.
jogo perigoso em que alguns poucos são Conseqüentemente, tudo era filmado em estúdio e, para
efetivamente feridos. Aqui, mais uma vez isso, foram construídas em West Orange, um subúrbio
os grandes planos exploram os ferimentos, nova-iorquino, instalações apropriadas que receberam o
a retirada das pontas de lança dos corpos, o nome de Black Maria.
arfar dos feridos.
O que distingue as cenas acima 2 Os operadores Lumière tinham como principal palavra
descritas daquelas anteriormente expostas de ordem “abrir suas objetivas para o mundo”.
dos filmes considerados de exploração? O
que diferencia um filme indexado como 3 Pierre L.-Jourdan (1992, p. 27-28), em seu livro Cinéma.
“antropológico” de um documentário de Premier contact-premier regard, Marseille: Musées de
viagem ou de um “drama cultural”. Para o Marseille, 1992, afirma que “longe de representar uma
já citado John Collier Jr. (1972, p. 87). ‘autêntica-dança-sioux-saída-da-noite-dos-tempos’, esse
primeiro documento testemunha um choque de dois
Eles (os filmes antropológicos) são universos culturais e de seus efeitos e, sob esse aspecto,
orientados para a pesquisa autêntica, trata-se realmente de um documento antropológico. Es-
esta deve ser sua mais importante ca- ses dois documentos, encenados em estúdio, foram ro-
racterística. Podemos definir filme dados em 24 de setembro de 1894, dia de filmagem de
etnográfico a partir dessa descrição, um produto particularmente adaptado ao mercado dos
porque ela separa claramente regis- Kinetoscópios: o espetáculo de Buffalo Bill. Desde 1883
tros culturais de narrativas dramáticas essa distração consistia em uma turnê, com exibições em
ou artísticas. Filmes etnográficos po- praças públicas, chamada de “Wild West Rocky
pulares realizados com todos os refi- Mountain and Prairie Exhibition” que se tornou
namentos da indústria tendem ao en- “Buffalo Bill’s Wild West Show”. Naquele mês de se-
tretenimento da audiência sobre po- tembro, o celébre William Frederick Cody, Buffalo Bill,
vos exóticos, mas deve ser reiterado que se apresentava no Ambrose Park no Brooklyn, foi
que estas epopéias culturais têm convidado a West Orange e lá compareceu com toda sua
freqüentemente pouco valor na sala trupe a caráter. W.K.L. Dickson se serve de um
de aula. Kinetógrafo para registrar Bufalo Bill fazendo uma de-
monstração de tiro e decidiu aproveitar a presença dos
Será que The Hunters ou Dead Birds Sioux da trupe para filmar ‘Indian War Council’ e ‘Sioux
preenche esses requisitos? Não estamos Ghost Dance’! (...) Esses primeiros documentos são por-
tão seguros! E, pelo que podemos deduzir tanto uma verdadeira reconstituição feita por índios ver-
de tudo que precede, as fronteira que os dadeiros de ‘falsas-verdadeiras’ danças Sioux... O espetá-
separam dos seus congêneres menos cre- culo ao ar livre será filmado alguns anos depois pelos
denciados academicamente são bastante operadores de Edison quando estes passam a contar
imprecisas . com equipamentos adequados”.

4 Apesar de a primeira experiência antropológica a efetiva-


Notas mente se servir do cinematógrafo na pesquisa de campo
datar de 1898, apenas três anos após a invenção deste
* O presente texto é a versão modificada de uma comuni- último. Trata-se da expedição da Universidade de
cação apresentada originalmente na XI Conferência do Cambridge, organizada por Alfred Cort Haddon ao Estreito
Filme Documentário - “Visible Evidence”, realizada em de Torres, situado entre a Austrália e a Nova Guiné.
Bristol-Inglaterra, entre 14 e 18 de dezembro de 2003 sob

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5 Sobre a relação do público com a suposta veracidade
daquilo que lhe é mostrado na tela, o leitor tirará provei-
to do texto de Noël Carroll, “Fiction, non-fiction, and the
film of presumptive assertion: a conceptual analysis”,
in: Allen, Richar and Smith, Murray (Eds.), Film theory and
philosophy, Film Studies, Osford: Clarendon Press, 1997. Se-
gundo esse autor, quando alguém se dispõe a ler um
livro ou ver um filme ele ou ela não espera entrar em
contato com a obra para verificar se esta é de ficção ou
não-ficção. Ela – a obra – já vem etiquetada, indexada,
de uma forma ou de outra. Se se trata de um trabalho de
não-ficção sabemos aprioristicamente que ele tem um
compromisso com a verdade, que procura nos dar a co-
nhecer fatos reais.

6 As considerações aqui expostas sobre os filmes Mondo Cane


I e II e Affrica Addio são tributárias do trabalho não publi-
cado de Lúcio F. R. Piedade O estigma da morte no
documentário.

Referências

Jourdan, Pierre L., Cinéma. Premier contact-premier regard,


Marseille: Musées de Marseille, 1992.

Barnow, Erik, Documentary. A history of non-fiction film, New York:


Oxford Press, 1993.

Leroi-Gourhan, André, “Cinéma et sciences humaines. Le


film ethnologique existe-t-til?”, in: Revue de géographie
humaine et d’ethnologie, n. 3, Paris, 1948.

Sobchack, Vivian. “Inscribing ethical space: tem


propositions on death, representation and
documentary”, in: Quaterly Review of Film Studies, vol. 9,
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Rouch, Jean, “La caméra et les hommes, in: Claudine de


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Collier Jr., John. “The future of ethnographic film”, in: Jack


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Gardner, Robert, “On the making of Death Birds”, in: Karl


Heider (Ed.), The Dani of West Irian. Andover, Mass.:
Warner Modular Publications, 1972.

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