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81 | 2022
História do Brasil
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O objetivo deste artigo é discutir sobre escravidão, resistência e justiça no Brasil colonial a partir
da trajetória da escravizada Maria de Jesus e de sua família, tendo como fio condutor as relações
escravistas em propriedades pertencentes a uma congregação religiosa: a Ordem de São Bento.
Maria se utilizou da justiça e de seus complexos caminhos para alcançar os seus objetivos de
liberdade, deixando os seus antigos senhores perplexos com a “ousadia”. Os monges, vinculados
no século XVIII à congregação portuguesa, foram capazes de construir um engenhoso e eficiente
sistema paternalista altamente institucionalizado. Romper com esta poderosa instituição rendeu
a Maria “qualificações” típicas de uma sociedade de Antigo Regime, tendo o seu nome associado à
trapaça, ao ardil, à tramoia.
The purpose of this article is to discuss slavery, resistance and justice in colonial Brazil from the
trajectory of enslaved Maria de Jesus and her family, highlighting the peculiarities of slavery in
properties belonging to a religious congregation: the Order of Saint Benedict. Maria used justice
and her complex ways to achieve her freedom goals, leaving her former owners perplexed by her
"boldness". The monks, linked in the eighteenth century to the Portuguese congregation, were
able to build an ingenious, efficient and highly institutionalized paternalistic system. Breaking
away from this powerful institution earned Maria “qualifications” typical of an Ancien Régime
society, with her name being associated with cheating, cunning and lying.
L'objectif de cet article est de discuter de l'esclavage, de la résistance et de la justice dans le Brésil
colonial à partir de la trajectoire de l'esclave Maria de Jesus et de sa famille, en ayant comme fil
conducteur les relations entre esclaves dans les propriétés appartenant à une congrégation
religieuse: l'Ordre de Saint-Benoît. Maria a utilisé la justice et ses moyens complexes pour
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atteindre ses objectifs de liberté, laissant ses anciens maîtres perplexes devant son "audace". Les
moines, rattachés au XVIIIe siècle à la congrégation portugaise, ont su construire un système
paternaliste ingénieux et efficace, fortement institutionnalisé. Rompre avec cette puissante
institution a donné à Maria des "qualifications" typiques d'une société d'Ancien Régime, ayant
son nom associé à la tricherie, la ruse, l'astuce.
Entradas no índice
Mots-clés : récits de vie, résistance des esclaves, paternalisme institutionnel, fraude, codes de
confiance
Keywords: life stories, slave resistance, institutional paternalism, fraud, trust codes
Palavras-chave: histórias de vida, resistência escrava, paternalismo institucional, fraude,
códigos de confiança
Notas do autor
Este artigo faz parte de um projeto maior, financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Chamada Universal 2018) e pelo Instituto
Federal de Pernambuco (Edital de Bolsa e Auxílio ao Pesquisador, 2019).
Texto integral
1 “Tramoia”. Substantivo feminino. Nos séculos XVIII e XIX seu significado estava
associado a palavras como trama, ardil doloso, trapaça (Silva 1813, 794; Faria 1859,
467). Se buscarmos em dicionários atuais, teremos: “pequena manobra secreta com
propósitos ilícitos”, “plano maquinado para enganar ou prejudicar algo ou alguém”,
“trampolinice”.1 Há uma relação entre estes conceitos e as estratégias utilizadas pelos
subalternos contra seus patrões, senhores ou grupos dirigentes. Estratégias sub-
reptícias de sujeitos comuns (Certeau 1994, 41). Diante das “tramoias” arquitetadas
pelos “marginais”, restava às suas “vítimas” qualificá-las como vis, trapaceiras, ingratas,
insubordinadas, incorrigíveis. Nem sempre as leis, as ordenações, os tratados e
mecanismos legais foram capazes de impedir a ousadia das camadas ditas inferiores.
Para se salvaguardar, os dirigentes e proprietários utilizaram-se de um instrumental
que desqualificava o “outro”, incluindo os que recorriam à justiça.
2 Nesse sentido, ressoavam palavras que pretendiam atacar a honra, o caráter, a
dignidade. Por trás do discurso desqualificante se escondiam sentimentos contrários às
pessoas comuns, quando enfrentavam e questionavam o controle dos grupos
dominantes. Vale ressaltar que as relações sociais não constituem uma luta apenas
entre polos opostos, mas um jogo esfumaçado entre estabelecidos e outsiders. As armas
utilizadas no jogo social são as disponíveis, segundo os interesses dos beligerantes
independentes de condição, cor ou qualidade (Elias e Scotson 1994). Os escravizados
eram, na narrativa senhorial, mentirosos por natureza. No início do século XIX, o
cronista inglês Henry Koster evidenciou essa “qualidade natural” dos cativos. Ele
arrendou um engenho na capitania de Pernambuco e pôde observar os escravizados
“deslizarem” por entre a “treva” para os festejos noturnos, registrando em seu diário a
seguinte reflexão: “a opressão cria o desejo do ato contrário a quem oprime. O escravo
tem o pendor natural para ludibriar aquele que o subjuga”. Para o cronista, havia prazer
“em contrariar os desejos e tornar nulas as ordens de quem as dá” (Koster 2002, 376-
377). Assim como Koster, outros senhores alimentavam as desqualificações atribuídas
aos escravizados, generalizando-se uma imagem negativa de todos.
3 Partindo dessas questões, destacamos que o objetivo central deste artigo é discutir
sobre escravidão, resistência e justiça no Brasil colonial a partir da trajetória da
escravizada Maria de Jesus e de sua extensa família, tendo como fio condutor as
relações escravistas em propriedades pertencentes a uma congregação religiosa: a
Ordem de São Bento. Pretendemos contribuir para o debate sobre as estratégias que no
Antigo Regime visavam sempre desqualificar as classes subalternas, definidas como de
pessoas sem qualidade, trazendo à tona aspectos pouco explorados pela historiografia,
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que não tem dado a devida atenção ao poder e às práticas paternalistas desenvolvidas
por uma das mais ricas e importantes ordens religiosas do Brasil. Destacaremos
questões relacionadas ao paternalismo institucional beneditino diante da quebra de
confiança/código entre monges-senhores e seus subalternos, evidenciando as
especificidades senhoriais em fazendas de religiosos. Evidenciaremos ainda as
estratégias de resistência dos escravizados que viviam sob o domínio e exploração
beneditina.
4 A partir da análise da documentação, constatamos que os religiosos haviam
construído todo um alicerce paternalista altamente institucionalizado que visava
orientar os monges que administravam as diversas propriedades. Pautados no tripé
família, obediência e castigo, os beneditinos acreditavam no controle da massa de
subordinados, inclusive, não aceitando a interferência, em seus “negócios”, de
autoridades seculares ou mesmo do bispado.2 Por fim, discutiremos sobre as
controvérsias envolvendo os tribunais coloniais, os documentos cartoriais e a
dificuldade em juntar provas escritas que beneficiassem pessoas escravizadas, sempre
consideradas suspeitas e capazes de enganar autoridades em busca de liberdade. As
principais fontes utilizadas neste artigo foram encontradas no Arquivo do Mosteiro de
São Bento de Olinda (Pernambuco, Brasil). Utilizamos a micro-história como
metodologia e o nome como fio, estratégia que ajudou a não nos perdermos no labirinto
documental (Ginzburg 1989).
5 Conceitos foram apropriados de Michel de Certeau, a exemplo da “trampolinagem”,
palavra associada “à acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar no trampolim,
trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos
contratos sociais” (Certeau 1994, 78-79). A escolha de Certeau se deve ao fato de
defendermos a ideia de que a “tramoia” (expressão extraída da documentação) foi uma
forma de resistência escrava utilizada dentro do campo de visão do senhor, como uma
estratégia “sub-reptícia”, uma forma de “trapaça”, de golpe, assim entendida pela classe
senhorial. No caso deste estudo, é importante lembrar que há uma vasta literatura
moral e religiosa que sempre associou a ideia de trapaça, trama e ardil às mulheres em
geral. Dessa forma, o lugar que Maria de Jesus ocupava na sociedade colonial
setecentista se define pelo estatuto prescrito para as mulheres. Esse estatuto feminino
emanava de Portugal, mas se espraiava para o Brasil. Ou seja, numa sociedade
escravista do Antigo Regime, o lugar das mulheres era um universo sem surpresas, pois
cada situação era enviada a uma ideia-força que ora se remete à criação ora à queda, um
relato do Gênesis (Caps. 2: 20-24; 3: 1-6), e/ou às funções de machos e fêmeas que se
encontram no Tratado da Geração dos Animais, de Aristóteles (Hespanha 2010, 102).
Quirino, Ana, Matilde e Josefa (todos irmãos) e Inácia, filha desta última (Anunciação
1940, 119). De acordo com o Frei Miguel da Anunciação, os cativos Luíza e Francisco
não foram apreendidos, pois, “ainda vivendo o Pe. Frei Luiz”, os enviara “ao mosteiro
desde 1740” (Anunciação 1940, 130). Esta informação, se correta, indica que Luíza era
considerada escrava por Frei Luiz, pois, por algum motivo, foi transferida de Icó para
Olinda, quando ele ainda estava vivo. Ao todo, dez cativos (sete deles da mesma
família), pertencentes ao frei defunto, foram incorporados à congregação (Anunciação
1940, 119).
12 Por motivos que desconhecemos, o escravizado Quirino foi vendido ainda no sertão,
marcando a primeira ruptura da extensa família. Em 1761, quinze anos depois, outra
filha de Luíza (Ana de Jaguaribe) também foi vendida (Anunciação 1940, 137-138).
Separar membros de uma mesma família não era uma prática comum entre os
beneditinos. Pelo contrário, a família era um componente fundamental no paternalismo
institucional e havia uma grande valorização dos laços familiares, com incentivos ao
casamento e à procriação numerosa, tanto por princípios religiosos, quanto por
estratégias de gestão. Havia famílias extensas nas várias propriedades, com muitas
crianças e casais de cativos. No entanto, isso não impediu os conflitos e
desentendimentos entre senhores e escravizados, inclusive resultando em fugas,
contendas judiciais e outros embates cotidianos (Costa 2021). Por isso, muitos cativos
recorreram à justiça tentando demonstrar que vivenciavam a liberdade, como condição
social, para reafirmar seu estatuto jurídico de forro. Esse poderia ser o caso da família
em questão. Contudo, a controversa herança incomodou por muito tempo alguns
monges que certamente reconheciam os direitos conquistados por aquela família.
Talvez por isso o Frei Custódio (anos depois do “resgate” do sertão) convenceu-se de
que todos os escravos do defunto Frei Luiz eram livres. Não só isso. Ele passou a
defender a liberdade dos escravizados, provocando uma grande celeuma entre os
monges. Ao ponto de, nas palavras do Frei Miguel (nosso cronista), “o Pe. Frei Custódio
da Conceição e outros enfatuados por ele” tentarem convencer a todos do mosteiro que
os membros daquela extensa família eram todos “forros” (Anunciação 1940, 130).
13 Para explicar a controvérsia, voltemos no tempo. Em 1754, o Frei Custódio colocou
em pauta da reunião do Conselho uma demanda da liberta Ângela, outra filha de Luíza.
Por volta de 1727, o Frei Luiz (em Icó) concedeu-lhe liberdade. E assim viveu por 27
anos. Contudo, quando Frei José de Santa Maria assumiu a administração das
propriedades do sertão (no Ceará em 1754), reconduziu Ângela ao cativeiro
(Anunciação 1940, 130). Como provavelmente Ângela não possuía a Carta de Alforria
(tal qual a sua mãe), o Frei José pretendia provar que ela era uma escrava. Mas Ângela
não consta nem na lista dos apreendidos pela Provedoria de Defuntos e Ausentes nem
entre os cativos transferidos de Icó para Olinda. Isso indica que ela usufruía da
liberdade conquistada há quase três décadas. Contrariando a vontade do Frei José, o
Conselho Beneditino acabou decidindo em favor de Ângela. No entanto, o monge
ignorou a decisão, “demandando-a” ao cativeiro. Como o acontecimento foi relatado
pelo Frei Miguel da Anunciação (em sua crônica), não sabemos como o caso acabou nas
mãos do Tribunal da Relação da Bahia, que reconheceu o direito de Ângela à liberdade
(Anunciação 1940, 130).
14 Também não está claro na narrativa do Frei Miguel quando Maria iniciou a sua luta
pela liberdade. Ele apenas registrou que a partir deste “escrito de liberdade [referindo-
se ao caso de Ângela] se ordil [sic] a tramoia de Maria de Jesus”, que então “agora
tentou libertar toda a sua irmandade e geração” (Anunciação 1940, 130). Este “agora”
possivelmente refere-se ao ano de 1786, pois afirma que “mais de 40 anos depois” do
“resgate” do sertão (1746) quis o Frei Custódio persuadir a todos “que as declaradas
mulatas eram forras e libertas” (Anunciação 1940, 119). No texto de Anunciação há uma
linguagem que remete à situação das mulheres, e que embora fosse clara à época, hoje
precisa ser desvendada. Roberto Guedes (2017), analisando testamentos de mulheres
pretas forras, avalia como o dizer das qualidades pode esclarecer sobre o lugar
hierárquico dos sujeitos numa sociedade escravista, ou seja, sua condição social, o fato
de viverem sobre si ou de suas agências. O vocábulo “mulatas” está no texto da crônica
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Digo eu o P. Frei Luiz dos Anjos, religioso de S. Bento, que entre os mais bens que
possuo, de que estou em mansa e pacífica posse, e é bem assim uma preta de
nome Luíza, a qual preta por me haver dado o seu valor de 60 mil reis, e pelos
bons serviços que me há feito, a forro, como fato forrado tenho de hoje para todo
sempre como se forra nascesse do ventre de sua mãe e peço e rogo as justiças da
sua Majestade [...], e declara para cuja alforria se conservar em sua força e vigor
[...] e assim a isento de toda a escravidão para poder gozar de sua liberdade e por
verdade lhe passei a presente, por mim feita, e assinada nesta Ribeira de
Jaguaribe. (Livro de Tombo 1948, 663-664)
16 Mas, apesar da clareza com que emitiu a certidão, o tabelião destacou que, devido à
“velhice da letra”, a mesma estava muito embranquecida. Com isso, o Dom Abade de
Olinda (Frei Miguel da Anunciação, o cronista) acabou desconfiando da transcrição,
colocando em dúvida a sua autenticidade. A partir de então, deu entrada uma petição
ao juiz ordinário da vila de Icó, solicitando um novo exame dos documentos. O tabelião,
revendo com mais atenção os livros de notas, percebeu ou foi induzido a concluir que
não se tratava da carta de Luíza, mas sim, de sua filha, cujo nome, devido à velhice do
documento, não tinha certeza se Inês ou Ângela. A carta, “sendo examinada e bem
vista”, compreendia-se “estas formais palavras bem e distintamente: Forro e ei por livre
como se do ventre de sua mãe Luíza nascesse, e passada pelo religioso Frei Luiz dos
Anjos”. Apesar da certeza, deixava claro que o documento possuía quase 60 anos,
apresentando graves problemas na numeração e na tinta. Por fim, o tabelião não
localizou a carta de liberdade de Luíza, fornecendo um parecer duvidoso e contraditório
(Livro de Tombo 1948, 665). Pelo menos, ficou comprovado que Ângela falava a
verdade, o que poderia ser um indicativo de que sua mãe também.
17 Dado o impasse, o Dom Abade entrou com uma nova petição ao juiz ordinário da vila
de Icó solicitando que outro tabelião, juntamente com o anterior, realizasse nova
averiguação do respectivo livro, passando em certidão que a carta não fora encontrada.
Assim, os tabeliães emitiram uma nova certidão, afirmando que “sem embargo de
estarem muitas das letras em partes ininteligíveis”, foi possível constatar no livro de
notas “não estar nele lançada tal liberdade de que se trata [...]” (Livro de Tombo 1948,
666). Todavia, segundo as palavras do abade, “não obstante essa contradição das
certidões”, o ouvidor de Pernambuco, Dr. Antônio de Morais Teixeira Homem, “deu
sentença contra” o mosteiro. A sentença, proferida em 26 de fevereiro de 1786, julgava
Luíza e seus filhos livres “como partos todos de ventre livre”. O ouvidor considerou
desnecessária a apresentação de documentos que comprovassem a idade dos
beneficiados, considerando apenas as testemunhas, que garantiram “que a preta Luíza
tivera estes filhos depois do Pe. Frei Luiz lhe dar a sua carta de liberdade”. Para o juiz, a
não apresentação destes documentos era justificada, pois todos sabiam que havia pouco
cuidado com os registros “de semelhante qualidade de gente”. O mosteiro foi obrigado
ainda a pagar as custas do processo (Livro de Tombo 1948, 666-667).
18 No entanto, o processo foi encaminhado ao Tribunal da Relação da Bahia.7 Veremos
mais adiante os seus desdobramentos, mas antes discutiremos sobre alguns aspectos já
levantados. Apesar de a congregação possuir várias propriedades, Maria de Jesus era
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O excitamento do sentimento piedoso entre os escravos, sobretudo esses deveres
que a Igreja Católica sabe determinar, são necessários, e se os homens devem
viver como escravos, é certo que a religião é melhor adotada para os indivíduos
que estão nesse estado de sujeição. Escravidão e superstição, combinadas, são dois
flagelos suficientes para causar a miséria em qualquer parte. (Koster 2002, 412)
34 A palavra “célebre” revela a importância do processo iniciado por Maria, cujo nome
deve ter circulado por anos nos corredores do mosteiro, não apenas entre os que
viveram naquela época, mas entre aqueles que leram as “Crônicas” e o Livro de Tombo.
A mudança da postura do Frei Custódio em favor da família de Luíza estaria
relacionada à época em que ele foi administrador da Fazenda Jaguaribe, onde toda
aquela família vivia. Possivelmente, teria criado laços afetivos com esses escravizados,
iniciando uma disputa de poder com outros monges do mosteiro. Mesmo diante das
contradições de seus atos, escreveu o Frei Miguel: “nenhum poder dos homens” fora
capaz de convencer o Frei Custódio de “tirar do juízo esta loucura” (Anunciação 1940,
137-138), referindo-se à defesa que ele empreendeu em favor da família de Maria.
Parece-nos que o paternalismo institucional nem sempre foi capaz de evitar o puro,
simples, clássico paternalismo. O intrigante registro revela importantes aspectos do
caráter senhorial beneditino, que pode ser pensado para outros grupos senhoriais.
Primeiramente, as disputas internas em torno do poder foram comuns entre os monges
beneditinos, inclusive entre abades de diferentes mosteiros. Havia a prática do
“acoitamento”22 de cativos que fugiam e recebiam tratamento especial de certos
monges, provocando a ira daqueles que se sentiam traídos por escravos
desobedientes.23 A busca por um senhor “mais brando”, “melhor”, mais “protetor” é um
fato já apontado pela historiografia (Costa 2021; Versiani 2007).
35 Outro ponto a ser destacado refere-se ao poder moral. Havia no âmago do caráter
senhorial uma visão de legitimidade de seu poder, senso de justiça, obrigações, direitos,
um código que devia ser sustentado por todos. Mas também havia forte orientação
cristã na sociedade escravista de que o senhor deveria prover os elementos básicos à
vida de seus escravizados. Jesuítas e outros religiosos deixaram vários manuais
orientando sobre o tratamento ideal aos cativos (Viotti 2019). Todos sabiam, em teoria
ou prática, que os castigos excessivos poderiam resultar em revoltas, fugas, sabotagem.
Mesmo assim, muitos senhores extrapolaram os limites “aceitos” pela comunidade
escrava, provocando ondas de violência, instabilidade e interrupção do trabalho em
muitas propriedades. No caso dos beneditinos, eles foram quase exemplares
(considerando os manuais) nos procedimentos necessários ao bom funcionamento da
comunidade escravizada. Forneciam o “pão” e o “pano”24 e, com certa cautela, o
“pau”.25 Forneciam remédios aos doentes e até construíram uma enfermaria dedicada
exclusivamente aos cativos (Anunciação 1940, 136). Os casamentos eram incentivados e
todos poderiam receber terras para o sustento, permitindo-se ainda juntar dinheiro
para a compra da alforria.26
36 Para alcançar o status de administradores eficientes, os beneditinos usavam uma
fórmula pautada em princípios religiosos e rigor administrativo. Nas palavras de Stuart
Schwartz (1983, 38), os monges eram “gestores progressistas”, principalmente em
relação aos escravos. A partir da figura de um líder sacrossanto, foi instituído, a partir
da Regra do Patriarca, um paternalismo que se baseava na obediência, no castigo e na
disciplina. Primava ainda o “bom tratamento” a todos os da comunidade.27 Com base
nessas premissas, os beneditinos de fato acreditavam que eram bons senhores e, por
isso, deveriam ser recompensados com a lealdade de seus escravizados. Talvez por isso,
pautado na ideia de uma escravidão mais “suave”, em que os escravos eram parte da
grande família beneditina, o caso de Maria de Jesus tenha ganhado tanta repercussão,
lembrado como uma “tramoia” que não poderia ser esquecida.
37 Ao entrar na justiça contra os seus senhores, Maria teria quebrado de forma “ardil” o
código há tanto tempo construído. Diante da quebra do código, os monges foram
tomados pelo sentimento de traição, resultando em profunda desolação e desgosto, a
exemplo de um pai diante dos desvios do filho. Não apenas neste caso, mas em muitos
outros a ira de alguns monges foi registrada em vários documentos da congregação,
inclusive nos relatórios trienais. É importante dizer que em muitos casos os registros
revelam sentimentos pessoais de um gestor frustrado com o comportamento de um
subordinado.28 Todavia, independentemente de ser escravizado ou liberto, a sociedade
do Antigo Regime possuía um forte instrumental que visava manter rígidas as
estruturas hierárquicas pautadas na desqualificação dos subalternos. Mesmo quando a
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Luíza cuja emenda só se divulga no título, e não no interior da mesma carta”. “Porém”,
continua o parecer, “se vê claramente que lhe deram por cima com coisa que escureceu
de todo o mesmo nome além de estar o papel todo muito amarelo, e defumado que
custa aperceber-se”. Por fim, afirmaram que havia a possibilidade de confusão entre os
nomes “livre” e “Luíza”, palavras de “fácil a equivocação”. Concluído o novo exame dos
livros de notas, uma cópia “sobre dita liberdade para melhor decisão” foi enviada ao
“Juízo superior da Relação da Bahia, de onde emana a dita Carta de diligência”. Este
despacho data de 24 de outubro de 1789, último registro que dispomos sobre o
processo.32 Aqui perdemos o fio, forçando-nos a retornar ao início de tudo. No entanto,
em 1789, Antônio Xavier de Moraes Teixeira Homem, que era ouvidor de Pernambuco
em 1785 e deu sentença favorável a Maria, foi nomeado desembargador da Relação da
Bahia. Talvez da mesma forma que lhe foi favorável em 1785 o tenha sido em 1789.33
5. Conclusão
42 Tramoia. Iniciamos esta conclusão com a primeira palavra que abriu este artigo. Não
só isso. Palavra que serviu como fio condutor de toda nossa discussão. Uma palavra de
difícil tradução para outras línguas, devido ao peso que ela carrega em sua língua
materna. Ela vai muito além da trapaça, da fraude, do golpe ou qualquer outra que
apresente similaridades. Talvez Michel de Certeau seja o autor que traduza melhor os
seus significados, aproximando-a das ideias de astúcia e esperteza, do drible, do salto
no trampolim. O caso de Maria de Jesus nos faz refletir também sobre o “discurso
oculto” presente na atitude pública de pessoas criadas em condições de subalternidade.
Para o abade Fr. Miguel da Anunciação, testemunha ocular de todo o processo, toda
aquela família era “indubitavelmente” escrava, e até aquele momento ninguém havia
questionado este fato. Por isso a reação tão contrariada do monge contra a atitude de
Maria, taxada como um “ardil”, outra palavra que carrega uma multiplicidade de
significados, todos eles de teor pejorativo.
43 “Discurso oculto” é um conceito utilizado por James Scott (2013, 19-20), e nos ajuda,
nesta conclusão, a refletir um pouco mais sobre a trajetória desta família. Durante toda
a sua vida, Maria de Jesus e sua “geração” se apresentaram como pessoas
“indubitavelmente” escravas. Mas, na primeira oportunidade que teve, entrou na justiça
contra os seus senhores. Fica claro nos fragmentos do processo que possuímos que ela
tinha a clara consciência (ou construída mais tarde) que ela e sua família era herdeira
da suposta liberdade de sua mãe, usurpada de seu direito em decorrência do extravio de
sua (também suposta) carta. A veracidade destes fatos pouco importa. Mas acreditamos
que havia, sim, uma memória, um burburinho que foi resgatado décadas depois da tal
liberdade materna. Comportar-se todo este tempo como escravizada certamente se
enquadra naquilo que Scott chamou de “infrapolítica dos oprimidos”, que reúne um
sem-número de formas de insubordinação, incluindo a “dissimulação”. Segundo Scott,
"todos grupos criam, a partir da sua experiência de sofrimento, um ‘discurso oculto’ que
representa uma crítica do poder expressa nas costas dos dominadores”. Para a classe
senhorial, como a do abade cronista, havia entre os escravizados uma clara
“necessidade de enganar” (Scott, 2013, 27-29). Para nós, esta “arte de dissimulação” era
uma das estratégias sub-reptícias que foram utilizadas por todos os envolvidos no
processo independente do lado, de cima a baixo. No caso dos ditos subalternos, o uso
desse tipo de estratégia incomodava mais. Contudo, todos (senhores, escravos, libertos)
utilizaram-se da “astúcia” cotidiana para enganar o “outro”.
44 No caso envolvendo Maria de Jesus, quem dissimulava? O abade ou a escravizada?
Talvez Maria tenha realmente fraudado, com ajuda de alguém, o Livro de Notas,
aproveitando a má conservação dos documentos comprobatórios “de semelhante
qualidade de gente”. Esta suposta fraude pode inclusive ter enganado o primeiro
tabelião, ou ter a conivência dele, mas não resistiu a um exame mais apurado. Mas
como Maria de Jesus teria “obtido por meio de fraude ou ocultamento” uma certidão,
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assinada por um tabelião, a carta de liberdade de sua mãe? Que meios “fraudulentos”
ela conseguiu forjar para que de forma “oculta ou dissimulada” pudesse libertar toda a
sua família? Neste momento, a pergunta só pode ser respondida no campo das
especulações. Todavia, podemos pensar em alguns caminhos, já que a possibilidade de
“falsificação” (verdadeira ou suposta, não importa) de documentos por escravizados já
foi evidenciada pela historiografia (Silva 2017, 194-196). Muito também já foi dito sobre
como os herdeiros dos senhores falsificavam ou destruíam documentos, levando à
anulação da liberdade e ao retorno do liberto ao cativeiro (Nascimento 2012, 148). À
semelhança da “tramoia de Maria de Jesus”, escravos e libertos eram sempre
associados a “ardil” e “trapaça”. E, em alguns casos, as acusações eram de fato
verdadeiras (Nascimento 2012, 160-161). Por isso, em nosso estudo a fraude é
entendida como um “estratagema” construído a partir de experiências vividas,
“movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’[...] e no espaço por ele controlado”
(Certeau 1994, 101). Lembremos que muitos foram os casos em que escravizados e
forros sofreram com as ações sorrateiras e ilegais de seus (ex-)senhores. Lição bem
aprendida e apreendida pelos grupos subalternos.
45 Neste estudo, é inevitável a comparação com outro caso emblemático, apresentado de
forma brilhante por Rebecca Scott e Jean Hébrard (2012). O caso de Rosalie e sua
família nos ajuda a refletir sobre tramas envolvendo escravizados, justiça, resistência,
instituições e burocracia estatal. Após uma longa trajetória no contexto da Revolução
Haitiana, Rosalie parecia ser ciente, segundo os autores, “da importância de um
documento oficial”. Ela conseguiu, em São Domingos, que Michel Vincent (um francês
com o qual teve um relacionamento) “produzisse um documento de alforria”, que foi
levado para “ser recopiado por um funcionário francês em Santiago”. Mas tudo não
passava de uma farsa. E porque não dizer uma fraude, já que Rosalie já não era mais
escrava nessa época e Michel Vincent nunca fora seu proprietário. Mas faltava-lhe o
documento, indispensável em uma sociedade apegada à palavra escrita (Scott e
Hébrard 2012, 56-57). Admitindo, neste ponto, as possiblidades dos usos de
“fingimentos” e as complicações por trás de cada história aqui apresentada,
consideramos de grande valia pensar sobre as “tramoias” e, porque não, as fraudes,
como estratégias de resistência.
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Notas
1 Ver os dicionários Aurélio (https://www.dicio.com.br/tramoia-2/) e Michaelis
(https://michaelis.uol.com.br).
2 Sobre esses conflitos, ver Souza (2011, cap. 5).
3 Olinda era a sede administrativa da capitania de Pernambuco, onde foi fundado o mosteiro de
São Bento, entre 1586 e 1592. Mas os primeiros monges beneditinos chegaram à América
portuguesa em 1581 e se instalaram na cidade de Salvador (Bahia). Outros mosteiros foram
construídos nas capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraíba (Endres 1980, 49-55, 59-69).
4 Os mosteiros do Brasil estavam reunidos em uma “Província”, com sede em Salvador, mas
estavam subordinados ao abade geral da congregação, com sede em Tibães, Portugal (Endres
1980, 59-74).
5 Realizámos uma pesquisa nos fundos judiciais do Arquivo Nacional e do Arquivo Estadual da
Bahia (APEBE), mas, infelizmente, não conseguimos encontrar o processo original.
6 A distância entre Icó e Olinda é, atualmente, de aproximadamente 600 km.
7 Criado em 1605, este tribunal ficou subordinado à Casa da Suplicação. Foi a mais alta instância
judicial no Brasil colonial (Schwartz 1979, 45-54).
8 Arquivo do Mosteiro de São Bento de Olinda (AMSBO), Livro 161: Processos escravos (1788).
9 A questão transitou do Conselho Beneditino, Ouvidoria do Ceará, até o tribunal da Relação da
Bahia.
10 Sobre auxílio a cativos em suas ações na justiça, ver Almeida (2015) e Vellasco (2005).
11 Para uma discussão sobre Igreja e escravidão no mundo atlântico, ver Zeron e Dias (2017).
12 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Provisões, 20 a 23 de março de 1688.
13 Para uma discussão sobre a luta dos escravizados na justiça em outras partes da América, ver
Johnson (2007) e Scott e Hébrard (2012).
14 Este alvará foi aplicado exclusivamente ao Portugal metropolitano. Em 1773, outro alvará
extinguia gradualmente o estado de escravidão no Portugal continental. No entanto, só em 1869
aboliu-se a escravatura em todo o império português (Almeida 2020).
15 Esta lei fundamental do ordenamento jurídico português procurava auxiliar na adequação da
aplicabilidade das leis já existentes (Cabral 2010).
16 Regra de São Bento. Capítulos: 2. Como deve ser o abade; 5. Da obediência; 7. Da humildade.
Ver em http://www.osb.org.br/regra.html.
17 AMSBO, “Estados” (1712-1715), Livro 211, n. 2.
18 AMSBO, “Estados” (1700-1769), Livro 211, n. 2. “Estados” (1784-1786), Livro 213; “Estados”
(1842-1845), in Manuscritos (1952, 291-293).
19 “Livro dos Conselhos”, 18 de janeiro de 1809, in Manuscritos (1952, 244).
20 “Estados” (1817-1818), in Manuscritos (1952, 165-166).
21 AMSBO, “Capítulo Geral de 1829”, Livro 1829-1848. Exemplos de escravos vendidos por
serem considerados “incorrigíveis”: 13 de janeiro de 1794; 25 de fevereiro de 1813, 158; 30 de
março de 1814; 14 de maio de 1822, 169-170, in Manuscritos (1952).
22 Dar proteção ou abrigo a alguém, principalmente fugido.
23 “Livro dos Conselhos”, in Manuscritos (1952, 169-170); “Estados” (1842-1845), in Manuscritos
(1952, 283-293).
24 AMSBO, “Livro de Provimentos-1755”, Processos Escravos (1788), Livro 161. Neste Livro
encontramos os gastos com tecidos fornecidos aos escravizados; AMSBO, “Livro de Mordomia”
(1828-1835).
25 A assistência aos escravos aparece em quase todos os documentos do AMSBO: “Livro de
Provimentos”, 1755; “Livro dos Conselhos”; “Estados” do século XVIII e XIX.
26 “Livro dos Conselhos” (1793-1875), in Manuscritos (1952, passim), onde se encontram
inúmeras referências a estes temas (casamento e alforria).
https://journals.openedition.org/lerhistoria/10745#article-10745 16/17
14/12/2022 11:22 A ‘tramoia’ de Maria de Jesus: paternalismo, justiça e resistência no Brasil escravista no século XVIII
27 AMSBO, “Livro de Provimentos”, 1755, “Processos Escravos-1788”, Livro 161; “Livro de
Mordomia” (1828-1835).
28 Várias passagens dos documentos consultados: Livro de Tombo; Crônica do Mosteiro de São
Bento; Estados.
29 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
30 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
31 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
32 AMSBO, “Processos Escravos-1788”, Livro 161.
33 AHU/PE, Cx. 155, D. 11160 e Cx. 171, D. 12053.
Referência eletrónica
Robson Pedrosa Costa e Suely Creusa Cordeiro de Almeida, «A ‘tramoia’ de Maria de Jesus:
paternalismo, justiça e resistência no Brasil escravista no século XVIII», Ler História [Online],
81 | 2022, posto online no dia 21 setembro 2022, consultado no dia 13 dezembro 2022. URL:
http://journals.openedition.org/lerhistoria/10745; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.10745
Autores
Robson Pedrosa Costa
Instituto Federal de Pernambuco, Campus Recife, Brasil
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Direitos de autor
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https://journals.openedition.org/lerhistoria/10745#article-10745 17/17