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Ciência & Ensino, vol. 1, n.

1, dezembro de 2006

O FUNCIONAMENTO DE ANALOGIAS EM TEXTOS


DIDÁTICOS DE BIOLOGIA: QUESTÕES DE
LINGUAGEM

Patrícia Montanari Giraldi


Suzani Cassiani de Souza

Caminhos e pressupostos desse um processo de interação, seja entre


trabalho interlocutores em si ou entre leitores e
textos (Orlandi, 1996a; Pêcheux, 1990).
O presente artigo apresenta alguns
Desse modo passamos a olhar para o livro
resultados obtidos no âmbito de um
didático como um objeto simbólico,
trabalho de mestrado que teve como
inserido em um contexto histórico social,
objetivo central investigar o uso e
envolvido por determinadas condições de
funcionamento de analogias em textos
produção que por sua vez, acabam
didáticos de Biologia, de modo particular,
influenciando o modo como os sentidos
no que se refere a conceitos/fenômenos
sobre o livro didático e também sobre os
que envolvem o tópico citologia. Para
conceitos apresentados no mesmo podem
tanto, selecionamos um livro didático de
ser produzidos.
Biologia voltado para o nível médio de
Em um primeiro momento de análise
ensino1. A escolha do mesmo se deu
nosso olhar se voltou para a estrutura
devido ao fato de apresentar um elevado
geral de organização do material. Por ser
número de analogias, o que foi
um material produzido em determinadas
evidenciado em trabalhos anteriores
condições, visando um mercado
(Terrazzan et al, 2000; Terrazzan et al,
consumidor específico, os livros didáticos,
2002), além disso, em conversas informais
de modo geral, apresentam
com colegas professores foi apontado
freqüentemente a mesma forma de
como um dos livros didáticos mais
organização, inclusive no que se refere aos
utilizados no ensino de Biologia.
conceitos abordados em cada um dos
Como base metodológica, mas
volumes publicados. O livro analisado
principalmente teórica para o
nesse trabalho não é diferente2.
desenvolvimento da pesquisa, utilizamos a
Inicialmente percebemos uma abordagem
Análise de Discurso de linha francesa.
em que se pretende explicitar aspectos
Essa abordagem discursiva com relação à
biológicos relacionados à vida, bem como
linguagem, considera que as palavras e
questões relativas ao trabalho científico
expressões não possuem um significado
único presente nelas mesmas, mas sim 2
Maiores esclarecimentos sobre a organização geral do
que os sentidos são construídos mediante livro vinculado à forma de apresentação de sua
linguagem, ou seja, sobre como se articulam forma e
1
AMABIS, José M.; MARTHO, Gilberto R. (1994) Biologia conteúdo, podem ser encontrados na dissertação de
das Células, v.1: origem da vida, citologia, histologia e mestrado desenvolvida pela primeira autora desse artigo
embriologia (reimpressão de 2001). (Giraldi, 2005).

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nesse campo de conhecimentos. apreendidos diretamente a partir do que
Posteriormente propõe-se uma discussão está dito, ao contrário, o aluno enquanto
sobre origem da vida. A maior parte do leitor não é uma figura passiva.
livro destina-se ao estudo das células e sua Entendemos, como apontam Souza e
“maquinaria” e processos metabólicos Nascimento (2006), que os sentidos
(representando 10 dos 14 capítulos do produzidos a partir de um texto didático
livro). Por fim são apresentados os temas estão vinculados a diversos fatores que são
diferenciação celular e a conseqüente colocados em jogo no momento em que
formação de diversos tecidos e também toma contato com um texto, como por
reprodução e desenvolvimento. Cabe exemplo, as experiências de leitura de seus
destacar aqui que ao final de diversos leitores, as expectativas com que se toma
capítulos há a inserção de textos contato com o texto, entre outros fatores,
adaptados a partir de que por sua vez, se
Além disso,
revistas que tratam sobre relacionam a uma
consideramos que o
ciências, como por memória (discursiva).
exemplo, Scientific leitor interage com o Nesse sentido nos
American. Um outro ponto texto atribuindo-lhe perguntamos, que
tradicional na estrutura de sentidos e, portanto, a sentidos podem ser
livros didáticos é a relação texto/aluno não produzidos a partir de
presença de questões ao é, nem poderia ser, algo analogias utilizadas no
final de cada capítulo, com estático em que os livro didático de Biologia?
destaque a diversas Como o autor do texto
sentidos são apreendidos
questões de vestibulares. didático faz uso desse
diretamente a partir do
Tendo em vista o recurso? De que maneira
que está
papel desempenhado pelos livros didáticos dito (...)
ele tenta direcionar os sentidos daquilo
na escola atual, configurando-se muitas que está dizendo na intenção de que no
vezes no principal recurso didático momento da leitura da analogia sejam
utilizado por professores e alunos, produzidos determinados sentidos e não
entendemos que, muitas vezes, no intuito outros, irrelevantes para o entendimento
de tornar um conceito de maior clareza do conceito abordado?
para seu leitor, o autor do texto didático Por meio da análise realizada,
faz uso de analogias com assuntos que são pudemos evidenciar que no material
mais familiares do que o conhecimento investigado seguem-se caminhos distintos
científico. Muitas vezes, as analogias com relação ao modo como o autor faz uso
utilizadas são referentes ao cotidiano dos de analogias. Ao observarmos os capítulos
leitores, aproximando-se de uma referentes ao tópico de citologia,
linguagem mais comum, não tão estranha evidenciamos que as analogias aparecem
ou distante dos alunos. Além disso, de forma diferenciada ao longo dos textos.
consideramos que o leitor interage com o Em alguns momentos, as mesmas são
texto atribuindo-lhe sentidos e, portanto, a apresentadas de forma explícita, ou seja, o
relação texto/aluno não é, nem poderia autor faz uso de palavras no intento de
ser, algo estático em que os sentidos são mostrar ao seu leitor (alunos e

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professores), a intenção de analogia. Entre Nos trechos abaixo podemos


tais palavras, podemos citar: como, evidenciar a intenção de proximidade com
semelhante, lembram, assemelham, etc. o cotidiano do leitor, por meio de
Em outros momentos, porém, verificamos analogias vinculadas à linguagem comum.
a presença de analogias nos textos com Analogia 2: “Se isolássemos uma
ausência de explicitações. Nesse caso, as célula de nosso corpo, notaríamos que
representações analógicas estão ela está envolta por uma espécie de
malha feita de moléculas de glicídios
mascaradas por uma sensação de frouxamente entrelaçadas. Esta malha
linguagem científica, como destacaremos protege a célula como uma vestimenta:
adiante. Consideramos essas distinções no trata-se do glicocálix.” (p.114)
modo como o autor faz uso de analogias Analogia 16: “O citosol encontra-se em
como parte do jogo de produção de contínuo movimento, impulsionado
pela contração rítmica de certos fios de
sentidos, parte do modo como o autor
proteínas presentes no citoplasma, em
tenta direcionar os sentidos do texto. um processo semelhante ao que faz
Como já apontamos anteriormente, o nossos músculos se movimentarem.”
uso de analogias em textos didáticos de (p.137)
Biologia é bastante freqüente. De modo Podemos notar que há uma diferença
particular quando nos referimos aos no modo como o autor direciona sua
conceitos relativos à citologia, podemos argumentação nos dois exemplos. É
verificar que muitas das explicações interessante observar que, na analogia 2,
contidas no texto baseiam-se em primeiramente o autor tenta tornar o
analogias. Isso pôde ser observado em assunto abordado mais familiar ao seu
uma primeira fase de análise, em que leitor, por meio do estabelecimento de
realizamos um levantamento das analogias, para só depois de haver
analogias presentes em três capítulos do instaurado uma provável compreensão,
material investigado identificando um apresentar o assunto novo. Já na analogia
total de 31 analogias. A partir desse 16, há em um primeiro momento, a
levantamento organizamos uma tabela em construção de uma imagem do referente
que apresentamos as analogias mapeadas. (conceito/fenômeno apresentado), para
Dessa forma, a numeração das analogias somente ao final da sentença estabelecer a
apresentadas a seguir se refere à seqüência comparação com algo familiar.
numérica de sua organização na tabela Acreditamos que essa diferenciação no
mencionada. Na seção que segue modo como a direção argumentativa dos
apresentamos alguns exemplos de exemplos se encaminha, pode estar
diferenças no uso de analogias relacionada à natureza dos referentes. Na
apresentadas no material analisado, analogia 2, fala-se de um conceito novo
seguida de análises baseadas no com uma denominação específica e
referencial teórico/metodológico adotado. provavelmente nova aos alunos, o conceito
de glicocálix. Já na analogia 16, o referente
Analogias e seu funcionamento: a parece ser algo de mais comum, um tipo
intenção de proximidade com o de movimento, que apesar de ocorrer
leitor dentro de estruturas microscópicas

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(células), é mais facilmente “visualizável” Todas essas considerações afetam o modo
que o glicocálix. Entendemos que esse como os sentidos serão produzidos
movimento é direcionado pelo mecanismo mediante a leitura do texto. Entendemos
de antecipação. Por meio dele é possível que essa tentativa de proximidade com a
colocar-se no lugar do outro (interlocutor) linguagem comum faz parte do jogo de
e assim, prever o modo como suas produção de sentidos do discurso escolar.
palavras poderão ser ouvidas. Assim, o No entanto, apesar dessa tentativa de
autor tem possibilidade de guiar seu dizer proximidade com os leitores, por meio de
no intento de produzir determinado uma linguagem mais próxima da comum,
sentido e não outro àquilo que está sendo é garantido que os sentidos construídos
dito. De acordo com a Análise de Discurso: pelos leitores sejam os mesmos
“...todo sujeito tem a capacidade de intencionados pelo autor?
experimentar, ou melhor, de colocar-se Na analogia 2, podemos verificar
no lugar em que seu interlocutor ‘ouve’ claramente a intenção de comparação feita
suas palavras. Ele antecipa-se assim a
seu interlocutor quanto ao sentido que pelo autor. O uso da conjunção como,
suas palavras produzem. Esse indica a analogia entre o modo pelo qual o
mecanismo regula a argumentação, de glicocálix envolve a célula e o modo como
tal forma que o sujeito dirá de um uma vestimenta (malha) envolve o nosso
modo, ou de outro, segundo o efeito que
pensa produzir em seu interlocutor.” corpo. O uso dessa expressão analógica
(Orlandi, 2003, p. 39) apela para o cotidiano dos leitores. Ao
fazer a analogia glicocálix/malha e
Um outro fator que acaba por
malha/vestimenta, o autor se refere à
direcionar os sentidos produzidos sobre
proteção quanto à agressões externas
um dizer, relaciona-se diretamente à
(supostamente físicas e químicas), porém
tentativa de estabelecer diálogo com seu
que sentidos podem ser produzidos por
leitor, ou seja, relaciona-se às posições
um leitor (aluno)? No sentido comum, o
assumidas pelos sujeitos (interlocutores).
uso de vestimentas pode proteger, por
Quando pensamos no discurso do livro
exemplo, contra variações de temperatura.
didático, podemos imaginar diversas
Além disso, há um fator cultural pelo qual
posições assumidas pelo autor em
todos usamos roupas para cobrir nossos
diferentes momentos, entre elas, a posição
corpos. Enquanto para o autor do texto
de cientista ou mesmo a de professor. No
didático, a analogia vestimenta significa
caso de nossos exemplos anteriores, ao
proteção contra agentes externos, para um
usar “nosso” o autor assume a posição de
leitor (aluno), vestimenta pode apenas
alguém que tenta se aproximar de seu
significar algo que serve para vestir como
leitor, ao mesmo tempo em que tenta
uma roupa, que, por conseguinte não tem
aproximar o mesmo de um discurso
qualquer papel estrutural. Desse modo o
científico. De acordo com Orlandi (1996b),
glicocálix pode passar a ser visto como
as posições assumidas pelos sujeitos ao
algo externo à célula, algo que não faz
dizer fazem parte da significação, pois
parte da mesma.
quando dizemos algo o dizemos de algum
A analogia 37, a seguir, ilustra um
lugar da sociedade para alguém também
exemplo de relações analógicas
situado em algum lugar da sociedade.

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estabelecidas por meio de imagens. Além analogia em ordem crescente de


da figura, a intenção de analogia está complexidade. Ocorre primeiramente a
também presente no texto e por meio de definição do análogo-base (“dois prédios
legenda. de mesma planta arquitetônica com um
Analogia 37: “Cromossomos apartamento por andar”) que será
homólogos podem ser comparados a utilizado para compreensão do referente
dois prédios de mesma planta final (condição homozigota/heterozigota).
arquitetônica, com um apartamento
Em seguida, há a indicação de
por andar. Cada apartamento
corresponde a um loco gênico. características da analogia. Nesse caso
Apartamentos localizados no mesmo essa caracterização é feita por meio de
andar, em prédios homólogos, duas novas analogias que podem ser
correspondem aos genes alelos. Se os
alelos de um loco são idênticos (no caso, evidenciadas pela presença de
representados por apartamentos de “correspondem”. Finalmente ocorre a
mesmo andar onde moram gêmeos construção dos conceitos alvo da analogia
idênticos), fala-se em alelos na (heterozigoto/homozigoto). Nesse
condição homozigota. Se os alelos de
um loco são diferentes, fala-se em alelos momento, há referência às analogias
na condição heterozigota”. (p.185) apresentadas anteriormente. Podemos
supor que ao direcionar sua
argumentação, tendo em vista o
mecanismo de antecipação, o autor o faz
de forma que cada afirmação é essencial
para o entendimento da seguinte
culminando no conceito que se pretende
ensinar. Nesse caso, entendemos que a
figura utilizada juntamente com a
argumentação possibilita a compreensão
dos conceitos de
heterozigoto/homozigoto.
O uso de imagens em livros didáticos
influencia o modo como os sentidos
podem ser produzidos. Isso está
relacionado ao fato de que as leituras
realizadas por diferentes indivíduos sobre
um mesmo objeto (texto escrito, imagem),
podem ser diferentes. Assim, as
possibilidades de interpretações que
podem surgir a partir das figuras
Figura 4: Analogia imagética vinculada ao
exemplificadas acima, podem ser diversas,
texto.
dependendo de seus leitores.
Na analogia 37, podemos supor que o Monteiro e Justi (2000) apontam as
direcionamento da argumentação feita relações que podem ser estabelecidas
pelo autor conduz a uma compreensão da entre as analogias, presentes em livros

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didáticos de química, e as ilustrações que explicitar seus atributos principais. Nesse
as apóiam. Segundo as autoras, muitas caso, não se considera a relevância de tais
vezes essas relações são desarticuladas, imagens na construção de sentidos
errôneas e com capacidade de reforçar as mediante sua leitura.
concepções dos estudantes. Outro ponto Segundo Bernuy et al. (1999, apud
destacado pelas autoras questiona a Silva, 2002), as imagens não são apenas
necessidade do uso de uma ilustração para ilustrações sujeitas a textos escritos, mas
apoiar a analogia, como apontam: fazem parte constitutiva da estrutura do
“Embora uma texto. Os autores também
Os pontos abordados
ilustração do domínio constatam um uso
análogo contribua acima apontam para as crescente de imagens
para aumentar o preocupações existentes
poder de ‘visualização’, nesses textos, o
a necessidade de tal quanto ao uso de progressivo aumento no
ilustração está imagens no ensino de que se refere à variedade
associada à natureza das imagens nos livros
da analogia. Algumas ciências, de modo
analogias possuem um particular, quando tais didáticos, além da
alto poder de complexidade de suas
visualização, o que imagens pretendem estruturas visuais.
dispensa o uso de uma representar uma
ilustração para a sua
De acordo com Silva
analogia. (2002), as imagens, assim como os textos
compreensão” (p. 8)
escritos, são construídas e remetem seus
A fim de verificar em que medida as
sentidos a determinadas condições de
ilustrações estão contribuindo para a
produção. Nesse sentido, podemos dizer,
compreensão das analogias e dos
de acordo com o autor, que a sua leitura se
conceitos alvos, as autoras realizaram
dá na articulação com outras imagens que
análises com base em alguns critérios, tais
não se fazem presentes explicitamente,
como a necessidade das analogias no
mas que estão constituindo o processo de
texto, a capacidade de promover a
produção de sentidos.
compreensão do assunto abordado e a
Os pontos abordados acima apontam
indução a erros conceituais. Como
para as preocupações existentes quanto ao
resultado as autoras apontam que boa
uso de imagens no ensino de ciências, de
parte das analogias apresentadas no
modo particular, quando tais imagens
material analisado não contribui na
pretendem representar uma analogia. No
compreensão dos conceitos específicos.
caso de nossos exemplos, podemos notar
Além disso, segundo as autoras, as
que o autor faz uso de imagens
ilustrações mostraram-se desnecessárias
relacionadas ao cotidiano das pessoas,
em 34% das analogias. Por fim, as autoras
como é o caso da analogia 37, em que é
apontam a intenção de tornar o livro
apresentada a imagem de dois prédios
didático mais atrativo, do ponto de vista
iguais localizados um ao lado do outro, em
gráfico, ao seu leitor. As autoras destacam
que moram diversas pessoas (semelhantes
que, em muitos momentos, as ilustrações
ou não). Entendendo as imagens como
que acompanhavam analogias não foram
componentes importantes dos textos
exploradas pelos autores no sentido de

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didáticos e considerando seu papel na (científica), utilizada para falar sobre os


produção de sentidos, evidenciamos que conhecimentos biológicos, assim como
ao inseri-las em seus textos, o autor tenta qualquer outra, só pode ser construída a
fazer uma aproximação com seu leitor. partir da linguagem comum. Ao fazer uso
Por fim, queremos apontar nessa de tal linguagem a ciência emprega alguns
seção que a partir dos exemplos termos em um sentido diferente daquele
apresentados até o momento, podemos do sentido comum, atribuindo-lhe um
questionar até que ponto a utilização de novo significado. Assim, entendemos que
uma linguagem mais próxima da comum as palavras em Biologia apelam para
contribui para a aprendizagem de ciências. determinados sentidos por estarem
Ao mesmo tempo, consideramos que ao inscritas em uma formação discursiva
optar por esse tipo de linguagem, o autor determinada, por exemplo, a palavra vetor
se afasta de uma visão cientificista de vai apresentar significados diferentes
ciência, na qual o foco está na quando falada por um físico ou por um
terminologia específica, na descrição biólogo.
(Stelling e Selles, 1997), estabelecendo Porém, acreditamos que no ensino
paralelos e dialogando com seu leitor. de ciências de modo geral, essa visão do
conhecimento científico como uma
maneira de entender o mundo, como um
Considerações finais
conhecimento que se insere em uma
Procuramos explicitar, com base em determinada formação discursiva, não tem
algumas noções tomadas da Análise de sido abordada.
Discurso, o modo como o autor do livro Segundo Mortimer (1998), para que
didático analisado faz uso de analogias em ocorra um efetivo entendimento de
seus textos, em especial aquelas ciências é necessário que o aluno perceba
relacionadas aos conceitos de citologia. A que as diferenças entre linguagem
tomada desse referencial teórico permite científica e cotidiana vão além da presença
que se busque problematizar o uso de de um vocabulário técnico. Para o autor, é
analogias. Dessa forma, buscamos a partir necessário que se compreenda que tais
das análises realizadas ir além da linguagens representam “formas
superfície do texto e das analogias radicalmente diferentes de construir a
presentes nos mesmos, ou seja, buscamos realidade discursivamente”.
evidenciar o modo como as mesmas Assim, vinculando as discussões
podem produzir sentidos. quanto à linguagem científica ao uso de
Entendemos a preocupação de analogias em textos didáticos, entendemos
alguns autores como Duit (1991), que uma proposta interessante é fazer com
Bachelard (1996), ao apontar para os que os alunos de ciências sejam levados a
perigos do uso de analogias, na medida em compreender tal linguagem como uma
que as mesmas podem gerar concepções forma de discurso. Discurso este que
equivocadas do ponto de vista científico. possui determinado contexto (com suas
No entanto, em uma perspectiva condições de produção), tanto no que se
discursiva, entendemos que a linguagem refere à ciência, quanto ao conhecimento

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científico escolar expresso em livros linguagem “higienizada”, neutra, com
didáticos. Não se trata de uma tentativa de intenção de ser objetiva, inequívoca
impedir o surgimento de outros sentidos, freqüentemente presente em livros
mas sim uma forma de contribuir para que didáticos, pode possibilitar a produção de
o aluno perceba que o uso de analogias em sentidos sobre ciência e sobre Biologia
textos didáticos se dá numa determinada mais humanos, ou seja, que se trata de um
perspectiva: na perspectiva de um conhecimento produzido por sujeitos
discurso escolar sobre o conhecimento localizados em determinadas condições
científico, de modo particular no que se sócio-históricas, passível de
refere àquelas analogias que passam por questionamentos. Como aponta Orlandi
um apagamento no texto didático. Como (1996a), os textos didáticos deveriam
apontamos em nossa análise, boa parte explicitar seu papel de mediador,
das analogias contidas nos textos está sob deixando de serem vistos como fontes de
uma suposta naturalização, não sendo conhecimentos e sim como uma forma de
percebidas como tais. Ao contrário, como discurso.
apontamos, muitas dessas analogias são
vistas como parte do discurso científico.
Referências
Ao longo de nossas análises
constatamos em diversos momentos do BACHELARD, G. A formação do espírito
texto silêncios com relação a toda a científico: contribuição para uma psicanálise
do conhecimento. Trad. Estela dos Santos
construção da ciência. Orlandi (1995), fala Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
do silêncio como parte da retórica da
DUIT, R. On the role of analogies and
dominação, ou seja, ao calar a voz do autor metaphors in learning science. Science
como alguém que fala para determinado Education, 75 (6), p. 649-672, 1991.
público e no lugar do diálogo estabelecer GIRALDI, P. M. Linguagem em textos
um monólogo que aparentemente não tem didáticos de citologia: investigando o uso de
produtor, impõe-se uma posição de analogias. 2005. 147 f. Dissertação.
Dissertação (Mestrado em Educação Científica
superioridade ao discurso. Dessa forma, e Tecnológica) – Universidade Federal de
tal discurso não deve ser questionado, Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
cabendo ao leitor (supostamente, uma vez MONTEIRO, I. G.; JUSTI, R. S. Analogias em
que os sentidos sobre um texto são livros didáticos de Química brasileiros
construídos na interação texto/leitor) um destinados ao Ensino Médio. In:
Investigações em Ensino de Ciências. Porto
papel passivo. Entendemos que a Alegre, v.5, n.2, p.01-24, 2000.
linguagem da ciência apresenta certas
MORTIMER, E. F. Sobre chamas e cristais: a
especificidades, ou seja, que se trata de linguagem cotidiana, a linguagem científica e
uma formação discursiva específica em o ensino de ciências. In: CHASSOT, A. &
que os sentidos dados às palavras podem OLIVEIRA, J. R. Ciência, ética e cultura na
educação. São Leopoldo: Ed. UNISINOS,
ser diferenciados daqueles da linguagem
1998, p.99-118.
comum, mas entendemos também que as
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no
construções da ciência também dependem movimento dos sentidos. 3.ed. Campinas:
e são mediadas pela linguagem. Editora da UNICAMP, 1995.
Acreditamos que desnaturalizar essa

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Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006

ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria,


leitura e efeitos do trabalho simbólico.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1996a.
ORLANDI, E. P. A linguagem e seu
funcionamento. 4. ed. Campinas, SP: Editora
Pontes, 1996b.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: _________________________________
princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas,
SP: Editora Pontes, 2003. Patrícia Montanari Giraldi é membro do
DICITE, doutoranda do Programa de Pós-
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou
graduação em Educação Científica e
acontecimento. Trad. de Eni Pulcinelli
Tecnológica da UFSC.
Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 1990.
E-mail: patriciamg@ced.ufsc.br
SILVA, H. C. Discursos escolares sobre
gravitação newtoniana: textos e imagens na Suzani Cassiani de Souza é coordenadora do
física do Ensino Médio. Tese (Doutorado em DICITE, professora adjunta do Depto.
Educação). Campinas, SP: Faculdade de Metodologia de Ensino do Centro de Ciências
Educação/Unicamp, 2002. da Educação e do Programa de Pós-
SOUZA, S. C.; NASCIMENTO, T. G. Um graduação em Educação Científica e
diálogo com as histórias de leituras de futuros Tecnológica da UFSC.
professores de ciências. Pro-Posições E-mail: scsouza@ced.ufsc.br
(Unicamp), v. 17, p. 105-136, 2006.
STELLING, L. F. P.; SELLES, S. E. A
terminologia técnica em livros didáticos de
Biologia para o segundo grau: Uma análise.
In: Atas do VI Encontro Perspectivas do
Ensino de Biologia, São Paulo, 1997.
TERRAZZAN, E. A.; AMORIM, M. A. L.;
GIRALDI, P. M.; FERRAZ, D. F. Análise de
apresentações analógicas em coleções
didáticas de Biologia. In: Atas do VIII
Encontro Perspectivas do Ensino de Biologia,
São Paulo, 2002.
TERRAZZAN, E. A.; AMORIM, M. A. L.;
GIRALDI, P. M.; FERRAZ, D. F.; FELTRIN,
C.C.; POZZER, L.L. Analogias como recurso
didático no ensino de Ciências: experiências
em aulas de Física e de Biologia. In: Atas do
10º Encontro Nacional de Didática e Prática
de Ensino, Rio de Janeiro, 2000.

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