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Notas Marginais

Herbert Daniel
Excerto do ensaio “Anjos do Sexo” de 1983.

Poder-se-ia escrever, como já é um hábito apenas as formas da repressão e daí as “ma-


comum, uma história da homossexualidade nifestações” dessa entidade material?
que começasse numa infância feliz, ingênua Ressalta imediatamente nesta perseguição
e pagã da humanidade, de “sexo natural”, histórica que a repressão se dirige
onde os homossexuais tinham relativa liber diferentemente a objetos diferentes.
dade. Esta pacífica manhã resvalaria no cre- A não ser que se suponha uma homossexua-
púsculo medieval, sob o manto judaico-cris- lidade, supra histórica, que não se “revela-
tão (“com varão não te deitarás, ria” em sua “verdade própria” por causa das
abominável é”, escrevia Moisés, que só formas da repressão, não encontraríamos
escrevia para os homens.) um “fio explicativo” na nossa história acima.
Sob a espada dos severos anjos de Sodoma, Hipótese facilmente descartável.
conheceram a fogueira inquisitorial sodomi- Primeiro, porque considerar que a
tas e bruxas zoófila, cabras e bodes. homossexualidade (ou a sexualidade em
O capitalismo não viria melhorar a vida de geral) tenha uma “verdade” especial que a
bi-chos e bichas. Pelo contrário. De sujeito consciência só revela no avanço da ciência é
do direito canônico à questão médico-legal, inventar uma “verdade física” (corporal),
o crime, que encontrara a sua asserção na acima da história, escondida nas trevas da
fé, passa a ter sua verificação na ciência. A ignorância, esperando as luzes do saber.
fé não depõe as suas armas e a ciência vem Segundo, porque não é a maior ou menor
ombreá-la no mesmo combate. A repressão que define o aparecimento e
psiquiatria revalida a moral, a razão ilumina desenvolvimento da “minoria
a revelação bíblica. Do segredo do homossexual”. Sociedade onde não há
consultório partia a fundamentação da Lei e repressão ao homossexualismo, como é o
a justificação da ação policial. caso da Grécia clássica ou de certas
Juntos, médicos, padre, juiz e policial con- sociedades “primitivas”, deveriam ver o
certavam uma repressão sem tréguas, que aparecimento de uma ou várias
impunha a ordem sexual burguesa, racional, organizações sociais homossexuais. E isto
autoritária. O homossexual é dissecado, pe- não acontece. Embora não haja interdições
sado e medido, sistematizado num conjunto neste sentido, não se diferencia um
de perversões. A sexualidade era modelada, comportamento específico e/ou
estátua familiar sagrada, com o cisel da exclusivamente homossexual, mas o desejo
terapêutica e o martelo da justiça. e o ato homossexual aparecem
A repressão aumenta, aperfeiçoa-se, numa “dissolvidos” e integrados no conjunto da
história que vai da medicina à política. sexualidade. Há diferenças sexuais nítidas e
Como o resto da sexualidade, a estruturas sociais próprias, separando
homossexualidade, a partir de uma época homens e mulheres, mas nenhuma
relativamente recente, torna-se cuidado da evidência de regulamentação de
revolução. E a repressão toma novas “minorias”. Para outras qualidade, como as
formas, nas promessas de paraísos sociais diferenças de idade, existem sempre
do gozo perfeito, onde o homossexualismo organizações ou estruturas sociais que as
se extirpa (se se considera que é um vício da regulamentam e integram. Por que não os
decadência) ou terá direitos à cidadania, homossexuais, se fossem uma diferença
como minoria social, “integrada”, “aceita”. sexual? A tolerância às minorias faria
Nossa história esbarra numa enorme dificul- dissolver a diferença?
dade: saber do estamos, além da descrição Neste caso, evidencia-se que a
da repressão. O que é o objeto dessa repres- homossexualidade não é uma qualificação
são? Que “homossexualidade” é essa? Um de certos indivíduos (como o é a diferença
entidade própria da sexualidade, que atra- de idade).
vessaria as épocas, como qualidade inata de
certos indivíduos? O que mudaria seriam
Não sendo um comportamento sexual que meados do século XIX, junto a outras
caracterize alguns indivíduos, é, em certas (homofilia, inversão, hermafroditismo
sociedades, uma variante socialmente psíquicos, etc). Nunca se encontrou, porém,
definida dos seres humanos. um termo que não levantasse objeções.
Esta é uma primeira hipótese a ser guar- Muitas designações, para indicar alguma
dada: a homossexualidade não pode ser coisa que permanecia obscura. Sempre
considerada uma “diferença sexual” (uma sobram palavras, quando estão ausentes as
qualidade sexual), mas é idéias, Marx já acentuou.
fundamentalmente um diferença social, A terminologia caracteriza, pincipalmente,
uma variante do comportamento sexual, um ato sexual. O ato não nos informa
estabelecida como critério para definir uma diretamente a estrutura de um “desejo
categoria social (o homossexual). homossexual”. Entretanto, quando se diz
Mas, ainda assim, outras dificuldades per- “homossexualidade” – seja: certa
manecem na nossa história da repressão. “composição” da sexualidade – definimos o
Como explicar que é sob o capitalismo, exa- desejo a partir do ato ou relação sexual. As
tamente, que a “diferença sexual” se crista- imprecisões são flagrantes:
liza, fazendo emergir uma “minoria” onde a a) O objeto do desejo não é sempre o ob-
homossexualidade vai erigir-se num esta- jeto de realização do ato. Por exemplo,
tuto? tanto a masturbação, como zoofilia, ou
Seria a repressão mais eficaz, mais violenta, homossexualidade podem ser variantes ou
noutras sociedades? Os fatos dizem que substitutivos de um ato genital e
não. Sob o capitalismo a repressão não só é “heterossexual”. No caso da masturbação
mais estendida, como mais específica e ins- obrigatória do adolescente, da zoo-filia do
trumentalizada. E isto nos mostra uma curi- tropeiro com a sua mula, do ho-
osa contradição. A violenta e implacável mossexualismo nas prisões existe uma
perseguição não apenas se mostra substituição do objeto erótico ausente. Mas
absolutamente inútil, como resulta em nem sempre é a substituição que leva ao
objetivos opostos. Especialista em ato.
genocídios, em violentações ecológicas b) Ao definir a homossexualidade como
monstruosas, o capitalismo não consegue relação sexual entre indivíduos do “mesmo
esmagar o desejo homossexual. E ainda: sexo”, estabelece-se, de fato, uma definição
não consegue impedir a constituição de extremamente precária do sexo
uma categoria social organizada. Pior, o (considerando igual à zona erógena,
homossexual deixa de ser uma das formas genitalidade). É evidente que na relação
de desejo, para ser um grupamento a ser genital heterossexual pode-se encontrar a
preservado. impulsão que leva o indivíduo a buscar o seu
Essa “contradição” nos obriga a levantar ou- HOMOSSEXO no parceiro (por exemplo, o
tra hipótese. A repressão não aparece e se homem que busca na mulher um outro
desenvolve para oprimir uma casta. A ação “homem” enquanto papel a ser
do poder consiste exatamente em definir desempenhado na relação).
uma raça. Isto é, postula os direitos a serem c) Pode ser perigosamente mecânico defi-
reinvindicados pela minoria, na medida em nir o desejo a partir do objeto, ou da forma
que inventa, determina, institucionaliza um de realização do ato. Isto pode levar a fazer
setor homogêneo. A criação do grupo ou do desejo uma espécie de interpretação
gueto não decorre de diferenças psíquica da necessidade. E confundir a
preexistentes nos indivíduos, que o poder satisfação da necessidade com a satisfação
regula e controla. No caso de homossexuais do desejo. Assim como a água satisfaz a
é a própria criação da diferença que é a sede, o ato homossexual satisfaria a
esfera de ação própria do poder. homossexualidade. Como se pode
*** encontrar as explicações fisiológicas da
sede, encontra-se a razão fisiológica
A terminologia técnica – homossexual, ho- (médica) da homossexualidade.
mossexualismo, homossexualidade – conti-
tui—se de ambiguidades. As palavras foram
postas em curso pela psiquiatria nos ***
Aceitando a homossexualidade como quali- Será sempre um ato de vontade que fará o
dade das “relações sexuais entre dois indiví- indivíduo viver de diversas maneiras o seu
duos do mesmo sexo”, podemos generalizar desejo. Sua consciência se desenvolve se-
de forma ampla, concluindo naturalmente gundo opções sucessivas que lhe serão
que todas as relações “entre indivíduos do apresentadas.
mesmo sexo são homossexuais”, em maior Cada um solucionada de forma própria as
ou menor grau. Como explicação, isto não questões da sua sexualidade. O desejo ho-
nos leva muito longe. A não ser concluir que mossexual não se apresenta como coisa, ob-
todas as relações entre indivíduos tem um jeto exterior ao indivíduo e à sua história
nítido conteúdo sexual. O que é apenas uma pessoal: ele é criado e desenvolvido num
passável banalidade. jogo de conflitos que inventam, que postu-
O desejo homossexual, o desejo que tem lam e estimulam esse desejo. Esta é a esfera
por objeto um indivíduo de mesma de ação do poder.
conformação corporal, é uma presença Não é uma ação linear. Como movimento
constante na sexualidade. Se contraditório, apresenta rupturas, brechas,
caracterizarmos a sexualidade como um instantes. Pode ser contraposta pela ação
processo, a homossexualidade corresponde duma consciência (política). O indivíduo não
a momentos desse processo, mas não é nem é meramente um jogueta nas mãos do po-
o específico, nem um modo dele. der: o que lhe permite escapar de um jogo
O desejo homossexual (tanto quanto o de- cego (um destino) onde a história se escreve
sejo heterossexual) não caracteriza nem o fora e acima do indivíduo.
conjunto do desejo, nem uma “entidade” O desejo homossexual apresenta, para cada
do desejo. Nem caracteriza uma estrutura um, um enigma: na sua história pessoal ele
do indivíduo, nem qualidade imanente será resolvido segundo opções mais ou me-
dessa pessoa. nos conscientes. Estas opções envolvem
Se falarmos agora da forma como é vivido uma definição diante dos mecanismos do
sob a civilização capitalista vemos um poder: são, de fato, opções políticas.
desejo homossexual ser transformado num Durante a vida inteira a sexualidade imporá
modo da sexualidade. opções políticas ao indivíduo. Opções que

*** podem leva-lo a viver de forma mais ou me-


nos conflituosa os vários instantes da sexua-
Pode-se dizer que “ser homossexual” é um lidade.
opção. Tanto quanto ser “heterossexual” ou Entre o desejo (campo das ações – repressi-
“homossexual”. vas, mas não só – do poder) e a vontade
Como compreender essa opção homosse- (campo de opções – conscientes, mas não
xual? só) há todo um mecanismo político que ca-
Uma opção é um ato de vontade: “ser ho- racteriza o que se chamará homossexuali-
mossexual” é um ato de vontade. O que não dade. UM PROBLEMA POLÍTICO.
significa que um homossexual tenha “esco- Nesta política (da perversão em geral) vive-
lhas” entre desejar ou não. Neste ato de se um labirinto. Escapar da dialética própria
vontade homossexual não há nada de “livre do poder é uma questão não só de política,
arbítrio”, de vontade nascida duma consci- mas de política revolucionária. Porque
ência. entre as inúmeras opções possíveis não se
Primeiro, essa “vontade” é determinada por exclui, de forma nenhuma, opções
uma história pessoal, um desenvolvimento reacionárias, sob formas de rebeldias
particular do indivíduo. A marginalizantes.
homossexualidade resulta do jogo de forças Ser homossexual não se limita aos campos
que o próprio indivíduo não controla, que do poder. Inscreve-se também no querer.
não dependem da sua consciência, nem da Isto nos leva a um abordagem simples, po-
sua vontade consciente – que entra nesta rém globalizante: a homossexualidade é
história como uma das forças em jogo, mas uma forma de viver o desejo em geral.
não a força determinante. Da mesma forma A homossexualidade não se fecha numa de-
como, noutros, se apresenta a finição, nem mesmo pode ser reconhecida
heterossexualidade. como objeto definível. É simplesmente uma
forma de viver a sexualidade.
Portanto, só há uma “definição” possível: caráter repressivo e autoritário caracterís-
homossexual é quem se define como tal. tico. Quando este preconceito toma a forma
Inevitavelmente só esta autodefinição de um discurso “de esquerda”, apresenta-se
poderá englobar todas as questões que como uma veiculação do totalitarismo,
levanta a homossexualidade: o fato de estar usando a terminologia da revolução para es-
inscrita numa história pessoal, que implica vaziar todas as revoluções.
própria idealização do indivíduo de si
mesmo, por um lado, e as tensões sociais
que estão presentes, por outro lado. Só este ***
critério permite situar as complexas Constatando que a homossexualidade “não
relações políticas envolvidas entre o desejo é explicável” estamos afirmando que qual-
e a vontade homossexual. Só assim se quer “teorização” sobre a sexualidade é
especifica e se determina a opção. uma forma de vivê-la. Sempre será muito
Por ser um critério autocentrado, nem por mais do que uma “análise”: será uma
isto é um critério subjetivo. Porque a postura.
homossexualidade, enquanto desejo e
vontade, é objetiva, isto é, real. É
***
exatamente a autodefinição que expressa O mais importante é que a questão seja
essa realidade, permitindo determinar os apresentada de tal forma que todos, todos
conflitos da sexualidade, as adequações da nós, nós víssemos diante da nossa própria
opção no quadro desses conflitos, etc., sem (homo)sexualidade, dos nossos preconcei-
querer descrever um “modelo”, uma “coisa- tos. Em primeiro lugar, o sexo não é uma
homossexualidade”, contra a qual se discussão abstrata, mas uma discussão
chocaria a vontade (moral) individual. política, pois implica um certa visão de nós
Daí que não interessa nenhuma mesmos e do mundo. Em segundo lugar, o
“explicação” e nem nunca poderá haver contra-preconceito, como forma de viver a
uma “explicação” para a homossexualidade. própria homossexualidade, torna-se mais
Simplesmente não é possível “explica-la”. É agressivo quanto maior é o medo do
preciso vivê-la. próprio sexo. Em terceiro lugar, além do
O que é então o preconceito? Será funda- preconceito e do contra-preconceito, há o
mentalmente uma forma preconceituosa preconceito de ter preconceito: o que faz
de viver a própria homossexualidade. com que a maioria das pessoas, que
Essa forma conflituosa não apresenta imaginam terem superado os preconceitos,
apenas problemas individuais. Ela cor- acredite que saiba tudo so-bre a
responde, em sua essência, a uma posição homossexualidade e tenda a “aceitar” o
política profundamente reacionária: uma homossexual (alheio).
aceitação da sexualidade burguesa que im-
plica um aceitação (ou supervalorização) do
Para mim, justificar, aceitar, explicar, pessoa que se define enquanto certo
recusar ou abominar a homossexualidade é padrão social específico – nunca existiu.
o problema de quem justifica, aceita, Noutras sociedades, existia sodomia, atos
recusa, abomina, etc. São atitude, no fundo, “contra-natura”, atos sexuais variantes,
idênticas, pois se toma uma posição em re- atitudes diversas de pessoas que não
lação a alguma coisa – a homossexualidade tinham nenhuma “especialização sexual”,
– exterior a si mesmo. Qualquer dessas pos- que poderiam (ou não) ser punidas,
turas diante da homossexualidade faz do segundo as normas morais vigentes. A
homossexual um ente diferente, uma repressão não se dirigia a um grupo, nem a
pessoa à parte no grupo humano, faz dos alguns seres especi-ais, mas duma forma
homossexuais uma “minoria”. generalizada condenava um ato possível de

*** ser realizado por todos, indistintamente;


+ a minoria é invenção própria do capita-
Ora, a questão é certamente esta: a repres- lismo, na repressão que ele exerce sobre a
são ao homossexualismo, sob o capitalismo, sexualidade de todos. O capitalismo é mais
consiste em fazer dos homossexuais uma sofisticado, é claro. Não reprime um ato.
minoria dentro da sociedade, um grupo fe- Força o responsável pelo ato a se tornar
chado dentro de um gueto. Explico melhor uma ator completo. Já não é mais um mero
isto: criminoso, mas uma entidade completa, um
+ a homossexualidade, enquanto “pulsão ser humano diferente de todos os outros,
homossexual”, certa pulsão que dirige o de- que tem uma fisiologia, uma psicologia e
sejo sexual para alguém supostamente do uma realidade humana diferente do
mesmo sexo, existe em todos os seres hu- normal. Assim, ao querer que o
manos indistintamente, em todas as épocas homossexual seja esse “diferente”, forja,
históricas, em todos os momentos da vida através do complexo mecanismo social de
sexual de uma pessoa; modelação sexual, o “homossexual”
+ cada sociedade trata diferentemente as enquanto uma diferença social, uma
várias pulsões sexuais, levando de uma verdadeira subcultura;
forma ou de outra à constituição de uma se- + a “maioria normal” é aquela que consegue
xualidade considerada “normal” (padrão), abafar o seu desejo homossexual, que con-
reprimindo ou “adaptando” as outras pul- segue, de um modo qualquer, realizar sua
sões sexuais da forma mais conveniente pulsões homossexuais sublimando-as,
àquele meio social; recal-cando-as, ou fazendo delas o que
+ a homossexualidade numa dada chamamos de “preconceito”: o ódio contra
sociedade pode ou não ser reprimida, isto é, o homosse-xual – que acredita que é
comba-tida, proibida, punida. Ou adaptada, alguma coisa fora de si mesmo, diferente de
“aceita”, integrada, etc. Várias sociedades si mesmo. O ódio contra o homossexual
não-capitalistas estigmatizaram violenta- “que existe externa-mente” origina-se do
mente a homossexualidade. (Jean de Léry, ódio contra certos as-pectos da própria
escritor francês que visitou os tupinambás sexualidade;
no século XVI, diz que quando os índios bri- + o capitalismo não inventa a pulsão homos-
gavam “insultavam-se de ‘tivira’, que quer sexual, mas torna o que é característica de
dizer sodomita”.) o que caracteriza a mo- todos em característica de um grupo, atra-
derna repressão não é a perseguição ou pu- vés duma repressão que violenta todos nós,
nição do ato homossexual; o que caracteriza indistintamente. Assim, a violência contra
é a tendência de fazer do homossexual uma todos se localiza sob a forma da repressão
pessoa completa, um “outro sexo”,
intermediário entre o masculino e o
feminino;
+ a minoria homossexual é uma invenção
capitalista. Invenção porque nunca
houvera, em qualquer sociedade
repressora, um grupo social que se
distinguisse por esta peculiaridade do
comportamento. O homossexual – uma
contra um grupo – minoritário – de “anor- é uma questão inerente à discussão do su-
mais”. jeito revolucionário, que não é (já se

*** provou) aquela classe operária abstrata,


assexuada, bem-comportada, higiênica e
A repressão sexual que todos sofremos sanitária.
obriga aqueles que pretendem, por várias Ao falar da sexualidade, enquanto
razões, realizar atos homossexuais, a se tor- homossexual, não se faz uma tentativa de
narem “especiais”, a se tornarem “comple- introduzir um discurso homossexual na
tamente” homossexuais, uma minoria de di- esquerda, mas UMA CRÍTICA AO DISCURSO
ferentes. HOMOSSEXUAL QUE A ESQUERDA TEM.
A diferença homossexual não preexiste à E ela tem um. Muito afiado. Seja o silêncio,
opressão, mas o que esta faz é exatamente seja a compreensão do tipo "tirar o corpo
criar, cristalizar essa diferença. A repressão fora".
que atinge tutti quanti é incorporada em al- Numa revolução não se tira o copo fora. A
guns que são isolados, como “exemplo” revolução é Pura Tesão. O resto é silêncio e
para outros. uma vida que se leva morrendo até uma
A existência da “minoria homossexual” não morte-susto que não se vive.
é apenas a forma da repressão, mas o pró- A chamada democracia liberal tem a
prio conteúdo da repressão. Não é por se- pernici-osa mania de parar na porta da
rem oprimidos que os homossexuais se tor- fábrica. Ne-nhuma democracia pode parar
nam uma minoria. Eles se tornam homosse- aí, e nem na beirada da cama proibida.
xuais por serem inventados, moldados, en- Deixemos que os anjos do sexo ganhem as
quanto minoria. ruas da Terra, que queremos como toda,
*** como nua.
* Herbert Daniel (1946 – 1992) ingressou na
É preciso entender que a ação do poder po- militância de oposição ao Regime Militar no
lítico é mais profunda e mais unificada do
Brasil em 1967 na Organização Revolucioná-
que a simples repressão pela recusa e nega-
ria Marxista Política Operária (Polop), parti-
ção duma “sexualidade padrão”. Antes da
repressão (negação), é preciso falar da ação cipando depois do Comando de Libertação
de modelação do poder, da forma como so- Nacional (Colina) e, por último, da Van-
cialmente somos obrigados a cumprir certos guarda Popular Revolucionária (VPR).
papéis, servindo nós mesmos de instrumen- Acom-panhou também a criação do foco
tos do poder. guerri-lheiro do Vale do Ribeiro, em 1969, e
Não se pode dizer que isso seja uma parti-cipou em 1970 dos sequestros do
questão politicamente secundária. A liber- embaixa-dor alemão Ehrenfried von
dade – inclusive a liberdade sexual – não é Halleben e do su-íço Giovanni Bucher.
nunca uma questão “menor”. E nunca pode- Sendo um dos militan-tes mais procurados
remos falar verdadeiramente em liberdade pela força repressiva no Brasil, exilou-se na
enquanto não soubermos de todas as pe- Europa em 1974. Não foi anistiado pela lei
dras dos murros onde estamos
nº 6.683 de 1979, a Lei da Anistia, e só
aprisionados.
retorna ao Brasil em 1981 após a prescrição
(...) de suas acusações. Desde 1983 passou a
Só para terminar, nesta sessão, uma palavra escrever sobre a epidemia de HIV/Aids no
sobre a Esquerda, esta gente à qual per- Brasil. Foi um dos fundadores do Coletivo
tenço. Para a esquerda, a questão a homos- Triângulo Rosa no RJ e em 1986 foi
sexualidade não deve ser a de um grupo que Candidato a Deputado Estadual no Rio de
possa ser contado como força política orga- Janeiro pelo PT/PV. Descobriu que estava
nizada (e isolável) na luta pelo socialismo (li- com HIV em 1983 e nesse ano fundou o pri-
bertário, democrático e ecológico - como meiro coletivo de luta pelos direitos de pes-
define bem o Liszt Vieira). O problema, no
soas vivendo com HIV/Aids no Brasil, Pela
seu fundo mesmo, é compreender a ação do
Vida. Faleceu em 1992
poder, para melhor combatê-lo. A homosse-
xualidade - enquanto objeto da repressão -

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