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A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA E O PESO DO PASSADO

Retomando um discurso do Visconde de Cairu, Christian Edward Cyril Lynch,


em introdução à coletânea Pensamento político brasileiro: temas, problemas e
perspectivas, afirma uma temporalidade específica do pensamento social brasileiro. Em
razão de sua condição periférica e colonizada, diversos intelectuais pertencentes às mais
distintas perspectivas ideológicas vivenciaram o passado como um peso que se projeta
no presente e entrava as possibilidades de um futuro diverso, de modo que as
interpretações formuladas em torno da formação social brasileira estavam vinculadas a
propostas políticas que buscavam o caminho para a modernidade a partir do afastamento
entre passado e futuro. Nesse sentido, pretendemos demonstrar como, no campo das
esquerdas, alguns intelectuais, ao formularem suas leituras acerca da formação social
brasileira, terminaram por produzir interpretações tautológicas e anti-historicistas que
elegem a revolução como caminho único para a superação do passado.
Caio Prado Jr., em seu clássico Formação do Brasil Contemporâneo,
publicado nos anos 1940, delineia uma interpretação na qual o sentido da colonização é
incorporado ao longo da história imperial e republicana. Voltado para o exterior, o
Brasil aparece como uma nação a procura de uma completude que deveria ser
impulsionada a partir da ruptura com a estrutura colonial. Nessa leitura, transformações
significativas, a exemplo da Independência ou mesmo da Abolição, embora sejam
valorizadas positivamente como etapas na superação dessa condição colonial
persistente, são subsumidas a essa densa estrutura que atravessa a história do Brasil.
Nos anos 1970, por itinerários distintos, A Revolução Burguesa no Brasil, de
Florestan Fernandes, também incorre em problemas semelhantes. O argumento de
Fernandes gira em torno da demonstração da especificidade da introdução da ordem
burguesa no Brasil. Ao contrário de Caio Prado Jr., a leitura de Fernandes enfatiza como
aquelas transformações históricas contribuem para o desenvolvimento da revolução
burguesa no país. Todavia, tais transformações não são suficientes para superar a
condição heteronômica herdada dos tempos coloniais. Esse diagnóstico marca uma
interessante interpretação acerca da modernidade brasileira orientada por uma
temporalidade complexa na qual o arcaico e o moderno convivem.
A persistência dessa heteronomia, resultado da condição colonial e periférica,
engendra as especificidades da revolução burguesa brasileira. Distante de fracassada ou
incompleta, a forma autocrática assumida por essa modernização é precisamente sua
característica essencial. Na tentativa de reafirmar seus lucros diante dos países do
capitalismo central, a burguesia brasileira se utiliza de mecanismos autoritários para
garantir a exploração e a repressão das demandas motivadas pela organização da classe
operária.
Diante disso, as experiências democráticas, tanto aquela experimentada
anterior ao golpe civil-militar de 1964 quanto a que se anunciava com a
redemocratização, são desvalorizadas. A democracia, assim como os direitos obtidos em
seu interior, figuram como formas suavizadas responsáveis por, em momentos menos
agudos da luta de classes, mascarar a face realmente autocrática da burguesia. Nos
momentos de acirramento dessa luta e de ascensão das lutas autônomas dos
trabalhadores, a autocracia é assumida com a instalação da Ditadura Militar. Em virtude
disso, os anúncios de abertura e redemocratização do país não cativam Fernandes.
Ainda pertencente a nossa condição periférica, a democracia que poderia surgir após a
Ditadura não poderia romper com a autocracia burguesa.
Na mesma década, outros autores como Francisco de Oliveira e Ruy Mauro
Marini percorrem análises semelhantes. Oliveira em suas críticas ao dualismo cepalino
demonstra que as expectativas de superação do atraso a partir de um desenvolvimento
nacional autônomo são ilusórias. Isso ocorre porque nosso processo de modernização,
em vez de eliminar seus arcaísmos, os utiliza para a produção do moderno. Na
impossibilidade da superação do atraso, avanços como a conquista dos direitos
trabalhistas são compreendidos como mecanismos que, ao possibilitar custos fixos para
a produção e estimular o mercado, contribuem para o estímulo da acumulação
capitalista.
Marini, por sua vez, partindo da teoria marxista da dependência, conduz a
discussão para a radicalidade completa. Exilado, Marini fixa o Brasil da Ditadura
Militar como um nação central para o prosseguimento da revolução latino-americana
iniciada pela Revolução Cubana. Incapaz de se desenvolver autonomamente ou de
competir com o imperialismo, a burguesia brasileira se alia sobretudo aos Estados
Unidos para tornar-se um país subimperialista, garantindo, assim, a continuidade da
super exploração do trabalho e as altas taxas de acumulação.
Tais leituras, ainda que por matizes bastante diversas, oferecem contribuições e
problemas semelhantes. Respondendo ao dilema comum acerca das bases históricas da
formação social brasileira, os autores contribuem para pensar as especificidades do país
diante do mundo, apontando para as temporalidades singularidades que caracterizam a
modernidade brasileira. Por outro lado, as leituras de Caio Prado Jr., Florestan
Fernandes, Francisco de Oliveira e Ruy Mauro Marini terminam por produzir uma
leitura tautológica da história do Brasil, na qual o rompimento revolucionário aparece
como caminho único para além da repetição.
Isso ocorre porque as transformações históricas experimentadas ao longo dos
séculos XIX e XX se encontram subsumidas a uma estrutura que se atualiza
constantemente. As ações da sociedade civil, mesmo aquelas orientadas pela
organização dos trabalhadores para a conquista da cidadania, aparecem vinculadas a um
ordenamento burguês que reduz seu significado. A democracia, por seu turno, ao ser
compreendida como uma ilusão diante do autoritarismo burguês, também tem seus
impactos diminuídos nessas leituras.
Contraditoriamente, esses intelectuais, ao proporem respostas para a superação
do peso do passado, terminaram por elaborar leituras tautológicas da história do Brasil
que, marcadas por um déficit de historicidade, são incapazes de vislumbrar as
transformações históricas que se processaram ao longo da história nacional.
Reafirmando a estrutura classista própria da modernidade periférica, passado e presente
perdem suas feições distintas, cabendo, portanto, somente a revolução produzir a
separação entre esses tempos a partir da via armada ou pacífica.

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