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Ensaio escrito da Unidade Curricular de Textualidades

Pontos 3 e 4 – Texto e a cultura / Texto, poder e sujeitos

Docente: Danielle Miranda

Discente: Andreia Costa Dias

A semiose no cinema de Agnès Varda

Agnès Varda

Agnès Varda, ao longo dos seus vários trabalhos como realizadora – e também como
fotógrafa –, oferece uma visão particular sobre temas como os Panteras Negras, os
murais de Los Angeles, as pessoas em condições de sem abrigo, sobre o seu marido
Jacques Demy, sobre o movimento feminista e até sobre a rua (e os seus respetivos
habitantes) onde viveu durante mais de quarenta anos.

O cinema de Agnès Varda é uma máquina de transformação qualitativa de perceções,


dado que, através do seu olhar etnográfico e gentil, oferece ao espectador uma nova
maneira, caracterizada pelo embelezamento, de perspetivar algo. A forma terna e
afável como Varda capta as pessoas, mostrando-lhes como são maiores do que
imaginam, não passa indiferente.

Considerando o olhar intersubjetivo da realizadora da Nouvelle Vague, depreendo que


o seu cinema causa no espectador, evidentemente, um processo de semiose, pois, a
partir do momento em que assistimos Daguerréotypes (1975), a nossa rua ganha
também outro sentido, assim como os comerciantes que, eventualmente, possam
existir na mesma; quando se “mergulha” no cinema de Varda, as pessoas ganham
outra dimensão. Também as recordações do passado são convocadas no seu cinema,
adquirindo estas um novo sentido, que é, principalmente, afetivo.

Para além do embelezamento evidente, Agnès Varda torna claro, através dos seus
documentários, o seu lado ativista – tome-se como exemplo Salut les Cubains (1963)
que, em 30 minutos, presta uma homenagem à Revolução cubana; ou L’une chante,
l’autre pas (1977), onde é abordado o movimento pro-choice em França. Varda não
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coloca ninguém “à beira”, o seu cinema é de todos, não sendo possível,
aparentemente, expelir determinados sistemas para regiões periféricas. A realizadora
dá especial atenção aos outros, quase como se o poliglotismo fosse uma regra dos
seus filmes, já que, numa análise geral da sua filmografia, pode-se afirmar que não
existem uma centralização de uma determinada cultura.

O cinema de Varda como uma máquina de produção de novos sentidos

Como Irene Machado (2010) destaca, “o mecanismo elementar de produção da


semiose é a transformação da informação percebida em informação codificada, isto é,
em texto” e é evidente que o cinema, tal como outras formas de arte, não passa ao
lado desta metamorfose:

Artistic representations, if they are good enough and powerful enough, can catalyse.
They can impact our worldview, by changing how something is conceptualized and
presenting it in the context of an actual life, which abstract thinking on its own cannot
do. (Read, 2018)

Nos filmes de Agnès Varda, o espectador é deslocado para uma dimensão que, à
partida, é diferente da sua, pois a realizadora – nunca é demais relembrar – dá especial
atenção às pessoas e aos objetos, concedendo-lhes uma importância única e singular.
Em Les glaneurs et la glaneuse (2000), quando a própria Varda se insere no grupo dos
“respigadores” – ainda que a sua busca seja diferente, não procurando por restos de
comida, mas sim por imagens e arquivos –, produz sentido: ao observar os vegetais
podres nos campos e os detritos nas ruas, parte para a reflexão sobre o seu
envelhecimento e sobre a sua eventual morte. A comparação entre os vegetais e o seu
envelhecimento é feita através de close-ups das suas mãos, que são comparadas com
uma batata podre; de planos do seu cabelo grisalho, assemelhando-se a repolhos após
a colheita. Agnès também codifica a visualização de um relógio sem ponteiros,
comparando-se com o mesmo, já que, na sua perspetiva, ambos estão incapacitados
de ver o tempo passar. Através da abordagem deste tema, a realizadora também
confere importância aos “sinais físicos da idade” que a sociedade escolhe difamar e
esconder. Nas suas películas, Agnès cede a um “sistema modelizante criado para
significar” (Machado, 2010), sendo possível que as “coisas significantes constituam
uma realidade cultural e projetem a sua condição de texto da cultura” (Machado,

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2010) e é nesta medida que o seu cinema é exímio, dado que propõe “a leitura dos
encadeamentos de seus interpretantes” (Machado, 2010).

A cinematografia da realizadora belga permite ao espectador criar novos significados a


partir daquilo que vê na tela – talvez, para determinado espectador, após ver Les
glaneurs et la glaneuse (2000), uma batata deixe de representar um mero vegetal, tal
como acontece para Agnès – , pelo que se pode afirmar que a sua arte, para além de
cumprir a função comunicativa, dispõe da função criativa: “Every system which fulfils
the entire range of semiotic possibilities not only transmits ready made messages but
also serves as a generator of new ones.” (Lotman, 1996). No que diz respeito à função
de memória da cultura, parece-me que é bastante óbvia a sua realização, e este ensaio
é uma prova disso mesmo. Os filmes realizados e dirigidos por Agnès Varda não
terminam verdadeiramente, pelo contrário, talvez o verdadeiro começo dos mesmos
seja após a sua visualização, visto que, através do seu olhar afável, ativista, político e
crítico, o espectador assume a responsabilidade de contemplar o mundo com uma
visão mais descortinada.

A inclusão do “bárbaro” no cinema de Varda

Ao longo deste ensaio, é inteligível que os filmes de Varda têm uma dimensão de
embelezamento de ações do quotidiano, e até de certas atividades, como as dos
respigadores. No entanto, apesar da romantização da sua lente, Agnès Varda não deixa
de ser crítica, até porque, num panorama geral, a trajetória cinematográfica da
realizadora destaca-se também pela defesa de causas políticas de vertentes variadas,
como o feminismo (visível, entre outros trabalhos, em Réponse de femmes: Notre
corps, notre sexe, realizado em 1975), ou a busca pela paz e o movimento hippie
(destacado em Lions Love (... and Lies), que data de 1969).

Mesmo em Les glaneurs et la glaneuse (2000), Varda procura humanizar os grupos de


respigadores, enfatizando quem respiga, assim como aquilo que respiga, construindo
uma fronteira entre aqueles que respigam porque precisam e aqueles que o fazem por
outro motivo, como por tradição e até pela arte. A realizadora realça precisamente as
dificuldades terríveis daqueles que necessitam de respigar para (sobre)viver,
denunciando os desperdícios de governos e empresas, assim como as penalidades

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judiciais que são aplicadas – injustamente – a quem respiga. Deste modo, a obra de
Varda é uma coleção de vozes e de perspetivas diferentes, o que torna o seu cinema
radical, algo que, aliás, ela sempre desejou, como afirma na sua última entrevista: “I
fought for radical cinema all my life.” (Varda, 2018)

Tendo em conta os últimos aspetos enunciados, compreende-se que o cinema de


Varda não se centralizava apenas no núcleo, nunca tentando fugir da periferia. Lotman
afirma que, em relação à construção do bárbaro na dinâmica cultural social, o bárbaro

É projetado além das fronteiras da cultura, tornando-se um ária, uma «irregularidade»


do sistema da cultura, um sujeito que não se enquadra nas expectativas sociais e que,
portanto, deve ser confinado. (Lotman, 1989)

Mas não é o que acontece no cinema de Varda que, importa relembrar, destaca as
pessoas que são esquecidas e invisíveis na sociedade, os “bárbaros”. Em Sans Toit Ni
Loi (1985), é retratada a realidade dura de uma mulher que foi abandonada pelo
sistema e cuja única solução que lhe resta é tentar sobreviver – mas acaba por morrer,
abandonada numa vala ao lado de uma estrada. O mais impactante é que esta é uma
história real, o que comprova que Agnès não ignora aqueles que, à partida, são
marcados pela vulnerabilidade, por “transgredirem as normas de comportamento”. É
interessante ver que, no filme, nunca é Mona (a mulher em condição de sem abrigo)
que conta a sua história, mas sim os outros – não existe espaço para ela, e esta é uma
crítica audaz por parte da realizadora. Aqui, Mona, representa um medo para a
sociedade, por não se inserir nos regulamentos codificados pelo mundo ao seu redor.

Considerações finais

Para finalizar este ensaio, o cinema de Agnès Varda é brilhante, no sentido em que
permite ao seu espectador o processo de semiose, recheando-o de possibilidades de
criação de novos sentidos de imagens ou objetos aparentemente banais e
pertencentes ao quotidiano (recorde-se o exemplo da batata que remete para a
temática do envelhecimento, por exemplo). Aliás, torna-se difícil não construir
descrições e interpretações, isto é, a “segunda natureza”, uma vez que me parece
possível afirmar que as películas de Varda correspondem, precisamente, a uma
multiplicidade de naturezas.

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Importa sublinhar que, para além do aspeto supramencionado, Agnès Varda, através
da sua filmografia, tem a capacidade de conduzir informação da periferia para o núcleo
– recorde-se o exemplo da personagem Mona e até dos respigadores em Les glaneurs
et la glaneuse (2000) que, através da lente de Varda, são expostos e têm um lugar de
destaque, estando a atenção virada para eles, o que não acontece usualmente, dada a
sua condição de “vulnerabilidade” e de “invisibilidade” aos olhos da sociedade, que os
encara como uma “falha” no que diz respeito ao regulamento comportamental.

Referências bibliográficas

Bonner, V. (2007). Beautiful Trash: Agnès Varda’s Les Glaneurs et la glaneuse.


Disponível a partir de: https://www.sensesofcinema.com/2007/feature-
articles/glaneurs-et-glaneuse/ [Consultado a 14/12/2021]

Machado, I. (2010). Cultura em campo semiótico. Revista USP, (86), 157-166.


https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i86p157-166

Lotman, Y. M. (1996). La Semiosfera: Semiótica de la cultura y del texto. Ediciones


Cátedra: Madrid.

Lotman Y. M. (1990). Universe of the mind. A Semiotic Theory of Culture (Ann


Shukman, trad.). Indiana University Press. Bloomington and Indianapolis (pp. 11-19)

Read, R. (2018). A Film-Philosophy of Ecology and Enlightenment.

Varda, A. (2019). Agnès Varda's last interview: 'I fought for radical cinema all my life'.
The Guardian. Disponível a partir de:
https://www.theguardian.com/film/2019/mar/29/agnes-varda-last-interview-i-fought-
for-radical-cinema-all-my-life [Consultado a 16/12/2021]

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