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14/12/2022 11:22 A ‘tramoia’ de Maria de Jesus: paternalismo, justiça e resistência no Brasil escravista no século XVIII

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A ‘tramoia’ de Maria de Jesus:


paternalismo, justiça e
resistência no Brasil escravista
no século XVIII
The ‘Fraud’ of Maria de Jesus: Paternalism, Justice and Resistance in Eighteenth-Century Slavery Brazil
Le ‘truquage’ de Maria de Jesus: paternalisme, justice et résistance dans le Brésil esclavagiste du XVIIIe siècle

Robson Pedrosa Costa e Suely Creusa Cordeiro de Almeida


p. 93-116
https://doi.org/10.4000/lerhistoria.10745

Resumos
Português English Français
O objetivo deste artigo é discutir sobre escravidão, resistência e justiça no Brasil colonial a partir
da trajetória da escravizada Maria de Jesus e de sua família, tendo como fio condutor as relações
escravistas em propriedades pertencentes a uma congregação religiosa: a Ordem de São Bento.
Maria se utilizou da justiça e de seus complexos caminhos para alcançar os seus objetivos de
liberdade, deixando os seus antigos senhores perplexos com a “ousadia”. Os monges, vinculados
no século XVIII à congregação portuguesa, foram capazes de construir um engenhoso e eficiente
sistema paternalista altamente institucionalizado. Romper com esta poderosa instituição rendeu
a Maria “qualificações” típicas de uma sociedade de Antigo Regime, tendo o seu nome associado à
trapaça, ao ardil, à tramoia.

The purpose of this article is to discuss slavery, resistance and justice in colonial Brazil from the
trajectory of enslaved Maria de Jesus and her family, highlighting the peculiarities of slavery in
properties belonging to a religious congregation: the Order of Saint Benedict. Maria used justice
and her complex ways to achieve her freedom goals, leaving her former owners perplexed by her
"boldness". The monks, linked in the eighteenth century to the Portuguese congregation, were
able to build an ingenious, efficient and highly institutionalized paternalistic system. Breaking
away from this powerful institution earned Maria “qualifications” typical of an Ancien Régime
society, with her name being associated with cheating, cunning and lying.

L'objectif de cet article est de discuter de l'esclavage, de la résistance et de la justice dans le Brésil
colonial à partir de la trajectoire de l'esclave Maria de Jesus et de sa famille, en ayant comme fil
conducteur les relations entre esclaves dans les propriétés appartenant à une congrégation
religieuse: l'Ordre de Saint-Benoît. Maria a utilisé la justice et ses moyens complexes pour
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atteindre ses objectifs de liberté, laissant ses anciens maîtres perplexes devant son "audace". Les
moines, rattachés au XVIIIe siècle à la congrégation portugaise, ont su construire un système
paternaliste ingénieux et efficace, fortement institutionnalisé. Rompre avec cette puissante
institution a donné à Maria des "qualifications" typiques d'une société d'Ancien Régime, ayant
son nom associé à la tricherie, la ruse, l'astuce.

Entradas no índice
Mots-clés : récits de vie, résistance des esclaves, paternalisme institutionnel, fraude, codes de
confiance
Keywords: life stories, slave resistance, institutional paternalism, fraud, trust codes
Palavras-chave: histórias de vida, resistência escrava, paternalismo institucional, fraude,
códigos de confiança

Notas do autor
Este artigo faz parte de um projeto maior, financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Chamada Universal 2018) e pelo Instituto
Federal de Pernambuco (Edital de Bolsa e Auxílio ao Pesquisador, 2019).

Texto integral
1 “Tramoia”. Substantivo feminino. Nos séculos XVIII e XIX seu significado estava
associado a palavras como trama, ardil doloso, trapaça (Silva 1813, 794; Faria 1859,
467). Se buscarmos em dicionários atuais, teremos: “pequena manobra secreta com
propósitos ilícitos”, “plano maquinado para enganar ou prejudicar algo ou alguém”,
“trampolinice”.1 Há uma relação entre estes conceitos e as estratégias utilizadas pelos
subalternos contra seus patrões, senhores ou grupos dirigentes. Estratégias sub-
reptícias de sujeitos comuns (Certeau 1994, 41). Diante das “tramoias” arquitetadas
pelos “marginais”, restava às suas “vítimas” qualificá-las como vis, trapaceiras, ingratas,
insubordinadas, incorrigíveis. Nem sempre as leis, as ordenações, os tratados e
mecanismos legais foram capazes de impedir a ousadia das camadas ditas inferiores.
Para se salvaguardar, os dirigentes e proprietários utilizaram-se de um instrumental
que desqualificava o “outro”, incluindo os que recorriam à justiça.
2 Nesse sentido, ressoavam palavras que pretendiam atacar a honra, o caráter, a
dignidade. Por trás do discurso desqualificante se escondiam sentimentos contrários às
pessoas comuns, quando enfrentavam e questionavam o controle dos grupos
dominantes. Vale ressaltar que as relações sociais não constituem uma luta apenas
entre polos opostos, mas um jogo esfumaçado entre estabelecidos e outsiders. As armas
utilizadas no jogo social são as disponíveis, segundo os interesses dos beligerantes
independentes de condição, cor ou qualidade (Elias e Scotson 1994). Os escravizados
eram, na narrativa senhorial, mentirosos por natureza. No início do século XIX, o
cronista inglês Henry Koster evidenciou essa “qualidade natural” dos cativos. Ele
arrendou um engenho na capitania de Pernambuco e pôde observar os escravizados
“deslizarem” por entre a “treva” para os festejos noturnos, registrando em seu diário a
seguinte reflexão: “a opressão cria o desejo do ato contrário a quem oprime. O escravo
tem o pendor natural para ludibriar aquele que o subjuga”. Para o cronista, havia prazer
“em contrariar os desejos e tornar nulas as ordens de quem as dá” (Koster 2002, 376-
377). Assim como Koster, outros senhores alimentavam as desqualificações atribuídas
aos escravizados, generalizando-se uma imagem negativa de todos.
3 Partindo dessas questões, destacamos que o objetivo central deste artigo é discutir
sobre escravidão, resistência e justiça no Brasil colonial a partir da trajetória da
escravizada Maria de Jesus e de sua extensa família, tendo como fio condutor as
relações escravistas em propriedades pertencentes a uma congregação religiosa: a
Ordem de São Bento. Pretendemos contribuir para o debate sobre as estratégias que no
Antigo Regime visavam sempre desqualificar as classes subalternas, definidas como de
pessoas sem qualidade, trazendo à tona aspectos pouco explorados pela historiografia,

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que não tem dado a devida atenção ao poder e às práticas paternalistas desenvolvidas
por uma das mais ricas e importantes ordens religiosas do Brasil. Destacaremos
questões relacionadas ao paternalismo institucional beneditino diante da quebra de
confiança/código entre monges-senhores e seus subalternos, evidenciando as
especificidades senhoriais em fazendas de religiosos. Evidenciaremos ainda as
estratégias de resistência dos escravizados que viviam sob o domínio e exploração
beneditina.
4 A partir da análise da documentação, constatamos que os religiosos haviam
construído todo um alicerce paternalista altamente institucionalizado que visava
orientar os monges que administravam as diversas propriedades. Pautados no tripé
família, obediência e castigo, os beneditinos acreditavam no controle da massa de
subordinados, inclusive, não aceitando a interferência, em seus “negócios”, de
autoridades seculares ou mesmo do bispado.2 Por fim, discutiremos sobre as
controvérsias envolvendo os tribunais coloniais, os documentos cartoriais e a
dificuldade em juntar provas escritas que beneficiassem pessoas escravizadas, sempre
consideradas suspeitas e capazes de enganar autoridades em busca de liberdade. As
principais fontes utilizadas neste artigo foram encontradas no Arquivo do Mosteiro de
São Bento de Olinda (Pernambuco, Brasil). Utilizamos a micro-história como
metodologia e o nome como fio, estratégia que ajudou a não nos perdermos no labirinto
documental (Ginzburg 1989).
5 Conceitos foram apropriados de Michel de Certeau, a exemplo da “trampolinagem”,
palavra associada “à acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar no trampolim,
trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos
contratos sociais” (Certeau 1994, 78-79). A escolha de Certeau se deve ao fato de
defendermos a ideia de que a “tramoia” (expressão extraída da documentação) foi uma
forma de resistência escrava utilizada dentro do campo de visão do senhor, como uma
estratégia “sub-reptícia”, uma forma de “trapaça”, de golpe, assim entendida pela classe
senhorial. No caso deste estudo, é importante lembrar que há uma vasta literatura
moral e religiosa que sempre associou a ideia de trapaça, trama e ardil às mulheres em
geral. Dessa forma, o lugar que Maria de Jesus ocupava na sociedade colonial
setecentista se define pelo estatuto prescrito para as mulheres. Esse estatuto feminino
emanava de Portugal, mas se espraiava para o Brasil. Ou seja, numa sociedade
escravista do Antigo Regime, o lugar das mulheres era um universo sem surpresas, pois
cada situação era enviada a uma ideia-força que ora se remete à criação ora à queda, um
relato do Gênesis (Caps. 2: 20-24; 3: 1-6), e/ou às funções de machos e fêmeas que se
encontram no Tratado da Geração dos Animais, de Aristóteles (Hespanha 2010, 102).

1. A trama, a “tramoia” e seus


personagens
6 No Livro de Tombo do Mosteiro de São Bento de Olinda3 encontramos, nas páginas
663 a 671, uma intrigante narrativa que tem o curioso título: “Lembrança para o futuro
acerca das alforrias que intentaram a mulata enfermeira Maria de Jesus e seu filho
Roque, escravos deste mosteiro, citando ao N. P. Rvm. [Nosso Padre Reverendíssimo]
Provincial4 Frei Miguel Archanjo da Annunciação, então abade do dito mosteiro
apresentando-lhe a certidão abaixo”. Essa fonte traz trechos de um processo iniciado
contra os monges beneditinos de Pernambuco em 1785 (Livro de Tombo 1948, 663-
671). O último documento sobre o caso data de 24 de outubro de 1789, sem apresentar a
conclusão. O processo transitou pelo Juízo Ordinário da Vila de Icó (capitania do
Ceará), pela Ouvidoria de Pernambuco e, por fim, pelo Tribunal da Relação da Bahia.5
7 Em uma coleção intitulada “Processos escravos (1788)” há uma cópia mais completa
do litígio, datilografada. Esta versão mais detalhada ajuda a preencher as lacunas do
Livro de Tombo. Além dessas duas fontes, contamos com a narrativa produzida pelo
abade Frei Miguel Arcanjo da Anunciação, em sua “Crônica do Mosteiro de Olinda”.
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Este monge governou o mosteiro nos períodos de 1769-1772, 1778-1780 e 1783-1786,


sendo nomeado abade provincial entre 1786 e 1789. Nesse momento a “Lembrança” foi
registrada no Livro de Tombo, a partir de anotações suas. O manuscrito produzido por
ele traz uma síntese dos governos dos abades anteriores, desde o século XVI até 1763
(Anunciação 1940). Foi a partir das referidas fontes que encontrámos a história de
Maria de Jesus. Ela fazia parte de uma extensa família de escravizados, tendo como
matriarca a sua mãe Luíza.
8 Eles viveram grande parte de suas vidas na capitania do Ceará, em uma vila chamada
Nossa Senhora da Expectação de Icó. Todos pertenciam ao monge beneditino Frei Luiz
dos Anjos (Livro de Tombo 1948, 663). Se o teor de sua petição for verdadeiro, ela, os
irmãos, a sobrinha e os filhos foram mantidos em cativeiro ilegalmente, pois haviam
nascido após a alforria de sua mãe, em 1727. É bem possível que todos eles tivessem
experimentado a liberdade pelo menos até 1746, quando o monge Frei Luiz faleceu. A
partir dessa data, o mosteiro de Olinda se apropriou de todo o patrimônio do finado,
incluindo os seus escravos. Pelo menos, assim foram considerados pelos monges e
reconhecidos pela Provedoria dos Defuntos e Ausentes da capitania do Ceará como
“herdeiros” do valioso patrimônio. Como aconteceu em outros casos de heranças, os
herdeiros acabavam atrapalhando as lutas pela liberdade, ao embargarem a alforria de
um cativo e, consequentemente, de seus descendentes (Guedes 2008, 199-200), como
pode ter acontecido com Luíza. Ou, claro, tudo não passou de uma “tramoia”
arquitetada por Maria.
9 É certo que a memória dessa “herança” não foi esquecida nem por Luíza nem por
seus descendentes, que defendiam a existência de uma carta de alforria que
comprovaria os argumentos de que toda a família se mantinha ilegalmente em
cativeiro. Em 1785, por algum fator que desconhecemos, Maria de Jesus conseguiu um
advogado e deu entrada em uma petição requerendo da justiça uma certidão a ser
extraída dos Livros de Notas dos anos 1726-1727, pertencentes à sua antiga vila, no
Ceará. O objetivo da ação foi encontrar a “carta de liberdade de sua mãe Luíza de tal,
escrava que foi” do Frei Luiz dos Anjos (Livro de Tombo 1948, 663). Caso a carta fosse
encontrada, todos os descendentes de Luíza seriam libertados. Apesar da distância6 e
da burocracia colonial, Maria conseguiu o que queria, iniciando um processo que
circulou entre duas capitanias. Não sabemos se ela primeiro recorreu ao Conselho do
Mosteiro, responsável por analisar os pedidos de alforria de seus escravizados.
Analisando o tom empregado pelo abade Frei Miguel, que em toda a narrativa se
apresenta surpreso e traído pela atitude de Maria, é de se especular que ela tenha
seguido direto para a justiça, atraindo a ira e a revolta de seu senhor.
10 A história dessa família faz parte do processo de expansão dos beneditinos pelo
interior de Pernambuco. Enquanto parte dos monges se instalou em Olinda,
administrando propriedades urbanas e engenhos na Zona da Mata, o Frei Luiz decidiu
fundar, com recursos próprios, uma fazenda no sertão do Ceará, provendo-a com
animais e escravizados. Ao falecer sem deixar herdeiros designados (em 1746), a
propriedade e todo o seu patrimônio ficaram sob a guarda da Provedoria dos Defuntos
e Ausentes (Anunciação 1940, 116). Essa era a ordem do processual para quem partia
deste mundo sem nomear sucessores. Todos os bens do falecido ficavam sob a tutela da
Provedoria dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos, que respondia ao tribunal da
Mesa da Consciência e Ordem. Os provedores eram responsáveis por inventariar,
arrecadar e executar os bens dos defuntos. Quando havia escravos no espólio, esses
deveriam ser listados em detalhes com seus nomes, idades e marcas, antes de serem
leiloados, e os valores angariados enviados para os possíveis herdeiros, caso estivessem
distantes (Mello 2019, 68-87).
11 Os monges de Olinda, logo que souberam da apreensão, enviaram um representante
para “retirar” das “mãos dos ausentes” os cativos. A Provedoria reconheceu o direito do
mosteiro aos escravos do falecido Frei Luiz. O Frei Custódio da Conceição (abade entre
1757-1760 e futuro “protetor” da família de Maria) foi o responsável em conduzir os
escravizados às propriedades do mosteiro de Olinda. Assim, foram “acrescentados” à
escravaria beneditina os cativos Mateus e Manoel, além dos seis “pardos” Maria,
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Quirino, Ana, Matilde e Josefa (todos irmãos) e Inácia, filha desta última (Anunciação
1940, 119). De acordo com o Frei Miguel da Anunciação, os cativos Luíza e Francisco
não foram apreendidos, pois, “ainda vivendo o Pe. Frei Luiz”, os enviara “ao mosteiro
desde 1740” (Anunciação 1940, 130). Esta informação, se correta, indica que Luíza era
considerada escrava por Frei Luiz, pois, por algum motivo, foi transferida de Icó para
Olinda, quando ele ainda estava vivo. Ao todo, dez cativos (sete deles da mesma
família), pertencentes ao frei defunto, foram incorporados à congregação (Anunciação
1940, 119).
12 Por motivos que desconhecemos, o escravizado Quirino foi vendido ainda no sertão,
marcando a primeira ruptura da extensa família. Em 1761, quinze anos depois, outra
filha de Luíza (Ana de Jaguaribe) também foi vendida (Anunciação 1940, 137-138).
Separar membros de uma mesma família não era uma prática comum entre os
beneditinos. Pelo contrário, a família era um componente fundamental no paternalismo
institucional e havia uma grande valorização dos laços familiares, com incentivos ao
casamento e à procriação numerosa, tanto por princípios religiosos, quanto por
estratégias de gestão. Havia famílias extensas nas várias propriedades, com muitas
crianças e casais de cativos. No entanto, isso não impediu os conflitos e
desentendimentos entre senhores e escravizados, inclusive resultando em fugas,
contendas judiciais e outros embates cotidianos (Costa 2021). Por isso, muitos cativos
recorreram à justiça tentando demonstrar que vivenciavam a liberdade, como condição
social, para reafirmar seu estatuto jurídico de forro. Esse poderia ser o caso da família
em questão. Contudo, a controversa herança incomodou por muito tempo alguns
monges que certamente reconheciam os direitos conquistados por aquela família.
Talvez por isso o Frei Custódio (anos depois do “resgate” do sertão) convenceu-se de
que todos os escravos do defunto Frei Luiz eram livres. Não só isso. Ele passou a
defender a liberdade dos escravizados, provocando uma grande celeuma entre os
monges. Ao ponto de, nas palavras do Frei Miguel (nosso cronista), “o Pe. Frei Custódio
da Conceição e outros enfatuados por ele” tentarem convencer a todos do mosteiro que
os membros daquela extensa família eram todos “forros” (Anunciação 1940, 130).
13 Para explicar a controvérsia, voltemos no tempo. Em 1754, o Frei Custódio colocou
em pauta da reunião do Conselho uma demanda da liberta Ângela, outra filha de Luíza.
Por volta de 1727, o Frei Luiz (em Icó) concedeu-lhe liberdade. E assim viveu por 27
anos. Contudo, quando Frei José de Santa Maria assumiu a administração das
propriedades do sertão (no Ceará em 1754), reconduziu Ângela ao cativeiro
(Anunciação 1940, 130). Como provavelmente Ângela não possuía a Carta de Alforria
(tal qual a sua mãe), o Frei José pretendia provar que ela era uma escrava. Mas Ângela
não consta nem na lista dos apreendidos pela Provedoria de Defuntos e Ausentes nem
entre os cativos transferidos de Icó para Olinda. Isso indica que ela usufruía da
liberdade conquistada há quase três décadas. Contrariando a vontade do Frei José, o
Conselho Beneditino acabou decidindo em favor de Ângela. No entanto, o monge
ignorou a decisão, “demandando-a” ao cativeiro. Como o acontecimento foi relatado
pelo Frei Miguel da Anunciação (em sua crônica), não sabemos como o caso acabou nas
mãos do Tribunal da Relação da Bahia, que reconheceu o direito de Ângela à liberdade
(Anunciação 1940, 130).
14 Também não está claro na narrativa do Frei Miguel quando Maria iniciou a sua luta
pela liberdade. Ele apenas registrou que a partir deste “escrito de liberdade [referindo-
se ao caso de Ângela] se ordil [sic] a tramoia de Maria de Jesus”, que então “agora
tentou libertar toda a sua irmandade e geração” (Anunciação 1940, 130). Este “agora”
possivelmente refere-se ao ano de 1786, pois afirma que “mais de 40 anos depois” do
“resgate” do sertão (1746) quis o Frei Custódio persuadir a todos “que as declaradas
mulatas eram forras e libertas” (Anunciação 1940, 119). No texto de Anunciação há uma
linguagem que remete à situação das mulheres, e que embora fosse clara à época, hoje
precisa ser desvendada. Roberto Guedes (2017), analisando testamentos de mulheres
pretas forras, avalia como o dizer das qualidades pode esclarecer sobre o lugar
hierárquico dos sujeitos numa sociedade escravista, ou seja, sua condição social, o fato
de viverem sobre si ou de suas agências. O vocábulo “mulatas” está no texto da crônica
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carregado de significados. O termo seria um caminho do meio entre a liberdade e a


escravidão, sendo denotativo de uma passagem de condição àqueles aos quais é
imputado (Guedes 2017).
15 Apesar da confusa cronologia, tudo indica que Maria usou aquela decisão favorável à
sua irmã Ângela para iniciar a sua própria luta pela liberdade. A confusão se dá pela
distância temporal, pois o processo contra o mosteiro se inicia 31 anos após o
reconhecimento de Ângela, pela justiça, como liberta. Provavelmente quando passou a
residir no mosteiro, Maria teve acesso à decisão favorável à sua irmã, talvez com a ajuda
de algum monge adepto à causa. A petição, a pedido de Maria de Jesus, encaminhada
em 1785 ao juiz de Icó (Ceará), logo deu resultado. O tabelião responsável pelo cartório
da região emitiu a certidão solicitada, após verificar os livros de notas dos anos de 1726
e 1727. Ele diz ter encontrado a carta “perdida”, em nome da preta Luíza. A certidão
transcrevia o documento original:

Digo eu o P. Frei Luiz dos Anjos, religioso de S. Bento, que entre os mais bens que
possuo, de que estou em mansa e pacífica posse, e é bem assim uma preta de
nome Luíza, a qual preta por me haver dado o seu valor de 60 mil reis, e pelos
bons serviços que me há feito, a forro, como fato forrado tenho de hoje para todo
sempre como se forra nascesse do ventre de sua mãe e peço e rogo as justiças da
sua Majestade [...], e declara para cuja alforria se conservar em sua força e vigor
[...] e assim a isento de toda a escravidão para poder gozar de sua liberdade e por
verdade lhe passei a presente, por mim feita, e assinada nesta Ribeira de
Jaguaribe. (Livro de Tombo 1948, 663-664)

16 Mas, apesar da clareza com que emitiu a certidão, o tabelião destacou que, devido à
“velhice da letra”, a mesma estava muito embranquecida. Com isso, o Dom Abade de
Olinda (Frei Miguel da Anunciação, o cronista) acabou desconfiando da transcrição,
colocando em dúvida a sua autenticidade. A partir de então, deu entrada uma petição
ao juiz ordinário da vila de Icó, solicitando um novo exame dos documentos. O tabelião,
revendo com mais atenção os livros de notas, percebeu ou foi induzido a concluir que
não se tratava da carta de Luíza, mas sim, de sua filha, cujo nome, devido à velhice do
documento, não tinha certeza se Inês ou Ângela. A carta, “sendo examinada e bem
vista”, compreendia-se “estas formais palavras bem e distintamente: Forro e ei por livre
como se do ventre de sua mãe Luíza nascesse, e passada pelo religioso Frei Luiz dos
Anjos”. Apesar da certeza, deixava claro que o documento possuía quase 60 anos,
apresentando graves problemas na numeração e na tinta. Por fim, o tabelião não
localizou a carta de liberdade de Luíza, fornecendo um parecer duvidoso e contraditório
(Livro de Tombo 1948, 665). Pelo menos, ficou comprovado que Ângela falava a
verdade, o que poderia ser um indicativo de que sua mãe também.
17 Dado o impasse, o Dom Abade entrou com uma nova petição ao juiz ordinário da vila
de Icó solicitando que outro tabelião, juntamente com o anterior, realizasse nova
averiguação do respectivo livro, passando em certidão que a carta não fora encontrada.
Assim, os tabeliães emitiram uma nova certidão, afirmando que “sem embargo de
estarem muitas das letras em partes ininteligíveis”, foi possível constatar no livro de
notas “não estar nele lançada tal liberdade de que se trata [...]” (Livro de Tombo 1948,
666). Todavia, segundo as palavras do abade, “não obstante essa contradição das
certidões”, o ouvidor de Pernambuco, Dr. Antônio de Morais Teixeira Homem, “deu
sentença contra” o mosteiro. A sentença, proferida em 26 de fevereiro de 1786, julgava
Luíza e seus filhos livres “como partos todos de ventre livre”. O ouvidor considerou
desnecessária a apresentação de documentos que comprovassem a idade dos
beneficiados, considerando apenas as testemunhas, que garantiram “que a preta Luíza
tivera estes filhos depois do Pe. Frei Luiz lhe dar a sua carta de liberdade”. Para o juiz, a
não apresentação destes documentos era justificada, pois todos sabiam que havia pouco
cuidado com os registros “de semelhante qualidade de gente”. O mosteiro foi obrigado
ainda a pagar as custas do processo (Livro de Tombo 1948, 666-667).
18 No entanto, o processo foi encaminhado ao Tribunal da Relação da Bahia.7 Veremos
mais adiante os seus desdobramentos, mas antes discutiremos sobre alguns aspectos já
levantados. Apesar de a congregação possuir várias propriedades, Maria de Jesus era
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cativa do próprio mosteiro, pois neste estabelecimento existia uma enfermaria


destinada principalmente aos escravizados, local onde deveria exercer o seu ofício de
enfermeira. Certamente, ao viver no centro da capital pernambucana, Maria deve ter
recorrido a pessoas extramuros para alcançar o seu intento. Tanto ela quanto o filho
Roque são citados na apelação como “ausentes”, indicando que haviam se apartado de
seus senhores, possivelmente com o objetivo de recorrerem à justiça. Na primeira
petição ela havia declarado que era “moradora na cidade de Olinda” (Livro de Tombo
1948, 663), não apresentando um endereço, escondendo o seu paradeiro e o de seu
filho. Esta situação permaneceu até pelo menos 1787, quando o abade solicitou à
Ouvidoria Geral da Comarca do Ceará que fossem localizados. Foi então emitida uma
“carta precatória citatória” encaminhada à vila de Recife, intimando que os “escravos”
comparecessem ou se pronunciassem através de seus procuradores.8
19 O certo é que ninguém sabia onde se encontravam. Talvez, como obtiveram uma
sentença favorável em 1786, Maria e seu filho se considerassem livres por direito e, com
isso, não precisavam retornar ao cativeiro durante a apelação. É possível que ambos
estivessem sob a proteção de alguém externo, que deu suporte durante os quatro anos
de disputas nos tribunais.9 Outros estudos observaram que muitos cativos entraram na
justiça contra seus proprietários sob a influência ou estímulo de outras pessoas, fossem
elas escravizadas ou livres/libertas. Pessoas poderosas atuaram defendendo os
apelantes (cativos e libertos), ou aproveitando-se de suas fragilidades jurídicas.10
Contudo, no nosso caso central, os nomes de seus benfeitores não foram citados. Mas
havia um monge, o Frei Custódio (ex-abade), simpatizante da causa, que teve um
importante papel na trama.

2. Justiça e escravidão no Antigo


Regime
20 Apesar dos escritos de Benci, Antonil e Ribeiro Rocha, nunca houve na América
portuguesa um código negro ou mesmo uma recolha e organização de leis sobre a
escravidão que funcionasse como uma codificação.11 Mas é possível detectar nas várias
disposições régias a existência de uma tradição quanto à escravização de africanos e
descendentes, incluindo alguns princípios jurídicos dispersos que norteiam as relações
entre senhores e escravizados. Nas Ordenações Filipinas não há títulos, mas
regulamentos que esclarecem sobre os procedimentos em torno da devolução de
fugitivos, ou anulações de vendas feitas de cativos enfermos, sobre a doação da alforria,
o batismo e o comércio na África. Essas passagens somadas às leis positivas legitimam a
escravização e o cativeiro de descendentes. Já nas leis extravagantes, as normativas
incidem sobre o controle do fluxo de mercadorias, coleta de impostos gerados pelo
comércio atlântico e entre as regiões coloniais. Se somarmos aos itens que se referem
especificamente à África, boa parte das extravagantes tratam de escravidão, embarques,
comércio e transportes de escravos (Lara 2000, 36-37).
21 As denúncias de escravizados contra senhores eram garantidas pela legislação
portuguesa desde 1688. Por meio de duas normativas era permitido que cativos
fizessem acusações a seus amos nos tribunais civis e eclesiásticos. Todavia exigia-se que
os/as denunciantes pudessem comprovar através do testemunho de homens brancos e
idôneos as incriminações que faziam.12 Mesmo diante dessa dependência, muitos
escravizados entraram na justiça contra os seus senhores. No entanto, Stuart Schwartz
cita um caso em que cativos haviam vencido processos de denúncias contra senhores
cruéis, mas, mesmo com ordens da coroa para que se cumprisse a sentença,
administradores locais com medo de revoltas não as cumpriram, não importando as
demandas impostas pelos escravizados, inclusive apelando para a remoção dos cativos
para outras localidades. Isso, é claro, não os impediu de continuar protestando, pois a
luta foi constante (Schwartz 1988, 124).

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22 Assim, no além-mar, o que predominou foram jurisprudência e ritos processuais, em


um terreno onde as teias locais exerciam uma ferrenha pressão, impondo o terror como
forma de manter a conservação. Evidentemente que havia alguma flexibilização, na
tentativa de atenuar as tensões dentro das senzalas e sempre deixar acesa a esperança
nos corações dos escravizados, deixando sempre aberta a possibilidade de buscar na
justiça o seu direito à liberdade. No entanto, não podemos esquecer que a grande massa
escravizada permaneceu no cativeiro, embora muitos exemplos, que emergem do
passado, possam comprovar as lutas diuturnas para escapar da escravidão.13 Assim,
coibir e permitir foram práticas que se alternaram quando se tratou da liberdade. Mas
seria possível aplicar o direito português na colônia a ponto de beneficiar ou não uma
possível escravizada? A primeira questão incide em saber sobre que direito e leis
estamos falando.
23 António Manuel Hespanha diz ser necessário entender que embora a primazia
coubesse ao direito nacional em Portugal (iura propria), na falta dele devia-se recorrer
ao direito comum observando-se uma tendência, tanto entre os eruditos juristas dos
tribunais centrais como os dos tribunais locais, para prevalecer um direito local, escrito
ou costumeiro, que alguns denominam de direito subsidiário. Esse direito local – ou
costumes dos rústicos – era uma tradição em comunidades afastadas dos centros do
reino, a exemplo do além-mar. Ele foi estabelecido em câmaras, assembleias e
capítulos. Essas normas eram publicadas em bandos e pregões materializando uma
tradição local e sendo um divisor de águas entre o justo e o injusto (Hespanha 2010,
183). No entanto, o alvará pombalino de 19 de setembro de 176114 e a publicação da Lei
da Boa Razão em 18 de agosto de 176915 poderão ter influenciado o desenrolar dos
processos nos tribunais tanto no reino quanto nas conquistas, como o de Maria de
Jesus.
24 Na querela envolvendo os beneditinos, os personagens principais citados no processo
são em sua maioria mulheres: Luíza, Ângela, Maria de Jesus. Mães, escravas, libertas,
trabalhadoras. Para os juristas do Antigo Regime o feminino estava contido no
masculino, ou seja, a parte mais fraca era absorvida pela mais forte. Neste sentido, os
escravizados, e de forma específica mulheres escravizadas, teriam suas causas
absorvidas pelas normas e regras das mulheres livres e brancas, embora fosse
imperativo que houvesse uma legislação que as contemplasse. Isso é denotativo de um
mundo hierarquizado no que tange à linguagem que se enraizava nos poderes e nas
coisas (Hespanha 2010, 102-103). Sabemos que o estatuto da mulher no Antigo Regime
era de imbecillitas sexus, inconstantia animi. Esse a impedia do exercício de cargos e
ofícios públicos, apesar de deles poder dispor para seu dote, bem como de cargos na
república. Também era “ferida de incapacidades sucessórias” nos bens da coroa. Para
uma mulher escrava, havia dificuldades quase intransponíveis para o exercício de
algum direito (Hespanha 2010, 64; Lobão 1841).
25 As mulheres foram definidas como de “menor dignidade”, “frágeis” e “passivas”.
Passíveis de serem seduzidas, movidas pelas carícias, como as crianças, os rústicos ou
os ignorantes. Essa limitação as colocava sob a tutela dos homens da família, o pai, o
marido, o irmão e o filho maior de 25 anos (Hespanha 2010, 106-112). Essa imagem
distorcida da mulher estava latente no direito comum europeu, projetando-se no direito
de todo o reino e em todas as manifestações culturais da sociedade do Antigo Regime
(Barros 1981; Hespanha 2010). Esmagada sob todo esse interdiscurso estava a pessoa
de Maria de Jesus, mulher negra, escravizada, mãe e esposa, pertencente a uma
instituição que prezava, acima de tudo, pela obediência e humildade. Como aceitar que
uma mulher de cor e “escrava” os enfrentasse?

3. Mansos, obedientes e probos: as


qualificações desejadas

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O excitamento do sentimento piedoso entre os escravos, sobretudo esses deveres
que a Igreja Católica sabe determinar, são necessários, e se os homens devem
viver como escravos, é certo que a religião é melhor adotada para os indivíduos
que estão nesse estado de sujeição. Escravidão e superstição, combinadas, são dois
flagelos suficientes para causar a miséria em qualquer parte. (Koster 2002, 412)

26 O olhar atento do cronista Henry Koster ajuda a refletir sobre as peculiaridades da


gestão escravista dos beneditinos. Ele viveu, em 1809, em uma propriedade próxima à
Fazenda Jaguaribe, pertencente aos monges de Pernambuco. Ele mesmo experimentou
o poder e as práticas do paternalismo. Isso porque no Brasil predominava o princípio
da soberania doméstica, ou seja, do poder ilimitado dos senhores sobre seus escravos,
como em toda a classe senhorial. Vale ressaltar que a existência desse paternalismo não
resultou da cordialidade e benevolência dos senhores para com seus escravos, mas sim
da necessidade de disciplinar e justificar moralmente o sistema de exploração
(Marquese 2004, 163, 173 e 286). Apesar do papel do cristianismo em diferentes cantos
da América portuguesa, tal componente possuía um caráter imprescindível no trato
com os escravizados pertencentes às ordens religiosas.
27 Os monges, adaptando as orientações da Regra de São Bento, diziam tratar os seus
escravos como “filhos” e deles esperavam a lealdade, a gratidão e a obediência. Por isso,
o processo iniciado em 1785 deixou marcas profundas na comunidade beneditina de
Olinda. O abade era como um “pai”, que deveria dosar a severidade com os rigores
necessários para controlar a família. Esperava-se de todos os membros que fossem
“mansos”, “obedientes” e “honestos”. Quanto aos “negligentes”, “desdenhosos”,
“indisciplinados”, “inquietos”, “ímprobos”, “soberbos”ou “desobedientes” deveriam ser
rapidamente repreendidos, reprimidos e castigados “com varadas ou outro castigo
corporal, desde o início da falta, sabendo que está escrito: ‘O estulto não se corrige com
palavras’”.16 Ao chegarem ao Brasil no século XVI, foi necessário adaptar a Regra ao
Novo Mundo e incluir à comunidade beneditina os escravos somados ao patrimônio da
congregação. Ainda no século XVIII a concepção de “filho” atribuída aos escravizados
esbarrava na necessidade de constante aquisição e venda, bem como na linguagem
depreciativa ao se referirem aos cativos. Como parte da sociedade escravista do Antigo
Regime, os monges ajudaram a perpetuar a escravidão negra no Brasil.
28 No decorrer do século XVIII, as propriedades beneditinas foram aumentando o
número de escravizados. Havia uma grande preocupação em adquirir cativos de ambos
os sexos, pois havia na corporação beneditina o estímulo ao crescimento natural nas
propriedades (Schwartz 1983). Os Estados (relatórios trienais produzidos pelos abades)
registraram toda essa movimentação, revelando-nos não apenas a dinâmica interna da
congregação, mas também a linguagem utilizada para descrever os escravizados,
descritos como parte de um patrimônio. No relatório trienal de 1700-1703, o Frei
Manoel dos Anjos informou ter vendido “uma crioula” com sua “cria” por 160 mil-réis.
Entre 1717 e 1720 comprou-se para a fazenda Jaguaribe seis “machos”, seis “fêmeas” e
quatro crianças. Os relatórios ainda revelam a importância da formação de famílias e
das crianças na construção da comunidade beneditina. Claramente, os casados com
filhos e os aptos ao serviço eram bem qualificados, registrados sem atributos
negativos.17
29 Em contraposição estavam os idosos. Estão em quase todos os Estados expressões
como “por velha já não serve para nada”, “de nenhum serviço por muito velho”, “já
bastante velhos e decrépitos”.18 Outras expressões corriqueiras numa sociedade
escravista foram comuns na pena dos monges em relatórios e atas. Em 1809
compraram mais duas pessoas para a comunidade: “uma negra para todo serviço” e
“uma negrinha”.19 Estas expressões, mais do que uma referência à cor da pele, foram
utilizadas como sinônimo da condição de escravizado, bem como um indicativo da
qualidade desejada para um cativo: ser de “serviço”. Na América portuguesa, o conceito
condição era o certificado jurídico da pessoa, ou seja, se livre, escrava ou forra. Por
outro lado, a qualidade distinguia as pessoas que a possuíam das que não eram
providas dela, ou das que a tinham em menor proporção. “Os homens bons, sem sangue
infecto ou que não traziam defeitos mecânicos e de mulatice, tinham qualidade que os
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distinguia de mouros, judeus, negros e mestiços, o que legitimava privilégios” (Paiva


2015, 17-18).
30 Roberto Guedes, ao analisar listas nominativas e mapas de habitantes de Porto Feliz
(1798-1843), constatou que “frequentemente, usava-se cor, mas qualidade também era
um campo no qual se marcavam as cores, isto é, qualidade e cor poderiam ser
utilizadas como sinônimos”. Para o autor, existia uma frequente mudança de cor de um
mesmo indivíduo, dependendo das fontes e circunstâncias. Isso significa afirmar que a
“atribuição da cor não aludia a características somáticas, antes à condição social”
(Guedes 2008, 17-18 e 71). Já a qualidade, em seu amplo significado, englobava
diversos elementos, sendo a condição um deles. Quando se falava da qualidade do
indivíduo, falava-se de sua situação social, religiosa, econômica, ocupação profissional e
sua cor, que, por outro lado, não estava relacionada apenas à pigmentação da pele, mas
englobava sua ascendência e demais aspectos sociais e econômicos.
31 Logo, a qualidade funcionava como uma espécie de guarda-chuva que servia para
distinguir e hierarquizar os sujeitos no contexto colonial. O acúmulo de bens,
decorrentes do trabalho manual ou herança, associado à honra e fidelidade ao rei
colaboraram de forma positiva à concessão de mercê, ocupação de cargos e obtenção de
patentes por pessoas com defeitos de cor em sua ascendência, possibilitando mudar
suas qualidades. A riqueza não era uma garantia de inserção/ascensão social, mas
ajudou a fraudar máculas que seriam mais visíveis (Almeida e Bezerra 2019, 130-160).
Assim, pessoas como a mulata Maria de Jesus procuravam inserção avançando de
degrau em degrau. Garantir a alforria seria um dos mais importantes, para depois
seguir fazendo escolhas que poderiam abrandar seu percurso promovendo para si e
para os seus novas qualidades. Mas não era fácil vencer um interdiscurso sobre a falta
de qualidade das pessoas de cor construído ao longo de séculos.
32 As fontes produzidas pelos monges estão repletas destas
desqualificações/qualificações. Isso porque na contramão do paternalismo institucional
beneditino havia constantemente reclamações e desabafos sobre o comportamento
indesejado dos “negros”. Os “vícios” e “excessos” foram registrados por monges mais
exigentes, revelando a indignação, a frustração e a revolta destes senhores que
esperavam mais de seus “filhos”.20 A insubordinação e as fugas foram representadas
como parte do caráter “incorrigível” dos escravizados, atitudes que demonstravam a
falta de reconhecimento da prodigalidade de seus benfeitores. Visando institucionalizar
o problema e evitar prejuízos à corporação, os beneditinos, reunidos em 1829 em
Tibães (Portugal), determinaram que a venda dos escravizados só seria permitida
quando o cativo não fosse capaz de modificar os seus “maus costumes”.21 Esta diretriz
foi repetidamente lembrada nas atas capitulares do século XIX.
33 Sem dúvida, havia na mentalidade senhorial beneditina uma expectativa de
obediência e respeito nem sempre correspondida pelos escravizados. O caso de Maria
de Jesus é emblemático nesse sentido. Diferente do discurso utilizado no processo, que
se ateve aos fatos e às provas (ou ausência delas), os escritos no Livro de Tombo e na
“Crônica” trazem um tom repleto de indignação, frustração e denúncia, registrada como
uma “lembrança para o futuro”. Longe do linguajar jurídico contido nos processos, o
abade Frei Miguel construiu uma imagem bem reveladora do pensamento senhorial
escravista beneditino. Segundo ele, a partir daquele “escrito de liberdade”, referindo-se
à libertação de Ângela em 1754, “se ordil” [sic], em 1785, “a tramoia de Maria de Jesus”,
que “tentou libertar toda a sua irmandade e geração”. Segundo o monge, o Frei
Custódio, durante o seu governo (1757-1760), construiu ao lado do mosteiro uma
“enfermaria de escravos” e “trouxe para ela a célebre mulata Maria de Jesus, que se
casou com o escravo Manoel ferreiro”. Nesta época, segundo Frei Miguel, aquele abade
ainda “a reconhecia indubitavelmente escrava”, pois foi responsável pela venda da
escrava Ana, também filha de Luíza (irmã de Maria), em 1761. Nas palavras de Frei
Miguel, “não sei com que consciência [referindo-se ao Frei Custódio] podia vender uma
mulher forra por nascimento como este Prelado entrou a asseverar com juramento”.
Tais fatos demonstrariam que nesta época julgava “a dita mulata e seus irmãos
indubitavelmente” cativos e “ele sempre assim o julgou” (Anunciação 1940, 130-38).
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34 A palavra “célebre” revela a importância do processo iniciado por Maria, cujo nome
deve ter circulado por anos nos corredores do mosteiro, não apenas entre os que
viveram naquela época, mas entre aqueles que leram as “Crônicas” e o Livro de Tombo.
A mudança da postura do Frei Custódio em favor da família de Luíza estaria
relacionada à época em que ele foi administrador da Fazenda Jaguaribe, onde toda
aquela família vivia. Possivelmente, teria criado laços afetivos com esses escravizados,
iniciando uma disputa de poder com outros monges do mosteiro. Mesmo diante das
contradições de seus atos, escreveu o Frei Miguel: “nenhum poder dos homens” fora
capaz de convencer o Frei Custódio de “tirar do juízo esta loucura” (Anunciação 1940,
137-138), referindo-se à defesa que ele empreendeu em favor da família de Maria.
Parece-nos que o paternalismo institucional nem sempre foi capaz de evitar o puro,
simples, clássico paternalismo. O intrigante registro revela importantes aspectos do
caráter senhorial beneditino, que pode ser pensado para outros grupos senhoriais.
Primeiramente, as disputas internas em torno do poder foram comuns entre os monges
beneditinos, inclusive entre abades de diferentes mosteiros. Havia a prática do
“acoitamento”22 de cativos que fugiam e recebiam tratamento especial de certos
monges, provocando a ira daqueles que se sentiam traídos por escravos
desobedientes.23 A busca por um senhor “mais brando”, “melhor”, mais “protetor” é um
fato já apontado pela historiografia (Costa 2021; Versiani 2007).
35 Outro ponto a ser destacado refere-se ao poder moral. Havia no âmago do caráter
senhorial uma visão de legitimidade de seu poder, senso de justiça, obrigações, direitos,
um código que devia ser sustentado por todos. Mas também havia forte orientação
cristã na sociedade escravista de que o senhor deveria prover os elementos básicos à
vida de seus escravizados. Jesuítas e outros religiosos deixaram vários manuais
orientando sobre o tratamento ideal aos cativos (Viotti 2019). Todos sabiam, em teoria
ou prática, que os castigos excessivos poderiam resultar em revoltas, fugas, sabotagem.
Mesmo assim, muitos senhores extrapolaram os limites “aceitos” pela comunidade
escrava, provocando ondas de violência, instabilidade e interrupção do trabalho em
muitas propriedades. No caso dos beneditinos, eles foram quase exemplares
(considerando os manuais) nos procedimentos necessários ao bom funcionamento da
comunidade escravizada. Forneciam o “pão” e o “pano”24 e, com certa cautela, o
“pau”.25 Forneciam remédios aos doentes e até construíram uma enfermaria dedicada
exclusivamente aos cativos (Anunciação 1940, 136). Os casamentos eram incentivados e
todos poderiam receber terras para o sustento, permitindo-se ainda juntar dinheiro
para a compra da alforria.26
36 Para alcançar o status de administradores eficientes, os beneditinos usavam uma
fórmula pautada em princípios religiosos e rigor administrativo. Nas palavras de Stuart
Schwartz (1983, 38), os monges eram “gestores progressistas”, principalmente em
relação aos escravos. A partir da figura de um líder sacrossanto, foi instituído, a partir
da Regra do Patriarca, um paternalismo que se baseava na obediência, no castigo e na
disciplina. Primava ainda o “bom tratamento” a todos os da comunidade.27 Com base
nessas premissas, os beneditinos de fato acreditavam que eram bons senhores e, por
isso, deveriam ser recompensados com a lealdade de seus escravizados. Talvez por isso,
pautado na ideia de uma escravidão mais “suave”, em que os escravos eram parte da
grande família beneditina, o caso de Maria de Jesus tenha ganhado tanta repercussão,
lembrado como uma “tramoia” que não poderia ser esquecida.
37 Ao entrar na justiça contra os seus senhores, Maria teria quebrado de forma “ardil” o
código há tanto tempo construído. Diante da quebra do código, os monges foram
tomados pelo sentimento de traição, resultando em profunda desolação e desgosto, a
exemplo de um pai diante dos desvios do filho. Não apenas neste caso, mas em muitos
outros a ira de alguns monges foi registrada em vários documentos da congregação,
inclusive nos relatórios trienais. É importante dizer que em muitos casos os registros
revelam sentimentos pessoais de um gestor frustrado com o comportamento de um
subordinado.28 Todavia, independentemente de ser escravizado ou liberto, a sociedade
do Antigo Regime possuía um forte instrumental que visava manter rígidas as
estruturas hierárquicas pautadas na desqualificação dos subalternos. Mesmo quando a
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justiça reconhecia os seus direitos, não deixava de enfatizar a “semelhante qualidade de


gente” como Maria de Jesus e sua família (Hespanha 2010, 141-145).

4. A história de uma “fraude”


38 Após a sentença, proferida em 26 de fevereiro de 1786, reconhecendo o direito de
liberdade de Maria e “toda a sua irmandade e geração”, o processo foi encaminhado ao
Tribunal da Relação da Bahia. Em 1 de julho de 1786, o tribunal solicitou que os
tabeliães comparecessem perante o juiz, em posse dos livros originais, para que fosse
realizada uma nova vistoria e exame dos respectivos documentos. O procedimento só
foi concluído em 10 de agosto de 1788. Os examinadores constaram que a confusão de
nomes se deu porque o documento fora rasurado, como se alguém tivesse “esfregado”
por cima das letras. A suposta falsificação não foi conclusiva. Os peritos não
conseguiram definir se o objetivo da “esfregação” foi “fazer de Luíza, Ignez, ou de Ignez,
Luíza”, supostamente uma outra filha da cativa. O resultado deste exame foi
encaminhado à Relação da Bahia, para apreciação.29
39 Na tentativa de juntar as peças desse incompleto e confuso quebra-cabeça,
encontramos um trecho interessante extraído do libelo, contendo as alegações de Maria
de Jesus quando se instaurou a apelação. Maria de Jesus requeria ao juiz que, como ela
e seu filho foram considerados na primeira sentença “livres e isentos de toda a
escravidão por virtude de liberdade concedida a sua mãe e avó”, fosse concedido aos
seus outros filhos o direito a “três dias livres em cada semana”, para “melhor
conhecimento e prosseguirem a causa”. Esse trecho, provavelmente de 1786, indica que
a autora possuía outros filhos que permaneceram em cativeiro. Ao mesmo tempo,
evidencia em seu escrito que aquela decisão de 1785 não lhes concedia a alforria, apesar
do reconhecimento de que eram “isentos de toda a escravidão”. Outro ponto importante
no libelo refere-se ao trecho em que se afirma que a carta de liberdade de Luíza foi
“comprada com o dinheiro desta”, o que a fazia “mais valiosa”.30 Mais do que uma
concessão senhorial, Maria compreendia o significado, o valor da conquista da alforria
de sua mãe mediante a autocompra. Não sabemos qual o resultado desse apelo, nem se
os demais filhos de Maria obtiveram o direito de acompanhar mais de perto o processo,
do qual eles também seriam beneficiados, apesar de seus nomes não constarem na
petição. O certo é que, até pelo menos 1787, Maria e Roque não retornaram ao cativeiro,
aguardando a apelação em liberdade, ou melhor, “ausentes” contra a vontade de seus
senhores.
40 Em 27 de fevereiro de 1787, quando foi finalmente encontrada e notificada pela
justiça para explicar os motivos desta “ausência”, Maria informou o ouvidor geral da
comarca de Pernambuco que seu filho Roque havia se ausentado para a Bahia para
cuidar de sua saúde, mas tudo indica que ela permaneceu em Olinda, perto do
mosteiro, mas fora dele.31 O processo prosseguiu e a justiça solicitou aos tabeliães que
examinassem os livros de notas “com toda a exatidão se neles se” achavam “lançadas a
Carta de Liberdade”. Deveria ainda verificar se as certidões “incertas passadas” pelo
primeiro tabelião e usadas em favor de Maria no primeiro julgamento eram
verdadeiras. Os tabeliães constataram que na folha 47 do livro de notas de 1727 foi
lançada uma Carta de Liberdade passada pelo Frei Luiz dos Anjos cujo título e teor foi
constatado o nome de “uma mulatinha” chamada Fuam.
41 Os tabeliães, então, destacaram que a dificuldade de definir corretamente o nome no
documento se devia ao fato de o mesmo “se achar apagado e com vestígios de que nos
ditos lugares houve algum vício não de rasura, e sim de coisa com que se esfregou por
cima que apagou totalmente o nome somente da tal mulatinha”. Para eles, tudo
indicava que já no título da Carta de Liberdade havia evidências de que “quiseram
emendar e depois é que lhe fizeram a dita esfregação para se não perceber o nome,
porquanto se vê que a letra” estava “mais grossa”. Havia ainda “alguns leves indícios de
ser o mesmo Ignez, sendo certo que ou se pretendeu fazer de Luíza, Ignez, ou de Ignez,

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Luíza cuja emenda só se divulga no título, e não no interior da mesma carta”. “Porém”,
continua o parecer, “se vê claramente que lhe deram por cima com coisa que escureceu
de todo o mesmo nome além de estar o papel todo muito amarelo, e defumado que
custa aperceber-se”. Por fim, afirmaram que havia a possibilidade de confusão entre os
nomes “livre” e “Luíza”, palavras de “fácil a equivocação”. Concluído o novo exame dos
livros de notas, uma cópia “sobre dita liberdade para melhor decisão” foi enviada ao
“Juízo superior da Relação da Bahia, de onde emana a dita Carta de diligência”. Este
despacho data de 24 de outubro de 1789, último registro que dispomos sobre o
processo.32 Aqui perdemos o fio, forçando-nos a retornar ao início de tudo. No entanto,
em 1789, Antônio Xavier de Moraes Teixeira Homem, que era ouvidor de Pernambuco
em 1785 e deu sentença favorável a Maria, foi nomeado desembargador da Relação da
Bahia. Talvez da mesma forma que lhe foi favorável em 1785 o tenha sido em 1789.33

5. Conclusão
42 Tramoia. Iniciamos esta conclusão com a primeira palavra que abriu este artigo. Não
só isso. Palavra que serviu como fio condutor de toda nossa discussão. Uma palavra de
difícil tradução para outras línguas, devido ao peso que ela carrega em sua língua
materna. Ela vai muito além da trapaça, da fraude, do golpe ou qualquer outra que
apresente similaridades. Talvez Michel de Certeau seja o autor que traduza melhor os
seus significados, aproximando-a das ideias de astúcia e esperteza, do drible, do salto
no trampolim. O caso de Maria de Jesus nos faz refletir também sobre o “discurso
oculto” presente na atitude pública de pessoas criadas em condições de subalternidade.
Para o abade Fr. Miguel da Anunciação, testemunha ocular de todo o processo, toda
aquela família era “indubitavelmente” escrava, e até aquele momento ninguém havia
questionado este fato. Por isso a reação tão contrariada do monge contra a atitude de
Maria, taxada como um “ardil”, outra palavra que carrega uma multiplicidade de
significados, todos eles de teor pejorativo.
43 “Discurso oculto” é um conceito utilizado por James Scott (2013, 19-20), e nos ajuda,
nesta conclusão, a refletir um pouco mais sobre a trajetória desta família. Durante toda
a sua vida, Maria de Jesus e sua “geração” se apresentaram como pessoas
“indubitavelmente” escravas. Mas, na primeira oportunidade que teve, entrou na justiça
contra os seus senhores. Fica claro nos fragmentos do processo que possuímos que ela
tinha a clara consciência (ou construída mais tarde) que ela e sua família era herdeira
da suposta liberdade de sua mãe, usurpada de seu direito em decorrência do extravio de
sua (também suposta) carta. A veracidade destes fatos pouco importa. Mas acreditamos
que havia, sim, uma memória, um burburinho que foi resgatado décadas depois da tal
liberdade materna. Comportar-se todo este tempo como escravizada certamente se
enquadra naquilo que Scott chamou de “infrapolítica dos oprimidos”, que reúne um
sem-número de formas de insubordinação, incluindo a “dissimulação”. Segundo Scott,
"todos grupos criam, a partir da sua experiência de sofrimento, um ‘discurso oculto’ que
representa uma crítica do poder expressa nas costas dos dominadores”. Para a classe
senhorial, como a do abade cronista, havia entre os escravizados uma clara
“necessidade de enganar” (Scott, 2013, 27-29). Para nós, esta “arte de dissimulação” era
uma das estratégias sub-reptícias que foram utilizadas por todos os envolvidos no
processo independente do lado, de cima a baixo. No caso dos ditos subalternos, o uso
desse tipo de estratégia incomodava mais. Contudo, todos (senhores, escravos, libertos)
utilizaram-se da “astúcia” cotidiana para enganar o “outro”.
44 No caso envolvendo Maria de Jesus, quem dissimulava? O abade ou a escravizada?
Talvez Maria tenha realmente fraudado, com ajuda de alguém, o Livro de Notas,
aproveitando a má conservação dos documentos comprobatórios “de semelhante
qualidade de gente”. Esta suposta fraude pode inclusive ter enganado o primeiro
tabelião, ou ter a conivência dele, mas não resistiu a um exame mais apurado. Mas
como Maria de Jesus teria “obtido por meio de fraude ou ocultamento” uma certidão,

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assinada por um tabelião, a carta de liberdade de sua mãe? Que meios “fraudulentos”
ela conseguiu forjar para que de forma “oculta ou dissimulada” pudesse libertar toda a
sua família? Neste momento, a pergunta só pode ser respondida no campo das
especulações. Todavia, podemos pensar em alguns caminhos, já que a possibilidade de
“falsificação” (verdadeira ou suposta, não importa) de documentos por escravizados já
foi evidenciada pela historiografia (Silva 2017, 194-196). Muito também já foi dito sobre
como os herdeiros dos senhores falsificavam ou destruíam documentos, levando à
anulação da liberdade e ao retorno do liberto ao cativeiro (Nascimento 2012, 148). À
semelhança da “tramoia de Maria de Jesus”, escravos e libertos eram sempre
associados a “ardil” e “trapaça”. E, em alguns casos, as acusações eram de fato
verdadeiras (Nascimento 2012, 160-161). Por isso, em nosso estudo a fraude é
entendida como um “estratagema” construído a partir de experiências vividas,
“movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’[...] e no espaço por ele controlado”
(Certeau 1994, 101). Lembremos que muitos foram os casos em que escravizados e
forros sofreram com as ações sorrateiras e ilegais de seus (ex-)senhores. Lição bem
aprendida e apreendida pelos grupos subalternos.
45 Neste estudo, é inevitável a comparação com outro caso emblemático, apresentado de
forma brilhante por Rebecca Scott e Jean Hébrard (2012). O caso de Rosalie e sua
família nos ajuda a refletir sobre tramas envolvendo escravizados, justiça, resistência,
instituições e burocracia estatal. Após uma longa trajetória no contexto da Revolução
Haitiana, Rosalie parecia ser ciente, segundo os autores, “da importância de um
documento oficial”. Ela conseguiu, em São Domingos, que Michel Vincent (um francês
com o qual teve um relacionamento) “produzisse um documento de alforria”, que foi
levado para “ser recopiado por um funcionário francês em Santiago”. Mas tudo não
passava de uma farsa. E porque não dizer uma fraude, já que Rosalie já não era mais
escrava nessa época e Michel Vincent nunca fora seu proprietário. Mas faltava-lhe o
documento, indispensável em uma sociedade apegada à palavra escrita (Scott e
Hébrard 2012, 56-57). Admitindo, neste ponto, as possiblidades dos usos de
“fingimentos” e as complicações por trás de cada história aqui apresentada,
consideramos de grande valia pensar sobre as “tramoias” e, porque não, as fraudes,
como estratégias de resistência.

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Notas
1 Ver os dicionários Aurélio (https://www.dicio.com.br/tramoia-2/) e Michaelis
(https://michaelis.uol.com.br).
2 Sobre esses conflitos, ver Souza (2011, cap. 5).
3 Olinda era a sede administrativa da capitania de Pernambuco, onde foi fundado o mosteiro de
São Bento, entre 1586 e 1592. Mas os primeiros monges beneditinos chegaram à América
portuguesa em 1581 e se instalaram na cidade de Salvador (Bahia). Outros mosteiros foram
construídos nas capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraíba (Endres 1980, 49-55, 59-69).
4 Os mosteiros do Brasil estavam reunidos em uma “Província”, com sede em Salvador, mas
estavam subordinados ao abade geral da congregação, com sede em Tibães, Portugal (Endres
1980, 59-74).
5 Realizámos uma pesquisa nos fundos judiciais do Arquivo Nacional e do Arquivo Estadual da
Bahia (APEBE), mas, infelizmente, não conseguimos encontrar o processo original.
6 A distância entre Icó e Olinda é, atualmente, de aproximadamente 600 km.
7 Criado em 1605, este tribunal ficou subordinado à Casa da Suplicação. Foi a mais alta instância
judicial no Brasil colonial (Schwartz 1979, 45-54).
8 Arquivo do Mosteiro de São Bento de Olinda (AMSBO), Livro 161: Processos escravos (1788).
9 A questão transitou do Conselho Beneditino, Ouvidoria do Ceará, até o tribunal da Relação da
Bahia.
10 Sobre auxílio a cativos em suas ações na justiça, ver Almeida (2015) e Vellasco (2005).
11 Para uma discussão sobre Igreja e escravidão no mundo atlântico, ver Zeron e Dias (2017).
12 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Provisões, 20 a 23 de março de 1688.
13 Para uma discussão sobre a luta dos escravizados na justiça em outras partes da América, ver
Johnson (2007) e Scott e Hébrard (2012).
14 Este alvará foi aplicado exclusivamente ao Portugal metropolitano. Em 1773, outro alvará
extinguia gradualmente o estado de escravidão no Portugal continental. No entanto, só em 1869
aboliu-se a escravatura em todo o império português (Almeida 2020).
15 Esta lei fundamental do ordenamento jurídico português procurava auxiliar na adequação da
aplicabilidade das leis já existentes (Cabral 2010).
16 Regra de São Bento. Capítulos: 2. Como deve ser o abade; 5. Da obediência; 7. Da humildade.
Ver em http://www.osb.org.br/regra.html.
17 AMSBO, “Estados” (1712-1715), Livro 211, n. 2.
18 AMSBO, “Estados” (1700-1769), Livro 211, n. 2. “Estados” (1784-1786), Livro 213; “Estados”
(1842-1845), in Manuscritos (1952, 291-293).
19 “Livro dos Conselhos”, 18 de janeiro de 1809, in Manuscritos (1952, 244).
20 “Estados” (1817-1818), in Manuscritos (1952, 165-166).
21 AMSBO, “Capítulo Geral de 1829”, Livro 1829-1848. Exemplos de escravos vendidos por
serem considerados “incorrigíveis”: 13 de janeiro de 1794; 25 de fevereiro de 1813, 158; 30 de
março de 1814; 14 de maio de 1822, 169-170, in Manuscritos (1952).
22 Dar proteção ou abrigo a alguém, principalmente fugido.
23 “Livro dos Conselhos”, in Manuscritos (1952, 169-170); “Estados” (1842-1845), in Manuscritos
(1952, 283-293).
24 AMSBO, “Livro de Provimentos-1755”, Processos Escravos (1788), Livro 161. Neste Livro
encontramos os gastos com tecidos fornecidos aos escravizados; AMSBO, “Livro de Mordomia”
(1828-1835).
25 A assistência aos escravos aparece em quase todos os documentos do AMSBO: “Livro de
Provimentos”, 1755; “Livro dos Conselhos”; “Estados” do século XVIII e XIX.
26 “Livro dos Conselhos” (1793-1875), in Manuscritos (1952, passim), onde se encontram
inúmeras referências a estes temas (casamento e alforria).

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27 AMSBO, “Livro de Provimentos”, 1755, “Processos Escravos-1788”, Livro 161; “Livro de
Mordomia” (1828-1835).
28 Várias passagens dos documentos consultados: Livro de Tombo; Crônica do Mosteiro de São
Bento; Estados.
29 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
30 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
31 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
32 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
33 AHU/PE, Cx. 155, D. 11160 e Cx. 171, D. 12053.

Para citar este artigo


Referência do documento impresso
Robson Pedrosa Costa e Suely Creusa Cordeiro de Almeida, «A ‘tramoia’ de Maria de Jesus:
paternalismo, justiça e resistência no Brasil escravista no século XVIII», Ler História, 81 | -1, 93-
116.

Referência eletrónica
Robson Pedrosa Costa e Suely Creusa Cordeiro de Almeida, «A ‘tramoia’ de Maria de Jesus:
paternalismo, justiça e resistência no Brasil escravista no século XVIII», Ler História [Online],
81 | 2022, posto online no dia 21 setembro 2022, consultado no dia 13 dezembro 2022. URL:
http://journals.openedition.org/lerhistoria/10745; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.10745

Autores
Robson Pedrosa Costa
Instituto Federal de Pernambuco, Campus Recife, Brasil

robsonpc@gmail.com

Suely Creusa Cordeiro de Almeida


Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil

suealmeida.ufrpe@hotmail.com

Direitos de autor

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