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A construção histórica do poder de punir e da política penal

Juan S. Pegoraro

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SILVA, JMAP., and SALLES, LMF., orgs. Jovens, violência e escola: um desafio contemporâneo
[online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 182 p. ISBN 978-85-
7983-109-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
DO PODER DE PUNIR E DA POLÍTICA PENAL
Juan S. Pegoraro1

Para poder levantar un santuario hay que


destruir un santuario: ésta es la ley.
F. Nietzsche

Ao analisar a relação existente entre o delito e a ordem social


é necessário considerar o sistema judiciário e seu funcionamento
mais do que as leis a que o delito está supostamente submetido. O
sistema judiciário estatal expressa-se por meio da política criminal.
O pressuposto é que o poder de punir, expresso pela política cri-
minal, foi construído histórica e socialmente – portanto tanto pode
punir quanto não punir, perseguir ou não perseguir, condenar ou
não condenar, encarcerar ou não encarcerar. Desse modo, não há
uma resposta punitiva automática para uma conduta ilegal e repro-
vável, já que a resposta está submetida à preservação das relações
socais que configuram a ordem social.

1 Sociólogo, professor titular de Sociologia do Sistema Penal no curso de So-


ciologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires,
principal pesquisador do Instituto de Investigaciones Gino Germani de la
UBA, autor de livros e artigos sobre temas de controle social. Diretor de Delito
y Sociedad. Revista de Ciencias Sociales desde 1992 (28 números).
72 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

A esse respeito Michel Foucault (1976, p.87) diz: “todas as dis-


posições legislativas organizam espaços protegidos nos quais as
leis podem ser violadas, outros em que pode ser ignorada e outros,
enfim, em que as infrações são puníveis”. Frente a essa tese de
Foucault devemos nos perguntar o que permite que a lei possa ser,
em alguns casos, violada ou ignorada, e que outras infrações sejam
punidas.
Foucault (idem) argumenta que o agente sociológico do sistema
judiciário não é tanto o enunciado da norma, mas sim seu funciona-
mento, sua aplicação ou sua não aplicação, já que entre o enunciado
e a aplicação ou emprego da norma existe um espaço de mediação
que é o espaço de conflito entre a norma em geral e o caso em parti-
cular. Essa mediação que existe na realidade e que define a política
de aplicação ou não da norma penal é determinada, entre outros
fatores, pela interpretação do fato, pela natureza ou condição social
da vítima ou de seu autor, pelo clima cultural, pela repercussão
social ou política do fato, pela ideologia do funcionário e do agente
do sistema judiciário, pela influência do contexto social, pela atua-
ção dos meios de comunicação. De qualquer forma, a aplicação da
norma a um caso concreto está submetida não a um contexto jurí-
dico, mas particularmente político, que se pode explicar em função
de certa racionalidade do sistema judiciário, não necessariamente
regido pela lei, mas sim pela defesa da ordem social, e também por
uma direcionalidade que o conduz ou ainda simplesmente por uma
contingência interpretativa.
No marco da política penal também podemos considerar (idem,)
o que diz e o que não diz a norma, o que assinala e o que oculta, o
que faz e o que não faz, o que reprime e o que tolera, evidenciando,
assim, a complexidade do fenômeno social das penas e da pena-
lidade, que juridicamente parecia simples, automática: ao delito
corresponde uma pena. Esse esquema não é real, e mais que isso,
nunca foi real na história da humanidade. Sua prática ou exercício
estão incluídos no marco da ordem social, na estratégia de preserva-
ção e reprodução dessa ordem e, portanto, incluídos no âmbito das
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 73

relações sociais de poder, como é próprio das relações sociais, valha


a aparente redundância.
Quero dizer que o esquema delito/punição nunca foi “autôno-
mo” – quer moral, que juridicamente – e sempre se expressou den-
tro do marco de uma ordem social imposta (J. C. Marín, 1993) que
representa e reproduz interesses de categorias, classes e/ou grupos
sociais, uns poderosos e outros fracos, uns soberanos, outros súdi-
tos. Assim, a punição faz parte de uma relação de forças políticas
mais amplas e completas do que a simples punição de uma conduta.
Historicamente a concepção do que é o delito tem sido sempre exer-
cida e/ou apropriada pelos grupos dominantes e, portanto, o delito
como tal não tem essencialidade alguma e seu castigo está sujeito
à vontade estratégica da prolongação das relações de dominação e
poder.

O exercício da penalidade como


necessidade social

No marco desta análise, ensaio uma reposta complementar ou


explicativa ou talvez alternativa à nobre e inquietante pergunta que
formulou Luigi Ferrajoli (1985): “por que se pune?”. Ferrajoli, a fim
de justificar a necessidade de um sistema judicial, em sua polêmica
com o pensamento do abolicionismo penal, inclui outra: “por que se
deve punir?”. Aqui nos interessa ampliar ou complementar o que
formula o autor, incluindo também a pergunta: “por que se pune?”.
Lembramos o que Ferrajoli (idem) diz sobre esse porquê: trata-se
de explicações de caráter historiográfico, sociológico ou antropológi-
co, baseadas em fundamentações empíricas. Em suma, em todas as
sociedades pune-se porque em todas elas existe um gerenciamento
de prêmios e castigos que adquirem diversas formas, conforme os
costumes, as tradições, as instituições, as personagens, os rituais e as
relações sociais, mas, principalmente, porque alguém ou alguns têm
o poder de punir.
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Nesse sentido, e complementarmente à pergunta de Ferrajoli,


é necessário formular outra pergunta, que lhe é anterior: “por que
se pode punir?”. Uma resposta a essa pergunta leva-nos a indagar
sobre a existência social do poder de punir assumido por pessoas ou
instituições que também pode ser explicado e comprovado por meio
da História, da Antropologia e da Sociologia.
A partir da modernidade, explica-se a construção social do poder
do Estado pela legitimação e monopolização do uso da força física
frente a outros poderes (Weber, 1976), o que lhe permitiria usar
esse poder para exercer a política penal, que se soma ao monopólio
de ditar a lei e a tributação. Esse processo concretiza-se no estado
moderno em “uma associação de domínio institucional”, como a
denomina Max Weber (1976) – e isto é essencial: “uma associação
de domínio” que consegue se institucionalizar porque monopoliza o
uso da força física, aparecendo como resultado de um “processo de
pacificação”, contribuindo assim para a passagem de uma sociedade
guerreira para uma sociedade de “soberania”.
Para alguns autores, nesse momento, em torno dos séculos XIV
e XV, inicia-se o processo civilizatório (Elias, 1982; Chatelet, 1980),
mesmo que as guerras e os genocídios e outros fenômenos cruéis
acompanhem até a atualidade tal processo denominado civilizató-
rio. Assim, Stefan Breuer (1991) afirma a necessidade de historiar
também um processo “des-civilizatório” que se desenvolve paralela-
mente, rompendo com o evolucionismo humanitário que predomina
na interpretação de Nobert Elias. A passagem de uma sociedade
guerreira a uma sociedade cortesã, os limites à violência física para
resolver conflitos interpessoais, o autocontrole progressivo das di-
ferentes formas reais e simbólicas da agressão capazes de subjugar
o estado natural que descreve Elias em sua sócio e psicogênese do
processo civilizatório, não são, no entanto, suficientes. Esse “esta-
do natural” (Hobbes, 2000) reaparece, sob diferentes formas, nas
condições de produção burguesa, como o mostra a continuidade da
violência social e política (guerras, genocídios, exclusões, desapare-
cimentos, golpes de estado, terrorismo de diversas origens etc.) na
história dos últimos três séculos.
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 75

Aquela sociedade cortesã, como a denomina Elias, é o resultado


da existência da instituição Estado (Weber, 1976) que foi construída
por forças sociais que triunfaram politicamente (militarmente) e cujo
resultado tem sido monopolizar não só a violência e a ordem, mas
também os ditames da lei e da tributação. Recordemos a definição
de Weber (idem, p.106):

O Estado Moderno é uma associação de domínio de tipo insti-


tucional que no interior de um território teve êxito para monopo-
lizar a coação física e legitimá-la como instrumento de dominação
e, além disso, se concentrar nas mãos dos dirigentes os meios mate-
riais de exploração, expropriando para tanto a todos que anterior-
mente dispunham deste direito, e colocando-se no seu lugar, no
topo supremo.

Portanto, o Estado moderno é resultado de um processo histórico


e sociopolítico: as forças sociais que triunfaram institucionalizam e
reclamam legitimidade assumindo o caráter de terceiro ético para
ditar leis em prol do benefício comum, decidindo (Hobbes, 1980)
o que é justo e o que é injusto, o que é certo e o que é errado. Sua
soberania implica “des-soberanizar” seus cidadãos, o que permite a
Foucault (1979) afirmar que mais do que constatar a soberania, cabe
perguntar como os cidadãos a perderam para decidir que é o justo e
que é o injusto, que é o certo e que é o errado.
O problema da autonomia desse terceiro ou de como ele pode tor-
nar-se autônomo da vontade, dos desejos, das paixões ou dos interes-
ses dos homens que o organizaram é um problema de interpretação
que continua produzindo um debate acadêmico interminável pleno
de ficções, já que está fundado na crença de uma existência atem-
poral do bem comum ou da virtude – o que provoca uma apelação à
retórica mais do que a uma historiografia concreta, a uma ilusão de
uma origem contratual, voluntária e livre mais do que à genealogia, a
uma filosofia mais do que a história, a uma ficção mais do que à rea-
lidade, ficção aparentemente necessária ou bem-sucedida já que tem
impactos reais na conformação da ordem social (ver Marí, 2002).
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O poder de punir é um pressuposto

Pode-se punir se (e somente se) se tem poder para isso, o que


implica também o poder de não punir. Esse poder de punir deve ser
construído, apropriado (Hobbes diz por “instituição” ou por “aqui-
sição” – conquista) e aceito como legítimo pelos cidadãos.
A legitimidade de punir torna-se um problema quando o poder
se seculariza, pois antes o soberano afirmava encarnar em suas deci-
sões a vontade de Deus. Por isso o poder de punir somente pode ser
pensado como um resultado e não como algo a priori. A legitimidade
do poder é uma construção sempre tensa e nunca acabada, similar ao
conceito de “hegemonia” desenvolvido por Antonio Gramsci. Diz a
respeito o historiador inglês E. P. Thompshon (1984):

O conceito de hegemonia é imensamente valioso e sem ele não


poderíamos entender a estruturação de relações do século XVIII.
Embora esta hegemonia cultural possa definir os limites do possí-
vel e inibir o desenvolvimento de horizontes e expectativas alterna-
tivas, este processo não tem nada de determinado ou automático. A
hegemonia somente pode ser mantida pelos governantes mediante
um constante e ardiloso exercício de teatro e concessão.

A questão da legitimidade do poder – e sua variação, o poder de


punir – deu uma reviravolta fundamental na sua justificação e legi-
timidade com o processo de secularização que se inicia no Renasci-
mento, já que agora é necessário justificar um poder que não vem
mais de Deus ou da natureza, mas de um “acordo” entre homens
que desejam viver em sociedade.
Como sabemos, o teórico que desenvolveu a explicação e a jus-
tificação para a existência de um poder absoluto com capacidade
de punir foi Thomas Hobbes, no século XVII, fundamentado na
premissa da impossibilidade de uma vida social enquanto subsistir
o “estado de natureza” – estado de igualdade e autonomia de cada
um na representação da ordem social. Frente a esse estado de natu-
reza que implicava que a vida e os bens podiam ser defendidos por
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 77

cada um, por qualquer pessoa, Hobbes argumenta a necessidade de


um Leviatã, um monstro todo poderoso representado graficamente
pela espada e pelo cajado, um para castigar e o outro para conduzir,
capaz de decidir por cima da vontade dos homens transformados
em súditos. É o modelo de uma pirâmide, de uma hierarquia nor-
mativa na qual o direito adota a forma da lei ditada pelo Estado e se
expressa pelo imperativo e pela natureza do proibido que convida
a olhar de cima, de onde se irradiam as ideias do bem e do mal, da
justiça e da injustiça. De tal maneira a legitimidade se concentra
(oculta-se) no vértice da pirâmide normativa, na ficção imaginária
da autoridade, que supõe um acordo sobre ela.
Até então, não se conhecia na história humana um poder de pu-
nir que não tivesse sido alcançado, originariamente, por um guer-
reiro triunfante que foi capaz de monopolizar o uso legítimo da
força física e, portanto, de ditar a lei. A genealogia da lei deve ser
buscada na guerra (Foucault, 2000), no resultado de uma guerra,
e não na filosofia – portanto, o discurso filosófico jurídico da lei é
mistificador e oculta a realidade histórica, a sua realidade histórico-
-política. Como diz Foucault (idem, p.55),

contrariamente ao que afirma a teoria filosófica jurídica, o poder


político não começa quando cessa a guerra. A organização, a estru-
tura jurídica do poder, dos Estados, das monarquias, das socieda-
des, não se inicia quando cessa o fragor das armas. A guerra não é
evitada. Em um primeiro momento, a guerra presidiu o nascimento
dos Estados: o direito, a paz, as leis nasceram no sangue e na lama
das batalhas. Mas com isso não se entenda batalhas ideais, rivalida-
des como as que imaginaram os filósofos ou os juristas: não se trata
de uma espécie de selvageria teórica. A Lei não nasce da natureza,
junto aos mananciais que frequentavam os primeiros pastores: a lei
nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquis-
tas, que tem sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades
incendiadas, das terras devastadas; surge com os famosos inocentes
que agonizam enquanto nasce o dia.
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Conforme essa linha de argumentação, é possível dizer que não


há sociedade sem ordem social, sem hierarquias e sem estabeleci-
mento de diferenças dado o poder que detém pessoas ou grupos
de simbolizar relações sociais e, portanto, a lei; esta é a condição
de existência “da sociedade” que na realidade é uma ordem social.
Como sugere Elias Canetti (1977) referindo se à “muta”, a forma
de dividir a peça caçada é o nascimento da lei, poderíamos dizer da
sociedade-ordem. Mas mais que isso, a ordem torna-se o próprio
fim da ordem. Como diz o autor (idem, p.317):

o mais antigo efeito da ordem é a fuga, que é imposta ao animal por


algo mais forte, uma criatura fora dele [...]. O que primeiro chama a
atenção na ordem é que provoca uma ação [...]; a ação que é execu-
tada sob ordem é distinta de todas as demais ações [...]. Combates
vitoriosos continuam existindo nas ordens, em cada ordem seguida
se renova una antiga vitória.

Retomando o processo de legitimação da ordem-lei, Canetti


fala-nos da “domesticação da ordem” no sentido de que a ordem
tem evoluído distanciando-se da sua origem biológica, aquela or-
dem obedecida em função da ameaça de morte que a antecedia. Essa
domesticação produz-se porque cumprir uma ordem, aceitar uma
ordem, implica uma espécie de suborno, como diz Canetti, como
quando um cachorro aceita o alimento que lhe dá seu amo (ele de-
pende de seu amo), e essa espécie de suborno educa animais e pessoas
em uma espécie de “cativeiro voluntário no qual existe toda uma
classe de graus e matizes”.
O Estado, essa “invenção diabólica”, dizia Nietzsche, tem sido e
é uma criação de homens com poder de institucionalizar um sistema
de prêmios e castigos para governar a conduta de outros homens. Em
seu desenvolvimento institucional o Estado acompanhou a moderni-
dade, que foi a parteira do mercado e da nova ordem social e, portan-
to, da sociedade moderna. O dogma liberal com sua naturalização do
indivíduo possessivo e com o princípio do mercado autorregulado é o
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pressuposto da modernidade e, portanto, da nova forma que adquire


a ordem social e seu modo de controle, controle para o qual o novo
sistema judicial cumpre os requisitos de uma “afinidade eletiva”.
Nesse sentido, essa ordem social não está submetida às leis do Esta-
do: pelo contrário, a sociedade/ordem social, ao criar determinadas
relações sociais, é que submete o Estado e o sistema judiciário a suas
próprias leis.

Da ordem social à sociedade

Sociologicamente, o observável é a ordem social e não a socieda-


de. Se não há lei (ordem), não há “sociedade”. Mas, contrariamente
ao que se acredita, a ordem/sociedade não é determinada pelo Códi-
go Penal, como havia advertido Durkheim (1996) quando se referia
às sociedades assentadas na solidariedade orgânica, nas quais impera
o direito restituitório (o direito civil, comercial, administrativo) e
não o direito repressivo (penal), que era o direito que sustentava
mecanicamente as sociedades baseadas nele, sociedades com solida-
riedade mecânica, pré-modernas. A lei que cria e funda a sociedade é
principalmente o Código Civil e somente secundariamente o Código
Penal. É o Código Civil que “ordena” as diferenças, as hierarquias,
as desigualdades. De todo modo, o Código Penal reforça essa ordem
“civil” na medida em que o Direito Penal é um direito público que
envolve o Estado como guardião da ordem social.
As necessidades de uma ordem que estabelece diferenças entre um
grupo de homens é o que legitima as penalidades, melhor dito, a polí-
tica de penalidade, para guardá-la, protegê-la e também reproduzi-la.
A função das penalidades não é, então, preservar a moral, os bons cos-
tumes, a equidade e a igualdade, mas resguardar uma ordem de dife-
renças, hierarquias, desigualdades, ainda que encoberta por apelações
à moral, aos bons costumes e ao bem comum. Assim, do que se trata
é da lei, e não tanto do direito à justiça. Daí a importância de Hobbes
(2000) quando afirma que o desejo de viver em sociedade tem por ori-
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gem exorcizar o medo mútuo2 produzido pelo fato de não existir mais
lei que dita como agir a cada um e que defende cada um com sua força.
De tal modo, para Hobbes não se trata da existência de algo a
priori, como, por exemplo, de um instinto gregário, humano, frater-
nal, produto de um constante desejo de cooperação, de um suposto
afecttio societatis que evoca o altruísmo, a solidariedade, o bem co-
mum. O que não significa negar a possibilidade de empreendimen-
tos comuns e realizações conjuntas de grandes obras, mas pensar que
a construção das pirâmides do Egito, do Canal de Suez ou do canal
do Panamá foi produto da cooperação e da divisão voluntária ou
espontânea do trabalho é demasiado simples e ingênuo, quando não
indicador de preguiça intelectual.3
Essas argumentações acerca da ordem social não conseguem
evitar que rapidamente, até mesmo na esfera acadêmica, por essa
mesma preguiça moral ou intelectual ou pela força da cultura do-
minante, o que se denomina “sociedade” adquira um efeito de aco-
bertamento da realidade tanto histórica quanto presente, permitin-
do aos setores dominantes utilizá-la para deslegitimar demandas
sociais e até mesmo “criminalizá-las”. Não obstante, embora se
cultive um discurso filosófico e jurídico hegemônico acerca do go-
verno e de sua legitimidade, existe paralelamente a memória latente
de outro discurso histórico-político (Foucault, 2000) que percebe
a realidade do processo constitutivo do poder de maneira oposta e
que se expressa nos conflitos sociais.
As ideias de Hobbes aproximam-se de como conseguir legitimar
a ordem, o que supõe a aceitação por parte dos indivíduos de um ex-
terior que o produz. Assim, ele parte de uma concepção antropológi-

2 O argumento de Hobbes coloca o medo enquanto agente da submissão ao


soberano: “quienes por miedo se someten a otro o bien se someten a quién
temen o a otro que esperan que les proteja. Actúan del primer modo quienes
son vencidos en la guerra, para evitar así ser ejecutados; y actúan del segundo
modo quienes todavía no han sido vencidos y quieren evitar serlo”. Como ve-
mos sempre se trata da guerra e de seu resultado correlato: o medo. Reparemos
que Hobbes chama “natural” a primeira forma de constituir uma cidade, uma
sociedade (De Cive, cap.5, De las causas y generación del estado, p.12).
3 Como nos lembra um poema de Bertold Brecht.
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ca da natureza humana, Homo hominis lúpus, e, consequentemente,


do medo do “estado de guerra” que se traduz comumente como a
guerra de todos contra todos. Na realidade, o “estado de guerra” é o
poder de cada indivíduo de definir o que é o justo e o que é o injusto,
o que é certo e o que é errado. É quase uma atitude psicológica, cons-
ciente, racional, corajosa e soberana. O “estado de guerra”, a dispo-
sição ao enfrentamento, anula ou torna inexistente toda distinção ob-
jetiva entre o justo e o injusto, entre agressão e defesa. Essa soberania
individual é a que o Estado/ordem necessita expropriar e da qual
Hobbes é seu ilustre porta-voz. Em De Cive, Hobbes (1996, p.197)
afirma que os indivíduos, ao assumirem eles mesmos a capacidade
de distinguir entre o que é certo e o que é errado, “estão querendo
ser como reis”, o que não pode ser feito sem que se comprometa a
segurança da ordem social e de sua instituição emblema, o Estado.
Conforme o Antigo Testamento, quem pode dizer e decidir
acerca do certo e do errado é “Deus Todo Poderoso, criador do céu
e da terra”. Segundo ele, Adão e Eva pagaram caro por querer apro-
priar-se desse saber comendo da árvore do conhecimento. O mais
antigo dos mandamentos de Deus (Gênesis 2,17) é: “Não comeras
da árvore da ciência do bem e do mal”. A mais antiga das tentações
diabólicas (Gênesis 3,5) é: “Sereis como Deus conhecedores do bem
e do mal”. Na sociedade moderna, secularizada, a lei é que determina
o que é certo e o que é errado, o que é justo e o que é injusto. A lei ex-
pressa o poder dos governantes por meio da “associação de domínio
de tipo institucional”, como Max Weber define o Estado Moderno.4

O medo como agente social

Devemos, pois, concluir que a origem de todas as sociedades


grandes e duradouras não reside na boa vontade entre os homens,
mas no medo mútuo, ao pretender cada homem ser soberano em

4 É muito pouco notada a importância da definição de Estado de Max Weber, já


que ele é mais citado sobre o “monopólio da força” e menos sobre a “associa-
ção de domínio de tipo institucional”.
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suas ideias e querer impô-las enquanto tiver forças para isso. E


como diz Hobbes (1996, p.57), a causa do medo mútuo é em parte
a igualdade natural dos homens e em parte a vontade que eles têm
de fazer-se mal mutuamente (De Cive). Hobbes o reafirma: a mão
que empunha a espada da guerra é a mesma que empunha a espada
da lei e, portanto, da justiça. Mas se a força é o elemento constitu-
tivo do poder, as condições para sua legitimidade e, portanto, para
sua reprodução devem estar articuladas com o discurso da ordem e
com o imaginário social. Uma das formas pela qual o Estado busca
legitimar-se é por meio da política judicial ao julgar determinados
crimes e delitos que provocam comoção na opinião pública, mas que,
não necessariamente, atingem a ordem social. Assim, no imaginário
dos cidadãos indefensos, temerosos e vulneráveis, o Estado, de modo
mais simbólico que real, os protege ao perseguir a delinquência (cri-
minosos, ladrões, violadores).
“O discurso da ordem é o lugar da razão”, diz Enrique Marí
(1987, p.63). Esse discurso da ordem é respaldado pelas representa-
ções racionais às quais recorrera Hobbes e à qual recorrem também
juristas famosos, intérpretes e indivíduos dotados de credibilidade
e de prestígio social, assim como a moral e a religião proporcionam
ao discurso da ordem fundamentos que transcendem ao mero indi-
víduo, como o da sobrevivência da sociedade. Hoje, o discurso da
ordem é também o da lei, do direito, e este o espaço da razão: “já que
a lei é força – razão em um duplo sentido: razão enquanto o tipo for-
mal das estruturas lógicas que comunicam a força, e razão enquanto
ela e por meio dela se produzem operações ideológicas de justificação
do poder” (ibidem).
Hobbes oferece a melhor argumentação racional acerca das van-
tagens de a submissão/dominação acabar com a violência intermi-
nável e recíproca: “na ordem que impõe o Estado, a razão, a paz, as
riquezas, a decência, a elegância, as ciências e a tranquilidade reinam
em toda a parte”.
Mas a força e a razão não bastam para a construção social da le-
gitimidade do poder de punir, já que os indivíduos não somente se
guiam em seus atos pelo cálculo racional, mas também por desejos,
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 83

crenças, emoções, tradições, simbologias, rituais, cerimônias, relatos


e em especial ilusões, que são a força dos desejos (Freud, 1981). O
imaginário social é outro elemento que torna possível e plausível
o poder de punir. O imaginário envolve não somente a razão, mas
também as emoções, a vontade e os desejos. Esses três elementos
(força-razão-imaginário social) se inter-relacionam ora de maneira
equilibrada, ora predominando um sobre o outro: por momentos
a força ou a violência podem predominar sobre o racional ou sobre
o imaginário e por momentos esses dois podem prevalecer sobre
uma violência “adormecida”. No espaço do imaginário coletivo está
talvez o maior dilema para a legitimidade do poder, já que é o espaço
no qual a realidade é sempre contestada pelos cidadãos: mesmo que
produza consenso, produz também críticas, “a arma da crítica”.
Uma dificuldade para pensar a história da construção social do
poder de punir dessa maneira é a ilusão que temos de que a humani-
dade caminha para o progresso, a concepção antropológica do homem
bom e a ansiada possibilidade de uma sociedade orgânica e harmôni-
ca. Essas ideias acabam por desenvolver uma retórica que encobre a
realidade desumana e cruel da ordem social, que inclui pessoas pode-
rosas e sujeitos fracos e vulneráveis, pautada na desigualdade. Assim,
é certo que a sociedade não pode ser regulada somente pelas virtudes
porque os seres humanos não são guiados em seus atos ou condutas
somente pela razão virtuosa, desinteressada, solidária, fraterna. Exis-
tem as paixões, os desejos, os instintos e, portanto, a violação cotidia-
na dos dez mandamentos que, como diz Jacques Lacan (1988, p.87),5
“tornam possível a sociedade”, tornam possível a ordem social.
A virtude, a bondade ou o altruísmo têm se revelado insuficientes
(inúteis, inexistentes) para construir relações sociais estáveis e daí

5 “No hago mas que abordar esta ribera pero desde ya que nadie, les ruego, se
quede con la idea de que los 10 Mandamientos serían las condición de toda
vida social. Pues a decir verdad, ¿cómo no percatarse desde otro ángulo, al
simplemente enunciarlos que son de algún modo otro catálogo y el cabildo de
nuestras transacciones de todo momento? Despliegan la dimensión de nues-
tras acciones en tanto que propiamente humanas. En otros términos, pasamos
nuestro tiempo violando los 10 Mandamientos y precisamente por eso una
sociedad es posible” (Lacan, 1988, p.87).
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a necessidade do direito, da violência do direito e da lei. Diz Eligio


Resta, (1995, p.45): “Em todo caso é imprescindível que o legislador
encontre um remédio […] que a lei prescreva um remédio; esta deve
ocupar o lugar de um ausente […], um pharmakon”. Veneno e remé-
dio: a violência da lei exerce a função de um “terceiro”, mas é uma
violência que se distingue de outras violências porque é “diferente”,
legítima, porque aprovada pela lei: é a lei.
Nas sociedades atravessadas inteiramente por relações guerrei-
ras, que eram preponderantes antes dos séculos XII ou XIII, come-
ça a produzir-se o “acortesamento dos guerreiros”, momento que
Norbert Elias assinala como o início do processo civilizatório, pela
existência de um “terceiro”, a Lei. Dessa maneira surge em diversos
territórios o embrião dessa progressiva criação de instituições para
governar e manter a ordem que é o Estado moderno, uma instituição
que progressivamente expropria, por meio da força militar, os pode-
res autônomos dos senhores da guerra, entre eles a Igreja.
O Estado constitui-se então como o terceiro e titular da pretensão
punitiva demandando uma relação direta com o infrator. Obedece-
-se (e esta é a essência que fundamenta a soberania) a existência de
dominados, de súditos, de vencidos, de sobreviventes, dizia Canetti
(2000), que afastaria o medo da violência sem fim e recíproca sempre
aleatória em seus resultados.
Diz Nietszche (1983, p.98) em A genealogia da moral:

O Estado deveria entrar na história como uma horda qualquer,


de bestas, de animais de rapina, uma raça de conquistadores e se-
nhores que organizados para a guerra e dotados da força de organi-
zar, impõem sem escrúpulo algumas de suas terríveis zarpas sobre
uma população, talvez muito superior em número, mas, todavia
incerta, todavia errante […]. Mas que tem a ver com contratos!!!?
[…] que lhe importam os tratados.

E continua Nietzsche: “Assim é como em efeito se inicia na terra


o Estado, eu penso que assim fica refutada aquela fantasia que lhe
fazia começar com um ‘contrato’” (ibidem).
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 85

A violência e a soberania do Estado moderno

O exercício da violência estatal (originada com a prévia aquisição


da soberania) legitima-se por ser uma violência justa e, portanto, di-
ferente (Girard, 1995) da violência indiferenciada e recíproca de cada
um, porque está baseada na lei que o próprio Estado dita.
Em suma, o homem resigna, por medo a outros homens, sua so-
berania e a isso se denomina “humanismo” (Foucault, 1980). Busca
proteção em alguém por medo de outros homens e assim o medo é
constitutivo do social, do que se denomina “sociedade”, que na ver-
dade é uma ordem social. Nietzsche (1983, p.86) afirma: “somente
a partir da lei, ou melhor, da instância da verdadeira potencia, desse
‘artifício’ da modernidade, pode se dar a diferença entre justiça
(acordo com a lei) e injustiça (desacordo com a lei): a Lei impõe-se
sobre o direito”.
E a imposição do poder da lei sobre o Direito instala a necessida-
de da ficção, de imaginar uma separação entre paixões ou interesses
particulares do poder soberano, em atribuir-lhe uma diferença em
relação às partes que o compõe (os indivíduos, seus interesses, suas
paixões, suas violências). A resolução desse problema tem passado
e passa pela retórica, pela aceitação da necessidade de uma forte
retórica, pelo apelo às finalidades, metas e autoridades sagradas: a
Nação, o povo, a pátria, a moral, o partido, a classe operária, a defe-
sa da sociedade. Mas, mais uma vez, Nietzsche, em A genealogia da
moral (idem, p.88), encarrega-se de desvelar o oculto:

todas as finalidades, todas as utilidades são somente indícios de que


uma vontade de poder se apoderou de algo, que impôs seu domínio
sobre uma coisa menos poderosa e, sobre a base de seu arbítrio ou
vontade, imprimiu-lhe o sentido de uma função.

Como, então, não associar “a vontade de poder” com a manu-


tenção da ordem social por meio da política penal?
As ideais de Hobbes tanto no Leviatã como no De Cive podem
ser interpretadas como uma resposta à ameaça do individualismo
86 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

possibilitada por uma de suas bases materiais que aparece no século


XV: a invenção da imprensa. A imprensa possibilita de maneira
ampliada a tradução e a leitura da Bíblia em diferentes idiomas
tornando-a acessível fora do latim, monopolizado pelos monges.
Isso acelera o processo de individuação e traz como consequência
o advento da “igreja invisível” produzida pela difusão das obras e
panfletos de Lutero e das ideias da Reforma, abrindo a possibilida-
de de uma Bíblia “aberta”, sujeita a interpretações e argumentações
particulares de cada leitor. Esse fenômeno produz uma revolução
na vida cotidiana possibilitada pelo livro e pela sua circulação so-
cial, que se soma à indústria e à progressiva aceitação do progresso
e do produtivismo da economia de mercado. Uma expressão limite
desse encadeamento de fenômenos sociais foram as guerras campe-
sinas, em especial na Alemanha (Engels, 1981).
Baseado nesse princípio estrutural deve-se considerar que em
apenas dois séculos, sob os nomes de Giordano Bruno, Francis-
co Sanchez, Galileu, Hobbes, Descartes, Maquiavel, Copérnico,
Spinoza, Locke, Leibintz, Newton, Kepler, Bacon, Colombo, di-
fundiu-se um forte radicalismo epistemológico que passa a compor
o clima cultural e anuncia o declínio da religião ou da moral para
orientar as ações humanas. A partir desse momento acelera-se a
grande transformação social (Polanyi, 1980) produzida pelo cres-
cente aumento da mercantilização das relações sociais que eram
antes majoritariamente guiadas pelas tradições ou pelos costumes,
e cujo eixo estava colocado na vida rural ou campesina. Paradoxal-
mente, o problema da nova ordem social é o que aborda Hobbes em
suas reflexões.
Podemos pensar que as concepções cristãs de céu e de um só deus6
ajudaram a fortalecer a ideia de Estado soberano, concepção esta bas-
tante distinta do Olimpo dos gregos (Mirás, 1998). O Olimpo não
era nenhum modelo de sociedade a imitar, mas o espaço dos desejos e

6 O monoteísmo das religiões modernas, Deus ou Alá, contribuíram e con-


tribuem para a forma de dominação estatal e/ou patriarcal e/ou masculina
(Freud, 1986).
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 87

paixões dos seres humanos, representado por vários e distintos deu-


ses. A luxúria, o hedonismo, o amor e o ódio, o prazer e a dor, a ira e
a beleza, a fúria e a bondade eram encarnados por diferentes deuses
que conviviam e interagiam com malícia, fraudes, rancores, ciúmes
doentios e violência. Em suma, um Olimpo formado por deuses
de carne e osso, com ódios e bondades, com razões e paixões, com
luxúria e ascetismo. Já o cristianismo coloca no céu um ser perfeito
com o qual o homem não pode se comparar, um só Todo Poderoso
tal como o proclamara Moisés com o monoteísmo cristão (Freud,
1986). Logo Hobbes importa à terra esse monoteísmo encarnado
em um ser supremo, o Leviatã, a quem se deve obediência total,
ponto essencial para o processo de secularização e para o monopólio
do poder ou dos poderes por parte do Estado.
Recordemos que para Hobbes o Estado é um ser sem interesses,
sem paixões, um ser artificial, despersonalizado, guiado pela razão
e pelo bem comum – um Deus Todo Poderoso. E assim, o erotismo
religioso do mundo teológico transporta-se para o secular, para o
príncipe, para o rei e para o Estado, mas, paradoxalmente, um Es-
tado sem príncipe e sem rei, uma “impessoalidade”.
Hobbes, como vimos, aponta que a fundação do Estado se dá
de duas maneiras: por instituição ou por aquisição (ou conquista) e,
em ambos os casos, quem assim o funda e o aceita o faz por medo: o
medo que é produzido pela vulnerabilidade e pela insegurança. Em
De Cive (1996, p.120), diz:

Por medo se submete a outro, ou melhor, se submete a aquele


a quem teme ou a quem espera que lhes proteja. Atua do primeiro
modo quem é vencido na guerra para evitar assim ser executado, e
atua do segundo modo quem, embora não tenha sido vencido, quer
evitar sê-lo. O primeiro modo toma seu princípio do poder natural
e pode ser considerado o começo natural de uma cidade.

Isso é o que Hobbes denomina Estado por aquisição, a “forma


natural”, como diz. A outra forma “provém de um conselho e é
constituído por aqueles que se reúnem, e pode ser considerado o
88 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

começo por instituição”. Essa “forma política” é tão desejável como


inexistente na história política da humanidade.
Hobbes (1980, p.196) adverte sobre as causas que podem dis-
solver o Estado e fomentar uma insubordinação afiançando, como
contraponto, o poder soberano e único do Leviatã/Estado para esta-
belecer o que é justo e o que é injusto por meio da lei. Assim, ao falar
sobre as causas que podem dissolver o Estado e fomentar a insubor-
dinação, diz que

discernir o que está certo do que está errado é algo que diz respeito a
cada indivíduo em particular [...] porque já se demonstrou que são
as leis civis as que estabelecem o que é certo e o que é errado, o que
é justo e o que é injusto, o que é honesto e o que é desonesto. (idem,
2000, p.239)

Hobbes insiste em distinguir duas atitudes diferentes que têm


um sentido muitíssimo importante: “existem homens que violam
as leis por fraqueza, mas há outros homens que desprezam as leis”
(ibidem). Decifrar nos atos ilegais a diferença entre violar a proprie-
dade e violar o direito de propriedade pode nos dar uma dimensão
da batalha pela ordem social que se desenvolve no seio da socieda-
de. Cabe aqui um esclarecimento: a sociedade (a ordem social) não
se perturba pelos grandes crimes que comovem a opinião pública,
mas sim por aquelas condutas ilegais que têm a capacidade de se re-
produzir, de se estender, de ser imitadas e de se generalizar. Michel
Foucault (1976) diz que nas pequenas ilegalidades é que se joga a
batalha pela ordem social.

O Estado é a lei e a lei é o Estado

Seguindo essa linha de pensamento, o ditado da lei implica a neces-


sidade de encontrar remédios para a ausência de virtude (Resta, 1985).
A lei invoca a existência do delito. Falar da necessidade de justiça é
falar da injustiça; falar da necessidade de igualdade é falar da desigual-
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 89

dade; falar da necessidade da lei é falar do delito; falar da necessidade


da ordem é falar da ameaça da desordem ou da própria desordem.
Com o aparecimento da sociedade moderna, com a consequente
dissolução das relações sociais feudais, a secularização da autorida-
de e o desenvolvimento das sociedades industriais, a definição do
delito e a justificação para o poder de castigar necessitam de outro
modelo de legitimação, distinto daquele que pressupunha a exis-
tência de seres reconhecidos como socialmente desiguais: senhores
e vassalos, nobres e plebeus.
Os exemplos dessa nova definição estavam ao alcance de quem
refletia sobre a diminuição da importância da religião para a socie-
dade, já que “é indubitável que o direito penal, em sua origem, era
essencialmente religioso” (Durkheim, 1994, tomo I, p.118) e que,
até o advento da Modernidade, funcionara como o cimento da es-
trutura social. Assim, os delitos religiosos tão severamente castiga-
dos nas sociedades pré-modernas, como a blasfêmia ou o sacrilégio,
passaram a ser condutas não castigadas ou não contempladas nos
códigos penais dos novos Estados que secularizaram a relação entre
soberano e súditos. Em A evolução das leis penais, Durkheim (1999,
p.87), ao considerar as mudanças que se produziram nos últimos
séculos, afirma que “o crime se reduz progressivamente somente
para as ofensas contra as pessoas; enquanto que as formas religiosas
de criminalidade declinam, resulta inevitável que a força (violência)
por meio do castigo se torne mais frágil”, já que os sentimentos
coletivos de religiosidade que eram a base do sistema penal nas
sociedades pré-modernas têm diminuído.
Ao descrever a evolução das formas do castigo penal o autor
distingue uma criminalidade religiosa, ligada às sociedades pré-
-modernas e baseadas na “solidariedade mecânica”, e uma crimina-
lidade posterior ou moderna a que reserva o nome de criminalidade
humana. O papel da religiosidade nos povos primitivos implicava
que a criminalidade consistia quase unicamente em não “cumprir
com o culto, em violar as proibições rituais, em separar-se dos cos-
tumes dos velhos, em desobedecer à autoridade, ali onde estava
fortemente constituída”. Nas sociedades modernas (as europeias
90 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

de então), “o crime consiste essencialmente na lesão de qualquer


interesse humano. Essas duas formas de criminalidade diferem
profundamente porque os sentimentos coletivos que ofendem não
são da mesma natureza”.
Essa posição de Durkheim leva-o a afirmar que quanto mais se
consideravam certos seres, bens ou valores superiores à natureza
humana, mais se considerava qualquer transgressão uma violação
ao sagrado, e o castigo em sua crueldade e em sua publicidade cum-
pria una função simbolicamente reparadora da autoridade violada,
que é desconhecida pela concepção de delito. Isso o faz perguntar:
“Qual é a importância do sofrimento individual quando se tem um
Deus que deve ser apaziguado?”. De todas as maneiras também
cabe ressaltar que se os deuses religiosos na sociedade moderna re-
cebem uma menor proteção da lei, a ordem social instalou “outros
deuses” seculares, como a pátria, a nação, o Estado.
Contudo, é um tanto singular que o enfoque durkheimiano
acerca “da evolução das leis penais” se centre na mudança de con-
cepção do que se considera um delito-crime. Compartilho com ele o
relativismo geográfico e/ou social-temporal que implica a propos-
ta, mas me parece ser um tanto insuficiente para explicar a mudan-
ça na política penal que aconteceu com o advento da Modernidade,
essa nova ordem social que produziu a burguesia e a economia de
mercado nos finais do século XVIII. A esse respeito, a hipótese de
Michel Foucault de explicar as mudanças na política penal em fun-
ção da passagem das “sociedades de soberania” para as “sociedades
disciplinares” me parece uma explicação muito mais sólida do que
a simples secularização da sociedade, conforme assinala Durkheim.
Creio assim que Durkheim se move em um esquema que con-
sidera a punição como dada automaticamente pela “consciência
coletiva”, enquanto Foucault assinala que, na verdade, a punição
está subordinada à política (penal), sendo uma das ferramentas que
sustentam a ordem social, como outras (a tolerância, a ocultação ou
a participação por parte do poder em atos ilegais). Que outra coisa
é a apelação à “razão de estado” ou ainda ao “estado de exceção”
(Agamben, 2004) que tem se tornado uma forma permanente de
governo? Enfim, a nova ordem instaurada pela Modernidade não
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 91

persegue o delito (ou alguns delitos) por ser um delito, mas sim para
construir uma ordem disciplinar e para que esta ordem seja inte-
riorizada por toda a sociedade. Não outra coisa quer dizer Foucault
(1978, p.76) quando afirma que no início da sociedade moderna não
se tratava de punir, mas de punir melhor, o que significa que o poder
de punir deveria ser aceito por um novo subjugado, o povo como
sujeitado moral. Assim, paradoxalmente, se pode dizer que o poder
de punir foi transferido para a sociedade que, em conjunto, deve re-
futar a delinquência que sempre existe como una tentação perigosa.7
A exemplificação que traz Foucault (1976) da crueldade do
suplício público imposto ao regicida Damiens e seu progressivo
declínio, já que substituído pelos regulamentos da fábrica-inter-
nato-manicômio-prisão, cinquenta anos depois, indica de que se
trata a constituição da nova ordem social: a punição aparece como
residual, como expressão da moralidade. O mesmo sentido adquire
o desaparecimento da “cadeia de forçados”, em meados do século
XIX (Foucault, 1976). Mais que isso, as mudanças que ocorreram
no sistema criminal a partir do Renascimento e com o advento da
Modernidade podem dar outra pista para entender a complexidade
que não está expressa na tese de Durkheim, embora se possa aceitar
que, de maneira geral, ela tenha provocado uma mudança na con-
cepção social do que é delito.

O fora da lei

Diz Michel Foucault (2000, p.43): “Se estiver presente no fundo


de si mesmo, a lei não seria já a lei, senão a suave interioridade da
consciência”. Portanto a existência da lei lembra o que está fora,
externo a nós. Lembra não somente a obrigação que temos de aceitar

7 “Ha sido absolutamente necesario constituir al pueblo en sujeto moral, sepa-


rarlo pues de la delincuencia, separar claramente el grupo de los delincuen-
tes, mostrarlos como peligrosos, no solo para los ricos sino también para los
pobres, mostrarlos cargados de todos los vicios y origen de los más grandes
peligros. De aquí el nacimiento de la literatura policial y la importancia de
periódicos de sucesos, de los relatos de horribles crímenes” (Foucault, 1978).
92 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

a lei, mas a ameaça que existe de sermos punidos em caso de seu não
cumprimento. Mas se isso parece uma resposta simples ao esquema
delito-pena (como antes fora pecado-pena), isso não é real. Michel
Foucault (1976) lembra-o quando diz que “deve-se desprender da
ilusão de que a penalidade é antes de tudo uma maneira de reprimir
os delitos […], é um fenômeno social complexo que não pode ser ex-
plicado pelo direito ou pela ética”. Trata-se do problema da ordem,
de uma ordem, e não de um problema moral ou ético, já que o sistema
jurídico moderno não é produto de um progresso racional nem resul-
tado da filosofia humanista, mas produto de certas relações de força
que se resolvem (ou se resolveram) de maneira violenta, em cenários
de guerras e na produção de poder: disso tem surgido e surge a lei.
Essa imposição requereu um leque de situações materiais e cultu-
rais que podem ser assim resumidas:
a) A mudança na natureza do poder de punir a partir do século
XIV que deixou de responder a uma ordem religiosa ou teo-
lógica e passou a responder a uma ordem secular e profana,
produto da derrota militar do poder do cristianismo católico.
A lei não é inerente ao que é justo, e o justo não é dado pela
revelação. A partir desse momento, e de forma progressiva, o
conceito de justiça advém somente da aplicação da lei.
b) A mudança na natureza da ordem social que vai de justifica-
ções éticas ou morais para o direito ou lei como uma necessi-
dade para a convivência. Essa noção desenvolve-se em paralelo
à perda progressiva da importância do pecado para a ordem
social que vai sendo suplantada pela noção de delito descrito
na lei e que responde à necessidade de previsibilidade frente
a interpretações religiosas ou morais das condutas humanas.
c) O confisco ou a expropriação gradual do poder de punir por
um “terceiro” que tem mais poder, que monopoliza o poder:
na verdade um “guerreiro triunfante” que se institucionaliza
transformado em governo-Estado e que monopoliza a coerção,
a legislação e a tributação.
d) A grande mudança ou as mudanças no sistema de justiça penal
ocorrido ao final do século XVIII, particularmente na redução
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 93

dos castigos públicos suplicantes (necessários nas sociedades


de soberania) e a generalização da prisão (expressão da socie-
dade disciplinar).
e) A perda do poder de julgar e punir por parte de órgãos esta-
tais especiais, fato que acompanha o processo crescente da
codificação geral, a adoção de tribunais letrados, a ideia do
caráter corretivo da pena e com isso a construção de uma nova
subjetividade que seria “a alma da lei”.
Em suma, com o advento da sociedade disciplinar a ênfase não
está tanto no julgar-punir uma ilegalidade, mas em algo diferen-
te: desvendar o significado individual e social desse ato, saber o
que é esse ato (idem), que causalidade pode tê-lo produzido, que
racionalidade o anima, que medida apropriada se deve tomar. En-
fim, outra verdade deve ser desvelada, já que o ato a julgar-punir
é um complexo enigma científico-jurídico que requer a revelação
de outra verdade, além da jurídica, não tanto por um imperativo
moral, mas para preservar a ordem social. Atentar contra a pro-
priedade e atentar contra o direito de propriedade têm significados
qualitativamente distintos para a ordem social e, portanto, para a
política penal. Por isso, a ordem social requer uma racionalidade
penal guiada pela política e não pela moral, ainda que a invoque.
A expropriação do poder de punir pelo Estado não é então uma
“humanização” da ação de punir, é um ato de poder (somente pune
quem tem poder sobre outro que não o tem). Esse ato recorda a
todos quem detém o poder, por isso o poder-lei “protege o infrator
da vingança da vítima”, só que não o faz para protegê-lo, mas sim
para passar uma mensagem de que o poder e o poder de castigar
pertencem somente a ele.

A retórica e a ficção

Essa lógica penal tem sido historicamente acompanhada de uma


liturgia de solenidade, um ritual que expressa hierarquias e que ou-
torga distância dos “litigantes” e que é, em especial, acompanhada
94 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

da força de um imaginário coletivo acerca de um inimigo social sobre


o qual toda a sociedade demanda que se puna. Essa “transferência”
para a sociedade do ardor da punição, e a legitimidade da punição, é
um objetivo que está sempre à mão, embora inalcançável de maneira
definitiva: continuamente o poder tem de alimentar, abonar e jus-
tificar sua política criminal porque a interpretação geral ou do bem
comum presente nesse imaginário contém também desejos de equi-
dade, de igualdade, de felicidade. Nesse sentido, Bronislaw Baczko
(1999, p.21) afirma:

Para que uma sociedade exista e se sustente, para que se possa


assegurar um mínimo de coesão e até de consenso, é imprescindível
que os agentes sociais creiam na superioridade do fato social sobre
o fato individual, que tenham uma “consciência coletiva”, um sis-
tema de crenças e práticas que os una em uma mesma comunidade,
instância moral suprema a todos que aderem a ela […]. Existe uma
conexão íntima e inevitável entre o comportamento e a representa-
ção coletiva.

Essa ideia de Bazcko acerca da consciência coletiva como “uma


instância moral suprema à qual todos aderem” precisa ser atenuada
à luz da realidade da generalização de comportamentos ilegais (Pe-
goraro, 2003), mas permanece como uma ilusão tranquilizadora.
A relação entre justiça e punição, tal como venho afirmando, é
complexa porque precisamos nos separar dos ideais moralistas para
desvelar a realidade do continuum ordem social-justiça-política ju-
dicial. Como disse David Garland (1999, p.89):

Os rituais não somente expressam emoções, as suscitam e orga-


nizam seu conteúdo, proporcionam uma espécie de teatro didático
por meio do qual se ensina ao espectador o que sentir, como reagir
e quais sentimentos exibir nessa situação. Os rituais – incluindo os
rituais de justiça penal – são cerimoniais que mediante a manipu-
lação da emoção despertam compromissos de valor específico nos
participantes e no público e atuam como uma educação sentimental
gerando e regenerando uma mentalidade concreta.
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 95

Aqueles cerimoniais suplicantes das sociedades pré-modernas


nas quais o ritual invocava a lei deixaram de ser funcionais na so-
ciedade disciplinar, como analisou Foucault acerca da “cadeia de
forçados”,8 o que é consonante à dissolução do Antigo Regime,
sendo substituídos pela prisão, a pena do cárcere, forma mais ade-
quada ao imaginário da sociedade burguesa. Mas o ritual do poder,
o cerimonial e sua liturgia mantiveram-se e se mantêm sob outras
formas e com outras justificações: já não é a pessoa do soberano
agredido quem reclama o castigo e a aplicação da lei, mas sim toda
a sociedade, que se sente agredida pela violação do pacto social e
reclama a punição por meio de seu representante: o poder judicial,
mas guiado pela preservação da ordem social em vez da lei.
Entretanto, qual é a importância atual do sistema judiciário na
sociedade moderna9 para a manutenção e reprodução da ordem
social? É certo que a ordem social é resguardada pelo sistema judi-
cial? Ou é somente um aspecto residual do controle social em uma
sociedade de consumidores, já que a ética do trabalho se tornou
supérflua (Bauman, 1999)? Como diriam os criminalistas, o direito
judicial se deve usar como ultima ratio, nos casos em que todas as
outras formas de controle foram insuficientes para manter a ordem.
Mas vale a paródia acerca da punição: a ordem não é perturbada
por crimes comuns. Mesmo os crimes mais atrozes, com dezenas de
mortos e centenas de feridos, como foram, por exemplo, o atentado
na Embaixada de Israel ou na Mutual Judia (Amia) ou o assassinato
do jornalista José Luis Cabezas ou o de María Soledad, somente

8 “A todas las ciudades por donde pasaba, la cadena de forzados llevaba su fies-
ta. Eran las saturnales del castigo; la pena se tornaba en ellas privilegio. Y por
una tradición muy curiosa que parece sustraerse a los ritos ordinarios de los
suplicios, provocaba menos entre los condenados las muestras obligadas del
arrepentimiento que la explosión de una alegría loca que negaba el castigo […]
El aquelarre de los condenados respondía al ceremonial de la justicia por los
fastos que inventaba. Invertía los esplendores, el orden del poder y sus signos,
las formas del placer” (Foucault, 1976, p.265).
9 Prescindo com isso de outras qualificações sobre a atualidade que são usadas
por diversos autores como “modernidade tardia”, “sociedades pós-moder-
nas”, “sociedades pós-industriais” etc.
96 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

para citar alguns,10 não perturbam a ordem social. Pelo contrário, o


pretenso ataque à ordem social que produzem esses delitos e a res-
posta quase sempre só retórica por parte do Estado mina de outras
formas organização, outras formas de construção de subjetividade,
não terminantemente submetidas aos valores da sociedade mo-
derna, e reforçam a ordem e a segurança (lei e ordem) que exige o
imaginário coletivo comovido por esses fatos.
Essa subjetividade construída em grande parte pelos medos e
pela insegurança que produz o mercado, agora mais e mais glo-
balizado, em uma sociedade de consumo, é a base que legitima
socialmente a política judicial dirigida aos pobres, aos fracos, aos
excluídos, como se fossem eles que produzissem os medos e inse-
guranças. O mercado tem como paralelo um Estado encarcerador,
que enche as prisões com aqueles “imprestáveis” que a ordem so-
cioeconômica produziu (Wacquant, 2000). Como coloca ironica-
mente Zygmunt Bauman (2000, p.140) ao falar da política penal na
sociedade moderna:

Na atualidade, os pobres são antes de tudo “não consumido-


res”, já não “desempregados”… O mundo seria tão agradável sem
eles! Não necessitamos dos pobres; por isso não os queremos. Eles
podem ser abandonados a seu destino sem o menor ressentimento.

A legitimidade da política criminal da atualidade está em tornar


mais e mais invisíveis os pobres que são reduzidos e confinados em
guetos (cortiços, favelas, bairros) ou prisões: “Ao mesmo tempo, a
obediência à norma e a ‘disciplina social’ ficam asseguradas pela se-
dução dos bens de consumo mais do que pela coerção do Estado e das
instituições panópticas” (idem, p.139).
Observemos o pensamento clássico sobre o direito de punir de-
senvolvido por Cesare Beccaría em De los delitos y las penas. Ao argu-
mentar fortemente contra os suplícios e certas punições, em especial a

10 Esses exemplos têm como referência a Argentina da última década do século


passado, mas são generalizáveis a outras sociedades.
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 97

pena de morte, Beccaría não vacila em sustentar uma visão da ordem


social como o bem máximo a tutelar: “a pena de morte não é um direi-
to, e como tenho demonstrado não pode sê-lo, o é somente na guerra
de uma nação contra um cidadão, por julgar útil ou necessária a des-
truição de seu ser” (1994, p.74). Como podemos ver, esse expoente
do humanismo não duvida em justificar a pena de morte quando está
em perigo a nação, ou seja, a ordem social. Segue dizendo:

Por somente dois motivos se pode crer ser necessária a morte de


um cidadão. O primeiro quando ainda privado de liberdade tenha
tais relações e tal poder que interessa à segurança da nação; quando
sua existência pode produzir uma revolução perigosa na forma de
governo estabelecida. (ibidem)

Assim, Beccaría justifica a aplicação do castigo máximo, a pena


de morte, somente quando está em jogo o poder: “quando ainda
privado de liberdade tenha tais relações e tal poder que interesse
à segurança da nação”, diz. Os delitos chamados “comuns” não
ameaçam o poder, simplesmente o violam como produto de alguma
paixão momentânea, alguma irracionalidade, alguma patologia ou
pulsão extrema: nada para preocupar o poder. Parafraseando Ho-
bbes, os homens perigosos são aqueles que depreciam as leis e não
tanto aqueles que as violam.
E assim entramos no tema da periculosidade em relação à ordem
social da Modernidade e, portanto, na política de punição. Refiro-
-me às variáveis necessidades da ordem social e por isso também às
mutáveis formas de controle social. Isso é o que Michel Foucault
assinala como a passagem das sociedades de soberania para as so-
ciedades disciplinares, não por uma questão evolutiva da humani-
dade, mas pelas necessidades estruturais da nova divisão social do
trabalho e do mercado. O trabalho precisou ser submetido ao mer-
cado e isso requereu uma política de punição dos pobres que adqui-
riu formas extremadamente cruéis, não tanto para castigá-los, mas
para discipliná-los, claro que não economizando na crueldade. Isso
significa que já não era possível nenhuma alteridade à sociedade
98 JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA • LEILA MARIA FERREIRA SALLES

de mercado e ao lugar que o trabalho assalariado ocupava nela.


Lembramos aqui o momento da reforma da Lei de Pobres, em 1834,
(Polanyi, 1992, p.11) que eliminou a obstrução do mercado de tra-
balho entendido como o “direito a viver”.
Mas voltamos ao pensamento de Durkheim sobre a necessidade
de justificar a punição pela enormidade do crime, que, embora não
mais referido a um imaginário teológico, necessita de outro imagi-
nário, a ordem social, também fundada supostamente na moral e
guardada por um ser transcendente – o Estado:

Tal é a origem dessas teorias, tão difundidas ainda hoje, que de


acordo com as quais a moral carece de toda base se não é apoiada em
uma religião, ou pelo menos, sobre uma teologia racional, ou seja,
se o imperativo categórico não emana de algum ser transcendente.
(1999, p.88).

A sociedade moderna secularizada requer uma “teologia racio-


nal”. Recordemos aquela ideia do próprio Durkheim já citada: “Qual
é a importância do sofrimento individual quando é um Deus que
deve ser apaziguado?”
Mas há algo novo que é a gestão da insegurança como ferramenta
de controle social (Pegoraro, 1997), a insegurança que é produzida
pela retirada do Estado do welfare, aquele Estado paternalista que
pretendia reduzir os excessos cruéis do mercado autorregulado
que produz a concentração da propriedade e das políticas econômi-
cas em mãos das grandes corporações transnacionais. Quero dizer,
a necessidade do Leviatã reaparece porque o problema da ordem é
a insegurança, o que tautologicamente nos remete para um Estado
frágil. O paradoxo disto é que a reivindicação da sociedade não é
direcionada à fraqueza do Estado frente às forças sociais do merca-
do, mas para que se resolvam ou se reduzam os delitos interpessoais
(comuns) que produzem uma sensação de insegurança.
Resumindo, o uso da retórica para a justificação do poder de pu-
nir, tal como desenvolvida por Hobbes, pode parecer convincente:
JOVENS, VIOLÊNCIA E ESCOLA 99

Fora do Estado (da civitas) os homens não têm mais que suas
próprias forças para se proteger [...]. Fora da sociedade civil rei-
nam as paixões, a guerra, a pobreza, o medo, a solidão, a miséria, a
barbárie, a ignorância e a crueldade. Na ordem que impõe o Estado
a razão, a paz, as riquezas, a decência, a elegância, as ciências e a
tranquilidade reinam em toda a parte.

Porém, se esse esquema entre estar fora ou estar dentro da so-


ciedade fosse certo, as aspirações milenares teriam se cumprido
e não seria necessária referência alguma à complexa relação entre
ordem social e política judicial.

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