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Recebido: 11/08/2019
Aprovado: 13/03/2020
Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 29, e0104, jan./abr. 2020
Ler, escrever e libertar: experiências que promovem a diminuição de pena para mulheres privadas de
liberdade em Mato Grosso
Ana Maria Marques
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liberdade em Mato Grosso
Ana Maria Marques
Introdução
Este estudo está relacionado a um projeto de pesquisa institucional, da
Universidade Federal de Mato Grosso, e contou com o auxílio de uma bolsista de
Iniciação Científica1. O objeto de investigação principal consiste nas práticas
educativas e de letramento que contribuem com a reintegração social e a
diminuição de pena para mulheres em situação de privação de liberdade. O
recorte empírico que apresento destaca as experiências de letramento investidas
da intenção de redução de pena. A remição pela leitura é o principal foco da
pesquisa, realizada em Mato Grosso. Em especial, analiso o andamento e os
resultados da aplicação do projeto de remição pela leitura em unidades prisionais
femininas desse estado.
1
Entre agosto de 2018 e julho de 2019, Thamara Luiza da Silva e Lima foi bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (PIBIC-CNPq).
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A educação indígena passou a ser objeto particular do texto da lei somente com o advento da
Lei n. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [LDB]), que regulamentou o
que preconizou a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, nos artigos 78 e 79
do Ato das Disposições Gerais e Transitórias. Previa-se como dever do Estado o oferecimento
de uma educação escolar bilíngue e intercultural. A partir daí, criaram-se as escolas de Ensino
Fundamental nas aldeias indígenas, com professores das etnias, para garantir a oportunidade
de recuperar suas memórias históricas e reafirmar suas identidades.
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Badinter (1985, p. 19) já questionava, em 1980, se a mulher realmente nasceu para a maternidade,
como culturalmente lhe é imposto nos discursos que evocam a natureza: “essa concessão
suscita várias questões: que é um instinto que se manifesta em umas e não em outras?
Devemos considerar ‘anormais’ todas as que o desconhecem? E [o] que pensar de um
comportamento patológico que atinge tantas mulheres de condições diferentes e dura há
séculos?”.
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Muitas expressões são usadas para designar a pessoa presa. No entanto, os termos “preso” ou
“presa” não são por mim adotados. Afinal, o aprisionamento é uma situação provisória
(mesmo que possa durar 30 anos). Optei por usar “mulher presa”, “homem preso”, “pessoa
presa”, “pessoa encarcerada” ou “pessoa em situação de privação de liberdade”, porque,
antes da sua condição de pena, trata-se de uma pessoa, uma mulher, um homem, um ser
humano. Na linguagem jurídica tem sido comum usar os termos “apenado(a)” ou
“reeducando(a)” para aquele(a) que responde a um processo penal ou que já foi
sentenciado(a) a uma pena. Mas, por não acreditar no caráter de ressocialização e
reeducação como uma política efetiva de Estado, prefiro manter entre aspas por ser um
termo usual.
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5
A Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May foi inaugurada em 2000. O prédio se localiza
às margens da BR-364, no bairro Jardim Industriário, em Cuiabá-MT, atrás da PCE, maior
unidade penitenciária masculina de Mato Grosso. Foi a primeira penitenciária feminina e
também é a maior do estado.
6
A atuação dos comandos de tráfico de drogas nos presídios brasileiros é de conhecimento
público. Eles lideram de fora detentos(as) envolvidos(as) em crimes relacionados a drogas, em
maior ou menor grau, embora isso não seja admitido pelo Estado.
7
Na penitenciária feminina, por exemplo, há dificuldade para aceitar sem conflito que mulheres
presas por condenação de crime de homicídio de criança, principalmente filho(a), frequentem
atividades comuns às outras.
8
O cubículo é um pequeno cômodo, a cela, onde pessoas ficam aprisionadas nas cadeias ou
penitenciárias. Em geral, as celas femininas são compartilhadas por 2, 4 ou mais mulheres,
dependendo da situação de lotação. Uma das punições sofridas por algum comportamento
considerado inapropriado é a “tranca”, ou seja, quando ficam de “tranca”, elas não podem sair
do cubículo para as atividades coletivas. Por meio desses procedimentos se efetivam relações
de poder e autoridade, que podem ser agravadas facilmente devido à linha tênue que separa
disciplina e violência. Também há a solitária, um cômodo com pouca iluminação, insalubre,
onde a pessoa fica isolada por determinado tempo como forma de castigo e para lá ela não
pode levar sequer um livro.
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O Enem para pessoas privadas de liberdade e o Enem para jovens sob medida socioeducativa
que inclua privação de liberdade é realizado em dias especiais, normalmente no mês seguinte
ao Enem geral. Ocorre nas unidades prisionais onde um(a) coordenador(a) pedagógico(a) é
responsável pela inscrição, pelo acompanhamento no sistema do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), do Ministério da Educação (MEC), e pela posterior
inscrição no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e matrícula, em caso de autorização judicial
para cursar o Ensino Superior.
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Assim ela autorizou a divulgação de seu nome. Atualmente, ela se encontra em liberdade, mas
na época cumpria pena em regime semiaberto. A entrevista foi gravada em 6 de junho de 2017.
11
Entre as edições de 2009 e 2016 do Enem, os participantes podiam usar suas notas para obter
certificado de conclusão do Ensino Médio. Nos últimos exames, no entanto, os envolvidos
puderam usar o desempenho no exame como mecanismo único, alternativo ou
complementar para acesso ao Ensino Superior ou meramente para autoavaliação de seus
conhecimentos.
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De acordo com a SEJUDH-MT, esse projeto vai servir de referência para todas as unidades
prisionais do estado a partir de 2020.
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A Comissão da Remição pela Leitura de Cáceres é coordenada pelo Centro de Referência em
Direitos Humanos (CRDH), vinculado à SEJUDH-MT, e as pessoas que a compõem foram
formalizadas pelo Parecer n. 012/2018-PROEC/UNEMAT, de 28 de fevereiro de 2018.
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escola, não existe regularidade nas atividades, pois as reclusas podem escolher
entre ir para as aulas ou para os encontros literários. A unidade tinha cerca de
130 mulheres presas. O professor Marcio Alessandro Neman do Nascimento, que
nos acompanhou na visita a essa unidade, vem desenvolvendo um projeto de
extensão universitária (na UFMT) desde 2017, cuja metodologia é investida em 3
frentes de atuação: a) atendimento psicológico; b) rodas de conversa; e c) análise
institucional do sistema prisional. Os(as) estudantes extensionistas são do curso
de Psicologia do campus de Rondonópolis da UFMT. O professor Márcio contou
que uma das atividades do projeto de extensão coordenado por ele é o “clube
da leitura” na ala LGBT14, desde meados de 2018. Elegem um tema por mês e,
com auxílio de vídeos e outros materiais, produzem trabalhos escritos: relatos
de experiências, diários, fanzines e poemas. As oficinas não excluem ninguém
por nível de instrução, trabalham com todas as pessoas da ala, mesmo as que
não sabem ler – o que se torna uma forma de aprender e adentrar o universo do
letramento crítico. As atividades extensionistas, além de promover o
desenvolvimento da escrita, melhoram as resoluções de conflitos no ambiente
prisional, confirma o referido professor.
14
A Penitenciária Major Eldo Sá Correa, localizada em Rondonópolis, inaugurou em 26 de junho
de 2018 a Ala LGBT (sigla do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis,
Transgêneros e Transexuais).
15
“Procedimento” quer dizer muitas coisas no ambiente prisional. Em geral, é caracterizado como
“de segurança”: tranca, algemas, punições por comportamentos inadequados, inspeções,
prevenção de epidemia etc.
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Foi minha a sugestão, acatada pela unidade, de homenagear uma mulher. Bernardina Rich foi
a primeira mulher negra aprovada em concurso público docente, no ano da Abolição da
Escravatura, em 1888. Sua aprovação foi contestada em um processo judicial que revelou as
facetas do racismo. Ela foi preterida, apesar de apresentar condições de igualdade em relação
à sua opositora branca quanto ao desempenho nos exames prestados. Além de atuar na
profissão docente, desempenhou relevante papel na imprensa feminina, sendo redatora por
13 anos da revista A Violeta – a primeira revista feminina e feminista de Mato Grosso. Foi uma
das fundadoras do Grêmio Literário Julia Lopes de Almeida; destacou-se em atividades ligadas
à filantropia, criando e dirigindo ligas de proteção às mulheres, aos hansenianos e aos
desvalidos. Foi a primeira diretora da Federação Mattogrossense pelo Progresso Feminino,
mantendo contato ativo com a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e suas principais
lideranças, como Bertha Lutz. Ver Marques e Gomes (2017).
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determinação especial. A divisão por raios não é fixa, de tempos em tempos eles
podem ser reorganizados por demandas delas próprias. Os “cubículos”, ou
“barracos”, ficam dentro dos raios, onde se têm precária privacidade; mesmo
dividindo com outras pessoas, elas guardam e ajeitam seus pertences
particulares – também se trata de um lugar de expressão de identidade. Em
média, 4 mulheres moram no “barraco”, mas em situações de lotação já se
chegou a 8 (CARVALHO, 2017) e até 12, conta uma delas. Elas também podem ser
remanejadas de um cubículo para outro por “mal comportamento” 17: briga ou
outra ocorrência.
17
A pessoa de bom comportamento é, em geral, aquela que aceita e é submissa ao regime
disciplinar da reclusão. Quem burla ou se revolta está sujeita aos registros de ocorrências – o
que implica alguma punição.
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O superencarceramento x desencarceramento
O Dr. Drauzio Varella (2017), depois de sua experiência de 11 anos de
voluntariado junto à Penitenciária Feminina da Capital de São Paulo, afirma que
cerca de 60% da população carcerária feminina em São Paulo decorre de
envolvimento com o tráfico e, como vimos, a realidade mato-grossense é similar.
Dados de 2014 indicam que a população carcerária feminina no país era de,
aproximadamente, 37.380 mulheres e, entre 2006 e 2014, essa população
cresceu 567,4%, diz Juliana Borges (2018, p. 15). Não é à toa que a Penitenciária
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Alice foi uma das mulheres presas que passou pelo consultório do Dr.
Drauzio Varella, para tratar uma sinusite crônica, e ela contou que ainda tinha 18
anos de cadeia pela frente, em São Paulo. Alice era a filha mais velha entre 4
irmãs. Deixou o curso de Pedagogia na Universidade de São Paulo (USP) para
trabalhar e sustentar as irmãs mais novas quando seu pai esteve desempregado.
Estava bem empregada em uma multinacional quando ocorreu o estupro de sua
irmã lésbica, arrastada para um canteiro de obras – esta foi levada à força,
violentada e depois esfaqueada pela vagina até o útero e o intestino. Um crime
sexual e homofóbico que a levou à unidade de terapia intensiva (UTI) e quase à
morte. Alice largou emprego, gastou todo o dinheiro que tinha e foi parar nas
ruas, por quase 2 meses, em busca do criminoso – até encontrá-lo e executá-lo
com requintes de vingança. Depois, vingou outros 4 crimes de estupro antes de
18
Alguns efeitos da masculinidade tóxica se encontram no encorajamento da violência contra as
mulheres, a certeza de que os homens são fortes e, por isso, não precisam procurar ajuda
psicológica. Os efeitos levam a atitudes graves como: perpetuação da cultura do estupro;
homofobia; misoginia; e racismo.
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ser presa. Pelo fato de ela ter dado lastro à revanche contra estupradores, pode-
se inferir que Alice obteve reconhecimento social. Mas, para o Estado, ela é uma
criminosa perigosa que atentou contra a vida de 5 homens.
Considerações finais
Os projetos e as experiências de letramento crítico apresentados são
iniciativas desviantes da norma que estigmatiza e oprime as mulheres
encarceradas. Uma esperança, se considerarmos que algumas delas não teriam
19
Angela Davis se tornou um ícone da luta pelos direitos civis nos EUA. Integrou o Partido
Comunista, foi candidata à Vice-Presidência da República em 1980 e 1984. Militante feminista
negra, foi próxima do grupo Panteras Negras, sendo perseguida e presa na década de 1970.
Continua ativista das causas abolicionistas e feministas negras.
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acesso àquelas leituras se não fosse por esses projetos e a escola. Acredito no
poder libertador da leitura, como acreditaram as feministas do início do século
XX, ao defender a escolaridade para mulheres. Acredito na liberdade pelo sentido
objetivo da remição (diminuição da pena) e pelo sentido subjetivo que a leitura
proporciona: o crescimento intelectual e a possibilidade de transportar para fora
dos muros da prisão, por meio da imaginação que a leitura proporciona.
20
Em 26 e 27 de maio de 2019: “55 mortos em dois dias. A maioria das 55 vítimas do massacre
do fim de maio morreu de asfixia ou golpeada por objeto perfurante. Até esta segunda-feira,
53 corpos haviam sido liberados. O massacre é o segundo ocorrido no Amazonas em menos
de 3 anos” (PINA, 2019).
21
No presídio de Altamira-PA, em 29 de julho, outro massacre dizimou 62 pessoas presas, dos
quais 16 foram decapitadas e as demais morreram por sufocamento. Noticia-se: briga entre
duas facções criminosas rivais, não se fala do descaso e da irresponsabilidade do Estado ao
manter esses membros no mesmo presídio sem garantia de segurança aos rivais e às demais
pessoas presas. Novamente, a política do “deixar morrer”, como dizia Michel Foucault
(REZENDE; AZEVEDO, 2019).
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Assim, a pergunta que Gayatri Spivak (2010) lançou em 1985 ainda ecoa:
Pode o subalterno falar? Na cadeia social que inferioriza e silencia mulheres,
aquelas privadas de liberdade ficam em camada mais profunda de obscuridade.
Quem se interessa? Quem as ouve?
Antes de finalizar, fiz uma cópia inacabada deste texto e algumas das
mulheres presas leram. Recebi críticas, elogios e algumas contribuições que
foram incorporadas ou alteradas a partir do que apresentei a elas. Infelizmente,
para preservá-las de qualquer interpretação que possa ser usada contra elas,
não posso citar seus nomes verdadeiros. Mas são elas a minha inspiração. E este
escrito seria impossível sem elas.
Referências
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Sobre essa série, escrevi um artigo com uma aluna do projeto de remição que atualmente é
graduanda na UFMT (MARQUES; CRUZ, 2019).
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CANAVAN, Trudi. O Lorde Supremo. A trilogia do Mago Negro. Livro 3. São Paulo:
Novo Conceito, 2012.
CASTRO, Flavia Ribeiro de. Flores do cárcere. São Paulo: Talento, 2011.
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2018a.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018b.
FRANCO, Marielle. UPP – A redução da favela a três letras: uma análise política
de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: ética,
sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. v. 5, p. 144-162
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MARQUES, Ana Maria; CRUZ, Fernanda Nogueira da. Orange is the New Black e o
silêncio sobre o encarceramento de mulheres. Caminhos da Educação: Diálogos,
Culturas e Diversidades, Teresina, v. 1, n. 2, p. 21-38, 2019.
MARQUES, Ana Maria; GOMES, Nailza da Costa Barbosa. Bernardina Rich (1872-
1942): uma mulher negra no enfrentamento do racismo em Mato Grosso.
Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 10, n. 2, p. 110-132, 2017.
MULHERES concentram 89% das moradias do Minha Casa, Minha Vida. 3 jun.
2015. Disponível em:
www.brasil.gov.br/noticias/infraestrutura/2015/06/mulheres-respondem-por-
maioria-das-escrituras-do-minha-casa-minha-vida. Acesso em: 6 jun. 2019.
p.28
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RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia
das Letras, 2018.
SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
TRASI, Amita. Todas as cores do céu. Rio de Janeiro: Editora Harper Collins Brasil,
2018.
ZUSAK, Marcus. A menina que roubava livros. Rio de Janeiro: Intrínsica, 2010.
p.29