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arquitetura (1)
Marcelo Puppi
Nosso objetivo aqui não é desenvolver um panorama completo dessa evolução, que
será objeto de um estudo mais longo, mas apresentar o estado atual da pesquisa sobre a
arquitetura do século XIX e salientar o potencial crítico e teórico dos métodos e dos resultados
dessa pesquisa. De modo mais preciso, nosso objetivo é, primeiro, mostrar a emergência de
uma nova história cultural da arquitetura do século XIX e, segundo, mostrar que essa nova
história está contribuindo para a redescoberta da dimensão imaginária da arquitetura,
redescoberta por sua vez capaz de modificar a própria concepção e fundamentação teórica da
arquitetura e de originar, a curto e a médio prazo, novas práticas arquiteturais. O
reconhecimento dessa nova história do século XIX e de sua contribuição para a compreensão
da própria arquitetura contemporânea pode também contribuir, por contraste, para evidenciar o
quanto os especialistas ainda são tributários de uma imagem distorcida e formalista do
historicismo, tema que será desenvolvido no estudo mais longo sobre a evolução da
historiografia do período.
Do ponto de vista metodológico, foi ficando cada vez mais evidente a necessidade de
se abordar o objeto de forma interdisciplinar, isto é, levando em consideração as demais áreas
da conhecimento e estabelecendo as conexões entre o pensamento arquitetural e os
esquemas cognitivos da época. A busca da interdisciplinaridade conduziu por sua vez à
relativização dos métodos particulares da história da arte e à aproximação aos métodos mais
complexos da história cultural, que é por definição uma disciplina interdisciplinar. Enquanto nas
décadas de 70 e 80 a arquitetura do século XIX fora incorporada à história da arte, na década
de 90 os pesquisadores propõem-se a inseri-la no território mais vasto da história cultural,
dando um segundo e decisivo passo para o aprofundamento de sua compreensão. Longe de
ser um simples efeito de moda intelectual, essa inserção e o deslocamento metodológico que
ela implica foram fruto do próprio alargamento dos problemas teóricos da pesquisa e
terminaram por modificar significativamente o conhecimento sobre o período.
Tudo somado, os três novos objetos revelam um século XIX até então completamente
desconhecido dos historiadores da arquitetura. Ao invés de um intervalo irrelevante, formalista
e acadêmico na história da arquitetura, surge um período dinâmico e complexo, voltado à
“contínua experimentação sobre a própria natureza da arquitetura, sua capacidade de
representar e de comunicar, e mesmo sua capacidade de afetar e modelar o comportamento”
(10). A nova história cultural da arquitetura, cuja emergência, vimos, é fruto da complexidade
aos poucos descoberta do século XIX, tornou-se um campo de prova da renovação
metodológica da pesquisa em história da arquitetura, e apresenta-se hoje como um dos
canteiros mais produtivos e fecundos dessa pesquisa (11). Não é exagero dizer que os estudos
sobre o século XIX são hoje um modelo metodológico para a prática da história da arquitetura,
e particularmente no que concerne a pesquisa sobre a arquitetura moderna e contemporânea.
E mais ainda, esses estudos podem também contribuir para a formulação da nova concepção
da arquitetura que está emergindo no início do século XXI, após os sinais cada vez mais
evidentes das insuficiências dos ideais moderno e pós-moderno.
A nova história cultural do século XIX mostra justamente que a nova concepção
historicista da arquitetura fundamentava-se na possibilidade e na capacidade da arquitetura de
interagir com o imaginário coletivo. Na perspectiva do século XIX, a interação profunda da
arquitetura com a cultura de seu tempo pressupunha que sua própria teoria se elevasse ao
nível dos ideais e dos esquemas cognitivos elaborados pelas ciências mais avançadas de seu
tempo, naturais e históricas. Isso não significava entretanto que a nova arquitetura deveria
transformar-se ela mesma em uma ciência, mas, ao contrário, que essa era uma condição
essencial para que ela pudesse contribuir segundo sua natureza artística para o florescimento
do potencial da sociedade moderna. Alimentando-se dos modelos de interpretação do real
elaboradas pela ciência contemporânea, a arte e a arquitetura em particular tornavam-se, aos
olhos do historicismo, capazes de ultrapassar os limites da própria razão para atingir, através
da imaginação estética, um novo patamar da consciência da natureza e da sociedade, isto é,
uma consciência a um só tempo racional e intuitiva do mundo, uma nova consciência que seria
finalmente capaz de transformar, aperfeiçoando-a, a sociedade.
1 Este texto constitui a parte final de um artigo mais longo e cuja publicação deve ainda demorar. Como a
parte final do artigo é relativamente independente e trata de questões atuais que interessam tanto à
metodologia de pesquisa em história da arquitetura quanto ao debate sobre os fundamentos teóricos da
disciplina, pode ser útil publicá-la separadamente.
2 R. Middleton e D. Watkin. Neoclassical and 19th Century Architecture. Londres, Academy Editions,
1980. A obra foi publicada pela primeira vez na tradução italiana, com o título Architettura dell’Ottocento,
Milão, Electa, 1977. Traduzido para o francês com o título Architecture Moderne. Du néo-classicisme au
néo-gothique. 1750-1870, Paris, Berger-Levraut, 1983.
3 D. Van Zanten. Designing Paris. The Architecture of Duban, Labrouste, Duc and Vaudoyer. Cambridge
(Mass.), MIT Press, 1987.
4Para a definição do método e dos problemas da história cultural, ver R. Chartier, Au Bord de la Falaise.
L’Histoire entre Certitudes et Inquiétude, Paris, Albin Michel, 1998, e particularmente o capítulo “Le monde
comme représentation”, pp. 67-86.5
6 Sobre a relação entre arquitetura e ciência no século XIX, ver C. Van Eck, Organicism in Nineteenth-
Century Architecture, Amsterdam, Architectura & Natura Press, 1994; L. Baridon, L’Imaginaire Scientifique
de Viollet-le-Duc, Paris, L’Harmattan/U.S.H.S., 1996; M. Bressani, Science, Histoire et Archéologie.
Sources et Généalogie de la Pensée Organiciste de Viollet-le-Duc, Tese de Doutorado, Universidade de
Paris-Sorbonne/Paris IV, 1997.
7 Sobre a relação entre arquitetura e teoria histórica, e também para a nova abordagem do historicismo,
ver B. Bergdoll, Léon Vaudoyer. Historicism in the Age of Industry, Nova York, The Architectural History
Foundation; Cambridge (Mass.)/Londres, MIT Press, 1994; M. Bressani, Science, Histoire et Archéologie.
Sources et Généalogie de la Pensée Organiciste de Viollet-le-Duc, op. cit.; Coletivo, L’Architecture, les
Sciences et la Culture de l’Histoire au XIXe Siècle, op. cit.; R. Dubbini (org), Henri Labrouste 1801-1875,
Milão, Electa, 2002.
8 Sobre a dimensão utópica das vanguardas, ver F. Choay, O Urbanismo. Utopias e Realidades, São
Paulo, Perspectiva, 1979; e M. Tafuri, Projecto e Utopia. Arquitectura e Desenvolvimento do Capitalismo,
Lisboa, Editorial Presença, 1985.
9 Sobre a influência do pensamento utópico na teoria arquitetural do século XIX ver M. Saboya, Presse et
Architecture au XIXe Siècle. César Daly et la Revue Générale de l’Architecture et des Travaux Publics,
Paris, Picard, 1991; B. Bergdoll, Léon Vaudoyer. Historicism in the Age of Industry, op. cit.; e
principalmente A. Picon, Les Saint-Simoniens. Raison, Imaginaire et Utopie, Paris, Belin, 2002, pp. 223-
296. A tese de doutoramento do autor, em fase de conclusão, é também uma contribuição ao estudo da
dimensão utópica da arquitetura no século XIX.
10 B. Bergdoll, European Architecture. 1750-1890, Oxford/Nova York, Oxford University Press, 2000, p. 3.
11 Sobre o estado dos problemas e métodos de pesquisa em arquitetura, ver A. Picon, “Architecture,
sciences et techniques. Problématiques et méthodes”, Les Cahiers de la Recherche Architecturale et
Urbaine, nos 9-10, janeiro de 2000, pp. 151-160. No Brasil, por enquanto apenas a história urbana
beneficiou-se diretamente da renovação metodológica na pesquisa sobre o século XIX. Ver Heliana A.
Salgueiro, La Casaque d’Arlequin. Belo Horizonte, une Capitale Éclectique au 19e Siècle, Paris, Éditions
de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1997, texto ainda não traduzido para o português.