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V i a g e n s G e r a i s : u m ge s t o n a v e ga n t e

G en e ra l J o u r n e yi n g : a n a v i g a ti n g g e st u r e

Sonia PRIETO1

Resumo: Este artigo se propõe a explicitar, a partir da leitura da obra de Celina de Holanda, a concepção do
fazer poético que sustenta a dicção celiniana. Nessa perspectiva, analisa a produção poética da autora
reunida no livro Viagens Gerais, depreendendo da tessitura dos poemas os elementos constitutivos das
modulações da voz lírica.
Palavras-chave: Enunciação lírica. Celina de Holanda. Simbologia do branco.

Abstract: This article aims to explain, from a close reading of Celina de Holanda's work, the conception of
poetry-making that sustains her diction. From this perspective, it analyzes the author’s poetic production
assembled in the book Viagens Gerais, inferring from the tessiture of her poems the constituent elements of
the lyrical voice modulations.
Key works: Lyrical enunciation. Celina de Holanda. White symbology.

Elegi como eixo da leitura da obra de Celina de Holanda a temática da viagem em


seus múltiplos matizes de significação, destacando a simbologia que constrói a voz lírica
de Celina: tematização da condição de viajante/passageira no tempo, definidora da
natureza humana. Este exercício de leitura está dividido em duas partes. Na primeira,
apresento a concepção do fazer poético que perpassa sua obra; na segunda, analiso a
constituição da sua voz, que se anuncia e assume como um “gesto navegante”.
Em Viagens Gerais2, Celina de Holanda elabora as diretrizes de sua poética, que
pode ser depreendida do poema O branco, transcrito a seguir:

Era branco o princípio. Era branco


e desnudo e era propício
à ordem inicial.
E havia apenas a semente, que
é o desejo do verde (depois cor)
branco, na harmonia essencial.
Era branco o desejo da poesia
a sua busca e espera, que a expressão

1
Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP.
2
HOLANDA, Celina de. Viagens Gerais. Recife: FUNDARPE-CEPE, 1995.
Esse volume reúne a produção poética de Celina publicada a partir de 1970. Abrange os seguintes livros: O espelho e a rosa (1970), A
mão extrema (1976), Sobre esta cidade de rios (1979), Roda d’água (1981), As viagens (1984), Pantorra, o engenho (1990), bem como
as obras inéditas Afago e Faca, Tarefas de Nigiam e As elegias. Os poemas citados neste trabalho remetem para essa edição, com a
indicação da página entre parênteses logo após o texto transcrito.
Viagens gerais: um gesto navegante
Sonia Prieto

final, contaminou.
(p. 270)
Esse poema elabora uma concepção do fazer poético como “busca e espera” da
integridade daquilo que dá sustentação e inteireza ao homem, princípio metaforizado
pela imagem da semente que se faz “verde” e se realiza na “harmonia essencial”. Desse
poema, pode-se inferir uma concepção sobre a gênese e a natureza da poesia – poesia é
instauração / criação de um mundo humano, de um olhar singular e concreto sobre o
mundo na e pela palavra. Na escrita poética de Celina de Holanda, essa nomeação do
mundo, esse olhar, concretiza-se numa densa constelação de símbolos, cujo núcleo
vincula-se à simbologia do branco. Antes de ouvirmos a voz de Celina, vejamos em que
consiste essa simbologia.
Segundo Chevalier e Gheerbrant, o branco é símbolo ambivalente, desdobrando-se
em duas vertentes: 1) como ausência de todas as cores, associa-se às imagens da noite e
da morte; 2) como soma de todas as cores, remete para a vida. Assim, o branco
representa a dualidade do início e do término da vida diurna e do mundo manifesto e, em
32
ambas as modalidades, é símbolo da passagem. Na segunda vertente de significação, o
branco é símbolo do princípio, aglutinando as imagens da alvorada e do retorno, e
configura-se como origem transbordante de possibilidades, como rico potencial de
manifestações, concentrando uma dimensão solar. Nesta acepção, o branco é a cor da
revelação, da graça, da transfiguração que desperta o entendimento, da “consciência
diurna desabrochada que morde a realidade”. 3
As Viagens Gerais apresentam traços dessa simbologia, predominando no
imaginário dos poemas as significações metafóricas do branco. Retomando o poema em
questão, pode-se verificar que o texto ostenta uma instância enunciativa atemporal – “Era
branco o princípio” – princípio “desnudo”, “semente” que se deseja “verde”, plena de
vida. Metaforicamente, a brancura virginal da origem desloca sua significação para a
criação poética (“Era branco o desejo da poesia”), de forma que esta se concebe “desejo”

3
Sobre a simbologia do branco, ver CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989,
p. 141-144.

Revista FAFIRE, Recife, v. 8, n. 1, p. 31-39, jan./jun. 2015.1


Viagens gerais: um gesto navegante
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e também “semente” – matriz originária de onde brotam as possibilidades ilimitadas do


dizer, e que “contamina” (povoa de sentidos) a expressão. Assim, a poesia tem sua gênese
num silêncio absoluto, num nada pleno de virtualidades. Em decorrência, a natureza da
poesia identifica-se com o movimento da passagem de uma integridade improferida, não
nomeada, para a voz poética que a busca. Essa busca se evidencia em inúmeros poemas
de Viagens Gerais. Dentre eles, destaco Verde e O Silêncio e o Canto I:

Verde

Tomo
esta branca intenção
e me retêm
as palavras que busco
e que ultrapassas.
Assim eu rezo hoje
como a corça ligeira
e toda branca
no verde que a circunda e onde repousa.
Assim teus braços me esperassem verdes
no silêncio de paz que eu busco tanto. 33
(p. 292)

O Silêncio e o Canto I

As palavras são nomes,


variedades.
Só o silêncio guarda
a integridade.
Que o meu silêncio seja o espelho
que te aguarda
na expectativa de reter
a vislumbrada Face Verdadeira.
(p. 293)

Nesses poemas, reitera-se a insistência no silêncio como fonte originária do fazer


poético, agora conjugado à imagem do espelho que aguarda apreender a origem. Na obra
de Celina de Holanda, a enunciação lírica configura-se como “espelho” que colhe e acolhe
a integridade do princípio, na “expectativa de reter / a vislumbrada Face Verdadeira”. A
natureza dessa acolhida pode ser identificada pela leitura do poema As rosas II, em que o
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branco da origem (possibilidades ilimitadas) vem associado à simbologia do vermelho,


num processo de comunhão que permite à consciência lírica fecundar o real de sangue e
vida: a semente inicial desabrocha em “rosas maduras”. Vejamos:
As rosas II

Não me dêem chaves, quero


as coisas amplas,
que chamam para onde estão
e devem estar
(a rosa sobre o roseiral).
Meus jarros são meus crimes
praticados, apenas porque sou
prisioneira,
de paredes, convenções
e do meu sofá.
As rosas dos meus jarros
são maduras
como escravas possuídas. Falam
deserto, fuga
e cavalos vermelhos.
Há um deserto de rosas
e de sangue
que eu quero vivo:
– Todas as coisas vivas. 34
(p. 277)

Na poética de Celina de Holanda o fazer poético se revela um permanente re-fazer


em busca da “expressão final” – palavras essenciais capazes de revelar a força ordenadora
e vital de todas as coisas. Seria essa a busca da palavra em Celina. Como atingi-la? Vendo
o verso “com os olhos do inimigo”, concebendo o fazer poético como reelaboração lúcida
e crítica do real, como se pode verificar no excerto do poema de abertura de Viagens
Gerais, transcrito a seguir:

Viajo pelos livros que faço,


mas sempre torno
para escrevê-los
(p. 21)

E também no fragmento do poema Além do nome

Um amigo ensinou-me
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a ver o verso
com os olhos do inimigo
(p. 118)

As acepções em que Celina emprega as palavras “branco” e “inimigo” parecem


claras: tudo nela mostra que a busca da integridade do real se exerce num processo
dialético, onde o fazer implica o refazer vigilante, capaz de intensificar a contaminação da
“expressão final” pela vitalidade da promessa e desejo do branco. Sua produção poética
se constrói a partir desse solo, elaborando a emoção de forma reflexiva, por meio de um
exercício de criação marcado pela economia verbal e pela concisão da linguagem.
Assim, não apenas no título, mas como ato poético de linguagem, Viagens Gerais
nos remete para a simbologia do tema da viagem: travessia em que se dá a
problematização da existência. Seus símbolos – água, espelho (e porta e janela), pássaro,
sangue, o vinho (e o vermelho), o verde, articulados às significações metafóricas do
branco – tornam-se a representação de um núcleo denso, enraizado na trajetória de
Celina, uma andança por veredas pessoais que vai construindo a identidade da 35
consciência e da voz poética, como se pode depreender da leitura do poema que segue:

Com um novo corpo

A realidade é a possibilidade
e mais o sonho
às vezes triste como os olhos
de um animal surpreendido.
Mas é preciso crer
com um novo corpo
de olhos ilegíveis, boca para calar
e o pulo pronto para saltar sobre o medo
quando o medo chegar.
(p. 182)

Com esse “novo corpo” fortalecido e capaz de vencer o medo – consciência


desabrochada a derramar-se – a voz poética transborda para a realidade, revelando suas
múltiplas faces, constituídas pela sedimentação das memórias (infância / avós / retratos /
verde / rio / mar), e construindo, ao mesmo tempo, um espaço vital de onde colhe a
imagem do outro, o que engendra novos matizes simbólicos: porta e janela / sofá / mesa
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são as metonímias desveladoras dessa abertura, e remetem à simbologia da casa4. Recinto


alegórico, a casa é símbolo feminino, com o sentido de refúgio, ventre, seio materno,
proteção e, sobretudo, espaço onde se realiza a comunhão com o outro, nas imagens da
dupla acolhida – a do amado e a dos amigos.
Assinalei anteriormente que a constelação simbólica do branco, na sua dimensão
diurna, constitui o eixo da poética de Celina, eixo irradiante que se amplia pela associação
da brancura da origem com o amor e a amizade, concentrando, portanto, a energia vital
advinda da penetração, no espaço metafórico da casa, da força solar do amado e dos
amigos. São inúmeros os poemas, em Viagens Gerais que atestam essa relação com o
outro sob a forma de acolhida. Dentre eles, destaco:

Afago e faca

Pedi ao meu amado


uma palavra
de amor e universal
e ele, forte, deu-me duas:
afago e faca. 36
Por elas eu o amarei
muito mais.

No mesmo peso de amor


que as torna iguais.
(p. 27)

Tema do Silêncio II

Nada aprendi sobre o silêncio


e ele me exige mais perto
que o seu exterior,
ele me quer dentro de si
(escura terra) e fala
com a voz do meu amado morto.

Que a vida, sempre volta à vida


quando é livre.

Mas os amigos chegam


me tomam pela mão
e um deus reina comigo.

4
Idem, p. 196-197.
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Viagens gerais: um gesto navegante
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(p. 115)

Entretanto, os caminhos da criação poética de Celina não revelam somente uma


dimensão solar nas imagens que perpassam seus poemas; apontam ainda uma outra face
da voz lírica. Viagens Gerais se instala num universo simbólico em que se interpenetram
imagens solares e imagens noturnas, fundamentando-se na ambiguidade do “branco
silêncio”, metáfora constituída pela congeminação das duas constelações semânticas do
regime simbólico do branco. Há, pois, na obra de Celina, o entrelaçamento, no mesmo
espaço textual, dessas duas correntes de imagens que modelam a voz lírica. Pela
conciliação da vitalidade solar com as imagens do nada, do silêncio e da morte, que se
instaura em sua obra a partir da publicação de A mão extrema, o canto lírico vai
assumindo um tom elegíaco, plangente, canto agora de luto e tristeza.
Acredito que A mão extrema, publicado em 1976, seja uma obra decisiva no
percurso poético de Celina, porque nesse livro a consciência lírica agudiza a percepção de
si mesma – a palavra “devagar me trouxe a mim” e se fez “ponte entre o medo e a
37
coragem” – ao mesmo tempo em que agudiza também a reflexão sobre a condição
humana, concentrando seu processo de olhar o mundo e olhar-se na imagem do “branco
despojado”. Vejamos dois poemas elucidativos dessa modulação da enunciação lírica:

Tempo Devoluto

A carne triste
guarda o silêncio
que o tempo pasma
de ver intacto.

Transita a morte
que não consome
mais que a distância
da longa espera.

Os deslumbrados
olhos exultam
da pedra erguida
na noite sua.

Mais numerosos
do que as torrentes
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buscando o abismo
os homens seguem.

Enquanto a terra
que gera, alarga
seus lagamares.
(p. 299)

Corpo-Presente

O gesto navegante.
Terra tornada indiferente
ao sol. Taça esgotada.
Matriz dos gestos perpetuados
que voz te obriga mais
que os nomes
tão amorosamente nomeados?
Condutora nau (levas ou deixas)

E este branco silêncio, de lírios


entre os lábios.
(p. 363)

Esses poemas assinalam uma consciência lírica que se recolhe em si mesma – 38


consciência lagamar – num estado de absorção em que o noturno vai penetrar no diurno,
reunindo vida e morte. Nessa conciliação, as duas linhagens semânticas da poética
celiniana tendem à sobreposição de uma na outra. Perpassam os poemas as imagens da
quietação, da imobilidade, da suspensão, introduzindo a consciência lírica no mundo
lunar. Em decorrência, as significações metafóricas remetem para a cor da bruma,
cristalizando-se como “branco silêncio”, limite e ponto de junção entre o visível e o
invisível, a desvelar sua condição de “navegante” de gestos perpetuados, passageira no
tempo e amorosamente em estado de espera e fluidez. Novas imagens alargam o
imaginário dos poemas: lírio / taça esgotada / terra indiferente / lagamares, e atestam a
dimensão, agora fosca e lunar, do branco.
Feminina e pungente voz lírica, a poética celiniana configura-se como um processo
de elaboração e reelaboração do sentimento reflexivo, num exercício de criação
perpassado por uma movência de sentidos e de figuras.

Revista FAFIRE, Recife, v. 8, n. 1, p. 31-39, jan./jun. 2015.1


Viagens gerais: um gesto navegante
Sonia Prieto

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1989.
HOLANDA, Celina de. Viagens gerais. Recife: FUNDARPE, 1995.

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Recebido em: 16/02/2016
Aprovado em: 24/02/2016
Para referenciar este texto:
PRIETO, Sonia. Viagens gerais: um gesto navegante, Revista FAFIRE, Recife, v. 8, n.1, p. 31-39, jan./jun.2015. 39

Revista FAFIRE, Recife, v. 8, n. 1, p. 31-39, jan./jun. 2015.1

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