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Marxismo e ciência social

Um balanço crítico do marxismo analítico

Renato Perissinotto

Trinta anos após a publicação de Karl Marx’s Esta abordagem justifica-se porque é exatamente
theory of history: a defense, de G. A. Cohen, e pas- nos aspectos teóricos e metodológicos que reside
sados alguns anos do debate que ele suscitou, acre- a proposta de renovação do marxismo apresentada
ditamos ser importante discutir algumas das pro- pelos analíticos. Desse ponto de vista, aliás, justifi-
posições apresentadas pela corrente teórica que, na ca-se também a freqüência com que nos referimos
esteira desse debate, ficou conhecida como “marxis- ao nome de Jon Elster. Este autor foi, sem dúvida
mo analítico”. O marxismo analítico deu origem a alguma, o mais radical e ardoroso defensor dessa
um vigoroso programa de pesquisa que produziu um proposta metodológica. Foi ele quem mais insistiu,
sem-número de investigações sobre temas importan- de forma às vezes evidentemente exagerada, na ne-
tes no âmbito da teoria marxista, como ação coletiva, cessidade de reformulação do marxismo em dire-
organização e formação de classe, conceituação das ção a uma “teoria analítica” que conferisse àquele
classes médias, teoria econômica e da exploração e o corpo teórico maior robustez científica. Os outros
problema normativo da emancipação humana.1 autores, favoráveis ou contrários a essa proposta, de
Este texto, entretanto, propõe-se a discutir uma maneira ou de outra estão sempre dialogando
tão-somente as proposições teórico-metodológicas com Elster.2
do marxismo analítico, sem entrar na análise de No entanto, mais do que o seu ardor na de-
qualquer um dos temas substantivos listados acima. fesa da reconstrução do marxismo, o que justifica
conferir especial atenção às considerações de Jon
Artigo recebido em fevereiro/2009 Elster é o fato de ele discutir temas mais significa-
Aprovado em dezembro/2009 tivos para a teoria sociológica. G. A. Cohen, por
RBCS Vol. 25 n° 73 junho/2010

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exemplo, preocupava-se essencialmente com a “re- definiria pela sua adesão a um método específico (a
construção” do marxismo a partir de uma releitura dialética da totalidade) e não pela defesa intransi-
dos textos clássicos sob as lentes da filosofia analí- gente desta ou daquela proposição sobre eventos
tica, com o objetivo de conferir precisão lógica e particulares (Lukács, [1919] 1974, p. 24).
lingüística aos conceitos marxianos; John Romer, Essa posição, como se sabe, não é específica
por sua vez, dedica-se fundamentalmente a rede- deste autor nem de sua época. Se há uma caracterís-
finir as proposições da teoria econômica marxista tica fortemente associada ao marxismo e aos mar-
de acordo com os cânones metodológicos da teoria xistas é sua defesa permanente da especificidade e
econômica neoclássica (Tarrit, 2006, p. 600). As das vantagens do seu método ante os vícios indivi-
proposições de Elster, a nosso ver, tocam em pon- dualistas e empiricistas da “ciência social burguesa”.
tos que interessam mais diretamente à teoria socio- Desse modo, ainda em 1991, o marxista francês
lógica, como a sua crítica à explicação funcional, Alain Lipietz afirmava que, apesar de as conclusões
ao individualismo metodológico e ao problema da de Marx terem sido refutadas pela história, era pos-
ação coletiva. sível continuar sendo marxista quanto ao método e
O artigo está dividido em cinco partes: na buscar explicações mais pertinentes para o funcio-
primeira, apresentamos o traço mais marcante do namento do capitalismo contemporâneo e sua crise
marxismo analítico, qual seja, o seu objetivo de dis- (1991, p. 102).
cutir o marxismo tradicional preferencialmente do O projeto do marxismo analítico consiste, es-
ponto de vista do método; a segunda parte apre- sencialmente, na rejeição desse pressuposto do mar-
senta suas críticas à explicação de tipo funcional; xismo tradicional. Para os autores filiados àquela
em seguida, discutimos uma possível defesa desse corrente teórica, é preciso, primeiro, rejeitar as pre-
mesmo tipo de explicação a fim de avaliar em que tensões dos marxistas à especificidade metodológica
condições ela poderia permanecer como elemento e, segundo, fazer a crítica dos seus procedimentos
constitutivo do marxismo; na quarta parte, analisa- supostamente científicos. Na verdade, segundo os
mos o instrumental teórico-metodológico dos ana- marxistas analíticos, em especial Jon Elster, o gran-
líticos que, segundo seus defensores, poderia prestar de problema metodológico do marxismo – tão
grandes serviços ao avanço científico do marxismo, grande a ponto de impedi-lo de fazer ciência – é
a saber, o individualismo metodológico, a teoria da exatamente o seu método, baseado, em termos ge-
escolha racional e a teoria dos jogos; por fim, à gui- rais, em declarações de tipo funcional sem capaci-
sa de conclusão, identificaremos o que, a nosso ver, dade explicativa.
vale a pena levar em consideração nas críticas feitas Por isso, para que possamos entender melhor
pelos marxistas analíticos a fim de fazer avançar o por que o uso do individualismo metodológico e da
marxismo como ciência social. teoria da escolha racional poderia salvar o marxis-
mo dos seus pecados metodológicos é preciso com-
preender primeiro a natureza da crítica feita pelos
O problema do método marxistas analíticos à explicação de tipo funcional.

Num famoso texto de 1919, Georg Lukács


afirmava que a condição fundamental para que al- A explicação funcional não é uma explicação
guém se reconhecesse como marxista ortodoxo não
residia na adesão incondicional às teses substantivas Elster identifica cinco passos característicos de
defendidas por Marx. Um marxista, baseado nos uma explicação funcionalista, que podem ser assim
avanços da ciência econômica e da historiografia, resumidos: (i) inicialmente, constata-se que Y é um
poderia facilmente acatar a evidência dos fatos e re- efeito de X; (ii) em seguida, observa-se que Y pro-
cusar os erros de interpretação cometidos pelos clás- duz efeitos benéficos para o grupo Z; (iii) percebe-
sicos e, ainda assim, continuar sendo um marxista. se, ainda, que o efeito Y não foi intencionalmente
Isso seria possível porque um marxista ortodoxo se perseguido pelos atores sociais que produziram X;

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(iv) além disso, constata-se que a relação causal en- Como vimos, faz parte da explicação funcional
tre o evento X e o efeito Y não é percebida pelos saltar da constatação da existência de uma funciona-
membros do grupo Z; e, por fim, (v) a explicação lidade entre X e Z, por meio da produção do efeito
funcional afirma que o fato de o efeito Y ser benéfi- Y, diretamente para a explicação da persistência de
co para o grupo Z é a explicação da existência e da X. Pressupõe-se a existência de algum mecanismo
persistência do evento X por meio de um “círculo social que garanta a persistência de X apenas por ser
de retroalimentação causal” (Elster, 1989c, p. 55). ele funcional para Z, mas tal mecanismo nunca é
Supõe-se, assim, a existência de algum mecanismo efetivamente demonstrado. Nesse sentido, o fato de
que garante a ocorrência/persistência do evento o analista realizar os quatro passos acima descritos
X porque ele produz um efeito (Y) benéfico para não o autoriza, por si só, a dar o quinto passo. A
Z. Mais especificamente, no caso do marxismo, existência de um mecanismo de alimentação que
pretende-se explicar determinados fenômenos so- garanta a continuidade de X devido à sua funcio-
ciais sempre a partir das conseqüências benéficas nalidade para Z precisa ser demonstrada, caso con-
que eles produzem para a classe dominante, ou por trário teremos apenas uma conclusão falaciosa (Els-
outra, sempre a partir da funcionalidade desses fe- ter, 1989c, p. 56). Para os marxistas analíticos em
nômenos para a reprodução da dominação de clas- geral (exceto Cohen, como veremos), a explicação
se. Exemplos disso poderiam ser encontrados nas funcional é incapaz de atingir tal objetivo, pois se
considerações de Marx sobre o Estado capitalista, limita a identificar as funções de um determinado
a mobilidade social no capitalismo e as divisões ét- fenômeno, não fornecendo meios para explicar a
nicas no interior da classe operária (Elster, 1982, p. sua gênese nem a sua persistência.
457-459; 1989a, p. 244-250). A gênese de um fenômeno não pode ser expli-
Jon Elster formula três críticas fundamentais à cada funcionalmente porque, como vimos, seria
explicação funcional. logicamente equivocado fazê-lo. As causas devem
A primeira refere-se à sua fraqueza lógica. Se- ser cronologicamente anteriores ao fenômeno que
gundo ele próprio, “a questão está em como expli- se pretende explicar. Portanto, explicar a ocor-
car um fenômeno a partir de outro que acontece rência de um fenômeno pelas suas conseqüên­cias
depois. Deve haver uma explicação para um fenô- seria contrariar essa regra fundamental da expli-
meno no momento de sua ocorrência; não pode ser cação causal. Além disso, a relação entre uma
necessário esperar pelas conseqüências para só então instituição e suas conseqüências, por exemplo,
poder explicá-lo” (Elster, 1989b, p. 46). Ou seja, o entre uma política estatal e os benefícios que essa
equívoco consiste em pretender explicar o que vem mesma política acarreta para uma classe, pode ser
antes pelo que vem depois, a causa pelo efeito. puramente acidental. Absolutamente nada garante
A segunda crítica refere-se ao fato de esse tipo que o fato de trazer conseqüências benéficas para
de “explicação” não revelar o mecanismo gerador do um determinado grupo tenha alguma capacidade
fenômeno. Quando, por exemplo, se diz que uma explicativa.3
determinada política estatal existe por causa de seus A persistência de um fenômeno, por sua vez,
benefícios para a classe capitalista, não se está dizen- não pode ser explicada funcionalmente a menos
do absolutamente nada sobre como essa política foi que se revele um mecanismo social que desvende
gestada. Para Elster, a revelação desse mecanismo (o as relações causais por meio das quais a funcionali-
como) é fundamental para a ciência social, pois resi- dade garante a durabilidade do fenômeno em ques-
de aí a sua capacidade explicativa (1991, p. 98). tão. Nesse sentido, a constatação de uma relação
Por fim, a terceira crítica, a mais importante de funcionalidade entre X e Z (questão sociológica,
de todas segundo o próprio Elster, refere-se ao fato diga-se, absolutamente legítima) não se constitui,
de que “em muitas explicações funcionais, e não só por si só, na formulação de uma explicação causal
no marxismo, o ciclo de realimentação não é de- da permanência de X.
monstrado, mas apenas postulado ou tacitamente É interessante observar que esse traço essen-
suposto (Elster, 1989b, p. 47). cial da explicação funcional, que consiste em ex-

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plicar a gênese/persistência de um fenômeno a estruturas que contêm em si mesmas o seu próprio


partir de suas funções objetivas, está estreitamente mecanismo causal, como sugere o conceito de “cau-
ligado a uma constatação bastante recorrente na salidade estrutural” de Louis Althusser (1970, pp.
teoria social como um todo, e não apenas no mar- 197-207).
xismo, a saber, que as ações humanas, ainda que O problema, contudo, não é que essas teses
guiadas por objetivos conscientes, produzem re- sejam indefensáveis, mas sim que a sua operacio-
sultados que não correspondem às intenções dos nalização nunca revela os mecanismos por meio dos
atores. Como lembra Merton, várias podem ser quais tais necessidades sistêmicas ou tais lógicas
as fontes causadoras dessa defasagem entre inten- objetivas se traduzem em condutas humanas que,
ção e efeitos não-antecipados da ação: ignorância por sua vez, produzem os efeitos objetivos necessá-
acerca do contexto, erro de avaliação, peso ex- rios à reprodução ou à mudança social. Nesse sen-
cessivo dos interesses imediatos na determinação tido, o individualismo metodológico tem lá suas
da conduta, adesão radical a valores morais ou as vantagens, pois os teóricos filiados a essa vertente
chamadas “profecias suicidas” (Merton, 1979, pp. nunca precisaram recorrer a quaisquer “necessida-
202-208). des objetivas” do capitalismo ou a leis imanentes
No entanto, em diversas ocasiões essa constata- da história para explicar a defasagem entre ações
ção resultou num outro tipo de explicação, da qual, intencionais e resultados não-antecipados. Assim,
aliás, o próprio Merton é um dos mais eminentes a famosa distinção weberiana entre “compreensão”
representantes. Defendeu-se que esses efeitos não (dos motivos da ação) e “explicação” (do desenvol-
antecipados da conduta deveriam ser explicados vimento externo da ação) ou o conceito de “efei-
em função de determinadas necessidades sistêmi- tos perversos”, formulado por Raymond Boudon,4
cas (Merton, 1967, p. 106), que se imporiam aos procuram dar conta dessa defasagem recorrendo
agentes à revelia de suas consciências. Como se às múltiplas condutas individuais que, agregadas,
sabe, esta é a essência do conceito mertoniano de se constituem no mecanismo causador de efeitos
“funções latentes” (Idem, p. 105). coletivos que não são desejados por nenhum dos
No marxismo, a defasagem entre motivos in- atores envolvidos na sua produção. Nesse senti-
tencionais da ação e seus resultados objetivos foi do, se um efeito determinado é produzido, ele é
quase sempre resolvida da mesma maneira. Nesse causalmente conectado às condutas e às interações
caso, como fica clara em importante passagem de humanas concretas e observáveis, isto é, a “um su-
Ludwig Feurbach e o fim da filosofia clássica alemã jeito sociológico dotado de capacidade de ação e
(Engels [1888] s/d, p. 198), a evidência de que os de intenção” (Boudon, 1993, p. 15), e não a uma
resultados das ações humanas não correspondem às “imposição objetiva” que opera nunca se sabe exa-
intenções dos seus autores só poderia ser explica- tamente como.
da em função de leis imanentes que regem o curso Essas críticas à explicação funcional não de-
da história. Esse espírito analítico está presente em vem, apesar disso, levar-nos às mesmas conclusões
todo o marxismo, ainda que assuma formas bem di- exageradas de Jon Elster. Para Elster, a incoerência
ferentes, aqui e ali. Assim, por exemplo, a consciên- lógica e a incapacidade explicativa (isto é, incapa-
cia de classe, em Lukács (que se valeu dessa mesma cidade de revelar mecanismos) deste procedimen-
passagem), não se confunde com a consciência psi- to comprovariam que o mesmo não tem lugar na
cológica dos operários empíricos, mas é um atribu- teoria social (Elster, 1982, p. 463). Se a explicação
to objetivo da posição da classe operária dentro da funcional não é efetivamente capaz de explicar e,
totalidade social capitalista (Lukács, [1919] 1974, por isso, deve ser excluída das ciências sociais, e se
p. 64); o Estado capitalista, na teoria neomarxista, o procedimento básico do marxismo reside exata-
cumpre uma função objetiva sistêmica à revelia da mente nesse tipo de explicação, a conclusão é que
consciência e das motivações dos atores que estão ou o marxismo abandona esse padrão explicativo
à frente dessa instituição (Poulantzas, 1986); os ou perde sua capacidade científica. Mas isso seria
fenômenos econômicos são, na verdade, efeitos de claramente um exagero.

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Uma defesa da explicação funcional gularidade”, pois é ela que garante que a ocorrência
de A em função de sua funcionalidade para B não é
Todas as críticas feitas às considerações de Els- meramente acidental.
ter sobre a explicação funcional remetem-se à pos- Cohen observa que esse tipo de explicação não
tura exageradamente negativa acima evidenciada. comete a infração lógica de explicar a causa pelas
Mesmo aqueles que concordam com a idéia de que suas conseqüências. Para esclarecer esse ponto, ele
tal explicação não tem o poder de revelar mecanis- formula o seu conceito de “fato disposicional” (dis-
mos, discordam do exagero que consiste em expul- positional fact). Esse conceito descreve as condições
sá-la do campo da ciência social. Nessa direção, objetivas de uma sociedade que, em um dado mo-
podemos encontrar três tipos de argumentos favo- mento, demanda determinadas conseqüências para
ráveis à explicação funcional: (i) ela é importante continuar existindo e, por isso, aumenta a probabi-
para a identificação de regularidades funcionais; (ii) lidade de ocorrência dos fenômenos intrinsecamente
trata-se de um procedimento complementar, e não capazes de produzir tais conseqüências. Nesse senti-
oposto, à explicação intencional; e (iii) a explicação do, é essa condição da sociedade que explica a ocor-
funcional é um trabalho preliminar que permite rência do fenômeno que se pretende explicar (ex-
identificar os fenômenos sociais relevantes que me- planandum), fenômeno esse que ocorre porque seus
recem ser explicados. atributos (suas “disposições”) são funcionais naque-
las circunstâncias (Cohen, 2001, pp. 262 e 281).
(i) Explicação funcional e regularidades O exemplo mais convincente dado por Cohen
quanto a esse ponto diz respeito às estratégias adap-
Segundo Cohen, a explicação funcional é tí- tativas das indústrias diante do mercado capitalis-
pica do marxismo e cumpre aí uma função im- ta, que ele chama de “elaboração darwiniana da
portante: identificar regularidades. Este autor tem explicação funcional”. Imaginemos uma economia
plena consciência de que é preciso diferenciar competitiva em que certa indústria adotaria a es-
“enunciados funcionais” de “explicações funcio- tratégia gerencial de ampliar sua escala de produ-
nais”, já que a atribuição de funções a um dado ção, reduzindo significativamente seus custos e, por
fenômeno, reconhece ele, não configura por si só conseguinte, aumentando a sua eficiência econômi-
uma explicação desse mesmo fenômeno (2001, pp. ca. Imaginemos ainda que os gerentes não tenham
251-258). Nesse sentido, cabe perguntar: “se nem consciência desse fato. Nesse caso, a estratégia de
todo enunciado funcional é explicativo, o que tor- ampliação da escala de produção prevaleceria por-
na um enunciado funcional explicativo?” (Idem, p. que as indústrias que não a adotassem sucumbiriam
256). Para ele, isso só ocorre quando se pode cons- em face da competição com as demais empresas.
tatar que a relação entre a existência/persistência de Portanto, não é a intenção dos gerentes que explica
um dado fenômeno e as conseqüências que ele pro- a adoção dessa estratégia, nem suas conseqüências,
duz assume a forma de uma “lei” (consequence law), mas os atributos objetivos do mercado capitalista
isto é, uma regularidade passível de generalização que, por meio da competição, “seleciona” as estra-
(Idem, p. 259). Assim, se for possível demonstrar, tégias gerenciais cujas “disposições” são mais ade-
por meio de evidência empírica fundamentada, quadas ao funcionamento da economia naquele
que sempre que A foi funcional para B, A ocor- contexto, isto é, aquelas cujas conseqüências são
reu, revelar-se-ia uma regularidade importante que funcionais para as empresas naquelas circunstâncias
poderia explicar a persistência de A, embora não (Idem, pp. 287-289).
necessariamente a sua gênese, isto é, o mecanismo É preciso observar, entretanto, que esse exemplo
pelo qual A se formou ou pelo qual B deu origem é particularmente favorável à tese de Cohen, já que o
a A. Segundo Cohen, esse é o caminho mais sim- mercado capitalista produz sinais inequívocos e bas-
ples para confirmar uma explicação funcional sem tante rápidos acerca da ineficiência de determinadas
estabelecer um mecanismo (Cohen, 1982, pp. 490 estratégias, a saber, a morte da empresa ineficiente.
e 495, n. 14). É importante insistir na idéia de “re- A aplicação da explicação funcional a partir da idéia

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de “fatos disposicionais” parece um pouco mais obs- infrutífera pela “pureza metodológica”. Para am-
cura em casos menos precisos e bem mais ambíguos, bos, deve-se utilizar uma abordagem funcionalista
como o surgimento e a persistência de uma ideologia quando essa se mostra necessária, uma abordagem
ou de uma religião (exemplos também utilizados por estruturalista quando as determinações estruturais
Cohen) dada a sua funcionalidade para a domina- forem evidentes o suficiente, uma análise baseada
ção de classe (Idem, pp. 290-296). Além disso, por no “ator” quando a ação individual e a escolha se
mais que Cohen observe que “revelar mecanismos” mostrarem fortemente presentes (1982, p. 523).6
não é o objetivo da explicação funcional, é bastante Wright, Levine e Sober (1993, p. 119-123)
frustrante nada saber sobre o modo pelo qual uma utilizam o exemplo do racismo para defender uma
“sociedade”, em função de suas condições objetivas, “explicação funcional com um mecanismo inten-
“seleciona” determinadas instituições e condutas de- cional”. Suponha-se uma sociedade capitalista mar-
vido à sua potencial funcionalidade para ela.5 Outro cada pela discriminação racial. Esse fenômeno pro-
problema, como antecipa o próprio Cohen, é saber duz um efeito funcional para a dominação de classe
por que uma dada conduta ou instituição foi “esco- ao criar divisões étnicas no seio da classe operária
lhida” quando outras condutas e instituições pode- que, por essa razão, não consegue resistir de manei-
riam executar a mesma função (Idem, pp. 274-277; ra coesa à classe dominante. Os membros e repre-
Domenèch, 2009, p. 6). sentantes dessa última classe, ao perceberem a fun-
De qualquer forma, de acordo com Cohen, o cionalidade do racismo para a reprodução de sua
problema do marxismo reside menos nas dificulda- posição dominante na estrutura social, passariam a
des inerentes à explicação funcional e mais no uso incentivar o racismo intencionalmente. Nesse caso,
pouco rigoroso que os marxistas fazem dela. Para como se percebe, há dois momentos da explicação:
ele, os marxistas, na maioria das vezes, falham até primeiro, quando se constata a funcionalidade da
mesmo ao tentar satisfazer a exigência preliminar discriminação com base na “raça”; segundo, o mo-
de mostrar que A é, de fato, funcional para B. Ao mento da explicação propriamente dito, quando
dar o exemplo de análises sobre a funcionalidade de as intenções dos agentes explicam a reiteração do
políticas estatais no capitalismo, Cohen afirma que, racismo.
normalmente, a funcionalidade de determinada Ora, na verdade essa proposta consiste, basi-
política estatal é tida quase como um pressuposto camente, na rejeição da explicação funcional, cuja
e que, uma vez estabelecida essa funcionalidade, o característica fundamental, como lembra Merton,
estudioso, sem mais argumentos, trata essa política é a inconsciência dos atores acerca das funções la-
também como funcionalmente explicada. Assim, tentes de suas condutas. No exemplo acima, a abor-
diz ele, transita-se de “A é funcional para B” para dagem intencional é totalmente predominante e a
“B funcionalmente explica A” sem experimentar “funcionalidade” do evento cumpre apenas o papel
nenhuma necessidade de justificar esse passo, sem de incentivar atores racionais a perseguirem sua
perceber que se transitou de uma afirmação para manutenção.
outra, distinta e mais forte. A explicação funcio- A nosso ver, contudo, a complementaridade
nal exige comprovação empírica exaustiva tanto da entre uma abordagem funcional de um dado fenô-
funcionalidade como da regularidade das conexões meno e sua explicação intencional não precisa seguir
funcionais, o que permitiria defender a tese acerca a sugestão de que os agentes envolvidos estejam
da persistência de um dado fenômeno devido à sua conscientes dos benefícios produzidos pelo even-
funcionalidade para um grupo social, classe ou ins- to que se quer explicar. Basta que a funcionalidade
tituição (1982, p. 491-492). seja constatada pelo analista e que a reprodução do
fenômeno em questão seja explicada em termos de
(ii) Explicação funcional e explicação intencional condutas individuais, ainda que não intencional-
mente orientadas pela busca de efeitos benéficos.
Berger e Offe, com bastante bom senso, criti- Voltando ao exemplo, o analista pode, num
cam em Elster aquilo que consideram uma busca primeiro momento, revelar como o racismo pro-

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duz efeitos funcionais para a dominação de classe e, [...] necessitamos saber primeiro qual é a im-
num segundo momento, mostrar que tal fenômeno portância de uma ação do ponto de vista
se mantém não porque alguns membros da classe funcional para a “conservação” [...] e o de-
dominante incentivem conscientemente a produ- senvolvimento em uma direção determinada
ção de tais efeitos, mas sim porque existem atores de um tipo de ação social antes de poder nos
sociais que orientam a sua conduta em função de perguntar de que maneira se origina aquela
uma visão racista de mundo adquirida ao longo de ação e quais são os seus motivos. É preciso que
um processo de socialização estável. Nesse caso, o saibamos quais serviços prestam um “rei’, um
racismo teria uma “disposição” para ser funcional “funcionário”, um “empresário”, um “rufião”,
para uma sociedade dividida em classes, mas sua um “mago”; ou seja, que ação típica [...] é im-
gênese e persistência não precisariam ser explicadas portante para a análise e merece ser considerada
por essa funcionalidade. antes de começarmos a análise propriamente dita
Evidentemente, nada disso exclui a possibili- (Weber, [1922] 1984, p. 15, grifo nosso).
dade de que haja uma percepção dos benefícios que
o racismo produz para a dominação social e que A conclusão de Elster pela expulsão da aborda-
isso gere uma busca consciente de sua permanên- gem funcional do campo da teoria social mostra-se,
cia. Mas isso não é absolutamente necessário para portanto, claramente como um exagero. Contudo,
que a abordagem funcional – isto é, a constatação é inegável que esse tipo de explicação não é capaz
da funcionalidade do racismo para a reprodução da de fornecer os mecanismos dos fenômenos que
dominação de classe por meio da divisão étnica da procura explicar. É essa, a nosso ver, a parte mais
classe dominada – e a explicação intencional – isto é, importante da crítica de Elster ao tipo funcional de
a identificação das motivações subjetivas que estão explicação.
na base de ações sociais que contribuem para a pro- Se essa é a parte mais importante, substantiva
dução e a reprodução do fenômeno do racismo – e fecunda da crítica de Elster à explicação funcional
sejam executadas conjuntamente. e, por conseqüência, ao marxismo tradicional, en-
tão pode-se compreender melhor a natureza do seu
(iii) A explicação funcional como um “trabalho projeto intelectual em particular e o dos marxistas
preliminar” analíticos em geral. Trata-se de fornecer ao mar-
xismo um instrumental que lhe permita detectar
O funcionalismo que pretende identificar re- mecanismos, o que, na perspectiva dos analíticos,
gularidades, mas não explicar a gênese de um fe- deve ser feito por meio da adoção do instrumental
nômeno pelas suas conseqüências, é definido por teórico da teoria econômica neoclássica. É o que
Giddens como um “funcionalismo sofisticado”, ao veremos a seguir.
qual cabe, na verdade, apenas a realização de um
trabalho preliminar que demandaria posteriormente
mais esforço analítico. Ou seja, esse trabalho preli- Individualismo, racionalidade e
minar serviria para indicar fenômenos que “clamam teoria dos jogos
por explicações, em vez de serem explicados pelas
concepções que eles [os funcionalistas] oferecem” O individualismo metodológico, a teoria da
(Giddens, 1982, p. 531). escolha racional e a teoria dos jogos seriam as “fer-
É preciso, porém, evitar o menosprezo ante ramentas” que possibilitariam ao marxismo vencer
esse “trabalho preliminar”. Pensamos que, seguindo o vazio explicativo da explicação funcional. Esse
as indicações de Cohen, a identificação de regula- instrumental metodológico permitiria acessar os
ridades é uma forte indicação da direção em que mecanismos ocultos de todo e qualquer fenôme-
deve caminhar a pesquisa, além de, por si só, re- no social que se queira explicar. Explicar um de-
velar ligações interessantes e significativas. É o que terminado fenômeno social, do ponto de vista do
sugere o próprio Weber, ao dizer que marxismo analítico, não é relacioná-lo às conse-

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qüências benéficas que gera para um determinado diversos escritos metodológicos de Max Weber, em
grupo; não é encaixar o fenômeno numa concep- particular nos “fundamentos metodológicos” do
ção teleológica de história em que tudo se explica seu Economia e sociedade. Acerca do caráter exces-
pelo que deve necessariamente acontecer no futuro; sivamente abstrato dessas entidades coletivas, vale a
não é submeter o fenômeno em questão aos “papéis pena reproduzir aqui a seguinte citação:
históricos” que ele deve cumprir ou aos “interesses
de classe” previamente estabelecidos que ele deve Para a sociologia, a realidade “Estado” não
atender. Explicar é fornecer os microfundamentos (os consiste apenas nem necessariamente nos seus
mecanismos) do fenômeno social em questão.7 elementos jurídicos relevantes. Para a sociologia
não existe uma personalidade coletiva em ação.
(i) O individualismo metodológico8 Quando se usam os termos “Estado”, “Nação”,
“sociedade anônima”, “família”, “corpo militar”
A idéia básica do individualismo metodológi- ou quaisquer formações sociais semelhantes, ela
co é que, em última instância, quem age não são se refere exclusivamente ao desenvolvimento
“as classes”, “o Estado”, “os grupos sociais”, mas os [...] da ação social por alguns indivíduos, seja
indivíduos. São eles os responsáveis pelas ações e, ela real seja constituída como possível (Idem, p.
portanto, pelos fenômenos sociais. Assim, é preciso 12, grifo nosso).
estudar esses fenômenos a partir das motivações in-
dividuais para a ação. A ação coletiva, por exemplo, Portanto, o marxismo analítico, por intermédio
tão comum nas sociedades contemporâneas, não do individualismo metodológico, faz parte daquela
pode ser entendida a partir de categorias coletivas estratégia dentro das ciências sociais que consiste na
abstratas, mas apenas em função de um agregado recuperação do “ator”, recolocando-o no centro dos
de comportamentos individuais. Captar o mecanis- fenômenos sociais e, por conseguinte, no centro
mo de um fenômeno social e revelar os seus micro- das explicações sociológicas. No entanto, e é preci-
fundamentos significa exatamente revelar as crenças so deixar isso bem claro, o marxismo analítico não
e as motivações que levam os indivíduos a agir e defende o retorno das ciências sociais a um subje-
mostrar como eles agiram de fato, dando origem ao tivismo delirante que desprezaria as determinações
fenômeno que se pretende estudar. objetivas da ação. Pensamos que essa afirmação fi-
A proposta de abordar os fenômenos sociais a cará mais clara ao abordarmos a proposta de conju-
partir dos comportamentos individuais é instigante, gar marxismo e teoria da escolha racional.
sobretudo se a entendermos como uma crítica ao
“coletivismo metodológico” marxista. Para Elster, (iii) A teoria da escolha racional
não é possível explicar os fenômenos sociais a partir
da idéia de “classe”, “interesse de classe”, “capital” A teoria da escolha racional tem um postulado
e “Estado”, por exemplo. Na verdade, essas entida- básico, segundo o qual os indivíduos são racionais,
des, assim pensadas, não existem. Quando falamos isto é, em situações de escolha eles escolherão a alter-
que um Estado tomou esta ou aquela decisão, que nativa que maximizará as vantagens que se preten-
uma classe deseja tal coisa ou que uma nação almeja de obter. Esse pressuposto é tão forte que Roemer
um dado fim, estamos, na verdade, adotando uma não hesita em definir a teoria da escolha racional
maneira taquigráfica de dizer que determinados in- como um método dedutivo, ou seja, um método
divíduos pertencentes a essas diversas instituições que “procura deduzir observações históricas a par-
ou grupos se mobilizaram para realizar tais objeti- tir de postulados básicos sobre o comportamento
vos. Portanto, é no âmbito do comportamento in- individual que são suficientemente fundamentais
dividual que devemos compreender tais realidades para serem considerados evidentes em si” (Roemer,
coletivas. 1982, p. 514).
Como se percebe, não há nada de original nes- No entanto, se, de acordo com a teoria da es-
sas proposições, que já podem ser encontradas nos colha racional, os indivíduos são capazes de fazer

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Marxismo e ciência social  121

opções racionais em situações de escolha, isso não indivíduo é capaz de percebê-la racionalmente como
significa que eles tenham plena liberdade de ação. uma alternativa e porque suas crenças e desejos o mo-
Na verdade, essas situações de escolha são vivencia- tivam a agir.11
das pelos atores sociais por meio de dois “filtros”, A teoria da escolha racional é particularmente
filtros estes que revelam como a teoria da escolha importante para pensar um problema central para
racional confere importância às condições obje- o marxismo, a saber, as ações coletivas. A teoria da
tivas. Os dois filtros são, com efeito, processos de escolha racional reconhece a importância das con-
exclusão que acabam por condicionar a alternativa dições externas partilhadas por vários indivíduos,
que deverá ser escolhida. já que elas são fundamentais para a formação de
O primeiro filtro é exatamente o que podería- crenças e desejos similares que, por sua vez, podem
mos chamar de “filtro objetivo”. Ele impõe a exclu- gerar um impulso para a solidariedade. No entan-
são dos cursos de ação que não satisfazem critérios to, essa teoria rejeita qualquer procedimento inte-
lógicos, físicos, econômicos ou mentais. Todos esses lectual que, a partir das condições de existência e
elementos objetivos, isto é, que não dependem da de crenças e desejos partilhados por determinados
vontade do indivíduo, são constrangimentos às de- indivíduos, deriva automaticamente um ator so-
cisões individuais. cial coletivo dotado de vontade própria e com uma
O segundo filtro refere-se exatamente à dimen- consciência política determinada. A grande contri-
são subjetiva do processo de escolha, isto é, à esco- buição da teoria da escolha racional para a sociolo-
lha racionalmente feita pelo indivíduo. O primeiro gia foi tomar a ação coletiva como um problema a
deixa um conjunto de ações remanescentes que de- ser explicado e não como um fato inerente às con-
vem ser avaliadas pelos indivíduos a partir de um dições objetivas de um dado grupo. Nesse sentido,
determinado critério de seleção. A teoria da escolha não se pode pressupor, mas é preciso explicar como
racional diz que, numa situação como essa, os in- a “solidariedade” (uma forma de pensar e sentir em
divíduos escolherão o curso de ação que preferirem conjunto) se traduz efetivamente em “cooperação”
ou que acreditarem ser o melhor em função dos ob- (uma forma de fazer em conjunto) (Kaplan e Las-
jetivos a serem atingidos. Assim, agir racionalmente swell, 1998, pp. 60-61).
significa escolher a melhor opção num conjunto de Mancur Olson, em A lógica da ação coletiva,
opções viáveis.9 revela que um dos erros das teorias que lançam mão
Ao levar em consideração esses dois filtros da da ação coletiva para explicar os fenômenos sociais
escolha individual pretende-se combinar as con- e políticos é pressupor que a lógica da conduta in-
siderações predominantemente subjetivistas da dividual se aplica também à ação coletiva. Essas
teoria econômica neoclássica com as inclinações teorias, inclusive o próprio marxismo, parecem ad-
objetivistas do marxismo (Roemer, 1989, pp. 224- mitir que se um indivíduo isolado e consciente de
226).10 Elster, contudo, afirma que é preciso insistir seus interesses persegue seus objetivos racionalmen-
no aspecto subjetivo da escolha, pois o fato de que te, então vários indivíduos diante de uma situação
opções estejam objetivamente disponíveis para um semelhante, percebendo a similaridade de seus inte-
agente não pode entrar na explicação de seu com- resses, agirão coletivamente para realizá-los da me-
portamento se ele não tem bases racionais, isto é, lhor forma possível. Como mostra Olson, se man-
evidências e informações para saber que essas alter- tivermos o pressuposto da racionalidade individual,
nativas estão disponíveis. Aqui se percebe o indi- perceberemos que, em grandes grupos, a saída mais
vidualismo metodológico sendo operacionalizado. racional é sempre a abstenção, frustrando-se, assim,
Uma vez cumpridas as determinações objetivas do o surgimento voluntário de ações coletivas nesses
primeiro filtro, o elemento determinante da ação grupos. Dessa forma, a classe estaria impedida de
não é a existência objetiva de possibilidades, mas a se transformar, diretamente, num ator coletivo
crença e o desejo do indivíduo em realizá-las e a sua (Olson, 1999). Sendo a classe social uma categoria
capacidade de percebê-las como viáveis e adequa- analítica fundamental para a teoria política marxis-
das a seus objetivos. Uma ação só se efetiva porque o ta, tais observações não podem ser simplesmente

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ignoradas, pois dizem respeito à possibilidade (ou (iii) A teoria dos jogos
impossibilidade) de utilizar tal categoria para a aná-
lise política. A teoria dos jogos é um complemento das duas
A constatação de que há uma incompati- primeiras estratégias analíticas apresentadas ante-
bilidade inicial entre racionalidade individual e riormente. O seu objeto de estudo são situações de
a produção de benefícios públicos (isto é, entre interdependência de decisões racionais,13 nas quais o
racionalidade individual e estratégias voluntárias ator percebe que a ação dos outros agentes necessa-
de solidariedade) é muito importante para o mar- riamente influi no curso da sua própria ação.
xismo, porque o próprio Marx confere a esse tipo Essa interdependência das ações é vista pela te-
de conduta um lugar importante nas suas consi- oria dos jogos a partir de duas perspectivas: a dos jo-
derações sobre o capitalismo (Boudon, 1993, pp. gos não cooperativos e a dos jogos cooperativos. Os
195-196; Maguire, 1984, cap. V). Se essa observa- primeiros são de soma-zero, isto é, jogos em que se
ção pode parecer um tanto quanto temerária para um dos agentes ganha, o outro necessariamente per-
uma obra como O capital, nas obras históricas, de na mesma proporção. São, por essa razão, jogos
tais como O 18 brumário de Louis Bonaparte, a de conflito puro, que anulam as possibilidades de
Luta de classes em França e os escritos da Nova Ga- cooperação. Ao contrário, os jogos cooperativos são
zeta Renana, a presença de um modelo estratégico de soma variável, nos quais as estratégias escolhidas
de ação para entender a dinâmica política desses pelos agentes afetarão também o total a ser dividido.
contextos históricos salta aos olhos. Por essa razão, eles podem misturar o conflito com
Em suas análises, Marx refere-se com freqü- a cooperação. Vale insistir, no entanto, que é preciso
ência às classes sociais como atores coletivos que que os agentes racionais envolvidos nessas interações
agem diretamente na cena política ou são inter- percebam as situações como sendo de conflito ou de
mediados por organizações ou agentes que as cooperação para que elas se desenvolvam em direção
representam, tais como os partidos, os políticos ao enfrentamento ou à solidariedade. Tal percepção
profissionais, as agências estatais ou os líderes pes- é influenciada por um sem-número de variáveis, tais
soais. No entanto, nunca sabemos ao certo exa- como os processos de socialização, a quantidade e a
tamente como a classe age ou como se dá a re- qualidade das informações à disposição dos agentes e
lação de representação entre elas e seus supostos os seus recursos cognitivos.
representantes. Certamente, há várias observações Um exemplo de jogo cooperativo é exatamen-
e insights instigantes nas análises de Marx. No en- te a relação entre capitalistas e trabalhadores. Nesse
tanto, dada a centralidade do conceito de classe jogo, a soma é variável porque a acumulação de ca-
para a teoria marxista, não é mais possível limitar pital pode crescer efetivamente. Assim, uma situação
a análise classista da política a observações vagas de conflito em que, de um lado, os trabalhadores
e metafóricas. Ao contrário, é preciso pensar uma exigem aumento salarial e, de outro, os capitalistas
teoria e uma metodologia que permitam aos mar- se recusam a concedê-lo, pode ser resolvida se o au-
xistas efetivamente explicar como (e se) as classes mento salarial for concedido a partir do aumento
se organizam, agem e se tornam capazes de trans- da produtividade (isto é, do aumento da extração
formar a realidade social. Uma evidência indire- de mais-valia relativa). Desse modo, capitalistas e
ta das dificuldades que esse problema coloca é o trabalhadores podem chegar a uma situação de coo-
fato de o marxismo contemporâneo praticamente peração exatamente porque a variação da soma total
se abster de discutir o problema da classe social permitiria ganhos de lado a lado. Em grande parte, é
como ator político coletivo. “A ausência de uma isso que nos impede de afirmar que o conflito entre
teoria adequada de capacidade de classe constitui capitalistas e trabalhadores levará necessariamente
uma fraqueza importante do materialismo histó- a um impasse, e conseqüentemente, ao socialismo.
rico, especialmente em suas aplicações à socieda- Segundo Elster, quando Marx fazia essa previsão, en-
de capitalista” (Wright, Levine e Sober, 1993, p. carava o jogo entre capitalistas e trabalhadores, erro-
70).12 neamente, como um jogo de soma-zero.

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Marxismo e ciência social  123

Conclusão mais incompatível com o marxismo do que adotar


a estratégia sugerida por Elster. Para ele, o coração
Há, evidentemente, diversas críticas já feitas às do materialismo histórico reside nas grandes cone-
formulações dos marxistas analíticos e, sobretudo, xões explicativas, estabelecidas por Marx e sistema-
à sua proposta de aproximar o marxismo do ins- tizadas no “Prefácio” de 1859, entre forças produ-
trumental metodológico da teoria econômica neo­ tivas e relações de produção. Esse núcleo central do
clássica, além de críticas à essência mesma desse marxismo comporta ainda um corolário inescapá-
instrumental. Gostaríamos, entretanto, de insistir vel: a afirmação da tese de que a superestrutura da
no pecado maior, cometido lá e cá, que consiste na sociedade serve para a estabilização da sua estrutura
busca da “pureza metodológica”, para usar a expres- econômica. Sendo assim, Elster deveria escolher: ou
são de Berger e Offe (1982). individualismo metodológico ou marxismo (Bura-
A insistência de Jon Elster, em texto publicado woy, 1989, p. 63).
na revista Theory and Society, no uso exclusivo do Para evitarmos as armadilhas da pureza meto-
individualismo metodológico, da teoria da escolha dológica, acreditamos, sim, que vale a pena incor-
racional e da teoria dos jogos para analisar a condu- porar algumas das críticas e sugestões elaboradas
ta humana parece-nos, de fato, empobrecer o pro- pelos analíticos, pois elas fortaleceriam o marxismo
cesso de conhecimento dos processos sociais. Dessa como ciência social. Nesse sentido, três pontos são
forma, acreditamos que essa proposta deve ser sem- particularmente importantes a nosso ver.
pre acompanhada de uma análise estrutural sofisti-
cada (isto é, que não veja a estrutura social apenas (i) As críticas à explicação funcional
como um “impedimento”), já que é simplesmente
impensável não supor a existência de determinações Parece-nos irrefutável que explicações funcio-
desse tipo sobre a conduta dos atores sociais. Como nais pouco sofisticadas, notadamente aquelas que
argumentam Berger e Offe, pretendem explicar a gênese de um fenômeno pela
suas conseqüências, devem ser definitivamente
Logicamente, o jogo começa apenas depois abandonadas em função de sua incoerência lógica.
que os atores foram constituídos, e as suas or- Mesmo as proposições mais sofisticadas, porém,
dens de preferências são formadas como um resul- quase sempre cometem o pecado de transformar a
tado de processos que não podem ser considerados constatação de conexões funcionais em explicações
eles mesmos como partes do jogo. Ao contrário, causais, sem que, de fato, os mecanismos causais des-
limites como os recursos disponíveis, a capa- sa conexão sejam demonstrados. Limitam-se, quase
cidade de aprender, as prioridades e os custos sempre, a fazer referências a uma suposta “neces-
dos modos alternativos de comportamento es- sidade sistêmica” ou aos “imperativos da função
tratégico devem ser explicados por outra teoria objetiva” que, como vimos, nunca se sabe ao certo
que não a da “escolha racional”. Nesse sentido, como funcionam.
confiar exclusivamente na teoria dos jogos para Entretanto, apesar da validade dessas críticas,
explicar, eliminando importantes elementos pensamos ser possível continuar trabalhando com a
constituidores e psicocondições do jogo, não abordagem de tipo funcional, sobretudo se a enten-
apenas da agenda metodológica, mas também dermos como uma análise exaustiva de processos
da agenda sociológica, é pagar um preço alto empíricos que identifica conexões funcionais pode-
demais pela pureza metodológica, para os cien- rosas e, assim, cumpre um importantíssimo traba-
tistas sociais em geral e para os marxistas em lho preliminar à explicação propriamente dita.
particular (Idem, p. 525, grifo nosso).
(ii) Aspecto empírico da primazia causal
No entanto, a busca da pureza metodológica
é um pecado que também acomete o outro lado Parece-nos também correto dizer que a identi-
da disputa. Para Cohen, por exemplo, não há nada ficação de conexões funcionais, por mais regulares

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que sejam, não nos autoriza, por si só, a estabele- te pertinente para o procedimento indutivo de um
cer uma primazia causal. O fato de que uma de- marxismo à la Cohen, cujo objetivo é identificar
terminada forma de Estado (A) seja funcional para conexões funcionais historicamente regulares.
as relações de produção (B) não é suficiente para De qualquer forma, aqui também seria preci-
estabelecer a primazia causal do econômico (B) so- so evitar uma confusão recorrente. Como vimos,
bre o político (A). Tal observação é ainda mais im- a constatação de uma conexão funcional entre dois
portante para um marxismo mais sofisticado, que fenômenos não representa, ao mesmo tempo, a for-
claramente confere às “superestruturas” um papel mulação de uma relação causal. Ou seja, o fato de
muito ativo. Sendo assim, é preciso desenvolver que Y é funcional para Z não nos revela a causa
procedimentos metodológicos, recursos analíticos, de Y. Por sua vez, a identificação de uma relação
conceitos operacionais que permitam verificar em- causal por meio do método comparativo não pode
piricamente essa primazia causal, em vez de trans- ser confundida com a elaboração de uma explicação
formá-la num postulado doutrinário. causal. A descoberta de que X causa Y nada nos diz
Para Wright, Levine e Sober (1993, pp. 223 sobre como exatamente X causa Y. Como lembra
e 245), afirmações fundamentadas sobre primazia Stuart Mill, o processo de identificação da causa
causal só podem ser feitas com efetiva segurança nada tem a ver com o desvendamento do “modo
em pesquisas de natureza quantitativa, isto é, que de produção do fenômeno” (Stuart Mill, 1886, p.
permitam a mensuração das variáveis. Essas pesqui- 213). Ou, por outro lado, conexão funcional, rela-
sas, porém, sofrem de dois problemas. O primeiro, ção causal e explicação causal são três coisas distintas.
observado pelos próprios autores, refere-se ao fato Nesse sentido, como sustentaram os marxistas ana-
de que pesquisas quantitativas adotam um modelo líticos, somente a identificação dos “mecanismos”,
aditivo de causalidade, isto é, limitam-se a detectar isto é, da cadeia de ações e estratégias individuais,
o peso de cada causa isoladamente na produção do poderia abrir a “caixa-preta” e efetivamente vincular
efeito que se quer explicar. São, portanto, de difícil a causa ao efeito, isto é, somente ela poderia forne-
aplicação quando se pretende analisar a articulação cer uma explicação de tipo causal.
contextual entre várias causas. O segundo proble-
ma, acrescentamos, é que não raro tais pesquisas, (iii) O problema da ação coletiva
a fim de viabilizarem a medição, cometem tantas
agressões à realidade que, ao fim e ao cabo, não sa- Há importantes contribuições no que diz res-
bemos se elas dizem algo sobre o mundo real ou peito a formas alternativas de pensar o problema
apenas sobre o banco de dados que construíram. fundamental da ação coletiva. Para o marxismo ana-
No entanto, é inegável que as afirmações sobre lítico, as entidades coletivas tradicionalmente ope-
primazia causal em pesquisas qualitativas são sempre racionalizadas pelas explicações marxistas – o Esta-
mais incertas, dadas a complexidade do objeto e a do, as classes, o capital etc. – são demasiadamente
pretensão de ver causas articuladas contextualmen- abstratas e, por isso, pouco explicativas. Atribui-se
te em vez de simplesmente justapostas umas às ou- a essas entidades interesses e papéis históricos pre-
tras. Uma das maneiras de ter maior controle sobre viamente definidos, aos quais os comportamentos
a complexidade do mundo social sem deturpá-la é efetivos dos agentes devem se adequar funcional e
por meio do uso do método comparativo. Este mé- teleologicamente. A questão, como dissemos, pare-
todo parece ser uma maneira razoavelmente segura ce-nos particularmente importante para recolocar a
de estabelecer atribuições causais, e já há um bom ação de classe no centro das preocupações teóricas
tempo vem sendo submetido a uma crescente dis- do marxismo.
cussão para torná-lo mais rigoroso (Ragin, 1987). Por fim, mesmo que pareça restar tão pouco do
Ainda assim, quem adotar a estratégia de pesquisa marxismo na proposta em questão, é importante
qualitativa deve sentir-se pouco seguro para fazer dizer que o marxismo analítico não se identifica tão
generalizações absolutas sobre relações causais.14 intimamente com a teoria econômica neoclássica
O método comparativo parece ser particularmen- como se pode pensar. Seus principais representan-

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Marxismo e ciência social  125

tes continuam a sustentar um compromisso com a cia procuramos agir racionalmente; 2) É necessário
maleabilidade histórica das preferências humanas, incorporar às ciências sociais, cada vez mais, a busca
em função da formação social do indivíduo, en- pela compreensão do comportamento não racional,
quanto para os neoclássicos as preferências são fru- partindo do suposto de que tais comportamentos não
são residuais e devotando especial atenção às contradi-
tos de uma natureza humana imutável que define o
ções mentais relativas a esse tópico; 3) Normas sociais,
mundo objetivo. O marxismo analítico insiste na cultura, emoções e racionalidade podem e devem ser
importância da ação coletiva e da relação de poder entendidas nos termos do individualismo metodoló-
entre os “atores”, enquanto os neoclássicos têm uma gico” (Ratton Jr. e Ventura de Morais, 2003, p. 387).
interpretação puramente individualista, da qual está Nesse sentido, o leitor talvez concluísse, e o faria com
ausente qualquer idéia de dominação. Eles defen- razão, que ganharíamos muito se fechássemos os livros
dem um “materialismo mitigado” (Wright, Levine e de Jon Elster e voltássemos a abrir os de Max Weber.
Sober, 1993, p. 160) que considera altamente plau- 3 É importante observar que a explicação funcionalista,
sível a tese da determinação materialista para alguns onde quer que tenha sido aplicada de forma mais so-
processos sociais (mas não para todos), desde que fisticada, nunca pretendeu explicar a gênese dos fenô-
submetidos ao teste da pesquisa empírica. Enfim, o menos e das instituições sociais, mas sim seus efeitos
marxismo analítico crê na injustiça do capitalismo, objetivos para a reprodução do sistema social e, por
meio desses efeitos, a durabilidade ou a persistência de
na sua transitoriedade histórica e, por conseguinte,
tais fenômenos. Cf. Durkheim (1984, pp. 35-42, 63-
no projeto de emancipação contido no marxismo, 64 e 79-80) e Merton (1967, pp. 104-108).
não havendo, é claro, nada nesse sentido na teoria
4 Cf. Weber, [1922] 1984, pp. 5 e 11. Sobre a relação
neoclássica (Roemer, 1989, p. 230).
entre “compreensão” e “explicação” em Weber, ver
Ringer, 1997, pp. 13-17. Segundo Boudon, os efei-
tos perversos são “efeitos individuais ou coletivos que
Notas resultam da justaposição de comportamentos indivi-
duais e que não fazem parte dos objetivos perseguidos
1 Para um resumo dos temas abordados e dos modos de pelos atores” (Boudon, 1993, p. 10). Em resumo, na
abordagem, ver Romer (1989). Ver também, Przewor- sociologia de orientação individualista, “explicações
sky (1989) e Wright (1985). Entretanto, considerar o intencionais são geralmente acompanhadas da pro-
marxismo analítico como uma “escola” pode sugerir cura de conseqüências não intencionais (os chamados
uma unidade de pensamento mais intensa do que a ‘efeitos de agregação’) nas ações intencionais das pes-
que efetivamente existiu. Como veremos a seguir, a soas. Ao contrário de formas funcionalistas de expli-
unidade desta “escola” residia fundamentalmente em cação, as conseqüências não intencionais das práticas
dois pontos: a) conferir maior clareza às formulações sociais não são empregadas para explicar a persistência
causais do marxismo clássico, de acordo com os pro- das mesmas práticas” (Baert, 1998, p. 3).
cedimentos da filosofia analítica, e b) negar qualquer 5 Não por outra razão, Wright, Levine e Sober, ao co-
especificidade metodológica ao marxismo. Fora desse mentarem o conceito de “fato disposicional”, confe-
terreno comum, existiam muitas divergências. Talvez rem, muito mais do que Cohen, um lugar central à
a mais significativa seja a crítica de Jon Elster à explica- intenção dos atores na sua produção e acabam por
ção funcional e à sua inteira adesão ao individualismo reconhecer que “é certamente difícil defender empiri-
metodológico, posições radicalmente contrárias às de camente proposições sobre fatos disposicionais” (Wri-
G. A. Cohen, fundador do grupo. Cf. Tarrit, 2006. ght, Levine e Sober, 1993, p. 119).
2 Elster apresentou posições mais moderadas em entre- 6 Quanto a este ponto, ver também Roemer (1982, pp.
vista posterior. Cf. Elster, 1991, pp. 98-99. Poderí- 513-514) e Cohen (2001, p. 287).
amos resumir seu pensamento da seguinte maneira:
7 “Explicações por mecanismos” podem ser assim
“1) Uma das maneiras de ler um mapa das motivações
descritas: 1) devem ser baseadas em ações, isto é, os
humanas seria classificando-as da seguinte forma: às
atores e não as variáveis são os agentes. Portanto, não
vezes, as pessoas perseguem seus objetivos agindo
podem ser formuladas sobre meras associações entre
racionalmente; outras, impulsionadas por suas emo-
variáveis, mas devem fazer referência direta às causas
ções; outras tantas, seguindo as normas sociais. A ação
e às conseqüências da ação individual voltada para o
racional tem prioridade porque com maior freqüên-

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126  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N° 73

comportamento de outros atores; 2) devem buscar (1999). Para uma visão crítica, ver Baert (1998) e
precisão elucidativa. Em outras palavras, não devem Carvalho (2008).
estar situadas em tal nível de teorização que implique 12 Discutimos esse ponto mais extensamente em Peris-
indeterminação explicativa, nem devem tentar esta- sinotto (2007). Sobre a relação entre classe social e
belecer leis sociais gerais, improváveis de existirem ação coletiva no marxismo analítico, ver também Reis
no domínio da sociologia; 3) necessitam, contudo, (1991). Este último trabalho é particularmente inte-
de um grau de abstração mínimo que permita a se- ressante por mostrar como a aceitação da tese de Ol-
leção dos fatores relevantes para a construção de son acerca da indeterminação da conduta política de
modelos formulados de maneira a incluir somente uma classe social impõe refutar também qualquer de-
elementos que se acredita serem essenciais; 4) de- finição desse conceito que inclua elementos referentes
vem abrir a “caixa-preta” e tornar claro o que liga a à “classe-para-si”. Nesse sentido, defende-se uma tese
causa ao efeito. Cf. Ratton Jr. e Ventura de Morais, próxima a de G. A. Cohen, para quem “A classe so-
2003, pp. 9-11. cial de uma pessoa é definida exclusivamente pelo seu
8 É muito importante diferenciar, e tratar separadamen- lugar objetivo na rede de relações de propriedade, por
te, o individualismo metodológico da teoria da esco- mais difícil que seja identificar tal lugar claramente.
lha racional, porque não raro ambos são apresentados Sua consciência, cultura e sua prática política não en-
como sinônimos por alguns autores do marxismo tram na definição de sua posição de classe. Na verdade,
analítico. Enquanto o individualismo metodológico essas exclusões são necessárias para proteger o caráter
reconhece a existência de outros tipos de ação social substantivo da tese marxiana de que a posição de clas-
e o caráter histórico da racionalidade instrumental, a se condiciona fortemente a consciência, a cultura e a
teo­ria da escolha racional comporta apenas um tipo prática política” (Cohen, 2001, p. 73).
de ação e tende a universalizar (isto é, a desistoricizar) 13 Para Elster, uma melhor denominação para a teoria
a racionalidade estratégica. Cf., por exemplo, Carva- dos jogos seria exatamente “teoria das decisões inter-
lho, 2008, pp. 160-161. dependentes” (1989b, p. 41).
9 Os teóricos da escolha racional reconhecem, porém, 14 O mais clássico exemplo de prudência quanto a esse
que nada têm a dizer sobre como se formam as prefe- ponto é a recusa de Max Weber de transformar a causa
rências a partir das quais as escolhas são feitas (cf. Els- mais relevante para a ocorrência de um dado fenô-
ter, 1982, p. 465, n. 46; Becker, 1990, p. 5). Esse re- meno em “causa necessária” desse mesmo fenômeno,
conhecimento, entretanto, revela um dos pontos mais preferindo a expressão “causa adequada”. Para Weber,
frágeis da aplicação da teoria da escolha racional aos a sociologia e a história comparada, desde que conju-
problemas sociológicos. Do ponto de vista do soció- gadas, podem identificar causas relevantes passíveis de
logo, muito mais importante (e interessante) do que alguma generalização, mas são incapazes de estabele-
identificar as estratégias maximizadoras de um deter- cer relações causais universais, como fazem as ciências
minado fim é saber por que os agentes perseguem um da natureza, exatamente em função da maior comple-
fim determinado e não outro qualquer. Nesse sentido, xidade de seus objetos (cf. Max Weber, 2004).
o sociólogo teria razão em dizer que o adepto da teoria
da escolha racional troca o principal pelo acessório.
10 Um estruturalista mais radical diria que temos aqui
uma concepção muito limitada acerca do papel das es-
Bibliografia
truturas sociais na determinação da conduta humana.
Diria que as estruturas sociais não cumprem apenas ALTHUSSER, Louis. (1970), “El objeto de ‘El ca-
um papel negativo (limite objetivo) em relação à con- pital’”, in . Para leer El capital, Me-
duta humana; elas cumprem também o papel positivo xico, Siglo XXI.
de fornecer os meios (materiais e simbólicos) para a BAERT, Patrick. (1998), “Algumas limitações das
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  177

Marxismo e ciência social: MARXISM AND THE SOCIAL MARXISME ET SCIENCE


Um balanço crítico do SCIENCE: A CRITICAL APPRAISAL SOCIALE: UN BILAN CRITIQUE
marxismo analítico OF ANALYTICAL MARXISM DU MARXISME ANALYTIQUE

Renato Perissinotto Renato Perissinotto Renato Perissinotto

Palavras-chave: Marxismo analítico; Ex- Keywords: Analytical Marxism; Func- Mots-clés: Marxisme analytique; Expli-
plicação funcional; Individualismo meto- tional explanation; Methodological indi- cation fonctionnelle; Individualisme mé-
dológico; Ciência social. vidualism; Social science. thodologique; Science sociale.

Este artigo discute as proposições críticas This article discusses the criticism made Cet article discute les propositions criti-
feitas pelos marxistas analíticos ao mar- by analytical Marxists to theoretical and ques faites par les marxistes analytiques
xismo tradicional. Apresenta-se, num methodological statements of traditional au marxisme traditionnel. Dans un pre-
primeiro momento, o conteúdo dessas Marxism. At first, the article presents the mier temps, nous présentons le contenu
críticas, notadamente no que diz respei- content of this criticism, especially those de ces critiques, notamment par rapport à
to à explicação funcional; num segundo on functional explanation; afterwards, it l’explication fonctionnelle ; puis, dans un
momento, avalia-se em que medida é evaluates in what extent is it possible to second temps, l’article évalue dans quel-
possível defender esse tipo de explicação; elaborate a defense of that kind of expla- le mesure il est possible de défendre ce
em seguida, discutem-se as propostas nation; thirdly, it discusses the method- genre d’explication. Nous discutons, en-
metodológicas feitas pelos marxistas ana- ological proposal of the analytical Marx- suite, les propositions méthodologiques
líticos, suas vantagens e limites; por fim, ism and its limits and advantages; finally, faites par les marxistes analytiques, leurs
apresenta-se o que, a nosso ver, deve ser we make some considerations on what avantages et leurs limites. En conclusion,
levado em consideração dessas críticas must be taken into account in this criti- nous présentons ce qui, de ces critiques,
para que o marxismo se fortaleça como cism to strengthen Marxism as a social doit être, d’après nous, considéré pour
ciência social. science. que le marxisme se renforce en tant que
science sociale.

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