Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1, dezembro de 2006
9
nesse campo de conhecimentos. apreendidos diretamente a partir do que
Posteriormente propõe-se uma discussão está dito, ao contrário, o aluno enquanto
sobre origem da vida. A maior parte do leitor não é uma figura passiva.
livro destina-se ao estudo das células e sua Entendemos, como apontam Souza e
“maquinaria” e processos metabólicos Nascimento (2006), que os sentidos
(representando 10 dos 14 capítulos do produzidos a partir de um texto didático
livro). Por fim são apresentados os temas estão vinculados a diversos fatores que são
diferenciação celular e a conseqüente colocados em jogo no momento em que
formação de diversos tecidos e também toma contato com um texto, como por
reprodução e desenvolvimento. Cabe exemplo, as experiências de leitura de seus
destacar aqui que ao final de diversos leitores, as expectativas com que se toma
capítulos há a inserção de textos contato com o texto, entre outros fatores,
adaptados a partir de que por sua vez, se
Além disso,
revistas que tratam sobre relacionam a uma
consideramos que o
ciências, como por memória (discursiva).
exemplo, Scientific leitor interage com o Nesse sentido nos
American. Um outro ponto texto atribuindo-lhe perguntamos, que
tradicional na estrutura de sentidos e, portanto, a sentidos podem ser
livros didáticos é a relação texto/aluno não produzidos a partir de
presença de questões ao é, nem poderia ser, algo analogias utilizadas no
final de cada capítulo, com estático em que os livro didático de Biologia?
destaque a diversas Como o autor do texto
sentidos são apreendidos
questões de vestibulares. didático faz uso desse
diretamente a partir do
Tendo em vista o recurso? De que maneira
que está
papel desempenhado pelos livros didáticos dito (...)
ele tenta direcionar os sentidos daquilo
na escola atual, configurando-se muitas que está dizendo na intenção de que no
vezes no principal recurso didático momento da leitura da analogia sejam
utilizado por professores e alunos, produzidos determinados sentidos e não
entendemos que, muitas vezes, no intuito outros, irrelevantes para o entendimento
de tornar um conceito de maior clareza do conceito abordado?
para seu leitor, o autor do texto didático Por meio da análise realizada,
faz uso de analogias com assuntos que são pudemos evidenciar que no material
mais familiares do que o conhecimento investigado seguem-se caminhos distintos
científico. Muitas vezes, as analogias com relação ao modo como o autor faz uso
utilizadas são referentes ao cotidiano dos de analogias. Ao observarmos os capítulos
leitores, aproximando-se de uma referentes ao tópico de citologia,
linguagem mais comum, não tão estranha evidenciamos que as analogias aparecem
ou distante dos alunos. Além disso, de forma diferenciada ao longo dos textos.
consideramos que o leitor interage com o Em alguns momentos, as mesmas são
texto atribuindo-lhe sentidos e, portanto, a apresentadas de forma explícita, ou seja, o
relação texto/aluno não é, nem poderia autor faz uso de palavras no intento de
ser, algo estático em que os sentidos são mostrar ao seu leitor (alunos e
10
Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
11
(células), é mais facilmente “visualizável” Todas essas considerações afetam o modo
que o glicocálix. Entendemos que esse como os sentidos serão produzidos
movimento é direcionado pelo mecanismo mediante a leitura do texto. Entendemos
de antecipação. Por meio dele é possível que essa tentativa de proximidade com a
colocar-se no lugar do outro (interlocutor) linguagem comum faz parte do jogo de
e assim, prever o modo como suas produção de sentidos do discurso escolar.
palavras poderão ser ouvidas. Assim, o No entanto, apesar dessa tentativa de
autor tem possibilidade de guiar seu dizer proximidade com os leitores, por meio de
no intento de produzir determinado uma linguagem mais próxima da comum,
sentido e não outro àquilo que está sendo é garantido que os sentidos construídos
dito. De acordo com a Análise de Discurso: pelos leitores sejam os mesmos
“...todo sujeito tem a capacidade de intencionados pelo autor?
experimentar, ou melhor, de colocar-se Na analogia 2, podemos verificar
no lugar em que seu interlocutor ‘ouve’ claramente a intenção de comparação feita
suas palavras. Ele antecipa-se assim a
seu interlocutor quanto ao sentido que pelo autor. O uso da conjunção como,
suas palavras produzem. Esse indica a analogia entre o modo pelo qual o
mecanismo regula a argumentação, de glicocálix envolve a célula e o modo como
tal forma que o sujeito dirá de um uma vestimenta (malha) envolve o nosso
modo, ou de outro, segundo o efeito que
pensa produzir em seu interlocutor.” corpo. O uso dessa expressão analógica
(Orlandi, 2003, p. 39) apela para o cotidiano dos leitores. Ao
fazer a analogia glicocálix/malha e
Um outro fator que acaba por
malha/vestimenta, o autor se refere à
direcionar os sentidos produzidos sobre
proteção quanto à agressões externas
um dizer, relaciona-se diretamente à
(supostamente físicas e químicas), porém
tentativa de estabelecer diálogo com seu
que sentidos podem ser produzidos por
leitor, ou seja, relaciona-se às posições
um leitor (aluno)? No sentido comum, o
assumidas pelos sujeitos (interlocutores).
uso de vestimentas pode proteger, por
Quando pensamos no discurso do livro
exemplo, contra variações de temperatura.
didático, podemos imaginar diversas
Além disso, há um fator cultural pelo qual
posições assumidas pelo autor em
todos usamos roupas para cobrir nossos
diferentes momentos, entre elas, a posição
corpos. Enquanto para o autor do texto
de cientista ou mesmo a de professor. No
didático, a analogia vestimenta significa
caso de nossos exemplos anteriores, ao
proteção contra agentes externos, para um
usar “nosso” o autor assume a posição de
leitor (aluno), vestimenta pode apenas
alguém que tenta se aproximar de seu
significar algo que serve para vestir como
leitor, ao mesmo tempo em que tenta
uma roupa, que, por conseguinte não tem
aproximar o mesmo de um discurso
qualquer papel estrutural. Desse modo o
científico. De acordo com Orlandi (1996b),
glicocálix pode passar a ser visto como
as posições assumidas pelos sujeitos ao
algo externo à célula, algo que não faz
dizer fazem parte da significação, pois
parte da mesma.
quando dizemos algo o dizemos de algum
A analogia 37, a seguir, ilustra um
lugar da sociedade para alguém também
exemplo de relações analógicas
situado em algum lugar da sociedade.
12
Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
13
didáticos de química, e as ilustrações que explicitar seus atributos principais. Nesse
as apóiam. Segundo as autoras, muitas caso, não se considera a relevância de tais
vezes essas relações são desarticuladas, imagens na construção de sentidos
errôneas e com capacidade de reforçar as mediante sua leitura.
concepções dos estudantes. Outro ponto Segundo Bernuy et al. (1999, apud
destacado pelas autoras questiona a Silva, 2002), as imagens não são apenas
necessidade do uso de uma ilustração para ilustrações sujeitas a textos escritos, mas
apoiar a analogia, como apontam: fazem parte constitutiva da estrutura do
“Embora uma texto. Os autores também
Os pontos abordados
ilustração do domínio constatam um uso
análogo contribua acima apontam para as crescente de imagens
para aumentar o preocupações existentes
poder de ‘visualização’, nesses textos, o
a necessidade de tal quanto ao uso de progressivo aumento no
ilustração está imagens no ensino de que se refere à variedade
associada à natureza das imagens nos livros
da analogia. Algumas ciências, de modo
analogias possuem um particular, quando tais didáticos, além da
alto poder de complexidade de suas
visualização, o que imagens pretendem estruturas visuais.
dispensa o uso de uma representar uma
ilustração para a sua
De acordo com Silva
analogia. (2002), as imagens, assim como os textos
compreensão” (p. 8)
escritos, são construídas e remetem seus
A fim de verificar em que medida as
sentidos a determinadas condições de
ilustrações estão contribuindo para a
produção. Nesse sentido, podemos dizer,
compreensão das analogias e dos
de acordo com o autor, que a sua leitura se
conceitos alvos, as autoras realizaram
dá na articulação com outras imagens que
análises com base em alguns critérios, tais
não se fazem presentes explicitamente,
como a necessidade das analogias no
mas que estão constituindo o processo de
texto, a capacidade de promover a
produção de sentidos.
compreensão do assunto abordado e a
Os pontos abordados acima apontam
indução a erros conceituais. Como
para as preocupações existentes quanto ao
resultado as autoras apontam que boa
uso de imagens no ensino de ciências, de
parte das analogias apresentadas no
modo particular, quando tais imagens
material analisado não contribui na
pretendem representar uma analogia. No
compreensão dos conceitos específicos.
caso de nossos exemplos, podemos notar
Além disso, segundo as autoras, as
que o autor faz uso de imagens
ilustrações mostraram-se desnecessárias
relacionadas ao cotidiano das pessoas,
em 34% das analogias. Por fim, as autoras
como é o caso da analogia 37, em que é
apontam a intenção de tornar o livro
apresentada a imagem de dois prédios
didático mais atrativo, do ponto de vista
iguais localizados um ao lado do outro, em
gráfico, ao seu leitor. As autoras destacam
que moram diversas pessoas (semelhantes
que, em muitos momentos, as ilustrações
ou não). Entendendo as imagens como
que acompanhavam analogias não foram
componentes importantes dos textos
exploradas pelos autores no sentido de
14
Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
15
científico escolar expresso em livros linguagem “higienizada”, neutra, com
didáticos. Não se trata de uma tentativa de intenção de ser objetiva, inequívoca
impedir o surgimento de outros sentidos, freqüentemente presente em livros
mas sim uma forma de contribuir para que didáticos, pode possibilitar a produção de
o aluno perceba que o uso de analogias em sentidos sobre ciência e sobre Biologia
textos didáticos se dá numa determinada mais humanos, ou seja, que se trata de um
perspectiva: na perspectiva de um conhecimento produzido por sujeitos
discurso escolar sobre o conhecimento localizados em determinadas condições
científico, de modo particular no que se sócio-históricas, passível de
refere àquelas analogias que passam por questionamentos. Como aponta Orlandi
um apagamento no texto didático. Como (1996a), os textos didáticos deveriam
apontamos em nossa análise, boa parte explicitar seu papel de mediador,
das analogias contidas nos textos está sob deixando de serem vistos como fontes de
uma suposta naturalização, não sendo conhecimentos e sim como uma forma de
percebidas como tais. Ao contrário, como discurso.
apontamos, muitas dessas analogias são
vistas como parte do discurso científico.
Referências
Ao longo de nossas análises
constatamos em diversos momentos do BACHELARD, G. A formação do espírito
texto silêncios com relação a toda a científico: contribuição para uma psicanálise
do conhecimento. Trad. Estela dos Santos
construção da ciência. Orlandi (1995), fala Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
do silêncio como parte da retórica da
DUIT, R. On the role of analogies and
dominação, ou seja, ao calar a voz do autor metaphors in learning science. Science
como alguém que fala para determinado Education, 75 (6), p. 649-672, 1991.
público e no lugar do diálogo estabelecer GIRALDI, P. M. Linguagem em textos
um monólogo que aparentemente não tem didáticos de citologia: investigando o uso de
produtor, impõe-se uma posição de analogias. 2005. 147 f. Dissertação.
Dissertação (Mestrado em Educação Científica
superioridade ao discurso. Dessa forma, e Tecnológica) – Universidade Federal de
tal discurso não deve ser questionado, Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
cabendo ao leitor (supostamente, uma vez MONTEIRO, I. G.; JUSTI, R. S. Analogias em
que os sentidos sobre um texto são livros didáticos de Química brasileiros
construídos na interação texto/leitor) um destinados ao Ensino Médio. In:
Investigações em Ensino de Ciências. Porto
papel passivo. Entendemos que a Alegre, v.5, n.2, p.01-24, 2000.
linguagem da ciência apresenta certas
MORTIMER, E. F. Sobre chamas e cristais: a
especificidades, ou seja, que se trata de linguagem cotidiana, a linguagem científica e
uma formação discursiva específica em o ensino de ciências. In: CHASSOT, A. &
que os sentidos dados às palavras podem OLIVEIRA, J. R. Ciência, ética e cultura na
educação. São Leopoldo: Ed. UNISINOS,
ser diferenciados daqueles da linguagem
1998, p.99-118.
comum, mas entendemos também que as
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no
construções da ciência também dependem movimento dos sentidos. 3.ed. Campinas:
e são mediadas pela linguagem. Editora da UNICAMP, 1995.
Acreditamos que desnaturalizar essa
16
Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
17