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ISSN 1980-8623

Psico http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2016.3.22480

Porto Alegre, 2016; 47(3), 216-227 A rtigo O riginal

Estilos parentais e desenvolvimento das funções executivas:


estudo com crianças de 3 a 6 anos
Gabriela Lamarca Luxo Martins
Camila Barbosa Riccardi León
Alessandra Gotuzo Seabra
Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP, Brasil

Resumo
Este estudo analisou a relação entre estilo parental dos responsáveis e funções executivas em pré-escolares, pois pesquisas prévias
sugerem que características do ambiente familiar podem influenciar o desenvolvimento dessas funções. Participaram 30 crianças, de
3 a 6 anos, e seus responsáveis. Estes responderam o Inventário de Estilos Parentais e as crianças, Teste de Stroop Semântico, Teste
de Atenção por Cancelamento e Teste de Trilhas para pré-escolares. Correlações de magnitude baixa a moderada evidenciaram,
de modo geral, que quanto mais apropriado o estilo parental dos pais, melhor o controle de interferência dos filhos. Também
observou-se que, quanto maior a inconsistência na punição, maior o tempo de reação da criança na parte incongruente do Teste de
Stroop e mais ela é afetada pela incongruência, porém, conforme a parte B do Teste de Trilhas, maior a sua flexibilidade. Portanto
observaram-se relações entre estilo parental e funções executivas na amostra avaliada.
Palavras-chave: Relações familiares; Programas educacionais; Funções mentais; Crianças em idade pré-escolar; Neuropsicologia.

Parenting styles and development of executive functions:


study with 3-6-year-old children
Abstract
This study examined the relation between the parenting style of the parents and executive function in preschool children, because
previous research suggests that family environment characteristics may influence the development of these functions. Participants
were 30 3-6-year-old children and their parents. The parents answered the Parental Styles Inventory and children were assessed
by Semantic Stroop Test, Cancellation Attention Test for and Trail Making Test for preschoolers. Low to moderate magnitude
correlations showed in general that the more suitable parenting style of the parents, the better interference control of children. It
was also observed that the greater the inconsistency in punishment, the greater the child’s reaction time in incongruous part of the
Stroop Test and the more she/he is affected by the incongruity, however, pursuant to part B of the Trail Making Test, the greater her/
his flexibility. Therefore there were observed relation between parenting style and executive functions of the sample investigated.
Keywords: Family relations; Educational programs; Mental functions; Preschool age children; Neuropsychology.

Estilos parentales y desarrollo de funciones ejecutivas:


estudio con niños de 3 y 6 años
Resumen
Este estudio examinó la relación entre estilos parentales de padres y funciones ejecutivas en niños preescolares, ya que investigaciones
anteriores sugieren que las características del entorno familiar pueden influir en el desarrollo de estas funciones. Participaran del
estudio 30 niños, entre 3 y 6 años de edad, y sus padres. Los padres respondieron el Inventario de Estilos Parentales y los niños, Test
de Stroop Semántico, Test de Atención por Cancelación y Test de Trazados para preescolares. Correlaciones de baja a moderada
magnitud mostraron, en general, que cuanto más adecuado el estilo parental de los padres mejor es el control de la interferencia de
los niños. También se observó que cuanto mayor es la falta de coherencia en el castigo, mayor es el tiempo de reacción del niño
en la parte incongruente del Test de Stroop y más él es afectado por la incongruencia, sin embargo, de conformidad con la parte
B del Test de Trazados, mayor es su flexibilidad. Por lo tanto, se observaron relación entre estilo parental y funciones ejecutivas
en la muestra investigada.
Palabras clave: Relaciones familiares; Programas educacionales; Funciones mentales; Niños en edad pre-escolar; Neuropsicología.

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Introdução Carlson, 2010; Carvalho et al., 2012; Osório, 2011).


Por exemplo, Bernier et al. (2012) estudaram a
As experiências que ocorrem durante os primeiros relação de apego, conceituada como o resultado de
anos de vida entre pais e filhos são cruciais para o um comportamento de cuidado parental que pode
desenvolvimento do cérebro e, mais especificamente, ser observado a partir de comportamentos da própria
para o desenvolvimento do lobo frontal e suas criança, tais como lidar com a frustração no momento
conexões, caracterizando as bases para, posteriormente, de realizar uma tarefa difícil ou ao adiar a gratificação
desenvolver as funções executivas (Bernier, Carlson, com base na confiança no cuidador, o qual pode
Deschênes, & Matte-Gagné, 2012; Bernier, Whipple, explicar que a atividade desejada será realizada em
& Carlson, 2010; Oxford & Lee, 2011). O conjunto breve. A qualidade desse vínculo afetivo fornece um
das habilidades cognitivas que permitem ao sujeito contexto seguro e ordenado de relacionamento em que
direcionar comportamentos a metas, avaliar a as crianças podem, gradualmente, aprender a usar o
eficiência e a adequação desses comportamentos, pensamento autorregulado e desenvolver as ações que
eleger estratégias adequadas e a resolver problemas definem as funções executivas. Consequentemente,
é denominado de funções executivas (Malloy-Diniz, segundos autores, a qualidade das interações com os
Sedo, Fuentes, & Leite, 2008). Tais habilidades pais está relacionada ao desenvolvimento das funções
estão presentes no controle e na regulação de outros executivas das crianças.
processos comportamentais, os quais abrangem Osório (2011), em sua tese, observou que, já aos
emoção e cognição, e são requisitadas sempre que o 10 meses de vida, as estratégias maternas em relação
sujeito se compromete com determinadas tarefas ou à atenção compartilhada são um preditor significativo
situações novas, sem conhecimento prévio (Diamond, para o seguimento de atenção compartilhada pelo bebê.
2013; Lezak, Howieson, Bigler, & Tranel, 2012; Tal afirmação aponta a relevância da figura materna
Malloy-Diniz et al., 2008). desde os primeiros meses de vida. Também em relação
Muitas pesquisas atuais abordam temas relacionados ao processo de interação com os progenitores, Carvalho
às funções executivas (Ardila, 2008; Best & Miller, et al. (2012) abordaram o conceito de scaffolding, o
2010; Czermainski, Bosa, & Salles, 2013; Diamond, qual, traduzido para a língua portuguesa, significa
2013; Dias & Seabra, 2013; Dias & Seabra, 2015; Dias ‘andaimes’ e pode ser compreendido como o suporte
et al., 2015; Montiel et al., 2014) e outras discutem as temporário que os progenitores, educadores ou adultos,
configurações familiares e práticas educativas parentais ou seja, os tutores na nomenclatura dos autores,
(Leme, Del Prette, & Coimbra, 2013; Sampaio & fornecem à criança em determinada tarefa, até que esta
Gomide, 2007; Oxford & Lee, 2011), porém poucas se consiga prosseguir sozinha com destreza.
referem aos dois temas concomitantemente (Bernier, Outro aspecto destacado como relevante ao
Whipple & Carlson, 2010; Bernier et al., 2012; Bibok, desenvolvimento infantil são os estilos parentais.
Carpendale, & Müller, 2009; Bindman, Hindman, Darling e Steinberg (1993) realizaram uma revisão
Bowles, & Morrison, 2013; Rhodes et al., 2011). Assim histórica do conceito de estilo parental e propuseram
sendo, ao considerar os vários fatores ambientais que a compreensão desse conceito como o contexto em
se relacionam com o desenvolvimento das funções que os pais influenciam os seus filhos por meio de
executivas, as evidências sugerem que a orientação dos suas práticas, levando em consideração suas crenças e
pais, ou seja, a conduta utilizada pelos progenitores valores, ultrapassando a combinação entre exigência e
para direcionar o processo de educação de seus filhos responsividade. No Brasil, Sampaio e Gomide (2007)
é considerada uma das experiências primárias mais definiram estilo parental como o conjunto de práticas
relevantes para a constituição dessas funções durante educativas utilizadas pelos pais na interação com os
os primeiros anos da infância (Bernier, Whipple, & filhos. Estas autoras selecionaram, em seu modelo
Carlson, 2010; Bernier et al., 2012). Os progenitores, teórico, sete práticas educativas que compõem o estilo
por meio de características específicas, auxiliam a parental, sendo cinco relacionadas ao desenvolvimento
criança a atingir um nível de funções executivas além de comportamentos antissociais e duas favoráveis
do que ela poderia conseguir sozinha (Bindman et al., ao desenvolvimento de comportamentos pró-sociais.
2013). O presente artigo focalizará esse aspecto do
Pesquisas têm sido conduzidas analisando dife- comportamento dos pais e, portanto, as sete práticas
rentes características dos pais e da sua relação com as educativas encontram-se descritas mais detalhadamente
crianças, tais como a relação de apego, a sensibilidade a seguir.
materna, os estilos parentais, histórico acadêmico As práticas favoráveis ao desenvolvimento de
materno e condição social (Bernier, Whipple, & comportamentos pró-sociais incluem a monitoria

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positiva e o comportamento moral. A primeira consiste contextos mais importantes para oportunizar o mesmo,
no conjunto de práticas parentais que envolvem, por isto é, no ambiente doméstico. Tal estudo enfocou
exemplo, atenção e conhecimento dos pais acerca os indicadores demográficos e o desenvolvimento
de onde o seu filho se encontra e das atividades das funções executivas no ambiente familiar e,
desenvolvidas por ele. A segunda refere-se a uma no mesmo, identificou perfis familiares de risco,
prática educativa pela qual os pais transmitem valores, incluindo as práticas parentais e a estrutura familiar.
como honestidade, generosidade e senso de justiça aos Os resultados sugeriram que combinações específicas
filhos, auxiliando-os na discriminação do certo e do de risco são mais associadas com baixos resultados de
errado por meio de modelos positivos, dentro de uma funções executivas e que essas combinações podem
relação de afeto. variar de acordo com a raça, estado civil e condição
As práticas educativas relacionadas ao desen- socioeconômica. Observou-se, por exemplo, que a
volvimento de comportamentos antissociais são de qualidade da parentalidade pode exercer influência
cinco tipos. Primeiramente, a negligência, a qual no desenvolvimento das crianças de duas maneiras.
ocorre quando os pais não estão atentos às necessidades Em primeiro lugar, por meio de interações sensíveis
de seus filhos, ausentam-se das responsabilidades, contingentes com os progenitores, afinal, por meio
omitem-se de auxiliar seus filhos, ou simplesmente destas, a criança pode aumentar a sua motivação para
quando interagem sem afeto, sem amor. A segunda aprender a controlar e interagir com o mundo externo,
é a punição inconsistente, a qual consiste em os pais o que pode contribuir para a prática das habilidades
punirem ou reforçarem os comportamentos de seus relacionadas às funções executivas. Em um segundo
filhos de acordo com o próprio bom ou mau humor, de momento, por meio da segurança derivada de interações
forma não contingente ao comportamento da criança. positivas, neste caso as crianças são mais propensas a
A terceira prática educativa é nomeada de monitoria explorar o seu ambiente, aumentando a sua interação
negativa e está relacionada ao excesso de fiscalização com materiais que a estimulem cognitivamente
dos pais sobre a vida dos filhos e à grande quantidade (Rhoades et al., 2011).
de instruções repetitivas. A disciplina relaxada é o A pesquisa de Sarsour et al. (2011) teve como
quarto tipo e consiste no não cumprimento das regras objetivo investigar as contribuições independentes
estabelecidas pelos próprios pais. E a última é o abuso e interativas do status socioeconômico e status
físico, a qual contempla o ato dos pais machucarem ou monoparentais das famílias a nível do funcionamento
causarem dor a seus filhos com a justificativa de que executivo das crianças. Os autores comentam sobre a
estão educando. pesquisa de Ardila et al. (2005), os quais descobriram
Repetidas experiências de regulação de sucesso que os anos da escolaridade dos pais foram associados
por parte dos progenitores, em determinadas situações com o desempenho das funções executivas de crianças
emocionalmente desgastantes, levam as crianças a e foi encontrada relação mais predominante para
internalizar as competências adquiridas e gradualmente fluência verbal semântica. Outro estudo complementa
integrá-las em seu próprio repertório de autorregulação que a habilidade da linguagem da criança pode mediar
(Bernier et al., 2012; Rhoades, Greenberg, Lanza, & a relação entre o status socioeconômico da família e
Blair, 2011). Desta forma, os processos regulatórios a função executiva da criança (Noble et al., 2007).
tendem a ser, primeiramente, praticados no âmbito Por fim, Sarsour et al. (2011) comentam que o status
das relações familiares; as estratégias aprendidas socioeconômico pode afetar a medida em que os
então tendem a se generalizar e a ser utilizadas fora pais usam os recursos da família para enriquecer as
da relação didática, tal como durante tarefas que experiências de desenvolvimento com passatempos,
exijam autorregulação independente, a qual pode ser recreação, museus, bibliotecas, viagens, etc. Além
considerada uma característica definidora das tarefas disso, o status socioeconômico da família pode afetar
de funções executivas (Bernier et al., 2012). Pode-se dimensões parentais, incluindo a capacidade de resposta
supor, por meio do estudo de Bernier et al. (2012), emocional e verbal dos pais, oferecendo reforço para
que os fatores mais proximais, como, por exemplo, o comportamento desejado e fornecendo andaimes
as funções executivas dos próprios pais, possam para incentivar o desenvolvimento das habilidades
afetar o controle das crianças referente ao próprio executivas.
impulso, o que pode ocorrer por meio de imitação e de Tendo em vista a relevância das práticas parentais
aprendizagem por observação. para o desenvolvimento infantil e, especificamente,
No estudo de Rhoades, Greenberg, Lanza e Blair para o desenvolvimento das funções executivas, e
(2011) destacou-se que poucas pesquisas inserem o diante da escassez de estudos nessa área principalmente
desenvolvimento das funções executivas em um dos no âmbito nacional, este estudo objetivou verificar

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as relações entre as práticas educativas dos pais (em de responsáveis pelas crianças que contempla: grau
termos de monitoria positiva, comportamento moral, de parentesco dos participantes, estado civil e nível
punição inconsistente, negligência, disciplina relaxada, educacional de mãe e pai.
monitoria negativa e abuso físico) e as funções
Instrumentos
executivas em crianças pré-escolares.
Questionário de identificação
Método Por meio deste, desejou-se obter informações
relevantes que não foram abordadas nos instrumentos
Participantes utilizados, entre elas, dados pessoais (nome da mãe,
Participaram deste estudo crianças de 3 a 6 anos de do pai e data de nascimento da criança), escolaridade
idade, que cursavam os níveis de Maternal II, Nível I e dos pais e organização familiar (estado civil dos pais,
Nível II de uma escola particular de Educação Infantil quantidade de pessoas que habitam a casa, quem
localizada na cidade de São Paulo. Os responsáveis por convive no ambiente familiar e número de irmãos).
todas as 42 crianças matriculadas nessas séries foram
convidados a participar. Desses, 10 não autorizaram Inventário de Estilos Parentais (IEP)
a participação de seus filhos na pesquisa e, ao longo (Gomide, 2011b)
do ano letivo, 2 crianças saíram da escola, chegando Avalia o estilo parental, ou seja, as estratégias
à amostra final de 30 crianças e seus respectivos e técnicas utilizadas pelos pais para educar os
responsáveis. filhos. O inventário é composto por 42 questões que
Dessa forma, a amostra final foi constituída por correspondem às sete práticas educativas utilizadas
60 sujeitos, sendo 30 crianças entre 03 e 06 anos de pelos pais na interação com os filhos. Para cada prática
idade, com média de 4,22 anos, de ambos os sexos, e educativa, foram elaboradas seis questões distribuídas
seus respectivos pais. A amostra foi por conveniência espaçadamente ao longo do inventário. São duas
e o número de participantes selecionados foi para práticas educativas positivas: (A) monitoria positiva e
fins de exploração dos dados, não sendo derivado de (B) comportamento moral, e cinco práticas educativas
cálculo amostral. A Tabela 1 indica a caracterização negativas: (C) punição inconsistente, (D) negligência,
da amostra de crianças por idade, nível escolar, gênero (E) disciplina relaxada, (F) monitoria negativa e (G)
e composição familiar e a caracterização da amostra abuso físico (Gomide, 2011b).

Tabela 1
Caracterização da amostra de crianças por idade, gênero e composição familiar e caracterização dos responsáveis pelas crianças,
que participaram do estudo, em relação ao grau de parentesco, estado civil e nível educacional de mãe e pai.

Caracterização da amostra de crianças


Gênero Composição familiar
Idade média
Série DP Mediana Mãe/Pai/
(mín-máx) Masc. Fem. Mãe/Pai Mãe e/ou Pai Sem pais
Outros
3,42
Mat. II 0,49 3,08 5 9 6 7 1 0
(3,04-4,11)
4,30
Nível I 0,46 4,06 5 3 4 4 0 0
(4,04-5,11)
5,56
Nível II 0,53 5,54 5 3 4 2 1 1
(5,03-6,10)
4,22
Total 1,02 4,06 15 15 14 13 2 1
(3,04-6,10)
Caracterização da amostra de responsáveis
Grau de parentesco Estado civil Nível educacional de mãe e pai (n=60)
Graduação
Série Responsável Ensino
Mãe Pai Casado Div. incompleta/ Esp. Mestre
legal médio
completa
Mat. II 0 13 1 13 1 2 18 8 0
Nível I 0 6 2 8 0 1 9 5 1
Nível II 1 7 0 6 2 2 9 3 2
Total 1 26 3 27 3 5 36 16 3

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O IEP possui duas formas de aplicação. Há um nomear, no momento em que visualizar o dia ela deverá
inventário de estilos parentais denominado “práticas dizer noite e quando visualizar o menino deverá dizer
educativas paternas e maternas” para que os pais menina, assim por diante (Trevisan, 2010).
respondam sobre as práticas educativas adotadas em Ao total é composto por 32 imagens, divididas em
relação ao filho e, existem dois inventários, através dos 16 para a primeira etapa e 16 para a segunda etapa e
quais os filhos, acima de oito anos, podem responder vale lembrar que cada etapa contém uma progressão
sobre as práticas educativas utilizadas por seus pais. de dificuldade. Na primeira etapa as imagens aparecem
Os pais poderão responder sobre os filhos acima de com um intervalo de 1200 milésimos de segundo e na
cinco anos desde que façam as devidas adaptações às segunda as imagens aparecem em um intervalo de
situações propostas pelo inventário (Gomide, 2011b). 800 milésimos de segundo (Martoni, 2012). Evi-
Neste estudo foi utilizado o formato em que os pais dência de validade podem ser verificadas em Trevisan
respondem sobre o próprio filho e foram realizadas (2010).
adaptações em 12 itens, com autorização prévia da
autora, apenas para uma melhor compreensão do Teste de Atenção por Cancelamento (TAC)
conceito por parte dos pais, sem alteração substancial Avalia a atenção seletiva, atenção alternada,
de conteúdo. As modificações foram executadas para planejamento e o controle inibitório, o mesmo é
uma melhor compreensão, por parte dos pais, sobre composto por três fases, com dificuldade progressiva,
a realidade de seus filhos, afinal tratava-se de um nas quais, inicialmente, é apresentada para a criança
vocabulário para uma faixa etária superior, como, por um estímulo alvo e lhe é solicitada que assinale o
exemplo, se os pais explicavam ao filho que era melhor mesmo em meio a diversos outros em um espaço
tirar uma nota baixa do que colar em uma prova; ou delimitado (Trevisan, 2010). É indicado para crianças
se, quando o filho saía com alguém, os pais ligavam de 4 a 14 anos de idade e em jovens adultos (20 a
muitas vezes, etc. Foram adaptados os itens de número 32 anos).
1, 9, 13, 18, 20, 23, 26, 29, 33, 34, 37 e 38 da versão Os acertos são contabilizados quando a criança
original do instrumento. assinala o estímulo alvo de forma correta e os erros
O cálculo do índice de estilo parental é realizado a quando ela omite ou assinala algum outro sem ser
partir das práticas positivas (A+B) e as práticas negativas o desejado. Na primeira fase pode-se acertar de 0 a
(C+D+E+F+G) e, em seguida, subtrai-se a soma das 60 estímulos, sendo 15 estímulos corretos em cada
práticas negativas das positivas. Desta forma, quando o quadrante. Na segunda fase pode-se acertar de 0 a 12
índice de estilo parental é negativo, indica prevalência estímulos, entre eles, 3 estímulos corretos em cada
de práticas parentais negativas que neutralizam ou se quadrante. Na última fase pode-se acertar de 0 a 60
sobrepõem às práticas parentais positivas. Quando estímulos, contendo 15 estímulos corretos em cada
o índice de estilo parental é positivo, aponta uma quadrante. O instrumento total contém de 0 a 132
forte presença de práticas parentais positivas que se pontos corretos (Trevisan, 2010).
sobrepõem às práticas negativas. Evidência de validade Na primeira fase, no topo da folha, encontra-se
podem ser verificadas em Gomide (2011b). o estímulo alvo e abaixo são disponibilizadas 300
imagens de: círculo, quadrado, triângulo, cruz, estrela
Teste de Stroop Semântico (TSS) e traço. Todas as imagens estão organizadas de uma
O Teste de Stroop Semântico, utilizado nesse forma aleatória e a criança deve assinalar os estímulos
estudo, é uma versão adaptada por Trevisan (2010) idênticos ao alvo. Na segunda fase, no lugar do
com base nas versões de Berwid et al. (2005), Brocki estímulo alvo é solicitado que a criança encontre duas
e Bohlin (2006), Gerstadt, Hong e Diamond (1994), imagens que precisam estar localizadas uma ao lado
assim como o Stroop clássico (Stroop, 1935). O da outra na mesma linha e em mesma ordem conforme
instrumento é computadorizado e o objetivo consiste o alvo. Na terceira e última fase, o estímulo alvo se
em avaliar a atenção seletiva e o controle inibitório de modifica conforme cada linha, sendo necessário que a
crianças. Pode ser utilizado com crianças alfabetizadas criança consiga manter a atenção alternada adequada
ou não, pois não faz o uso de material escrito. O TSS é para realizar de forma correta o que é requisitado. Cada
indicado para crianças de 3 a 7 anos de idade. criança possui um minuto para realizar cada etapa
A versão original é composta por palavras, porém (Montiel & Seabra, 2012). Parâmetros psicométricos
esta é constituída por dois pares de figuras: sol e lua, do TAC são disponibilizados por Godoy (2012);
menino e menina. O teste é dividido em duas partes, conforme a autora, há evidências de validade para o
primeiramente, a criança deve nomear as figuras e, teste quando aplicado a crianças a partir de 4 anos de
posteriormente, a mesma deve dizer o oposto. Após idade, alunos do penúltimo ano da Educação Infantil.

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Dados normativos são disponibilizados em Dias, para crianças a partir de 4 anos alunas do penúltimo ano
Trevisan, Pereira, Gonzales e Seabra (2012). da Educação Infantil. Nos Níveis I e II foram aplicados
os três instrumentos de funções executivas. Levando em
Teste de Trilhas para pré-escolares (TTPE) consideração a idade da amostra e conforme solicitado
Neste estudo foi utilizada a versão do Teste de pela instituição, foi aplicado um teste por encontro,
Trilhas adaptada para pré-escolares de Trevisan (2010), totalizando três encontros individuais para Níveis I e
a partir das partes A e B do Teste de Partington e Leiter II e um encontro para o Maternal, com a duração de,
(1949). Trevisan (2010) fez esta adaptação pautada aproximadamente, 20 minutos cada um, realizados nos
nas versões de Espy (1997), Espy, Kaufmann e Glisky intervalos de aulas das respectivas professoras. Vale
(2001), Espy e Cwik (2004) e Baron (2004). A versão salientar que a aplicação de um próximo instrumento
atual está validada e, como é composta somente por só foi realizada após a conclusão do anterior em todas
imagens, é indicada para crianças de 4 a 6 anos de as crianças participantes.
idade. A retirada de alunos da sala de aula para os
Primeiramente, na Parte A, é apresentada uma encontros de avaliação foi sempre realizada com
folha para a criança com a imagem de uma família autorização prévia da educadora, assim como com a
composta por cinco cachorros, representando: pai, aceitação do próprio aluno. Os testes foram aplicados
mãe e três filhotes. A tarefa da criança é fazer a ligação em todas as crianças sempre na mesma ordem, para
entre os cachorros em ordem de tamanho crescente. evitar que possíveis efeitos de aprendizagem escolar
Posteriormente, na Parte B, são apresentadas dez promovessem diferenças nos escores nos testes entre
figuras, contemplando cinco cachorros e cinco ossos, os grupos de crianças. Para evitar efeito de fadiga,
cada um de um tamanho, porém de forma que dê para foram conduzidas três sessões com as crianças. No
agrupar duplas em relação aos tamanhos apresentados. primeiro encontro foi aplicado o Teste de Stroop
A criança deve fazer um traçado com o objetivo de unir Semântico; no segundo, o Teste de Trilhas para pré-
o cachorro e o osso do tamanho correspondente e assim escolares e, no terceiro encontro, o Teste de Atenção
por diante (Trevisan & Seabra, 2012). por Cancelamento.
Parâmetros psicométricos do Teste de Trilhas
para pré-escolares são disponibilizados por Trevisan e Resultados
Pereira (2012), revelando evidências de validade para
o teste quando aplicado a crianças a partir de 4 anos de Para proceder às análises objetivadas, inicialmente
idade, cursando o penúltimo ano da Educação Infantil. foi calculada a normalidade da distribuição. Conforme
Dados normativos são disponibilizados em Trevisan, os testes de normalidade de Kolmogorov-Smirnov e
Hipólito, Parise, Reppold e Seabra (2012). Shapiro-Wilk, a normalidade não foi confirmada. Assim
sendo, foram conduzidas estatísticas não paramétricas.
Procedimento Para verificar a relação entre os escores do Inventário de
Após aprovação da pesquisa pelo Comitê de Estilos Parentais e dos testes que avaliaram as funções
ética em Pesquisa, os responsáveis pela instituição e, executivas das crianças, foi conduzida correlação não-
posteriormente, os responsáveis pelas crianças foram paramétrica de Spearman.
contatados para assinar ao Termo de Consentimento No que se refere ao IEP e ao Teste de Stroop
Livre e Esclarecido. Semântico (Tabela 2) algumas correlações podem ser
Em seguida, foi agendado um horário para entre- elencadas. O percentual do IEP revelou correlação
vista individual com a figura materna e/ou paterna e/ou negativa significativa, de magnitude moderada, com
responsável legal de cada família na própria escola, a interferência no tempo de reação do TSS. A prática
em uma sala destinada para tal atividade e em horá- educativa negativa, denominada punição inconsistente,
rios previamente autorizados pela mesma. O encontro apresentou correlação positiva significativa, de
teve a duração de, aproximadamente, 30 minutos. magnitude baixa, com a média do tempo de reação na
Nele foi solicitado que o responsável preenchesse o parte 2 do TSS; a mesma prática educativa expressou
questionário de identificação e o Inventário de Estilo correlação positiva significativa, de magnitude mo-
Parental (IEP). derada, com a interferência no tempo de reação do
Em relação à avaliação das crianças, no Maternal foi TSS. Por fim, a prática educativa negativa, denominada
aplicado apenas o Teste de Stroop Semântico, visto que abuso físico, revelou correlação positiva significativa,
os demais testes não apresentam, como já descrito nos de magnitude moderada, com a média do tempo de
Instrumentos, parâmetros psicométricos aceitáveis para reação na parte 2 e com a interferência no tempo de
a faixa etária de 3 anos, com propriedades aceitáveis reação, ambos do TSS.

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Em relação ao IEP e ao Teste de Atenção por Quanto ao IEP e ao Teste de Trilhas para pré-
Cancelamento (Tabela 3), houve correlação positiva escolares (Tabela 4) a prática educativa negativa,
significativa, de magnitude moderada, entre o nomeada de punição inconsistente, revelou correlação
percentual total do IEP e o total de acertos na parte 2 positiva significativa, de magnitude moderada, com as
do TAC. conexões da parte B do TTPE.

Tabela 2
Análise de correlação não-paramétrica de Spearman entre o desempenho no Inventário de Estilos Parentais (IEP) e no Teste de
Stroop Semântico (N = 30).

Stroop Stroop Stroop Stroop


Interferência Interferência
Parte 1 Parte 1 Parte 2 Parte 2
Escore Tempo de Reação
Acertos Tempo de Reação Acertos Tempo de Reação
rho -0,144 0,061 0,027 -0,347- 0,112 -0,435*
Percentual
p 0,457 0,754 0,891 0,076 0,562 0,023
Monitoria rho -0,207 0,171 0,011 -0,048- 0,059 -0,148-
Positiva p 0,282 0,374 0,953 0,812 0,760 0,461
Compto. rho -0,050 -0,044 0,235 0,216 0,271 0,180
Moral p 0,795 0,820 0,220 0,280 0,154 0,370
Punição rho 0,141 -0,150 0,113 0,393* 0,053 0,518**
Inconsistente p 0,467 0,437 0,558 0,042 0,785 0,006
rho 0,193 -0,134 0,150 0,113 0,077 0,152
Negligência
p 0,316 0,489 0,437 0,576 0,693 0,448
Disciplina rho 0,091 0,001 -0,165- 0,210 -0,220- 0,253
Relaxada p 0,639 0,996 0,393 0,294 0,252 0,202
Monitoria rho -0,135 -0,185 0,095 -0,019- 0,062 -0,003-
Negativa p 0,486 0,336 0,625 0,924 0,749 0,986
rho 0,221 0,206 0,206 0,438* 0,174 0,428*
Abuso Físico
p 0,249 0,284 0,285 0,022 0,367 0,026
* p ≤ 0,05; ** p ≤ 0,01.

Tabela 3
Análise de correlação não-paramétrica de Spearman entre o desempenho no Inventário de Estilos Parentais (IEP)
e no Teste de Atenção por Cancelamento (N = 16).

TAC TAC TAC TAC


    Parte 1 Parte 2 Parte 3 Total
Acertos Acertos Acertos Acertos
rho 0,233 0,515* 0,232 0,204
Percentual
p 0,384 0,041 0,388 0,449
rho 0,049 0,261 0,119 0,102
Monitoria Positiva
p 0,856 0,328 0,662 0,708
rho -0,019 0,251 0,131 0,05
Comportamento Moral
p 0,944 0,348 0,628 0,854
rho 0,109 -0,249 0,062 0,181
Punição Inconsistente
p 0,688 0,352 0,818 0,503
rho 0,044 0,057 0,081 0,095
Negligência
p 0,871 0,835 0,767 0,725
rho -0,389 -0,451 -0,288 -0,357
Disciplina Relaxada
p 0,137 0,08 0,279 0,175
rho -0,057 -0,125 0,347 0,223
Monitoria Negativa
p 0,835 0,646 0,187 0,406
rho 0,226 -0,077 0,016 0,148
Abuso Físico
p 0,4 0,777 0,952 0,586
* p ≤ 0,05; ** p ≤ 0,01.

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Tabela 4
Análise de correlação não-paramétrica de Spearman entre o desempenho no Inventário de Estilos Parentais (IEP)
e no Teste de Trilhas para pré-escolares (N = 16).

Teste de Trilhas Teste de Trilhas Teste de Trilhas Teste de Trilhas


Parte A Parte A Parte B Parte B
Conexões Sequências Conexões Sequências
rho 0,131 0,131 -0,322- -0,193-
Percentual
p 0,630 0,630 0,224 0,473
rho -0,192- -0,192- -0,276- -0,299-
Monitoria Positiva
p 0,475 0,475 0,300 0,261
rho 0,051 0,051 0,140 0,059
Compto. Moral
p 0,852 0,852 0,606 0,829
rho 0,181 0,181 0,533* 0,334
Punição Inconsistente
p 0,503 0,503 0,033 0,207
rho -0,039 - -0,039- -0,139- 0,150
Negligência
p 0,887 0,887 0,608 0,580
rho -0,272 - -0,272- 0,025 0,081
Disciplina Relaxada
p 0,309 0,309 0,926 0,765
rho -0,064 - -0,064- 0,420 0,199
Monitoria Negativa
p 0,814 0,814 0,106 0,461
rho -0,065 - -0,065- 0,071 0,131
Abuso Físico
p 0,810 0,810 0,793 0,629
* p ≤ 0,05; ** p ≤ 0,01.

Discussão proporcionado pelos pais (medido como percentual no


IEP), melhor o controle de interferência por parte dos
É possível aferir que a maioria das correlações filhos (menor a diferença no tempo de reação na parte
estabelecidas entre o IEP e os instrumentos de incongruente do Teste de Stroop Semântico em relação
avaliação das funções executivas foram de magnitude à parte congruente). Para compreender, de forma
baixa a moderada, grande parte das correlações aprofundada, a natureza dessa relação, é relevante
encontradas se correlacionou com o Teste de Stroop observar os resultados das correlações entre funções
Semântico. Duas hipóteses explicativas podem ser executivas e as práticas educativas do IEP.
enumeradas, entre elas, tal ocorrido pode ser em função Das sete práticas educativas, apenas duas apre-
da amostra de sujeitos, pois devido à idade, todos sentaram alguma correlação significativa com as funções
os sujeitos foram avaliados com o Teste de Stroop executivas, a saber, punição inconsistente e abuso físico.
Semântico e, apenas, metade da amostra foi avaliada Em relação à punição inconsistente, ou seja, quando
com o Teste de Atenção por Cancelamento e Teste de os pais se orientam por seu humor na hora de punir
Trilhas. Outro dado importante está relacionado com ou reforçar e não pelo ato praticado (Gomide, 2011b),
o fato das funções executivas serem multifatoriais, houve correlação com as funções executivas. Observou-
provavelmente o construto avaliado pelo IEP se se que, quanto maior a inconsistência na punição, mais a
correlacione mais com inibição, avaliada pelo Teste criança demora na parte incongruente do Teste de Stroop
de Stroop Semântico. Segundo Miyake et al. (2000) Semântico (tempo de reação na parte incongruente),
e Diamond (2013), as funções executivas contemplam mais ela é afetada pela incongruência (maior o tempo de
um construto composto por várias habilidades ou reação de interferência no Teste de Stroop Semântico),
componentes, assim sendo, esperava-se grande número porém maior é a sua flexibilidade (escore na parte B
de correlações significativas, de baixas a moderadas, do Teste de Trilhas). Dentro desta prática educativa,
entre tais variáveis. há itens como os de número 17 (quando os pais estão
A partir do resultado de correlação negativa nervosos castigam os filhos e quando passa pedem
significativa entre o percentual do IEP e tempo de desculpas), 24 (quando estão nervosos descontam nos
interferência no Teste de Stroop Semântico, pode-se filhos) e 38 (quando estão mal humorados não deixam
observar que, quanto mais apropriado o estilo parental os filhos brincarem com os amigos).

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Outra prática educativa que merece destaque é a variar de acordo com a raça, estado civil e condição
nomeada de abuso físico, caracterizada pela disciplina socioeconômica. Para estes autores, pode-se esperar
através de práticas corporais negativas, ameaça e que esse estilo parental seja mais intrusivo devido
chantagem de abandono e de humilhação do filho aos seus níveis mais elevados de controle parental e,
(Gomide, 2011b). Um item que exemplifica essa geralmente, estão associados a um baixo desempenho
prática é o item 14, que contempla se o filho tem medo em relação ao desenvolvimento infantil. Observou-se,
de apanhar dos pais. Essa prática educativa também se por exemplo, que a qualidade da parentalidade pode
correlacionou com o desempenho no Teste de Stroop exercer influência no desenvolvimento das crianças
Semântico: quanto maior o uso de abuso físico, mais de duas maneiras. Em primeiro lugar, por meio de
a criança demora na parte incongruente do Stroop interações sensíveis contingentes com os progenitores,
(tempo de reação na parte incongruente) e mais ela é afinal, por meio destas, a criança pode aumentar a sua
afetada pela incongruência (maior o tempo de reação motivação para aprender a controlar e interagir com o
de interferência no Teste de Stroop Semântico). mundo externo, o que pode contribuir para a prática das
Por fim, conforme informações detalhadas em habilidades relacionadas às funções executivas. Em um
relação ao IEP, a prática educativa nomeada de segundo momento, por meio da segurança derivada de
punição inconsistente e abuso físico, apresentaram interações positivas, neste caso as crianças são mais
maior número de correlações significantes. Alguns propensas a explorar o seu ambiente, aumentando
estudos confirmam tais dados elencados, como, por a sua interação com materiais que a estimulem
exemplo, a pesquisa de Bernier et al. (2012), que relata cognitivamente (Rhoades et al., 2011). Dessa forma, o
sobre as estratégias ensinadas pelo cuidador de forma contexto social pode promover a exposição a interações
apropriada, as quais podem ser relacionadas à distração cognitivamente estimulantes que, por sua vez, podem
com uma atividade agradável enquanto se espera por promover as funções executivas.
algo ou ao resolver um quebra-cabeça voltar atrás e Apesar de tais achados previamente relatados
considerar outras opções para resolvê-lo, resultam estarem em consonância com o esperado teoricamente,
em interações familiares com um clima emocional observou-se resultado inesperado em relação à
harmonioso. flexibilidade cognitiva, que tendeu a ser maior quando
Assim, repetidas experiências de regulação de há punição inconsistente. Contrariamente ao aqui
sucesso em determinadas situações emocionalmente observado, estudos prévios têm consistentemente
desgastantes, por parte dos progenitores, levam as relacionado maior caos doméstico e maior instabilidade
crianças a internalizar as competências adquiridas e familiar a menor funções executivas em crianças
gradualmente integrá-las em seu próprio repertório de (Bernier et al., 2012; Hughes & Ensor, 2009; Rhoades
autorregulação. Desta forma, os processos regulatórios et al., 2011). Porém tais pesquisas não analisaram,
são, primeiramente, praticados no âmbito das relações especificamente, a flexibilidade cognitiva das crian-
familiares e as estratégias aprendidas são generalizadas ças, o que dificulta a comparação com os presentes
e utilizadas fora da relação didática, tal como durante achados.
tarefas que exijam autorregulação independente, a qual Hughes e Ensor (2009), por exemplo, chegaram
pode ser considerada uma característica definidora das à conclusão de que vários aspectos das interações
tarefas de funções executivas (Bernier et al., 2012). sociais sustentam as diferenças individuais das
Pode-se supor, por meio do estudo de Bernier et al. funções executivas em crianças pequenas. Dentre
(2012), que os fatores mais proximais, como por várias características familiares analisadas, as que
exemplo, as funções executivas dos próprios pais, predisseram as funções executivas em crianças
possam afetar o controle das crianças referente ao britânicas de 4 anos foram habilidade de planejamento
próprio impulso, o qual pode ser por meio de imitação da mãe, suporte (scaffolding) oferecido pela mãe e caos
e de aprendizagem por observação. familiar, e a predição por estilo parental inconsistente
Também a pesquisa de Rhoades et al. (2011) foi marginalmente significativa na predição. No
encontrou achados semelhantes, revelando que os estudo, porém, foi usada uma única medida de funções
riscos familiares advindos de questões demográficas executivas, derivada de quatro diferentes tarefas, não
podem prever as funções executivas em crianças. sendo possível proceder à análise diferencial da relação
Os autores abordaram o tema abuso físico como entre características familiares e cada aspecto das
uma prática inclusa no denominado “perfil familiar funções executivas.
de risco” e revelaram que combinações específicas Exploratoriamente, pode-se hipotetizar que a
de risco são mais associadas com baixos resultados flexibilidade cognitiva pode estar relacionada com o
de funções executivas e que as mesmas podem fato das crianças que vivem sob a prática educativa de

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punição inconsistente não saberem reconhecer quais os foi observado, que quanto maior a inconsistência na
comportamentos desejados pelos pais, apenas sabem punição, maior a sua flexibilidade cognitiva.
que o humor dos mesmos varia (Gomide, 2011a). É Algumas limitações devem ser consideradas neste
possível que a flexibilidade seja desenvolvida em função estudo e podem, potencialmente, ser explicativas dos
da instabilidade do ambiente, sendo que as crianças resultados observados, especialmente dos inesperados.
devem estar sempre atentas para responderem aos Entre elas, a principal é o tamanho amostral, que é
comportamentos imprevisíveis dos seus progenitores. restrito e limitador para a generalização dos resultados.
Porém, tal resultado não era esperado a partir do Ressalta-se ainda que o status socioeconômico das
referencial teórico ou empírico da área e constitui- famílias e o nível de estudo dos progenitores foi
se em uma observação a ser analisada em estudos bastante homogêneo na amostra avaliada, o que pode
futuros, podendo ser apenas um viés da amostra aqui dificultar a generalização dos resultados, ainda que se
analisada. considerem que as famílias podem apresentar estruturas
e dinâmicas diferentes, de modo que tal aspecto deve
Considerações Finais ser investigado em pesquisas futuras com o objetivo de
minimizar possíveis vieses. Finalmente, ressalta-se que
O presente estudo buscou investigar a relação entre os instrumentos de avaliação das funções executivas
estilos parentais e as funções executivas em crianças de também podem ser considerados como uma limitação
3 a 6 anos de idade. Dentre as relações observadas, os ao pensar que nem todos abordam a faixa etária em
resultados revelaram que, de modo geral, quanto mais questão. Sugere-se que futuramente sejam elaborados
apropriado o estilo parental dos pais, tanto melhor o e validados instrumentos para uma faixa etária
controle de interferência dos filhos e que, quanto maior precoce do desenvolvimento infantil e com níveis
a inconsistência na punição, menor a capacidade de socioeconômicos mais variados, além de novos estudos
inibição da criança. Porém, um resultado inesperado com análises de regressão em amostras maiores.

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Autores:
Gabriela Lamarca Luxo Martins – Doutoranda, Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Camila Barbosa Riccardi León – Doutoranda, Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Alessandra Gotuzo Seabra – Doutora, Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Endereço para correspondência:


Gabriela Lamarca Luxo Martins
Rua Itapicuru, 699 apto. 103 – Perdizes
05006-000 São Paulo, SP, Brasil

Recebido em: 19.11.15


Aceito em: 29.05.16

Psico (Porto Alegre), 2016; 47(3), 216-227


Estudos de Psicologia 2005, 10(3), 407-412

Consciência fonológica no início da escolarização e o desempenho


ulterior em leitura e escrita: estudo correlacional
Magda Solange Vanzo Pestun
Universidade Estadual de Londrina

Resumo
Pesquisas contemporâneas têm demonstrado que habilidades metalingüísticas são fundamentais para aquisi-
ção e desenvolvimento da leitura e escrita. Com o propósito de verificar se crianças que não haviam freqüen-
tado a escola até sua inserção no pré III e que não possuíam conhecimento de leitura e soletração apresenta-
vam consciência fonológica ao ingressarem no ensino formal, e se a presença dessa habilidade favorecia a
aquisição da leitura e escrita, 167 crianças de ambos os sexos, com idade média de 5 anos e 8 meses, de nível
sócio-econômico semelhante, participaram deste estudo, que foi realizado em três etapas. Na primeira etapa
(início do pré III), a habilidade de consciência fonológica foi avaliada por meio da Prova de Consciência
o
Fonológica. Nas segunda e terceira etapas (início e término do 1 ano), as crianças foram reavaliadas em
consciência fonológica e avaliadas em leitura oral e escrita sob ditado de palavras e de pseudopalavras. Os
resultados indicaram correlação positiva entre consciência fonológica e ulterior desempenho em leitura e em
escrita.
Palavras-chave: consciência fonológica; leitura; escrita; desenvolvimento

Abstract
Phonological awareness in the beginning of schooling and ulterior performance in reading and writing: a
correlational study. Contemporary research has demonstrated that metalinguistic skills are fundamental for
the acquisition and development of reading and writing skills. With the purpose of verifying if children who
had not attended school before preschool III, with no knowledge of reading and spelling, presented phonological
awareness when entering formal schooling and if the presence of this skill favored reading and writing
acquisition, 167 children from both sexes with an average age of 5 years and 8 months old, similar social-
economical level, took part in this study which was carried out in three stages. In the first stage (beginning of
preschool III), the phonological awareness skill was evaluated by means of the Phonological Awareness Test.
In the second and third stages (beginning and ending of the first grade of the elementary school), the children
were reassessed in their phonological awareness and evaluated in oral reading and writing with dictation of
words and pseudowords. The results showed a positive correlation between phonological awareness and
ulterior performance in reading as well as in writing.
Keywords: phonological awareness; reading; writing; development

P
esquisas contemporâneas têm demonstrado consis- ais de palavras) e é instruída formalmente em atividades
tentemente que habilidades metalingüísticas, ou seja, grafofonêmicas. Estudos com crianças não alfabetizadas vêm
a capacidade de refletir sobre a própria língua, são de demonstrando que elas já apresentam, durante a educação
fundamental importância para a aquisição e o desenvolvi- infantil, algumas habilidades metafonológicas que contribu-
mento da leitura e da escrita (Ball & Blachman, 1991; Bradley em para o sucesso da aprendizagem da leitura e da escrita
& Bryant, 1983; Cardoso-Martins, 1995). (Bradley & Bryant, 1983; Capovilla & Capovilla, 1998; Carraher
Uma das habilidades metalingüísticas é a consciência & Rego, 1984; Coimbra, 1997). No entanto, alguns pesquisa-
fonológica, isto é, a consciência de que a fala pode ser seg- dores sustentam que as crianças, antes de serem alfabetiza-
mentada e que os segmentos (palavras, sílabas, fonemas) das, não têm uma compreensão clara de como a fala é organi-
podem ser manipulados. Essa habilidade é desenvolvida gra- zada (Goswani & Bryant, 1990; Read, Zhang, Nie, & Ding,
dualmente conforme a criança experimenta situações lúdicas 1986). Somente a partir do conhecimento das características
(cantigas de roda, jogos de rima, identificação de sons inici- da escrita, é que as crianças desenvolveriam a consciência
M.S.V.Pestun
408

fonológica, ou seja, a introdução formal no sistema alfabético Todos os sujeitos tinham o consentimento de seus pais ou
seria o fator causal para o desenvolvimento de habilidades responsáveis para participarem da pesquisa e, é importante
metalingüísticas. Recentemente, alguns pesquisadores de- ressaltar, nenhuma dessas crianças havia freqüentado anteri-
fendem que, na realidade, existe uma relação de reciprocida- ormente o ensino formal, portanto, não liam nem soletravam
de, isto é, ao mesmo tempo em que as habilidades ao início do estudo.
metalingüísticas são fundamentais para a aquisição e o de- Todas as fases de coleta de dados foram realizadas nas
senvolvimento da leitura e da escrita, o treinamento em leitu- três escolas participantes, em horário normal de aulas, em
ra favorece o desenvolvimento da consciência fonológica salas reservadas para atendimentos individuais ou de peque-
(Adams, 1990; Morais, Mousty, & Kolonsky, 1998). nos grupos.
Independentemente de a relação entre consciência Foram empregados como instrumentos de avaliação:
fonológica e habilidade para leitura e escrita ser de causa, de (1) Roteiro de Anamnese para a entrevista com os pais ou
efeito ou de reciprocidade, o que se tem claro atualmente é que responsáveis pela criança;
o domínio fonológico exerce grande influência no processo de (2) Prova de Consciência Fonológica (PCF, ver Capovilla &
aprendizagem da leitura e da escrita, uma vez que possibilita a Capovilla, 1998), que tem por objetivo avaliar a habilidade de
generalização dos sistemas de escrita alfabéticos. crianças de manipular os sons da fala. Consiste em 40 ques-
tões de teste e duas de treino, divididas em 10 blocos de 4
se o alfabeto é um código com sistema de regras que asseguram
perguntas cada. Os blocos avaliam habilidades de síntese
a cada fonema de uma língua sua representação gráfica distin-
silábica e fonêmica, análise silábica e fonêmica, rima, aliteração,
ta, estas regras permitem compreender uma série de signos
segmentação silábica e fonêmica e transposição silábica e
ortográficos nunca vistos anteriormente e permitem criar novas
fonêmica. Os resultados são apresentados como escore ou
séries de signos para representar conceitos novos, de maneira
freqüência de acertos, sendo 40 acertos o máximo possível;
que suas representações sejam inteligíveis para toda pessoa que
(3) Escala Colúmbia de Maturidade Intelectual (ECMI,
conheça o sistema. (Batista & Resende da Costa, 2003, p. 41)
Burgemeister, Blum, & Lorge, 1971, adaptação de Rodrigues
Segundo Capovilla e Capovilla (2003), diversos países de & Pio da Rocha, 1994). Mede a aptidão geral de raciocínio de
língua alfabética compreenderam rapidamente que, para evitar crianças na faixa etária de 3 anos e 6 meses a 9 anos e 11
dificuldades em leitura e escrita, as crianças deveriam ser ensi- meses. A medida escolhida pela pesquisadora para efeito de
nadas, de forma explícita e sistemática, a manipular fonemas análise foi o estanino, um escore padronizado que varia de 1
por meio da instrução. Quanto mais desenvolvida essa habili- a 9 pontos. O estanino é obtido a partir do número de acertos
dade, melhor a compreensão da relação fonema–grafema. da criança no teste e de sua idade cronológica;
No Brasil, alguns pesquisadores vêm verificando as ha- (4) lista de palavras familiares e de pseudopalavras (Pinheiro,
bilidades metalingüísticas em crianças e construindo instru- 1994) para leitura oral e tomada de ditado. Composta de 192
mentos para avaliar a consciência fonológica e a futura habi- itens psicolingüísticos, que variam em termos de lexicalidade,
lidade de leitura e escrita, bem como propondo programas de regularidade, freqüência e comprimento. Dos 192 itens, 96
treinamento a serem implementados desde a Educação Infan- são palavras familiares e 96 são pseudopalavras. Das 96 pala-
til (Capovilla & Capovilla, 1998, 2000; Cardoso-Martins, 1995; vras familiares, 32 são regulares, 32 irregulares e 32 regra,
Moojen et al., 2003). sendo 48 de alta freqüência e 48 de baixa freqüência. Tanto as
Como no Paraná as pesquisas que verificam as habilida- palavras familiares quanto as pseudopalavras são divididas
des metalingüísticas são ainda incipientes, resolveu-se de- em dissílabas e trissílabas;
senvolver esta pesquisa com o propósito de verificar se cri- (5) gravadores (para gravar as respostas nas provas PCF);
anças pré-escolares, sem nenhum conhecimento de leitura e (6) fitas-cassete;
soletração, apresentavam consciência fonológica ao ingres- (7) cronômetros;
sarem no ensino formal e se a presença dessa habilidade fa- (8) folhas de respostas para leitura oral e tomada de ditado de
vorecia a aquisição de leitura e escrita. palavras familiares e pseudopalavras.
Procedimento
Método
Este estudo longitudinal, de caráter experimental, foi rea-
Este estudo longitudinal de caráter experimental foi inici- lizado em três etapas:
ado em fevereiro de 2002 com 167 crianças e concluído em Etapa I: quando as crianças iniciaram o pré III (fevereiro e
novembro de 2003 com 132 crianças (75 do sexo feminino e 57 março de 2002);
do sexo masculino). Trinta e cinco alunos solicitaram transfe- Etapa II: quando as crianças iniciaram o 1o ano do ensino
rência de escola ao longo dos dois anos da pesquisa. A idade fundamental (fevereiro e março de 2003);
média no início do estudo era de cinco anos e oito meses Etapa III: quando as crianças concluíram o 1o ano do ensino
(mínima de cinco anos e máxima de seis anos e seis meses). fundamental (dezembro de 2003).
As crianças freqüentavam o pré III em três escolas públicas Na Etapa I, os pais ou responsáveis pelas crianças parti-
municipais pertencentes ao Jardim Santo Amaro, município cipantes foram convidados para uma entrevista inicial, elabo-
de Cambé, PR, e apresentavam nível sócio-econômico seme- rada sob a forma de um questionário (roteiro de anamnese),
lhante (renda média familiar mensal de dois salários mínimos). cujo objetivo era obter o máximo de informações possível
Consciência fonológica, leitura e escrita 409

com relação ao desenvolvimento neuropsicomotor, sócio - tos foi realizada com o teste de Mann-Whitney. Os testes esta-
afetivo e escolar de seu filho ou filha, bem como alguma tísticos foram realizados em nível de significância de 5% e pro-
intercorrência que pudesse ter havido durante os períodos cessados no programa SAS (Statistical Analysis System).
pré, peri e pós-natal. A idade em que a criança falou as primei-
ras palavras com significado, seu desenvolvimento
Resultados
lingüístico, psicomotor e possíveis casos de dificuldade es-
colar na família eram considerados dados significativos na Os dados das entrevistas realizadas com os pais ou res-
história do sujeito. Na ocasião, os objetivos do trabalho fo- ponsáveis pelas crianças não revelaram informações signifi-
ram explicitados pela pesquisadora, a qual solicitou aos pais cativas (deficiências visuais ou auditivas, alterações neuro-
ou responsáveis a anuência para a participação de seu filho(a) lógicas importantes, como paralisia cerebral, epilepsia) que
na pesquisa, mediante assinatura do Termo de Consentimen- impedissem a participação da criança na pesquisa. Na ECMI,
to Livre e Esclarecido. Na mesma ocasião, as crianças foram o escore médio foi de 4,16, sendo o escore mínimo de 1 e o
submetidas à avaliação individual do potencial intelectual, escore máximo de 8.
por meio da ECMI, e da consciência fonológica, por meio da Houve um crescimento significativo nos desempenhos
PCF (F0). Cada prova foi aplicada em uma sessão de 30 minu- dos alunos em consciência fonológica, leitura e escrita sob
tos, com exceção da entrevista de anamnese, cuja duração foi ditado de palavras e de pseudopalavras, da primeira avalia-
de 60 minutos. ção realizada no início do pré-III à última avaliação realizada
a
Na Etapa II, as crianças matriculadas na 1 série foram ao término do primeiro ano do ensino fundamental (Tabela 1).
submetidas novamente à avaliação da consciência fonológica,
por meio da PCF (F1), de leitura oral de 48 palavras familiares
Tabela 1
(L1) e 48 pseudopalavras (LP1), e de escrita sob ditado de
Estatísticas descritivas das variáveis mensuradas
outras 48 palavras familiares (D1) e 48 pseudopalavras (DP1).
Desvio Valor Valor
O dado de interesse para a análise foi a freqüência de acertos Variáveis Média Mediana
padrão Mínimo Máximo
para cada modalidade avaliada (palavras familiares e
pseudopalavras). As provas de consciência fonológica e leitu- F0 11,3 4,3 0 11,0 28
F1 18,7 6,2 0 18,5 32
ra oral de palavras familiares e de pseudopalavras foram reali- F2 27,1 7,4 7 28,8 40
zadas em duas sessões individuais de 30 minutos cada. As L1 7,5 12,3 0 1,0 45
crianças eram retiradas da sala de aula e conduzidas pela pes- L2 34,1 14,7 0 41,0 47
quisadora à sala de avaliação. Todas as respostas foram grava- LP1 6,0 10,5 0 0,0 45
LP2 28,8 13,5 0 33,0 46
das, para futura pontuação e análise. Após o término da avali- D1 2,9 5,4 0 0,0 30
ação, elas eram reconduzidas à sala de aula. A Prova de Toma- D2 19,8 9,5 0 21,0 43
da de Ditado foi realizada em três sessões de 30 minutos cada. DP1 3,9 6,7 0 0,0 35
Na Etapa III, as crianças foram novamente avaliadas em DP2 16,2 8,7 0 17,0 37
consciência fonológica por meio da PCF (F2), em leitura de Nota: 0 = fevereiro e março de 2002
palavras familiares (L2) e de pseudopalavras (LP2) e em toma- 1 = fevereiro e março de 2003
2 = dezembro de 2003
da de ditado de palavras familiares (D2) e de pseudopalavras F = Prova de Consciência Fonológica (PCF)
(DP2). O procedimento foi semelhante ao da Etapa II. L = leitura oral de 48 palavras familiares
A análise dos resultados das provas realizadas ao longo LP = leitura oral de 48 pseudopalavras
dos dois anos de estudo foi conduzida, primeiramente, consi- D = escrita sob ditado de outras 48 palavras familiares
DP = escrita sob ditado de 48 pseudopalavras
derando-se a média aritmética obtida em todas as variáveis
medidas (consciência fonológica – F0, F1, F2; leitura de pala-
vras familiares - L1 e L2; leitura de pseudopalavras – LP1 e Quanto à PCF, na primeira avaliação os melhores desem-
LP2; ditado de palavras familiares – D1 e D2 e ditado de penhos foram observados nos subtestes síntese silábica,
pseudopalavras – DP1 e DP2), somente das crianças que par- segmentação silábica, rima e aliteração. Os piores desempe-
ticiparam das três etapas da pesquisa (n = 132). nhos foram observados nos subtestes transposição silábica,
Analisando as estatísticas de tendência central, obser- transposição fonêmica, segmentação fonêmica e manipula-
vou-se que a mediana ou era nula ou era muito baixa para a ção fonêmica. No decorrer dos dois anos de pesquisa as mai-
maioria das variáveis. Optamos, portanto, pela média aritméti- ores evoluções foram observadas em: manipulação silábica,
ca como valor de referência, pois a mesma permitiria melhor segmentação silábica, manipulação fonêmica, transposição
avaliação com os demais momentos. Analisamos as mudanças silábica e aliteração. Maiores detalhes podem ser obtidos em
ocorridas ao longo dos dois anos de pesquisa em relação à Pestun (2004).
média de referência (considerada como as médias das primei- Analisando a média de referência (momento inicial) de to-
ras medidas: F0, L1, LP1, D1, DP1), por meio do teste de Qui- das as variáveis mensuradas, observou-se que houve mudan-
quadrado (McNemar), com o objetivo de analisar se as mudan- ça significativa no desempenho das crianças para categorias
ças foram para melhor ou para pior. A comparação dos grupos melhores determinadas pelos valores acima da média de refe-
acima e abaixo da média de referência (F0) em todos os momen- rência (p < 0,001) como pode ser verificado na Tabela 2.
M.S.V.Pestun
410

Tabela 2
Número e porcentagem de crianças de acordo com as alterações em relação à média
de referência das variáveis mensuradas
Ab-Ab Ab-Ac Ac-Ab Ac-Ac
Medidas comparadas p *
n % n % n % n %
F0 – F1 15 11,4 59 44,7 2 1,5 56 42,4 < 0,001
F0 – F2 3 2,3 71 53,8 - - 58 43,9 < 0,001
L1 – L2 15 11,4 81 61,4 - - 36 27,3 < 0,001
LP1 – LP2 15 11,4 77 58,3 - - 40 30,3 < 0,001
D1 – D2 12 9,1 81 61,4 - - 39 29,5 < 0,001
DP1 – DP2 15 11,4 76 57,6 1 0,8 40 30,3 < 0,001
Nota: média de referência = média de todas as crianças nas primeiras medidas
Ab-Ab = abaixo da média de referência no primeiro e segundo momento
Ab-Ac = abaixo da média de referência no primeiro momento e acima no segundo momento
Ac-Ab = acima da média de referência no primeiro momento e abaixo no segundo momento
Ac-Ac = acima da média de referência no primeiro momento e acima no segundo momento
* Teste de qui-quadrado de McNemar com 1 grau de liberdade

A quantidade de crianças que demonstraram desempe- nas duas medidas obtidas (Ab-Ab), enquanto houve um
nhos acima da média em F0, manteve-se em F1 e aumentou em acréscimo significativo na quantidade de crianças que evo-
F2 (Ac-Ac). Somente duas crianças, na segunda avaliação da luíram em escrita sob ditado (Ab-Ac). Somente uma criança
PCF mudaram de categoria, de acima da média para abaixo da mudou de categoria, de acima da média para abaixo da média
média (Ac-Ab). Provavelmente, alguma variável não contro- em escrita sob ditado de pseudopalavras (Ac-Ab). Prova-
lada determinou esse resultado. Interessante observar o au- velmente, alguma variável não controlada determinou esse
mento significativo de crianças que mudaram de categoria, resultado.
ou seja, que apresentavam desempenhos abaixo da média em A Tabela 3 demonstra que em todas as variáveis
F0 e evoluíram em F1 (Ab-Ac). Somente três crianças manti- mensuradas, as crianças que apresentaram escores acima da
veram desempenhos abaixo da média nas três avaliações da média nas três avaliações da PCF (F0, F1, F2), também apre-
PCF (Ab-Ab). sentaram escores medianos maiores nas segundas medidas
Em leitura de palavras e de pseudopalavras, 15 crianças obtidas (p < 0,001).
mantiveram seus desempenhos abaixo da média nas duas
medidas obtidas (Ab-Ab), enquanto houve um acréscimo
Discussão
significativo na quantidade de crianças que evoluíram em
leitura (Ab-Ac). A presente pesquisa teve por objetivo verificar se have-
Em escrita sob ditado de palavras familiares, 12 crian- ria uma relação causal entre a habilidade de consciência
ças mantiveram seus desempenhos abaixo da média nas duas fonológica presente antes da escolarização formal e a aquisi-
medidas obtidas. Em escrita sob ditado de pseudopalavras, ção e o desenvolvimento da leitura e da escrita ao término do
15 crianças mantiveram seus desempenhos abaixo da média 1o ano do ensino fundamental. Como pode ser verificado na

Tabela 3
Escores médios, desvio padrão e mediana das variáveis mensuradas de acordo com
a classificação acima ou abaixo da média de referência (F0) em todos os momentos
(F0, F1 e F2)
Acima da média de referência em todos os momentos
Variáveis Sim (n = 56) Não (n = 76) p *
Média Desvio padrão Mediana Média Desvio padrão Mediana
L1 10,32 14,10 4,50 5,38 10,47 0,00 0,002
L2 41,21 8,57 42,00 28,91 16,21 35,50 < 0,001
LP1 8,70 12,18 3,50 4,04 8,80 0,00 < 0,001
LP2 35,64 8,85 38,00 23,70 14,28 27,50 < 0,001
D1 4,46 6,32 1,00 1,75 4,25 0,00 < 0,001
D2 24,04 7,65 24,00 16,71 9,59 18,00 < 0,001
DP1 6,05 8,20 3,00 2,32 4,96 0,00 < 0,001
DP2 19,36 6,60 19,00 13,84 9,34 14,50 < 0,001
* Teste de Mann-Whitney
Consciência fonológica, leitura e escrita 411

Tabela 3, parece haver uma relação causal entre todas as va- Bryant, 1983; Capovillla & Capovilla, 1998; Carraher & Rego,
riáveis, isto é, entre consciência fonológica, leitura oral e es- 1984; Coimbra, 1997).
crita de palavras e de pseudopalavras. Esses resultados cor- Portanto, os resultados desta pesquisa parecem indicar
roboram o que os estudos longitudinais documentados na uma relação de reciprocidade, ou seja, assim como as habili-
literatura nacional e internacional vêm divulgando (Cardoso- dades metalingüísticas são importantes para a aquisição e o
Martins, 1991; Lundberg, Frost, & Peterson, 1988; Torgesen, desenvolvimento da leitura e da escrita, o ensino destas últi-
Wagner, & Rashotti, 1994). Crianças que apresentam consci- mas, favorece o desenvolvimento da consciência fonológica.
ência de que a fala pode ser segmentada e que os segmentos Ao longo das três avaliações da PCF, as habilidades de
podem ser manipulados adquirem e desenvolvem as habili- consciência fonológica que mais evoluíram foram aquelas que
dades de leitura e escrita de forma mais eficiente. envolviam sílabas, permanecendo como as mais difíceis as
No presente estudo, 42% dos alunos apresentaram cons- atividades que envolviam fonemas. Segundo Morais et al.
ciência fonológica ao início do pré III, ou seja, obtiveram (1986, 1989) e Bertelson et al (1989), as sílabas são unidades
resultados acima da média de referência – responderam cor- lingüísticas naturalmente isoláveis na pronúncia e o seu do-
retamente a 11 ou mais de 40 questões propostas. Capovilla e mínio desenvolve-se informalmente através de experiências
Capovilla (1998) aplicaram a mesma prova em 34 crianças de com a linguagem oral, presentes, portanto, desde cedo nas
nível sócio-econômico médio, alunos de pré III de uma escola crianças. O fonema, por sua vez, é uma estrutura de maior
particular do interior de São Paulo, e obtiveram melhores re- complexidade que precisa ser ensinado explicitamente. Con-
sultados em consciência fonológica, média de acertos de forme Maluf e Barrera (1997), as habilidades para segmentar
18,94% questões em 40 propostas. Algumas hipóteses po- palavras em suas unidades silábicas e/ou fonêmicas aumen-
dem ser levantadas para explicar a diferença nos resultados tam com o aumento da idade e do nível escolar. Essas mesmas
entre os dois estudos: (1) a falta de escolarização anterior ao autoras nos revelam que as crianças, participantes de sua
pré III nos alunos do presente estudo pode ter sido a respon- pesquisa, na faixa etária dos quatro anos, mostraram maior
sável por esses dados. Pesquisas têm demonstrado que a freqüência de segmentação silábica, ao passo que as crian-
instrução formal no sistema alfabético é muito importante para ças na faixa etária de seis anos mostraram um predomínio de
o desenvolvimento de alguns níveis de consciência fonológica segmentação fonêmica. Resultados semelhantes foram obti-
considerados mais complexos, como é o caso da análise e dos por Liberman, Shankweiler, Fisher e Carter (1974). Ne-
síntese fonêmica, transposição fonêmica (Bertelson, Gelder, nhuma das crianças de quatro anos pesquisadas por eles
Tfouni, & Morais, 1989; Maluf & Barrera, 1997; Morais, conseguiu segmentar em fonemas, mas metade delas conse-
Bertelson, Cary, & Alégria, 1986; Morais, Content, Cary, guiu segmentar em sílabas. Aos seis anos, 70% já consegui-
Mehler & Segui, 1989). A amostra de Capovilla e Capovilla am segmentar em fonemas e 90% em sílabas. Entre os quatro
(1998) freqüentava escola particular desde o pré-I; (2) nível e os seis anos, essas crianças aprenderam a ler, a soletrar e a
sócio-econômico como os pais das crianças do presente es- escrever. Acreditamos que o desconhecimento, por parte dos
tudo eram, em sua maioria, semi-analfabetos ou apresenta- professores de nossa pesquisa, do que são habilidades
vam poucos anos de escolarização, provavelmente, liam me- metalingüísticas e metafonológicas e, consequentemente, a
nos para seus filhos e realizavam poucos jogos de lingua- ausência de treinamento sistemático dessas habilidades não
gem, o que parece não ter favorecido o desenvolvimento da favoreceu um melhor desempenho das crianças nas tarefas
consciência fonológica nesse grupo. A literatura atual vem de segmentação, síntese, manipulação e transposição
a
demonstrando que pais com pouca escolarização lêem me- fonêmica, apesar de estarem concluindo a 1 série e com ida-
nos para seus filhos e fazem poucos jogos de linguagem com de média de oito anos.
eles (Morais, 1995). As crianças da amostra de Capovilla e Com relação às crianças que não evoluíram ao longo dos
Capovilla (1998) pertenciam a uma classe sócio-econômica dois anos deste estudo, levantamos a hipótese de elas serem
média, portanto, diferente da amostra do presente estudo. portadoras de um distúrbio de linguagem. Estudos controla-
A mudança significativa no desempenho das crianças dos com essas crianças estão sendo atualmente conduzidos.
para categorias melhores determinadas pelos valores acima
da média de referência parece indicar que a introdução formal
Considerações finais
no sistema alfabético favoreceu o desenvolvimento de habi-
lidades metalingüisticas. Segundo Goswani e Bryant (1990) e As análises dos resultados obtidos na presente pesqui-
Read et al. (1986), as crianças antes de serem alfabetizadas, sa permitem indicar que: (1) parece existir uma relação causal
não têm uma compreensão clara de como a fala é organizada. entre consciência fonológica e ulterior desempenho em leitu-
Somente a partir do conhecimento das características da es- ra e escrita, visto que a consciência fonológica foi medida
crita é que as crianças desenvolvem a consciência fonológica. antes de as crianças terem aprendido a ler e a soletrar; (2)
Por outro lado, pode-se verificar que os melhores alunos parece existir uma relação de efeito entre o ensino formal no
em consciência fonológica (F0, F1, F2) eram os melhores em sistema alfabético e o desenvolvimento da consciência
leitura e em escrita em todos os momentos, o que parece fonológica; (3) existem diferentes níveis de consciência
confirmar que habilidades metalingüisticas contribuem para fonológica, ou seja, primeiro desenvolve-se a consciência da
o sucesso da aprendizagem da leitura e da escrita (Bradley & sílaba e, posteriormente, a consciência do fonema; (4) as ha-
M.S.V.Pestun
412

bilidades metafonológicas são dependentes da idade, do ní- Capovilla, A. G. S., & Capovilla, F. C. (2000). Problemas de leitura e escrita: como
vel escolar e das formas de ensino. identificar, prevenir e remediar numa abordagem fônica. São Paulo: Memnon.
Assim, sugerimos que: (1) a Educação Infantil pode ser o Capovilla, A. G. S., & Capovilla, F. C. (2003). Comparando métodos de
momento adequado para o desenvolvimento de habilidades alfabetização: evidência da superioridade do método fônico em relação ao
método global. In M. C. Marquezine, M. A. Almeida, & E. D. Tanaka
metafonológicas que favoreceriam ulterior aquisição e de-
(Orgs.), Leitura, escrita e comunicação no contexto da educação especial
senvolvimento das habilidades de leitura e de escrita; (2) os
(pp. 1-28). Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina.
professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental ne- Cardoso-Martins, C. (1991). Awareness of phonemes and alphabetic literacy
cessitam de cursos de formação continuada para compreen- acquisition. British Journal of Educational Psychology, 61, 164-173.
derem o que é Metalinguagem e Habilidades Metafonológicas Cardoso-Martins, C. (1995). Sensitivity to rhymes, syllables, and phonemes in literacy
e aplicar procedimentos que favoreçam a aquisição e o de- acquisition in Portuguese. Reading Research Quarterly, 30(4), 808-827.
senvolvimento dessas habilidades em seus alunos; (3) o de- Carraher, T. N., & Rego, L. L. B. (1984). Desenvolvimento cognitivo e alfabe-
sempenho em consciência fonológica parece ser um bom in- tização. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 65, 38-55.
dicador de sinais de risco para Distúrbio de Leitura e Escrita. Coimbra, M. (1997). Metaphonological ability to judge phonetic and phonological
acceptability in five-year-old monolingual and bilingual children. Tese de
Doutorado não-publicada, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
Agradecimentos do Sul, Porto Alegre.
Goswani, U., & Bryant, P. (1990). Phonological skills and learning to read.
Nossos sinceros agradecimentos a Profa. Dra. Tieme Hove, Reino Unido: Erlbaum.
Matsuo, docente do Departamento de Matemática Aplicada, Liberman, I. Y., Shankweiler, D., Fisher, E., & Carter, B. (1974). Explicit
Universidade Estadual de Londrina, pelo tratamento estatís- syllable and phoneme segmentation in the young child. Journal of Experi-
tico dos dados desta pesquisa. Igualmente manifestamos mental Child Psychology, 18, 201-212.
nosso agradecimento ao Fundo de Apoio ao Ensino, Pesqui- Lundberg, I., Frost, J., & Petersen, O. (1988). Effects of an extensive program for
sa e Extensão, da Universidade Estadual de Londrina (FAEPE/ stimulating phonological awareness in preschool children. Reading Research
UEL), pelo apoio. Quarterly, 23, 262-284.
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Magda Solange Vanzo Pestun, doutora em Ciências Médicas (Neurologia) pela Universidade de Campinas, é
coordenadora do grupo de pesquisa “Desenvolvimento Humano” e professora no departamento de Psicologia
Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina. Endereço para correspondência: Rodovia Celso
Garcia Cid (445) Km. 380; Londrina, PR; CEP 86051-990. Tel.: (43) 3371-4487. E-mail:
pestun@sercomtel.com.br

Recebido em 28.jul.04
Revisado em 28.set.05
Aceito em 21.nov.05
ISSN: 1984-1655

EDUCAÇÃO MORAL PARA O PERDÃO EM CRIANÇAS

Eloá Losano de Abreu1


Pollyana de Lucena Moreira2
Júlio Rique Neto3

Resumo
Este trabalho apresenta os resultados de uma intervenção para o perdão reali-
zada com 17 crianças com idade média de 7 anos e 6 meses (DP = .70). O méto-
do utilizado foi quase experimental com participantes respondendo a Entrevista
do Perdão no início e no final da intervenção. Após a entrevista inicial, as crian-
ças foram divididas aleatoriamente em grupos experimental e controle. As cri-
anças do grupo experimental participaram das atividades delineadas para a
intervenção. As crianças do grupo controle foram mantidas nas aulas normais
na instituição. Os resultados indicaram que perdoar foi associado ao pedido de
desculpas e à reconciliação entre as partes em conflito. Na comparação do pré-
teste com o pós-teste, as crianças do grupo experimental mostraram um aumen-
to significativo do grau de perdão, uma diminuição significativa do grau da
raiva do ofensor e um aumento na frequência de escolha pelo perdão como uma
opção para resolução de conflitos interpessoais. Acredita-se que para crianças
dessa faixa etária o pedido de desculpas e a reconciliação funcionam como re-
presentações do perdão.

Palavras Chave: Educação Moral; Perdão; Virtudes.

1 Professora Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba.


E-mail: eloalosano@gmail.com
2 Doutora em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB, e pós-

doutoranda na Universidade de Fortaleza.


3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Departamento de Psicologia, UFPB.

E-mail: julio.rique@uol.com.br
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MORAL EDUCATION FOR FORGIVENESS IN CHILDREN

Abstract

This article presents the results of an intervention for forgiveness performed


with 17 children with a mean age of 7 years and 6 months (SD = 0.70). The
method used was quasi-experimental, with participants responding to an Inter-
view of Forgiveness at the beginning and at the end of the intervention. After
the initial interview, participants were randomly divided into experimental and
control groups. The children of the experimental group participated in the ac-
tivities for forgiveness outlined for the intervention. The children of the control
group were kept in the normal classes of the institution. The results indicated
that forgiveness was associated with apology and reconciliation. The compari-
son between the pre-test and the post-test showed that children in the experi-
mental group had a significant increase in the degree of forgiveness, a signifi-
cant decrease in the degree of anger, and an increase in the frequency of for-
giveness as a choice for the resolution of interpersonal conflicts. In conclusion,
for children in this age group, apology and reconciliation function as represen-
tations of forgiveness.

Keywords: Moral Education; Forgiveness; Virtues.

Introdução

Neste trabalho, a educação para o perdão foi utilizada como estraté-


gia de resolução de conflitos em crianças. A educação foi elaborada com base
nas estratégias educacionais criadas por De Vries e Zan (1994) para desenvolver
um ambiente educacional construtivista favorável ao desenvolvimento do pen-
samento moral do perdão. Essas autoras baseiam suas estratégias nas concep-
ções de Piaget (1932/1994) para a educação. Utilizou-se também as estratégias
pedagógicas elaboradas por Watson (2003), que defende o fortalecimento de

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relações de confiança entre crianças na escola. E, finalmente, na teoria do per-


dão de Enright (ENRIGHT, FREEDMAN & RIQUE, 1998; ENRIGHT &
FITZGIBBONS, 2000).

Considera-se este trabalho relevante na medida em que aborda uma


educação positiva que busca habilitar as crianças com valores e virtudes que
vão facilitar a compreensão do outro diante de conflitos interpessoais.

Princípios Cognitivos e Afetivos na Educação Moral

Para Piaget (1932/1994), a moralidade se desenvolve a partir do sen-


timento de dever e obrigação em respeitar as regras impostas pelo adulto. As
primeiras relações sociais das crianças são estabelecidas com os adultos e a coa-
ção exercida por esses adultos sobre a criança promove o sentimento de respei-
to unilateral. Posteriormente, por volta dos sete ou oito anos de idade, ocorre
uma expansão das relações sociais entre crianças de idades semelhantes, o que
vai possibilitar o desenvolvimento da cooperação e de um sentimento de respei-
to mútuo entre os pares. Esse tipo de respeito, por sua vez, vai se intercalando
com o sentimento de respeito às regras como obediência aos adultos e pouco a
pouco vai transformando a qualidade da moral e construindo o sentimento de
respeito às regras pelo bem das pessoas.

É possível facilitar esse processo e educar crianças nas escolas com o


objetivo de favorecer o desenvolvimento moral. No entanto, para que uma edu-
cação moral com fins de desenvolvimento seja efetiva, é necessário haver o
comprometimento da escola e dos educadores em abdicar da autoridade que
reforça a coação adulta sobre a criança, e manter um compromisso com ativida-
des supervisionadas que possam promover a cooperação entre as crianças no
ambiente escolar. Enfatizar o trabalho de cooperação e a produção coletiva ao
invés de focar no trabalho e no desempenho individual constrói o respeito mú-
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tuo e a obediência às regras pelo bem de todos na escola. Como também permi-
te às crianças estabelecerem vínculos de confiança com os professores que tam-
bém são de fundamental importância para o desenvolvimento da autonomia
moral. Na maioria das vezes, a relação das crianças com os professores é basea-
da nas imposições de conhecimentos e conceitos morais destes sobre as crian-
ças. Nesse sentido, é preciso mudar a natureza das relações entre professores e
alunos da obediência por coerção para obediência por confiança e cooperação.
Assim, o respeito às regras pelo bem das pessoas necessita não somente dos
componentes racionais cognitivos, mas também de algumas condições afetivas
que em conjunto auxiliam a educação moral.

De Vries e Zan (1994) elaboraram um guia para transformar as salas


de aula em ambientes propícios ao desenvolvimento moral. Dois aspectos são
essenciais para a construção deste tipo de classe: (1) a relação professora-criança
deve ser baseada no afeto e na dedicação da professora para com as crianças e,
no momento de uma resolução de conflitos, o professor tem a função de orien-
tar as crianças a adotarem a tomada de perspectiva dos diferentes pontos de
vista envolvidos na mesma situação, devendo ainda incentivar o uso da reci-
procidade e o estabelecimento de um acordo entre as partes; (2) as relações en-
tre as crianças devem ser fundamentadas nos mesmos moldes de respeito, reci-
procidade e cooperação.

Watson (2003) colabora com essa proposta, através da elaboração de


um projeto de educação moral com o objetivo principal de incentivar a forma-
ção de ligações de afeto e confiança no ambiente escolar. O projeto buscou de-
senvolver relações de apoio entre os alunos e o professor e entre os próprios
alunos; auxiliar na compreensão dos alunos sobre as regras de funcionamento
do ambiente escolar; engajar os alunos em estratégias de colaboração e resolu-

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ção de conflitos. Para tanto, Watson (2003) utilizou, além dos princípios cons-
trutivistas piagetianos de De Vries e Zan, os princípios das teorias do apego
(BOWLBY, 1969), confiança (ERIKSON, 1963) e as estratégias para desenvolver
a empatia indicadas por Hoffman (2000). Nessas perspectivas, a qualidade da
relação das crianças com seus primeiros cuidadores determina o comportamen-
to destas com outras pessoas de seu convívio. A empatia é um dos sentimentos
mais essenciais para a construção de uma relação de confiança em sala de aula,
pois é ela que permite que as crianças considerem o sofrimento do outro como
consequência de suas ações. Para desenvolver essa habilidade afetiva, Watson
indica o uso da técnica da indução, utilizada para ajudar as crianças a adotarem
e compreenderem a situação sob a perspectiva de outra criança numa situação
de conflito. Esta técnica permite que a criança perceba o sofrimento do outro e
possibilita o surgimento do princípio moral da reparação como uma obrigação
moral.

Os pressupostos piagetianos apontados por De Vries, juntamente


com as indicações de Watson para a construção de uma relação positiva entre as
crianças, são a base para a promoção do desenvolvimento moral do perdão co-
mo uma possível estratégia para resolução de conflitos interpessoais.

O Processo de Perdoar

Enright et al. (1998, p.46-47) definem o perdão como:

Uma atitude moral na qual uma pessoa considera abdicar do direito


ao ressentimento, julgamentos, afetos e comportamentos negativos
para com uma pessoa que a ofendeu injustamente. E, ao mesmo tem-
po, nutrir a compaixão, a misericórdia e possivelmente o amor para
com o outro que ofendeu.

Perdoar envolve a remissão dos sentimentos, julgamentos e compor-


tamentos negativos, e sua substituição por sentimentos, julgamentos e compor-

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tamentos positivos perante a pessoa que gerou a mágoa. Para que isso aconteça
é necessário que o indivíduo desenvolva a empatia, através da capacidade de
colocar-se no lugar do outro, ou role-taking (RIQUE, CAMINO, FORMIGA,
MEDEIROS & LUNA, 2010). O role-taking pode ser definido como a habilidade
de diferenciação entre a própria perspectiva e a perspectiva do outro, que ocor-
re através de uma percepção precisa do pensamento do outro e do uso de estra-
tégias de negociação interpessoal. Essa habilidade se desenvolve com a idade e
a medida que as crianças se envolvem em relações sociais cada vez mais com-
plexas, levando a uma percepção mais avançada das relações interpessoais e à
necessidade de uso de estratégias cognitivas para resolverem conflitos (SEL-
MAN, 1980).

Enright, Santos e Al-Mabuk (1989) desenvolveram um modelo cogni-


tivo-social do pensamento do perdão, no qual são apresentados seis tipos de
raciocínio utilizados pelas pessoas ao perdoar, que são: (1) o perdão pode ser
oferecido quando o ofensor tiver sofrido alguma dor no mesmo grau daquela
sofrida pela vítima; nesse caso, o perdão ocorre como vingança/retribuição; (2) o
perdão pode surgir quando a pessoa magoada recebe alguma compensação pe-
la mágoa sofrida, ou seja, o perdão ocorre por restituição ou compensação. (3) o
perdão pode ser indicado por amigos ou familiares da pessoa magoada como
uma atitude correta; assim, o perdão surgiria devido a uma pressão social. (4) o
perdão pode ser uma decisão da pessoa magoada, por esta ter crenças ou prin-
cípios religiosos que apoiem essa decisão; dessa forma, o perdão ocorreria de-
vido a uma pressão institucional. (5) O perdão também pode ser oferecido como
uma alternativa para promover a restauração da harmonia no grupo social. (6) Fi-
nalmente, o perdão pode ser oferecido como um ato de dignidade e amor ao
próximo, através do sentimento de compaixão pelo ofensor.

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Além do modelo cognitivo-social do pensamento do perdão, Enright


et al. (1998) elaboraram um modelo do processo para perdoar, onde apresentam
os passos que devem ser percorridos pelo indivíduo que decide perdoar al-
guém. Este modelo é composto por quatro fases gerais: reconhecimento, deci-
são, resolução e aprofundamento (ver Quadro 1).

O processo do perdão tem sido utilizado em terapias e programas


educacionais com o objetivo de auxiliar na regulação das emoções e no desen-
volvimento da habilidade de resolução de conflitos (AL-MABUK, ENRIGHT &

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CARDIS, 1995; DENHAM ET AL., 2005; HEPP-DAX, 1996; HOLTER ET AL.,


2008). No geral esses estudos indicaram resultados positivos no que se refere ao
restabelecimento do bem-estar psicológico dos participantes, melhorando suas
concepções sobre a injustiça e sobre o perdão. Como exemplo de uma interven-
ção, o estudo de Hepp-Dax (1996) utilizou o processo de perdoar com alunos de
uma escola pública de Nova Iorque, com o objetivo de diminuir os conflitos
causados pela discriminação racial. O estudo foi realizado com 24 crianças, com
idade média de 10 anos, divididas em grupos: experimental e controle. Os re-
sultados da comparação entre pré e pós-testes indicaram diferenças significati-
vas nas médias do perdão, e um reteste, sete meses após o encerramento das
atividades, evidenciou um aumento no nível de autoestima das crianças.

Considerando os princípios e teorias apresentadas, o presente estudo


teve por objetivo promover um programa de intervenção educacional para a
promoção do desenvolvimento do perdão em crianças de seis a oito anos de
idade.

Método

O presente estudo possui um delineamento quase experimental com


pré-teste e pós-teste. Um delineamento experimental possui características es-
senciais como a distribuição aleatória de participantes em grupos experimen-
tais, controle de variáveis intervenientes e manipulação de uma variável inde-
pendente (VI) no grupo experimental. Porém, a distribuição aleatória das crian-
ças na instituição onde a intervenção foi realizada deveria considerar todas as
crianças dentro do grupo de idade mencionado, como isso não foi possível,
apenas as crianças indicadas pela direção da instituição entraram em uma dis-
tribuição aleatória para compor os dois grupos: controle e experimental. Assim,
o delineamento atende ao que em ciências humanas e sociais costuma-se cha-

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mar de quasi-experimental, devido a conveniência da amostra e as demais limita-


ções impostas a um trabalho de educação.

Participantes

Participaram deste estudo 17 crianças, sendo oito meninas e nove


meninos, de seis a oito anos de idade (M = 7,7; DP = 0,59), estudantes de uma
instituição de educação complementar da cidade de João Pessoa, Paraíba.

Instrumentos

Dilema de Joãozinho. Consiste numa adaptação do Dilema de Heinz


para o Perdão utilizado por Enright et al. (1989) em seus estudos com adoles-
centes e adultos. O Dilema é uma entrevista apresentada no formato de livro
com gravuras. Nesse dilema, um menino chamado Joãozinho descobre que sua
mãe tem uma doença grave e necessita de um remédio muito raro e caro. O
farmacêutico da cidade era o único que possuía essa medicação. Não tendo
condições financeiras para comprar o remédio, o menino tenta conseguir o di-
nheiro com familiares e amigos e, sem sucesso, tenta negociar com o farmacêu-
tico, propondo comprar o remédio por um valor menor e parcelar o restante da
dívida, porém o farmacêutico não aceitou sua proposta e a mãe de Joãozinho
veio a falecer pela falta de tratamento. Após o dilema são apresentadas 12 ques-
tões que buscam avaliar: a capacidade de role-taking, o entendimento do perdão,
as condições que seriam necessárias para que o perdão ocorresse, o grau da rai-
va e o grau do perdão. Essas duas últimas questões são respondidas por meio
de uma escala gráfica com três opções de intensidade desses sentimentos, apre-
sentadas em tamanho crescente (pouca raiva, alguma raiva e muita raiva; per-
doa pouco, perdoa mais ou menos ou perdoa completamente). Para a mensura-
ção do grau do perdão havia também a opção “não perdoa”.

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Questionário Biodemográfico.

Esse questionário coleta informações sobre idade, sexo e escolaridade


das crianças.

Procedimento de administração dos instrumentos e composição dos grupos

As entrevistas foram administradas oral e individualmente com as


crianças em um ambiente privado. As respostas foram gravadas e transcritas na
íntegra. Cada entrevista teve uma duração aproximada de 20 minutos. Após as
entrevistas, as crianças foram divididas de forma aleatória em dois grupos: um
grupo experimental, que participou das atividades de intervenção e um grupo
de controle que não participou das atividades de intervenção. Participaram do
grupo experimental sete crianças e do grupo controle dez crianças. Cada grupo
continha crianças com níveis diferentes de compreensão sobre o perdão. Atra-
vés de um teste-t, verificou-se que não havia diferenças entre o grupo experi-
mental e o grupo controle antes da intervenção, no que se refere ao grau de
perdão (t (14) = 1,242; p = 0,23).

Procedimento de análise do Dilema de Joãozinho

Foi efetuada uma análise de conteúdo com categorias estabelecidas a


priori (presença da capacidade empática, grau de raiva, definição de perdão,
grau de perdão e condições para o perdão). Foram efetuadas análises das fre-
quências das respostas para cada categoria e uma comparação entre os resulta-
dos do pré-teste e do pós-teste por meio de testes-t.

Procedimentos de intervenção

A intervenção foi conduzida pelas autoras deste trabalho, e realizada


na própria instituição, em sessões de aproximadamente duas horas, duas vezes
por semana, por um período de sete meses. As atividades da intervenção utili-

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zaram uma adaptação da fábula infantil “O Patinho Feio”. Nessa fábula, o per-
sonagem principal sofre situações de desprezo da família, humilhação, vergo-
nha e sentimentos de rejeição e inferioridade. A adaptação foi elaborada de
forma a permitir que o condutor da intervenção oriente a tomada de perspecti-
va do outro e as etapas do processo de perdoar. A estória foi contada em partes
e após a apresentação de cada parte havia questões para debates em sala de au-
la sobre as concordâncias e discordâncias das soluções propostas para o dilema.
Ao final das atividades de intervenção, cada criança pôde elaborar um desfecho
para a estória do Patinho Feio, que incluía a decisão do personagem de perdoar
ou não a família e como seria a relação entre eles após esse evento. O quadro 2
apresenta um resumo dos objetivos de cada sessão realizada.

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Resultados

A análise de conteúdo das respostas do Dilema de Joãozinho indicou


que todas as crianças apresentaram a capacidade de role-taking mostrando que
entenderam a situação do ponto de vista do personagem e colocaram-se no lu-
gar dele. Quanto ao conhecimento sobre o conceito do perdão ocorreu um au-

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mento no número de crianças que souberam definir o perdão de 47,1% no pré-


teste para 82,4% no pós-teste. Nessas definições as crianças informaram que
perdoar é reconciliar, através do restabelecimento das relações com atitudes
como “voltar a brincar”, “fazer as pazes” e “ficar amigo”.

No tocante à escolha pelo grau de perdão para a situação apresenta-


da no dilema, 23,5% das crianças escolheram no pré-teste a opção de perdoar
completamente, enquanto que no pós-teste esse percentual foi para 41,1%. Isso
também se relaciona com uma diminuição significativa do grau de raiva de Jo-
ãozinho pelo farmacêutico onde 76,5% das crianças informaram no pré-teste
que sentiriam “muita raiva” do farmacêutico se estivessem no lugar de Joãozi-
nho e esse percentual cai para 58,8% no pós-teste. Verificou-se em relação a es-
ses resultados que ora o perdão surgia como alternativa para diminuir a raiva
que sentiam do ofensor, ora ocorria apenas após a diminuição da raiva por ele
quando as crianças indicaram que era preciso tempo para que o perdão aconte-
cesse. Além da influência do tempo, algumas crianças indicaram no pós-teste
que para parar de sentir raiva do farmacêutico era preciso “pedir desculpas”,
“voltar a brincar”, ou “tentar pensar em outra coisa” para “esquecer a raiva”. Nas
condições para perdoar o pedido de desculpas predominou como a mais impor-
tante nas duas entrevistas.

No que se refere ao desenvolvimento do pensamento moral do per-


dão, a Tabela 1 apresenta a comparação por grupos dos tipos de raciocínio de
perdão identificados através da análise de conteúdo das respostas do dilema de
Joãozinho. Analisando os grupos do pré-teste para o pós-teste, pode-se obser-
var que qualitativamente houve mais evoluções nas crianças do grupo experi-
mental que no grupo controle.

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Foram realizados Testes-t para medidas repetidas comparando as


médias do grau de perdão por condição: experimental pré-teste (M = 1,57, DP =
1,39) versus pós-teste (M = 2,14, DP = 1,21) e controle pré-teste (M = 0,75, DP =
1,16) versus pós-teste (M = 1,13, DP = 1,35). Foi encontrada uma diferença signi-
ficativa (t (6) = -2,5; p = 0,047) entre as médias do grau de perdão do grupo ex-
perimental no pré-teste e no pós-teste.

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Discussão

É importante destacar que o objetivo desta intervenção foi verificar o


grau de perdão nas crianças, a forma pela qual elas definem o perdão e como
justificariam perdoar ou não um ofensor. Para tanto elas precisariam adotar a
perspectiva do outro, ou seja, a perspectiva da personagem Joãozinho no dile-
ma apresentado e a perspectiva do Patinho Feio durante as atividades de inter-
venção. As análises indicaram que as crianças de sete anos em média se mos-
tram hábeis na tomada de perspectiva do outro e já definem o perdão.

Pode-se dizer que existe sofisticação ética no pensamento espontâneo


das crianças ao associarem o perdão com a reconciliação e com o pedido de des-
culpas. Outros estudos também encontraram que as crianças comumente con-
fundem o pedido de desculpas como sendo necessário para o perdão (LEPRE &
INÁCIO, 2014). Note-se nessa concepção que o foco das crianças é no ato de se
desculpar para voltar a brincar, o interesse de entretenimento conjunto. O res-
sentimento acaba quando “se volta a brincar” (reconciliação), ações bem dife-
rentes após situações de injustiças no mundo adulto. Se pedir desculpas e re-
conciliação são condições para o perdão na infância, como se pode defender ser
possível perdoar na vida adulta sem reconciliar?

Algumas crianças consideraram a necessidade da passagem do tem-


po como necessária para a diminuição da raiva e somente então o perdão poder
acontecer. Esses resultados são esperados pela teoria piagetiana, que informa
que a noção do tempo nas crianças em relação aos fatos “objetivos” da vida (ex.,
injustiças) inicia-se a partir dos sete anos de idade. E Piaget (1964/2010), em sua
teoria sobre o desenvolvimento cognitivo, também indica que crianças nessa
faixa etária se encontram no período operatório concreto e isso levaria as crian-
ças a pensar sobre o perdão a partir de ações concretas como voltar a brincar.

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Sobre a qualidade dos tipos de raciocínio de perdão, observou-se que


algumas crianças consideraram que nenhuma reparação material poderia ser
suficiente para levar Joãozinho a perdoar o farmacêutico, o que indica que elas
estão acima de raciocínios puramente hedonistas e, ao aceitarem o pedido de
desculpas como uma condição que facilita o perdão, embora não percebessem
que estão considerando uma reparação de caráter moral, elas parecem estar
pensando por expectativas sociais mais amplas.

Os resultados desse trabalho são indicações assertivas para trabalhos


futuros sobre o uso da comunicação construtiva e do afeto para assimilação de
virtudes com o perdão na escola. Alguns pontos merecem ser destacados quan-
to às atividades de intervenção. O tempo gasto para iniciar as atividades do dia
com o fortalecimento das relações de confiança entre as crianças e as orientado-
ras e entre as próprias crianças foi um ponto de dificuldade no início das ativi-
dades. Algumas crianças do grupo experimental apresentavam um comporta-
mento agressivo, resistindo às aproximações das orientadoras da intervenção e
dificultando todo o trabalho. No entanto, as relações melhoraram no transcorrer
das atividades do role-taking em sala de aula. De alguma forma essas atividades
atingiram o objetivo de melhorar a qualidade dos relacionamentos entre todos.
Deve-se acrescentar nesse relato que paciência e comprometimento foram fun-
damentais ao processo educativo.

Conclusão

Este estudo é um dos primeiros realizados no Brasil numa amostra


de crianças, utilizando a abordagem teórica de Enright e o processo de perdoar
em etapas, como concebido pelo autor. A educação moral de base construtivista
apresenta recursos promissores e eficazes para a promoção do desenvolvimento

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moral. Em particular, a educação moral do perdão tem se mostrado eficaz para


uma melhoria na qualidade das relações interpessoais, no bem-estar psicológico
e na resolução de conflitos desde a infância, se mostrando um recurso útil para
ser aplicado em diversos contextos, como a escola, por exemplo. Os resultados
deste estudo mostram um caminho a ser seguido em uma área que necessita de
investigação e aprofundamento.

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Recebido em: 30/04/2018


Aprovado em: 31/07/2018

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