Você está na página 1de 2

A perseverança da memória

VALÉRIA LAMEGO 
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na noite de 13 de maio de 1984, um domingo, o bairro da Glória, no Rio de Janeiro, foi surpreendido por um
estampido de revólver calibre 32. Pedro Nava, aos 80 anos, suicidava-se. Sua morte significava para toda
uma geração de leitores a perda de um memorialista de raras qualidades e de um médico que se dedicara à
profissão com afinco e seriedade sacerdotais. "O médico", dizia ele, "tem que viver em estado de pânico com
a saúde alheia".
Passados 12 anos, finalmente o autor de seis dos mais importantes livros de memórias da literatura brasileira
e o homem amargurado com o "mandarinato" na medicina, cuja vida foi vasculhada por si e pelos curiosos,
ganha a primeira obra biográfica: "A Solidão Povoada", da pesquisadora francesa Monique Le Moing.
Le Moing traz de volta o autor de "Baú de Ossos", "Balão Cativo", "Chão de Ferro", "Beira-Mar", "Galo das
Trevas" e "O Círio Perfeito", o poeta de "O Defunto", o médico reumatologista que deu destaque à sua
especialidade no Brasil, mas sobretudo o homem público que escancarou sua vida e suas mágoas profundas
por meio da arte de escrever.
Incentivado por amigos escritores -desde os anos 20 fazia parte do seleto grupo de jovens modernistas
mineiros, o Grupo do Estrela- a dar ensejo à sua verve, Nava inicia sua carreira de memorialista aos 65 anos.
Tinha pouco tempo. Mas, em breve período, produziu uma obra de grande extensão. Cristalizou-a em
palavras, sons, cores, cheiros, gostos e trejeitos da fala popular, deixando um dos mais ricos registros de sua
geração -aquela mesma de Carlos Drummond de Andrade, Afonso Arinos, da prima Rachel de Queiroz.
Em "A Solidão Povoada", tese de doutorado defendida na Sorbonne e segundo trabalho da pesquisadora
sobre literatura brasileira, Le Moing analisa com perspicácia a obra de Nava e, pela primeira vez, coloca em
questão a personalidade solitária e dúbia do nosso maior memorialista. O mistério da morte -a princípio,
suicídio ou assassinato?- e os rumores de que o escritor frequentava "certos meios homossexuais", alertaram
a pesquisadora na sua passagem pelo Brasil em 1985.
Le Moing, que participava de rodas literárias do Rio desde seu primeiro trabalho, "O Ciúme na Obra de
Machado de Assis e de Alain Robbe-Grillet", percebeu que, por trás de tão grande polêmica, pululavam tabus
seculares, mantidos a ferro e fogo por uma sociedade altamente excluidora e, sobretudo, perseguidora, como
a do Brasil nos anos 30, 40, 50...
Foi na própria obra de Nava que a pesquisadora encontrou respostas para a tão comentada bissexualidade do
escritor e a sua difícil relação com as mulheres. Le Moing lembra que nas quase 3.000 páginas de memórias
jamais citou sua mulher, Nieta Penido, com quem se casou aos 38 anos. Limitou-se à figura da mãe, das tias
e de muitas prostitutas, além de uma lendária noiva, nos idos de 20, que, coincidência ou não, teria dado fim
à vida com um tiro na têmpora.
Doze anos após sua morte, a personalidade inquieta de Pedro Nava continua sofrendo a mais deplorável
perseguição moral. Nos últimos anos de vida, o escritor vinha sendo ameaçado por telefonemas e, no dia em
que metera uma bala no crânio, fora, mais uma vez, vítima de chantagens.
Por volta das 21h do fatídico domingo, 13 de maio de 1984, soa o telefone de sua casa. Segundo sua mulher,
o médico ouviu toda a ligação sem dar uma resposta. Voltou à sala transtornado e teria dito: "Nunca ouvi
nada tão obsceno pelo telefone".
Silenciosamente deixou o apartamento. Horas depois, era encontrado morto. Teria se suicidado devido a uma
chantagem? Talvez.
Em seus últimos livros de memórias, "Galo das Trevas" e "O Sírio Perfeito", vinha se vingando daqueles que
considerava seus inimigos: os médicos que apelidara de "marrons", por contrariarem o juramento de
Hipócrates, ao fazerem da doença alheia motivo de proveito próprio.
Antes de morrer, no entanto, Nava deixou entre seus papéis um estranho documento, que pode ser a chave
para a compreensão de parte de suas angústias. Neste, pede que o próprio escrito, além de um bilhete em
anexo, sejam publicados depois de sua morte e que fiquem em seu arquivo "vá este para onde for",
reafirmando, amargurado, seu "nojo infinito pelos homens". Este segundo bilhete, de autoria desconhecida, o
acusa de falta de pudor, de gostar de um "troca-troca" e termina com a seguinte ameaça: "Vou lhe telefonar
uma noite dessas".
Apesar da vontade expressa de Pedro Nava -de ver os bilhetes impressos-, a publicação deles em "A Solidão
Povoada", segundo nota editorial, não foi autorizada por um contraparente, o sobrinho de sua mulher, Nieta
Penido, e atual detentor dos direitos autorais da obra de Nava. Impedimento moralista e grave, pois, como
lembra Le Moing: "Pedro Nava matou-se a bala depois de ter recebido um telefonema"... Grave também é
uma anotação de Nava sobre o bilhete anônimo: as letras CP e o número 4251. Seriam as iniciais e um
provável registro profissional do chantageador?
Desde 1975, segundo Le Moing, Nava vinha se sentindo traído pela sua classe profissional. Fora afastado da
direção da Policlínica Geral por médicos mais jovens. E, no desentranhamento de suas mágoas, inventou
personagens, como a dupla de médicos Sacanagildo Goiaba e Arquimimo Pascácio Vibrião Colérico, ambos
grandes canalhas.
Intelectual polivalente, correspondente "contumaz" de Mário de Andrade, Pedro Nava nos deixou em seu
vasto baú -recuperado em boa hora por Le Moing- poesias, crônicas e muitas ilustrações e caricaturas.
Le Moing reuniu com pertinência todas as peças do quebra-cabeças deixado por Nava. Sua obra, sua
medicina, sua sexualidade, seu relacionamento com as mulheres e com a religião, sua obra inédita, seus
desenhos, sua morte e solidão. Juntas, essas peças dão sentido à trajetória do dr. Pedro Nava, de quem disse o
amigo Drummond: "A vida o quis torcer para o rumo exclusivo da ciência, mas viu-se, afinal, que esta não o
despojou da faculdade, meio demoníaca, meio angélica, de instaurar um mundo de palavras que reproduz o
mundo feito de acontecimentos".
Trajetória repleta de ossos humanos, povoada por muitos amigos e por alguns desafetos, por leitores e
pacientes, mas sobretudo por uma memória companheira e resistente à infinita solidão... 

Você também pode gostar