Você está na página 1de 3

POEMA II DE “O GUARDADOR DE REBANHOS”

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no Mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,


E a única inocência é não pensar...
ANÁLISE DE CONTEÚDO
O poema inicia-se com uma comparação, «O meu olhar é nítido como um
girassol», que destaca a importância que o olhar adquire para o sujeito poético
na perceção e na compreensão da realidade. À semelhança do girassol, que
acompanha o movimento do sol, também o eu lírico, enquanto deambula pelos campos
(«Tenho o costume de andar pelas estradas»), olha em todas as direções («Olhando
para a direita e para a esquerda, / E de vez em quando olhando para trás») para
contemplar e conhecer o mundo que o rodeia.
Ao observar a realidade, revela a surpresa e o fascínio a cada momento («E o
que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto,»); trata -se da
surpresa e do deslumbramento semelhantes aos de uma criança que acaba de nascer
(«Sei ter o pasmo comigo / Que teria uma criança se, ao nascer, /Reparasse que nascera
deveras…»). De facto, o sujeito poético pretende observar o mundo com a inocência
e a felicidade primordiais, como se visse tudo pela primeira vez: «Sinto -me nascido
a cada momento / Para a eterna novidade do mundo...».
Na segunda estrofe, evidencia-se a dicotomia sentir / pensar.
Aludindo ao mundo natural, o eu lírico revela que acredita na realidade
porque a vê. Na verdade, na linha do sensacionismo, aqui representado pelas
perceções captadas pela visão («Creio no mundo como num malmequer, / Porque o
vejo.»), o sujeito poético afirma rejeitar o pensamento como modo de alcançar o
conhecimento: «Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender… / O mundo
não se fez para pensarmos nele». De facto, tanto as afirmações iniciadas
pela anáfora presente nos versos 14 e 15 («Porque…» / «Porque…») como
a metáfora «(Pensar é estar doente dos olhos)» salientam a primazia das sensações
sobre a razão.
Na terceira estrofe, o sujeito poético retoma a relação entre sentir e
pensar quando afirma «Eu não tenho filosofia, tenho sentidos…», sublinhando
o primado das sensações sobre o pensamento.
Voltando ao exemplo da «Natureza», destacada pelo uso da maiúscula inicial,
o eu lírico defende que, para compreender o mundo, basta percecioná -lo através das
sensações, não sendo necessário problematizá -lo, ideia que é ilustrada pelas repetições
dos versos 22 e 23: «Porque quem ama nunca sabe o que ama / nem sabe porque ama,
nem o que é amar…». Efetivamente, não é pensando sobre a realidade que a
conhecemos ou a amamos; apenas pelos sentidos a podemos fruir e estimar.
Na última estrofe, o sujeito lírico conclui o poema, desvalorizando o
pensamento e a racionalização do real. Fá-lo através de dois versos que assumem o
valor de uma máxima («Amar é a eterna inocência, / E a única inocência é não
pensar…»), que é formulada em jeito de um silogismo incompleto, cuja conclusão
seria «Logo, amar é não pensar».

ANÁLISE FORMAL
O poema é constituído por quatro estrofes com um número irregular de versos.
Esta irregularidade também se verifica na métrica e na rima, sendo os versos livres
e longos, lembrando a prosa.
Esta liberdade formal vai ao encontro da naturalidade que Caeiro advoga nos
seus poemas, recusando imposições de qualquer natureza, até poética.

EM SÍNTESE
TEMA: Perceção sensorial da realidade e rejeição do pensamento.
1ª estrofe: Defesa da ideia de que os sentidos, sobretudo a visão, são o meio que permite ao sujeito
poético percecionar e contemplar a realidade, num pasmo existencial.
2ª estrofe: Rejeição da intelectualização como modo de compreender o mundo.
3ª estrofe: Compreensão da realidade pela sua fruição sensorial, sem a problematizar.
4ª estrofe: Desvalorização do pensamento e da racionalização: contemplar e amar é não pensar.

EM ESQUEMA

Deambulação pela natureza


(«Tenho o costume de andar pelas estradas»)

Atitude de espontaneidade e de felicidade primordiais


(«E o que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto»)

Caeiro como sensacionista (poeta do olhar): caracterização objetiva da realidade


(«Creio no Mundo como num malmequer, / Porque o vejo»)

Rejeição do pensamento abstrato e da intelectualização


(«Porque pensar é não compreender... / O Mundo não se fez para pensarmos nele»)

Liberdade poética
Irregularidade estrófica, métrica e rimática, que coincide com a recusa de imposições de
qualquer tipo. A ausência de regularidade formal traduz-se num tom mais espontâneo.

Contradições na poesia de Caeiro


Afirmação do repúdio do pensamento e rejeição da filosofia, quando, de facto, os seus
poemas explanam a sua filosofia de vida.

Você também pode gostar