Juan S. Pegoraro
SILVA, JMAP., and SALLES, LMF., orgs. Jovens, violência e escola: um desafio contemporâneo
[online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 182 p. ISBN 978-85-
7983-109-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
DO PODER DE PUNIR E DA POLÍTICA PENAL
Juan S. Pegoraro1
gem exorcizar o medo mútuo2 produzido pelo fato de não existir mais
lei que dita como agir a cada um e que defende cada um com sua força.
De tal modo, para Hobbes não se trata da existência de algo a
priori, como, por exemplo, de um instinto gregário, humano, frater-
nal, produto de um constante desejo de cooperação, de um suposto
afecttio societatis que evoca o altruísmo, a solidariedade, o bem co-
mum. O que não significa negar a possibilidade de empreendimen-
tos comuns e realizações conjuntas de grandes obras, mas pensar que
a construção das pirâmides do Egito, do Canal de Suez ou do canal
do Panamá foi produto da cooperação e da divisão voluntária ou
espontânea do trabalho é demasiado simples e ingênuo, quando não
indicador de preguiça intelectual.3
Essas argumentações acerca da ordem social não conseguem
evitar que rapidamente, até mesmo na esfera acadêmica, por essa
mesma preguiça moral ou intelectual ou pela força da cultura do-
minante, o que se denomina “sociedade” adquira um efeito de aco-
bertamento da realidade tanto histórica quanto presente, permitin-
do aos setores dominantes utilizá-la para deslegitimar demandas
sociais e até mesmo “criminalizá-las”. Não obstante, embora se
cultive um discurso filosófico e jurídico hegemônico acerca do go-
verno e de sua legitimidade, existe paralelamente a memória latente
de outro discurso histórico-político (Foucault, 2000) que percebe
a realidade do processo constitutivo do poder de maneira oposta e
que se expressa nos conflitos sociais.
As ideias de Hobbes aproximam-se de como conseguir legitimar
a ordem, o que supõe a aceitação por parte dos indivíduos de um ex-
terior que o produz. Assim, ele parte de uma concepção antropológi-
5 “No hago mas que abordar esta ribera pero desde ya que nadie, les ruego, se
quede con la idea de que los 10 Mandamientos serían las condición de toda
vida social. Pues a decir verdad, ¿cómo no percatarse desde otro ángulo, al
simplemente enunciarlos que son de algún modo otro catálogo y el cabildo de
nuestras transacciones de todo momento? Despliegan la dimensión de nues-
tras acciones en tanto que propiamente humanas. En otros términos, pasamos
nuestro tiempo violando los 10 Mandamientos y precisamente por eso una
sociedad es posible” (Lacan, 1988, p.87).
84 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES
discernir o que está certo do que está errado é algo que diz respeito a
cada indivíduo em particular [...] porque já se demonstrou que são
as leis civis as que estabelecem o que é certo e o que é errado, o que
é justo e o que é injusto, o que é honesto e o que é desonesto. (idem,
2000, p.239)
persegue o delito (ou alguns delitos) por ser um delito, mas sim para
construir uma ordem disciplinar e para que esta ordem seja inte-
riorizada por toda a sociedade. Não outra coisa quer dizer Foucault
(1978, p.76) quando afirma que no início da sociedade moderna não
se tratava de punir, mas de punir melhor, o que significa que o poder
de punir deveria ser aceito por um novo subjugado, o povo como
sujeitado moral. Assim, paradoxalmente, se pode dizer que o poder
de punir foi transferido para a sociedade que, em conjunto, deve re-
futar a delinquência que sempre existe como una tentação perigosa.7
A exemplificação que traz Foucault (1976) da crueldade do
suplício público imposto ao regicida Damiens e seu progressivo
declínio, já que substituído pelos regulamentos da fábrica-inter-
nato-manicômio-prisão, cinquenta anos depois, indica de que se
trata a constituição da nova ordem social: a punição aparece como
residual, como expressão da moralidade. O mesmo sentido adquire
o desaparecimento da “cadeia de forçados”, em meados do século
XIX (Foucault, 1976). Mais que isso, as mudanças que ocorreram
no sistema criminal a partir do Renascimento e com o advento da
Modernidade podem dar outra pista para entender a complexidade
que não está expressa na tese de Durkheim, embora se possa aceitar
que, de maneira geral, ela tenha provocado uma mudança na con-
cepção social do que é delito.
O fora da lei
a lei, mas a ameaça que existe de sermos punidos em caso de seu não
cumprimento. Mas se isso parece uma resposta simples ao esquema
delito-pena (como antes fora pecado-pena), isso não é real. Michel
Foucault (1976) lembra-o quando diz que “deve-se desprender da
ilusão de que a penalidade é antes de tudo uma maneira de reprimir
os delitos […], é um fenômeno social complexo que não pode ser ex-
plicado pelo direito ou pela ética”. Trata-se do problema da ordem,
de uma ordem, e não de um problema moral ou ético, já que o sistema
jurídico moderno não é produto de um progresso racional nem resul-
tado da filosofia humanista, mas produto de certas relações de força
que se resolvem (ou se resolveram) de maneira violenta, em cenários
de guerras e na produção de poder: disso tem surgido e surge a lei.
Essa imposição requereu um leque de situações materiais e cultu-
rais que podem ser assim resumidas:
a) A mudança na natureza do poder de punir a partir do século
XIV que deixou de responder a uma ordem religiosa ou teo-
lógica e passou a responder a uma ordem secular e profana,
produto da derrota militar do poder do cristianismo católico.
A lei não é inerente ao que é justo, e o justo não é dado pela
revelação. A partir desse momento, e de forma progressiva, o
conceito de justiça advém somente da aplicação da lei.
b) A mudança na natureza da ordem social que vai de justifica-
ções éticas ou morais para o direito ou lei como uma necessi-
dade para a convivência. Essa noção desenvolve-se em paralelo
à perda progressiva da importância do pecado para a ordem
social que vai sendo suplantada pela noção de delito descrito
na lei e que responde à necessidade de previsibilidade frente
a interpretações religiosas ou morais das condutas humanas.
c) O confisco ou a expropriação gradual do poder de punir por
um “terceiro” que tem mais poder, que monopoliza o poder:
na verdade um “guerreiro triunfante” que se institucionaliza
transformado em governo-Estado e que monopoliza a coerção,
a legislação e a tributação.
d) A grande mudança ou as mudanças no sistema de justiça penal
ocorrido ao final do século XVIII, particularmente na redução
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 93
A retórica e a ficção
8 “A todas las ciudades por donde pasaba, la cadena de forzados llevaba su fies-
ta. Eran las saturnales del castigo; la pena se tornaba en ellas privilegio. Y por
una tradición muy curiosa que parece sustraerse a los ritos ordinarios de los
suplicios, provocaba menos entre los condenados las muestras obligadas del
arrepentimiento que la explosión de una alegría loca que negaba el castigo […]
El aquelarre de los condenados respondía al ceremonial de la justicia por los
fastos que inventaba. Invertía los esplendores, el orden del poder y sus signos,
las formas del placer” (Foucault, 1976, p.265).
9 Prescindo com isso de outras qualificações sobre a atualidade que são usadas
por diversos autores como “modernidade tardia”, “sociedades pós-moder-
nas”, “sociedades pós-industriais” etc.
96 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES
Fora do Estado (da civitas) os homens não têm mais que suas
próprias forças para se proteger [...]. Fora da sociedade civil rei-
nam as paixões, a guerra, a pobreza, o medo, a solidão, a miséria, a
barbárie, a ignorância e a crueldade. Na ordem que impõe o Estado
a razão, a paz, as riquezas, a decência, a elegância, as ciências e a
tranquilidade reinam em toda a parte.
Referências bibliográficas